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A Liberdade pode Limitar a Guerra?

Tempo de Leitura: 7 minutos

Por David Gordon

[Tradução de Can Liberty Limit War? por Alex Pereira de Souza, retirado de Mises Review 9, N.º 1  (Primavera de 2003)]

[The Nomos of the Earth in the International Law of the Jus Publicum Europaeum. Por Carl Schmitt, traduzido por G.L. Ulmen. Telos Press, 2003, 372 pgs.]

Carl Schmitt oferece uma crítica fundamental de uma maneira de pensar sobre política e poder. Se ele estiver certo, alguns libertários, entre muitos outros, foram vítimas de uma visão radicalmente equivocada da ação política, especialmente no que diz respeito à guerra. Não acho que Schmitt esteja certo, mas seu trabalho profundo requer atenção séria. Nomos of the Earth, tradução de um livro publicado pela primeira vez em 1950, é o relato mais abrangente do pensamento de Schmitt aplicado às relações internacionais. (O professor Ulmen incluiu vários artigos suplementares de Schmitt nesta tradução, bem como notas muito úteis.)

Schmitt identificou e criticou um padrão de pensamento sobre a guerra. Afirma-se frequentemente que, como a guerra é uma coisa terrível, envolvendo matança em massa, ela deve ser abolida por completo ou restringida por regras rígidas de justiça. Os libertários se enquadram nesse padrão. Diríamos que, segundo o princípio de não-agressão, o uso da força só se justifica em resposta à força, ou ameaça de força, dirigida contra os próprios direitos, como caracterizado pela teoria libertária. A teoria não muda quando as nações entram em cena. Um estado pode se engajar em uma guerra justificadamente apenas se outro país violasse os direitos libertários.

Qual é o problema com isso? Se Schmitt se opõe aos limites da guerra, ele não está simplesmente expressando sua própria admiração pela luta violenta? Notoriamente, Schmitt apoiou os nazistas, principalmente durante os anos de 1933-1936, embora já tivesse anteriormente se oposto a eles. A crítica profunda de que falei é simplesmente uma versão erudita da apologética fascista?

Eu não acho. Podemos ver o que Schmitt tem em mente imaginando como ele responderia à visão libertária esboçada acima. O que acontece se um país não seguir os ditames que a teoria libertária prescreve? Outras nações podem então pegar em armas contra ela, em um esforço para “impor a lei da natureza”, na frase de Locke? Um exemplo mostrará a relevância da pergunta de Schmitt. O regime de Saddam Hussein, sem dúvida, violou os direitos libertários de alguns moradores do Iraque. Os Estados Unidos podem então, justificadamente, travar uma guerra contra ele? A ênfase indevida nos direitos e na lei, temia Schmitt, levaria a uma guerra perpétua para impor a ordem legal que os supostos agressores haviam violado. Mas qual é então a alternativa? Deve-se abandonar toda pretensão de justificativa para a guerra e lutar como quiser? Enfrentamos uma escolha entre princípios abstratos que levam à guerra ou a adoção direta do militarismo?

Schmitt achava que havia uma saída para esse dilema. Um grupo de nações poderia “delimitar” a guerra. O grupo em questão não estabeleceria um sistema de regras que classificasse como criminosos aqueles que as violassem: fazer isso gera o problema que acabamos de descrever. Em vez disso, o grupo, reconhecendo que as nações frequentemente se envolvem em luta armada, seguiria práticas concretas que limitassem as guerras que surgissem.

E isso não é mera hipótese. Schmitt afirma que duas vezes durante a história da Europa, uma ordem desse tipo foi estabelecida. Durante a Idade Média, “[a] unidade abrangente do direito internacional da […] Europa foi chamada respublica Christiana [república cristã] e populus Christianus [povo cristão]. Tinha ordens e orientações definidas. […] O ponto essencial é que, dentro da esfera cristã, as guerras entre príncipes cristãos eram guerras delimitadas. Distinguiam-se das guerras contra príncipes e povos não cristãos. Essas guerras internas e delimitadas não negavam a unidade da respublica Christiana. […] Isso significa que elas não aboliam ou negavam esta ordem total” (pp. 58-59).

