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Fundamentos ontológicos e exposição da demonstração da existência de Deus em São Tomás de Aquino

Tempo de Leitura: 33 minutos

Este texto é de minha autoria, originalmente estava disponível aqui, este link se dirige a um site onde há não somente artigos de minha autoria, mas também de antigos parceiros. A versão que aqui será lida consta com uma revisão a mais e é mais atualizada. Outros textos do escritor do último apêndice também constam no outro site.

Resolvi escrever este texto pois eu nada sabia sobre as vias, achei que escever algo sobre elas seria um bom exercício para ver até onde sou capaz de ir e talvez até ajudar alguém que esteja passando pela mesma situação ou esteja cheio de dúvidas. E bem… Não é pequena a quantidade de textos dissertando sobre as cinco vias, mas todos os textos que li ou eram complexos demais para eu entender (talvez seja por causa de excesso de pedantismo ou má escrita) ou então eram inconclusivos demais. Desse modo, eu resolvi ir atrás de uma bibliografia que pudesse me dar uma noção que creio que fosse suficiente — isso segundo algum critério do qual não me lembro. De qualquer forma, espero que esse texto seja de algum proveito para quem for lê-lo, até porque creio que escrevi aqui tudo o que sei e talvez mais um pouco. Busquei ser o mais claro que pude, utilizei-me de itálicos para destacar termos que considero importantes, o mesmo fiz com os apêndices, bem como as notas no fim do texto, mas com objetivo de desobscurecer os termos usados. Considero também que as referências e fontes que coloquei no final do texto podem ser de grande proveito a quem busca se aprofundar em metafísica e teologia natural.

Introdução

Quando falamos em “provas da existência de Deus”, podemos estar falando de duas coisas: demonstrar a alguém através de argumentos racionais que Deus existe ou experienciar certas coisas para que, a partir disso, passe-se a saber que Deus existe. Santo Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica e em outras obras, discursa da primeira forma apresentada: ele quis nos dar provas da sua existência e nos convencer através de provas apodíticas que Deus existe. Ele faz isso com as famosas Cinco Vias. Assumindo uma perspectiva realista epistêmica[1], mostra que todos nós, a partir da experiência com o mundo e até mesmo da própria subjetividade do sujeito, retirando disso princípios metafísicos como o princípio da razão de ser, de causalidade e a noção de participação, não poderíamos deixar de admitir um “primeiro motor imóvel”, uma “causa eficiente primeira”, o “ente absolutamente necessário”, o “ente maximamente ente” e um “fim último”.

Alguém poderia falar que Deus se situa acima da razão. Isso é, obviamente, uma afirmação vigorosamente defendida por pensadores cristãos, mas muitos usam isso como um argumento a favor da impossibilidade da demonstração racional da existência de Deus. Teólogos como Karl Barth, Lutero e Kierkegaard são exemplos de pensadores cristãos que vão contra apelos racionais quando se fala em Deus. Eles insistem que Deus, em virtude de sua revelação, de algum modo derruba a razão. Kierkegaard parece expressar essa visão de um modo muito mais intenso: cristãos acreditam em Deus, mas, diz Kierkegaard, o Cristianismo se baseia no ensinamento (uma revelação divina) de que Jesus não é apenas homem, mas também Deus; ora, tal doutrina, afirma Kierkegaard, é um absurdo e contraria a razão. A razão, diz ele, pode apenas responder à doutrina da Encarnação percebendo que ela a desafia: o “fato histórico” que é núcleo do Cristianismo possui um caráter peculiar que consiste em não ser um fato histórico ordinário, mas um fato baseado numa contradição[2]. Pode-se pensar que, em resposta a Kierkegaard, um apelo deveria ser feito à apologética cristã como podendo livrar a crença da Encarnação de Cristo de sua suposta contradição. Mas Kierkegaard parece ser totalmente totalmente contra a apologética cristã, chegando ao ponto de igualar a Judas qualquer um que venha com a ideia de uma apologética cristã[3]. Todavia, as afirmações as objeções que os autores aqui citados apresentam contra a teologia natural se baseiam principalmente em assuntos que envolvem a doutrina religiosa (algo sobre o qual não desejo tratar aqui), todavia, o ônus da prova do que podemos ou não conhecer de Deus através da razão natural recai sobre aquele que defende a possibilidade chegar a existência de Deus e a determinados predicados sem recorrer a fé. Somos, então, tal como fez São Tomás, compelidos a defender as teses a favor da existência de Deus — uma vez demonstrada a existência de Deus e determinados predicados d’Ele através da razão, refuta-se a tese de que Deus seria totalmente inacessível pela razão natural.

