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Análise de A Riqueza das Nações

Tempo de Leitura: 8 minutos

Guia de Leitura do Livro I

O livro I, em A Riqueza das Nações, contém a essência da teoria do valor e da distribuição de Smith; começa com uma discussão das vantagens da divisão do trabalho[1], entendida no sentido da especialização das tarefas dentro de uma empresa industrial[2]. Mas a “divisão do trabalho” pode também significar a separação de diferentes empresas que fabricam múltiplos produtos por um processo de desintegração vertical ou horizontal, seguido de concentração na fabricação de produtos únicos. Este segundo sentido do termo cedo fez obscurecer a primeira acepção do mesmo. Com efeito, todo o Livro I está elaborado com base no grande tema da divisão social do trabalho: o sistema econômico é, na sua essência, uma vasta rede de inter-relações entre produtores especializados e é fundamentada na “propensão à troca, ao intercâmbio e à transação”[3].

A fé na poderosa influência da educação, relativamente às características da natureza, tão típicas do século VXIII, explica porque é que Smith se esquece de mencionar o aproveitamento das diferentes aptidões naturais como um das vantagens da divisão do trabalho; mas a “divisão do territorial do trabalho” é ignorada sem qualquer razão aparente. O capítulo III do Livro I chama atenção para o fato de que “a divisão do trabalho é limitada pela dimensão do mercado”; por outras palavras, nada limita a extensão da divisão do trabalho senão o volume de produção escoado[4].

Análise da obra

Smith foi um teórico que dedicou quase toda sua vida ao magistério. Tendo nascido na Escócia em 1723, foi estudante da universidade de Glasgow de 1737 a 1740; seu mestre foi o filósofo e historiador Francis Hutcheson da Escola de Senso Moral; em seguida estudou até 1746 em Oxford. Professor em Edimburgo, depois em Glasgow, ensinou a filosofia moral, ciência vastíssima, que compreendia teologia, ética, jurisprudência, direito político e economia política. Partindo da necessidade de fazer um estudo sintético dessas ciências diversas e complementares, começou ele por fazer a análise em duas obras: Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e Riqueza das Nações (1776).

Smith estabelece uma ciência econômica que tem numerosos pontos de semelhança com a apresentada pelos fisiocratas[5]. Como eles, busca leis naturais que expliquem e liguem os fenômenos econômicos; e assim, como Quesnay e seus seguidores, o pensador escocês chega ao liberalismo.

Mas, e nisso os ultrapassa, Smith soube assentar seu estudo em um corpo mais organizado e amplo de análise. Alargando, assim, o campo dos estudos econômicos, pois ele partiu de um ponto de vista menos estreito que os fisiocratas: em vez de centralizar os problemas econômicos exclusivamente na agricultura, Smith apela para o “trabalho”. Ele acredita que o “trabalho ajudado pelo capital” é a atividade criadora; e assim, ao tentar se libertar dos antigos preceitos, Smith reage contra as concepções metalista dos mercantilistas e a concepção ruralista dos fisiocratas[6].

Enquanto os mercantilistas achavam que riqueza era o ouro; para os fisiocratas, terra. Smith vê que riqueza tem sua origem no trabalho do homem. Este ponto de vista, fundamental no entendimento do pensamento do autor, surge desde a primeira linha, na introdução da Riqueza das Nações:

“O trabalho anual de toda a nação é o fundo primitivo que fornece ao consumo anual todas as coisas necessárias e cômodas à vida, e essas coisas são sempre, ou o produto imediato desse trabalho ou comprados de outras nações com esses produtos.”

Essa noção de trabalho, que substitui a noção da Escola de Quesnay de produtividade exclusiva da agricultura, dará origem à concepção smithiana de “liberdade natural”. O autor empreende um aprofundado estudo do trabalho e de sua produtividade. Será essa produtividade que ele colocará como base da explicação da riqueza das diferentes nações. Como ele mesmo pontua em sua obra A Riqueza das Nações: 

“Não se veem, por ventura, povos pobres em terras vastíssimas, potencialmente férteis, e em climas dos mais benéficos? E, inversamente, não se encontra por vezes uma população numerosa vivendo na abundância em um território exíguo, ate por vezes em terras penosamente conquistadas o oceano, ou em territórios que não são favorecidos por dons naturais? Ora, se essa é a realidade, é porque há uma causa sem a qual os recursos naturais, por mais preciosos que sejam, nada são, por assim dizer; uma causa que, quando em ação, pode suprir a ausência ou insuficiência de  recursos naturais, uma causa em outros termos, geral e comum da riqueza, causa que, posta em movimento diferentemente entre os povos diversos, explica as desigualdades de riqueza entre cada um deles; essa causa dominante é o trabalho.”