Como sempre para Schmitt, as regras abstratas são o inimigo. Na ordem medieval que acabamos de descrever, “a paz […] não era um conceito flutuante, normativo e geral, mas orientado concretamente para a paz do império, do governante territorial, da igreja, da cidade, do castelo, do mercado, da assembleia jurídica local” (p. 59).

Agora podemos compreender o pensamento-chave de Schmitt. Como as nações que constituem a ordem seguem práticas concretas que regulam quando as guerras acontecem e como elas devem ser conduzidas, elas evitam o perigo de recorrer constantemente à guerra, em busca de princípios abstratos.

Schmitt dedica a maior parte de sua atenção no livro à ordem das nações europeias que prevaleceu dos séculos XVI ao XX. Aqui, mais uma vez, a chave para todos os mistérios é evitar regras abstratas que exigem a guerra perpétua para aplicá-las. “O ponto de referência formal para determinar a guerra justa não era mais a autoridade da igreja no direito internacional, mas a soberania igual dos estados. […] Qualquer guerra entre estados, entre soberanos iguais, era legítima. Dada essa formalização jurídica, uma racionalização e humanização — uma delimitação — da guerra foi alcançada por 200 anos” (p. 121).

Mesmo um leitor simpático a Schmitt provavelmente considerará sua afirmação extrema. Não é paradoxal pensar que a guerra pode ser limitada pela eliminação total da noção de guerra justa? Schmitt não se deixa intimidar pelo paradoxo e insiste incansavelmente em seus argumentos contra as tentativas “teológicas” de estabelecer regras para a guerra justa. “Um verdadeiro jurista deste período de transição [para a ordem da Europa moderna], Gentili, formulou o grito de guerra. […] Silete theologi in munere alieno! […] [figurativamente: Teólogos deveriam cuidar de suas vidas!]” (p. 121).

Mas Schmitt retratou corretamente a era histórica que ele discute? Francisco de Vitória não estabeleceu regras explícitas não apenas para a condução da guerra (jus in bello), mas também para a legitimidade de travar guerras (jus ad bellum)?

Schmitt está pronto com seu contra-ataque. Vitória não formulou regras abstratas destinadas a governar todas as nações. Em vez disso, ele escreveu para uma ordem política concreta, governada pelo cristianismo. Vitória não aceitava a suposição moderna de que no máximo um lado em uma guerra pode estar agindo com justiça. O oponente nessa visão conta como um criminoso e não como um soberano igual. “Só por isso, a distinção moderna entre guerra justa e injusta carece de qualquer relação com a doutrina escolástica medieval e com Vitória” (p. 122).

Nomos of the Earth segue muitos atalhos, como Schmitt repetidamente manifesta seu aprendizado extraordinário; e um deles é relevante aqui. Schmitt atribui a visão comum de que Vitória era um defensor da moderna teoria da guerra justa a uma campanha de propaganda histórica, liderada por juristas que queriam tornar a guerra agressiva um crime. “James Brown Scott, o jurista americano de renome mundial […] Secretário do Carnegie Endowment for International Peace […] dedicou-se a se tornar o expoente oficial da fama de Vitória. Andrew Carnegie, em sua carta de 14 de dezembro de 1910, estabelecendo o Endowment , caracterizou a guerra como essencialmente criminosa […] é claro, sem citar nenhum teólogo. Scott, no entanto, considerou os teólogos espanhóis um grande recurso” (pp. 118-19).

É preciso reconhecer a força do argumento de Schmitt. A busca de regras abstratas pode de fato resultar em “guerra perpétua pela paz perpétua”. Mas ouso sugerir que Schmitt vai longe demais. Se todas as tentativas de avaliar a justiça das guerras por estados soberanos são descartadas como teológicas e abstratas, não abandonamos completamente a causa das relações pacíficas entre os estados? Schmitt afirma que “a Primeira Guerra Mundial começou em agosto de 1914 como uma guerra de estados europeus no velho estilo. As potências em guerra se consideravam mutuamente estados igualmente legítimos e soberanos. […] Agressão ainda não era um conceito do direito internacional europeu tradicional” (pág. 259). Se ele estiver certo, o sistema de estados europeu tradicional não tem muito a responder? A velha ordem, ao que parece, foi capaz de produzir uma guerra de morte e destruição assustadoras.