Quando falamos nas vias de São Tomás, falamos em provas a posteriori da existência de Deus, isto é, provas que partem de diversas noções dos entes que atestamos com nossos sentidos, e remontam a Deus como causa — causa análoga e universal. Em outras palavras: as vias partem dos efeitos, pois, como Deus é em si mesmo (sua essência ou quididade) é evidente apenas a Ele (evidente quoad se) e não para nós, a quididade (o “o que é”) de Deus, porém, pode ser captada por nosso intelecto, ainda que de uma maneira débil, à medida que a distância de magnitude infinita entre Deus e o mundo se relacionam porque tanto Deus quanto as criaturas se situam num mesmo horizonte: partilham de uma positividade entitativa, i.e., são entes, estão no horizonte do ser[4]. O mundo, distancia-se infinitamente de Deus à medida que Deus, como veremos, é ser por essência, enquanto os entes mundanos são ser por participação (ver Apêndice I). Assim, embora Deus não nos seja evidente, seus efeitos nos são evidentes, e a partir disso estabelece-se um meio de uma possível demonstração a posteriori, por meio do qual podemos chegar ao an sit (em sentido vulgar, existência) de Deus, bem como conhecermos alguns de seus predicados, ou seja, chegarmos à algo de seu quid sit, e isso mediante a luz da razão natural.

As vias, pelo menos em sua fonte original mais famosa (a Suma Teológica), são expostas de uma maneira relativamente simples, o leitor desavisado pode ser induzido a confundir tal simplicidade com fragilidade e superficialidade. Longe de ser superficiais e frágeis são elas, como muitos objetores parecem ter entendido e deixam a entender. Há, por trás das vias, uma refinada metafísica: a cada premissa se utilizam, tal como já havia sido dito anteriormente neste texto, as noções de participação, causalidade predicamental e causalidade transcendental, a doutrina dos transcendentais, a noção de analogia, etc.