Assim, na visão de Smith, é a proporção entre o produto desse trabalho e o número dos consumidores que torna uma nação mais ou menos rica:

“Se o produto do trabalho se encontra em maior ou menor proporção com o número de consumidores, a nação se encontrará mais ou menos provida de todas as espécies de coisas necessárias ou cômodas, de que precisa”.

Essa proporção entre produto do trabalho e o consumo é determinada por um elemento quantitativo do trabalho, isto é, pela relação entre o número dos que trabalham e dos que não trabalham; principalmente por um elemento qualitativo do trabalho: eficiência. Smith mostra que, quanto ao rendimento, a qualidade do trabalho é mais importante que a quantidade. Ele observa que as nações civilizadas, ainda que seja imenso o número de desocupados, a quantidade dos objetos de consumo é mais do que suficiente para todos: os mais pobres, ainda que sóbrios e laboriosos, podem dispor de maior número de bens consumíveis do que um indivíduo mais favorecido de uma aldeia primitiva. Portanto, é preciso que a eficiência do trabalho seja maior entre os povos civilizados do que entre os primitivos. Essa eficiência do trabalho nas nações em progresso decorre essencialmente da divisão do trabalho, e Smith o demonstra com exemplos tomados nos fatos. O exemplo que, segundo o autor, melhor mostra a superioridade do trabalho dividido é a fabricação de alfinetes. Ele observa que dez operários conseguem, dada a divisão do trabalho, produzir sem esforço num dia 48.000 alfinetes, enquanto um único operário, por mais hábil que fosse, se tivesse que realizar todas as operações sozinho, poderia, talvez, fazer um alfinete ao dia.

A teoria da produtividade, por ele apresentada, é, portanto, no âmbito privado, um hino de glória à divisão do trabalho. No âmbito nacional, a divisão do trabalho proporciona alta produtividade e é, portanto, para cada homem, um fator de bem-estar e, para cada país, de riqueza. No campo internacional, transforma o mundo numa vasta oficina, na qual o trabalho é executado onde possa receber o melhor auxílio da natureza e das aptidões dos homens, dando o máximo rendimento no menor tempo e esforço.

Ai surge um dos aspectos mais marcantes do pensamento smithiano, colocado em evidência pela ligação a divisão do trabalho e a troca: o seu aspecto pacífico. Tanto no plano nacional como no internacional, a divisão do trabalho e a troca que ela implica e faz vantajosa, torna os homens, as economias e as nações solidárias, em virtude de suas atividades diferentes, mas complementares. Mas, além de hino à divisão do trabalho, essa teoria da produtividade do trabalho tece um louvor ao poderio e à eficiência do interesse individual. Com efeito, para Smith, a divisão do trabalho é eficiente, não apenas pelas suas qualidades econômicas, mas também porque o homem se deixa conduzir, espontaneamente, a ela pelo seu interesse pessoal, que sendo aparentemente egoísta, corresponde ao interesse geral[7].

Smith crê, como os fisiocratas, que interesse particular do individuo poderá assegurar o processo geral da riqueza, e é otimista no que concerne aos resultados desta ação individual; mas põe de margem a concepção providencial que servia à Escola de Quesnay para estabelecer a ligação entre os interesses privado e o geral. Assim, para o pensador escocês, o fundamento metafísico deve ser posto à margem: o comportamento individual basta para explicar que espontaneamente – não mais providencialmente – a soma dos interesses individuais resulta o geral. E daí o liberalismo: se o interesse individual se conforma com o interesse geral, é preciso na prática deixar livres os interesses privados.

Neste sentido, o liberalismo não somente se afirma como também muda de concepção: torna-se laico. A ciência econômica, graças a esse motor comportamental, poderá evoluir com uma flexibilidade maior para concepções mais exatas, que, muito tempo depois, dará base às teorias modernas da Revolução Marginalista em economia[8].

Essa divisão do trabalho, cuja eficiência Smith mostra, não pode ser aplicada intensamente a qualquer tempo ou lugar. Exige, antes, a coexistência de duas condições imperativas: a extensão de mercado e a abundância de capitais. É preciso, para poder produzir em abundância, dispor de mercados suficientes: deles depende a produção. A política que mais favorece a ampliação de mercados, segundo o pensamento smithiano, é a liberdade de comércio. Mas, só isto não basta. Para que o trabalho possa se dividir cada vez mais é vital a acumulação crescente de capitais. Reagindo, assim, contra os argumentos mercantilistas que tinham exagerado o papel do metal precioso, mas tinham desconhecido o do capital. Smith, pela primeira vez na história da economia, mostrou de que maneira as diferentes espécies de capital agirão, a fim de aumentar a divisão do trabalho[9]

Para que esse aumento de capital aconteça nas melhores condições, é indispensável ainda o regime de liberdade. Smith demonstra, no percurso de sua obra, que a causa imediata do aumento do capital é a poupança. Sua quantidade numa indústria dada depende, essencialmente, da diferença entre o valor do produto e o valor do consumido na sua produção. Convém, portanto, para que a poupança venha a ser a mais considerável possível, que os capitais se dirijam para a produção naqueles ramos em que os lucros são mais elevados.