A Primeira Guerra Mundial ameaça o edifício de Schmitt, mas não o destrói. Ele está em seu elemento com uma análise brilhante dos tratados e diplomacia da Europa pós-Primeira Guerra Mundial. A Liga das Nações, em particular, desperta a fúria de Schmitt. Exemplificou o tipo de abstração perniciosa que ameaçava desencadear uma violência contínua. “Em Genebra, no entanto, falou-se muito sobre a proibição e abolição da guerra, mas nada sobre uma delimitação espacial da guerra. Ao contrário, a destruição da neutralidade levou ao caos espacial de uma guerra mundial global e à dissolução da ‘paz’ em demandas ideológicas de intervenção sem qualquer concretude espacial ou estrutura […] a vigorosa tentativa de tornar a agressão um crime no direito internacional […] deu em nada” (p. 246). Schmitt destaca que as potências vitoriosas após a Primeira Guerra Mundial buscaram acusar a Alemanha do crime de agressão. A guerra não era mais uma medida aceita que um estado soberano pudesse empreender; agora, se travada agressivamente, era um crime. Se assim for, as nações não poderiam com propriedade permanecer neutras. Uma tentativa de fazê-lo seria o equivalente a alguém dentro de um estado declarando sua neutralidade entre um criminoso e a polícia. O esforço para criminalizar a guerra levaria assim à sua extensão.

Como os libertários devem responder às críticas de Schmitt às abstrações? Ele localizou uma falha fatal na visão libertária? Se pensarmos que a força é justificada apenas em resposta a uma violação dos direitos libertários, parecemos presos pelo argumento de Schmitt. Os libertários não serão tentados a ver as nações agressoras como criminosas? Se sim, o libertarianismo é outra versão da guerra perpétua pela paz perpétua? Acho que os libertários têm uma saída. Se alguém pensa que a força é justificável apenas como resposta a uma violação dos direitos libertários, de forma alguma se segue que estejamos comprometidos a intervir sempre que tal violação ocorrer. Um libertário não tem necessidade de impor a lei da natureza, mesmo que tenha o direito lockeano de fazê-lo. O libertário pode rejeitar a punição de nações que “agridem”, precisamente pelas razões que Schmitt tão habilmente apresentou. Aqui, pela primeira vez, um princípio abstrato não precisa levar às consequências que Schmitt temia.

Murray Rothbard adotou exatamente a posição que acabei de mencionar. Apesar de seu firme compromisso com o princípio da não-agressão, suas críticas à segurança coletiva e ao intervencionismo são paralelas às de Schmitt. Em For a New Liberty, por exemplo, ele escreve: “Mas ‘agressão’ só faz sentido no nível individual de Smith-Jones, assim como o próprio termo ‘ação policial’. Esses termos não fazem sentido em nível inter-Estado.”

Se o libertarianismo desse tipo escapa às restrições de Schmitt, surge uma outra questão: é preferível ao sistema de ordem europeia que Schmitt descreveu? Uma vantagem da visão libertária é que ela evita o passo drástico de ver todas as guerras empreendidas por estados soberanos como guerras justas. Em vez disso, limita estritamente as ocasiões em que um estado pode empreender uma ação militar. A razão pela qual os princípios abstratos que Schmitt condena levaram à guerra está no conteúdo desses princípios, não em seu caráter abstrato. Se não queremos a guerra, adotemos princípios que a limitem. Schmitt zomba de Charles Journet, que afirmou que “se a definição de guerra justa fornecida por São Tomás de Aquino […] for levada a sério, provavelmente se pode contar o número de guerras verdadeira e completamente justas nos dedos”, (p. 58, nº 4), mas os libertários que seguem Rothbard irão aplaudi-lo.[1]


[1] O livro do Cardeal Journet que Schmitt cita está disponível em tradução inglesa (Charles Journet, The Church of the Word Incarnate 1 [Kansas City: Sheed and Ward, 1955]). A discussão relevante, que eu recomendo, está nas pp. 304-30.

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