Exposição e fundamentos da primeira via

A primeira via, é a “via do movimento”. Recebe esse nome pois o ponto de partida é a experiência do movimento, da mudança. Tomás nos diz que é a mais manifesta das vias, pois é um fator facilmente verificável pela nossa experiência sensível. O movimento propriamente dito, como sendo sempre movimento do algo de algo para algo, pressupõe uma coisa-que-muda, exige um substrato que permaneça após o movimento, ele, assim, é diferente de uma sucessão — por exemplo uma gota d’água que sucede outra no vazamento de uma torneira — , bem como é diferente de um fluxo, este, se de fato existe, seria semelhante as correntes de um rio. Em seu sentido metafísico, o movimento se estende por 4 das categorias aristotélicas: substância (movimento que chamamos de geração e corrupção), quantidade (aumento e diminuição), qualidade (alteração) e lugar (o movimento local). O movimento, assim, consiste na passagem da potência para o ato. O ato, definindo de modo grosseiro, designa a coisa como ela está agora, de modo estrito uma perfeição [disserto sobre a noção de perfeição mais adiante neste texto], e a potência indica como a coisa pode estar, uma capacidade de receber uma perfeição[5] — veja que aqui falamos em passividade, na capacidade de receber, e não de atividade ou operação, esta última configura a potência que chamamos de ativa (que seria o “poder dar uma perfeição”), que se diferencia da potência passiva, já definida antes. Desse modo, um ente móvel só pode ser passado da potência para o ato (1) mediante a razão de si mesmo (diferente de ser movido em razão de uma parte sua) (2) pelo nada ou (3) pela ação de outro. Pela sua razão não pode ser, pois não possui a perfeição a ser recebida em ato; se a possuísse, não estaria em potência para ela, isto é, não seria móvel — para ilustrar isso, elenca São Tomás o exemplo do fogo, quente em ato, que queima a madeira, quente em potência e passa a ser quente em ato pela ação do fogo. Pelo nada algo também não pode ser movido, pois o nada não possui potência[6]. Um móvel proveniente do nada seria o mesmo que uma operação sem um operante; o nada mover algo assumiria, também, uma precedência no sentido de maior perfectibilidade do não-ente sobre o ente, o que é impossível, pois o nada não comporta perfeições, senão que ele é a ausência de toda e qualquer perfeição. Assim, se algo não é movido mediante sua mesma ação, muito menos pelo nada, resta que seja movido por outro, que é um motor prévio, pois, se fosse um motor posterior, teríamos mais uma vez a comunicação de um predicado proveniente do nada. Assim, tudo que se move é movido por outro. Ou, de um modo mais rígido: nada passa da potência ao ato, senão por um ente em ato. Este ente em ato ou também é movido ou não o é; se não for, tal motor configura-se como imóvel e, portanto, teríamos chegado ao primeiro motor, que é ato puro, isto é, despido de qualquer potência passiva. Se for movido, terá de sê-lo por outro, e talvez se prossiga da mesma forma, e assim adiante. Mas não é possível que essa série causal regrida infinitamente, à medida que que se trata de uma série causal per se — i.e., uma série causal essencialmente ordenada, onde as causas são dependentes entre si — numa série desta espécie, um regresso indefinido ao passado terminaria num infinito em ato a parte ante; e, assim, como não haveria um primeiro motor, o movimento dos motores intermediários ficaria sem explicação e tampouco se explicaria o movimento final. Ademais, ao se apelar ao regresso infinito na série essencialmente ordenada de motores movidos, tal hipótese se mostra como absurda, pois aí, ou teríamos uma circularidade (já que, numa “linha reta”, caberia apenas atualidade potencialmente infinita, não seria infinita de fato, já que sempre se poderia acrescentar algo), na qual um ente seria causado por outro, que, por sua vez, seria causado pelo mesmo ente, caso em que teríamos um ente sendo movido segundo a própria razão, ou um ente que seria movido pelo nada, o que repugna a razão. Assim, para escaparmos ao círculo vicioso, faz-se necessário admitir um primeiro motor, que explique de maneira final o movimento dos entes, ele mesmo não sendo movido, a que chamamos de Deus.

Considero essa minha explicação como sendo fidedigna ao texto da Suma Teológica:

“A primeira, e a mais clara, parte do movimento. Nossos sentidos atestam, com toda a certeza, que neste mundo algumas coisas se movem. Ora, tudo o que se move é movido por outro. Nada se move que não esteja em potência em relação ao termo de seu movimento; ao contrário, o que move o faz enquanto se encontra em ato. Mover nada mais é, portanto, do que levar algo da potência ao ato, e nada pode ser levado ao ato senão por um ente em ato. Como algo quente em ato, por exemplo o fogo, torna a madeira que está em potência para o calor, quente em ato, e assim a move e altera. Ora, não é possível que a mesma coisa, considerada sob o mesmo aspecto, esteja simultaneamente em ato e em potência, a não ser sob aspectos diversos: por exemplo, o que está quente em ato não pode estar simultaneamente quente em potência, mas está frio em potência. É impossível que sob o mesmo aspecto e do mesmo modo algo seja motor e movido, ou que mova a si próprio. É preciso que tudo o que se move seja movido por outro. Assim, se o que move é também movido, o é necessariamente por outro, e este por outro ainda. Ora, não se pode continuar até o infinito, pois neste caso não haveria um primeiro motor, por conseguinte, tampouco outros motores, pois os motores segundos só se movem pela moção do primeiro motor, como o bastão, que só se move movido pela mão. É então necessário chegar a um primeiro motor, não movido por nenhum outro, e este, todos entendem: é Deus.”. (S.Th. I, q.I a.II resp.)