É preciso contar com o interesse individual dos capitalistas para que os capitais, a qualquer momento, possam tomar a direção que melhor sirva ao interesse social. É, aliás, o que tinha escrito Quesnay em sua obra:

Laissez faire; os capitais aumentam e afluem para aqueles lugares onde mais livremente se pode dispor deles.”

É, portanto, a harmonia espontânea existente entre os interesses geral e individual que Smith repisa todo tempo. Mostra seus efeitos em todos os ramos da economia: não somente no que concerne à divisão do trabalho e o desenvolvimento dos capitais, mas ainda ao propósito das leis econômicas ou das teorias sobre moeda, comércio exterior, lei de oferta e demanda ou da doutrina da população. Essa espontaneidade cujo motor é o interesse pessoal, é a engrenagem básica do sistema de “liberdade natural” smithiano. Ela devia naturalmente conduzi-lo a conclusões liberais. De fato, a liberdade a ele se impõe por dois motivos: como consequência da espontaneidade e como corolário do fato de ser o individuo soberanamente apto para descobrir e buscar seu próprio interesse. E realmente, Smith chega a conclusões liberais. Mas, se, juntamente com os fisiocratas, foi o campeão da liberdade de comércio, ele tentou identificar três deveres básicos: a paz, taxas moderadas e uma administração tolerável de justiça, pois, segundo ele, todo o resto, depois disso, virá pelo curso natural das coisas.

Na Riqueza das Nações, Smith insistirá sobre o primeiro dever do Estado, isto é, o de poupar à sociedade atos de violência e invasão por parte de outras sociedades independentes.

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Notas

[1] Mais à frente, no Livro V de A Riqueza das Nações, Smith admite que este tipo de especialização pode apresentar  algumas desvantagens como, por exemplo, menor flexibilidade de realocar pessoas ou recursos para outras áreas ou departamentos

[2] Smith não é um “profeta da Revolução Industrial” ou “o porta-voz dos interesses manufatureiros”. Muito pelo contrário, pois, segundo ele, o Livro I é dirigido contra a “ignóbil ganancia, o espirito monopolista dos comerciantes e manufatureiros, que não são e nem deverão ser os condutores do gênero humano”.

[3] O último parágrafo do Capítulo I do Livro I explica claramente este ponto: a certeza de poder trocar todo o excedente daquilo que produz com o seu próprio trabalho, e que vai além do seu próprio consumo, por aquelas coisas de que ele tem necessidade, produzidas pelo trabalho de outros homens, leva cada homem aplicar-se a uma determinada atividade e a cultivar e aperfeiçoar aquele talento ou gênio que lhe seja dado possuir para essa atividade particular.

[4] A expressão “dimensão de mercado” poderia fazer pensar que Smith estaria familiarizado com a noção de áreas de mercado, que compreende não só o número de clientes, mas também onde eles efetivamente se localizam espacialmente (ver Capítulo XIV, seção X da obra de Smith).

[5] De 1746 a 1766, Smith viaja na Europa como o jovem duque de Buccleugh. Ai conhece pessoalmente Voltaire e, durante sua estada na França, trava relações com os fisiocratas. É de volta à Escócia que escreve a Riqueza das Nações.

[6] O que não quer dizer que Smith seja inimigo da agricultura; ao contrário, ele mantem, talvez contra vontade, a ideia de superioridade na produção agrícola; sofre assim certa influência dos fisiocratas, mas se livra do exclusivismo deles nesse terreno e evita adotar a concepção de Quesnay de “esterilidade” do comércio e da indústria.

[7] Exemplo utilizado por Smith para evidenciar o interesse individual correspondente ao interesse geral foi: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que ele tem pelos próprios interesses. Apelamos não à humanidade, mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter.”.

[8] Para uma discussão mais detalhada, ver FEIJÓ, R. (2001). História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas.

[9] Capitais circulantes e fixos. O primeiro é necessário ao empresário enquanto este espera que o produto do trabalho esteja terminado e vendido; o segundo é necessário para adquirir a aparelhagem, instalação industrial, máquinas, etc. 

Bibliografia

BLAUG, M.    (1989). História do Pensamento Econômico. Lisboa: Dom Quixote. pp. 74-76. 

FEIJÓ, R. (2001). História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas.

HUGON, P. (1995). História das Doutrinas Econômicas. São Paulo: Atlas. pp.  96 -105.

KOEBNER, P. (1959). Adam Smith and the Industrial Revolution. The Economic History Review. Vol.II (3). pp 381-391.

RASHID, S. (1986). Adam Smith and the Division of Labour: A Historical View. Scottish Journal of Political Economy. pp. 292-297.

SMITH, A. (2008). Uma Investigação sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações. São Paulo: Hemus.

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