Vê-se aqui uma certa estrutura de premissas que é comum a todas as outras vias. Primeiro, como já foi dito anteriormente, há a constatação de algo que é conhecido empiricamente, mas considerado em um plano metafísico, por exemplo como foi exposto na primeira via: considera-se um ente que se move, mas não se considera tal ente aqui e agora na experiência senão enquanto ente móvel, ou seja, consideramos os entes particulares não em sua integridade, mas apenas enquanto são sujeitos á passagem da potência para o ato. Segundo, há a aplicação do princípio de causalidade a essa constatação empírica, que no caso da primeira via é “tudo o que se move é movido por outro”, que pode até ser chamado de um axioma escolástico: quid quid movetur ab alio movetur. Terceiro, há a afirmação da impossibilidade de uma regressão infinita no tipo de causalidade sobre a qual a primeira via discorre. Um ente não pode ser causa e efeito simultaneamente e sob o mesmo ponto de vista, faz-se necessário um ente que seja primeiro em ordem ontológica, em outras palavras: que seja preeminente. Uma série causal essencialmente ordenada (também chamada de série causal per se) continuaria indefinidamente à medida que a característica (o movimento) que exige um princípio que a explique poderia se aplicar também a qualquer um na série causal, a menos que a série termine em um ente que não esteja sujeito à característica enunciada e que seja também explicação suficiente dessa característica — ao movimento, no exemplo da primeira via. Em outras palavras: uma série de entes que dependem entre si para que possam continuar operando e para que passem a existir (série causal per se) precisa terminar em algum ente que seja independente. Se supormos que tal série causal não depende, em última instância, de um ente que seja independente dessa série, então algum ente ou ação existente na série não possuiria explicação. Por que seria esse o caso? Porque se todos os entes sujeitos à limitação implicada pela características entitativa constatada por cada uma das vias e, portanto, não tivessem uma explicação e final, algo teria vindo do nada, à medida que é impossível que a série causal seja infinita em ato, pois seria uma infinitude quantitativa, e sempre se poderia (veja o elemento e potencialidade) adicionar mais a essa quantidade, e, portanto, uma suposta série infinita em ato seria, na verdade, finita. Mesmo se se assumisse que os membros de uma série causal sejam infinitos em número, a existência da relação que há entre eles (a do movimento no caso da primeira via) não é explicada de forma suficiente por eles mesmos e nem pelo nada, essas relações não existem senão em virtude de um fundamento para isso, assim, tal suposta infinitude não repugnaria a existência de uma “causa primeira”, sendo infinita no tocante à quantidade de causas ditas intermediárias ou secundárias, que só existem e operam pela ação subordinativa da causa primeira.

São Tomás vê a relação de causa e efeito não como uma sucessão temporal, mas como uma sequência de “prioridades ontológicas”. Tal compreensão de causalidade se aplica a todas as cinco vias, mas compreendida sob o aspecto do fato constatado empiricamente, que é o passo inicial de cada uma das vias. Assim, no caso da primeira via: (1) nada passa da potência ao ato senão por um ente em ato (tudo o que se move é movido por outro), (2) do mesmo modo, para que a causa segunda possa atuar, transitando da potência ao ato (se mover), é necessário também outro ente em ato (um motor), e, (3) em última instância, um Ato Puro (motor imóvel), um motor imóvel, que é, portanto, livre de potência passiva: não supõe a carência ou ausência de perfeição alguma. Assim, o motor imóvel é o primeiro motor de todo motor movido da série, visto que eles precisam necessariamente estar numa relação de dependência com o motor imóvel. Sua atualidade pura explica todos os demais atos dos motores secundários.

Ao ente que chamamos aqui de “Ato Puro” ou “Motor Imóvel”, bem como do ente provado na conclusão das demais vias, associamos o nome “Deus”. Mas com cautela, para que se evite saltos. Há, de fato, uma correlação entre o Deus aqui dito e a noção religiosa de Deus, mas tal correlação obviamente precisa de argumentação. São Tomás justifica a correlação em questões subsequentes da Suma Teológica (bem como em outras obras, como o Compêndio de Teologia e a Suma Contra os Gentios), que lidam com o que podemos saber da natureza ou essência (o quid sit) do que foi demonstrado existente como causa primeira. Como outros em tradições contemporâneas a Tomás de Aquino tentaram fazer, tendo o que se entende por ente incausado, independente, necessário, imóvel (não confundir imóvel com inativo), poder-se-ia demonstrar também que é preciso que ele seja, por exemplo, único, absolutamente simples, infinito, dentre outros predicados que merecem sua problemática própria. Mas nenhum destes predicados são concluídos ao final de nenhuma das vias, razão pela qual as vias não recaem, por exemplo, em uma falácia de deslocamento de quantificador ou em algum tipo de salto, como alguns críticos deixam a entender.

A Segunda Via

A segunda via é a “via da causalidade eficiente”. Parte da experiência de que, em nossa realidade sensível, há entes que possuem uma dependência essencial entre si. Nisso consiste a noção de causa eficiente: um ente produzir outro ente ou evento, uma noção um tanto parecida com a de movimento. Aqui, considera-se os entes sensíveis não enquanto móveis, isto é, enquanto sujeito ao movimento — uma condição puramente passiva — , mas enquanto causas, que são causadas no exercício mesmo de suas operações. Obviamente, tal razão envolve (mas não necessariamente) um trânsito de potência ao ato de modo que, sob certo aspecto, a segunda via poderia ser reduzida à primeira na medida em que a causalidade eficiente, nos entes sensíveis, se dá justamente em termos de movimento, de redução da potência ao ato.

Mas não é, pois, a passividade apenas (a potência passiva) que é considerada, mas a atividade (a potência ativa) desenvolvida precisamente em função de outra atividade, ou melhor, a causa enquanto algo atuante e que é, por sua vez, atuada: a árvore que floresce e frutifica pelo influxo do sol, o pincel que é movido pela mão de um pintor, ou até mesmo a minha vontade que me faz mover a minha mão e digitar. Nada no mundo é causa de si mesmo, pelo mesmo motivo de que, se esse fosse o caso, a causa que seria causada por si mesma estaria em potência e ato ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista, que, nesse caso é o ponto de vista do ato de ser — o que significa que a “causa de si mesma” seria anterior a si mesma, o que é igualmente absurdo. Nada que está em potência se reduz ao ato senão por um ente em ato. O caminho da potência para o ato requer o influxo de um ente em ato, já que é inconcebível que o que está em potência, isto é, o que carece de uma perfeição, proporcione a si mesmo essa perfeição a qual ele carece enquanto está em potência para ela, isto é, não a possui.

Pelas mesmas razões que se propuseram na primeira via não podemos retroceder indefinidamente na série de causas essencialmente ordenadas valem também aqui. Pois se tratam de causas que atuam apenas enquanto causadas, de tal maneira que nenhuma delas, por mais numerosa que seja a série, seria capaz de causar a si mesma. Numa série indefinida de causas jamais haveria causas propriamente ditas, mas apenas efeitos, já que nenhuma delas seria, em última instância, atuada, pois teriam de “aguardar” infinitas causas para serem causadas e/ou causarem. Desse modo, faz-se forçoso admitir uma causa eficiente primeira, causa esta que é incausada, de cuja atividade todas as causas eficientes secundárias dependem[7].

Assim é exposto na Suma:

A segunda via parte da razão de causa eficiente. Encontramos nas realidades sensíveis a existência de uma ordem entre as causas eficientes; mas não se encontra, nem é possível, algo que seja causa eficiente de si próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio: o que é impossível. Ora, tampouco é possível, entre as causas eficientes, continuar até o infinito, porque entre todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é a causa das intermediárias e as intermediárias são a causa da última, sejam elas numerosas ou apenas uma. Por outro lado, supressa a causa, suprime-se também o efeito. Portanto, se não existisse primeira entre as causas eficientes, não haveria a última nem a intermediária. Mas se tivéssemos de continuar até o infinito na série das causas eficientes, não haveria causa primeira; assim sendo, não haveria efeito último, nem causa eficiente intermediária, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário afirmar uma causa eficiente primeira, a que todos chamam de Deus”. (Ibid.)

A Terceira Via e seus fundamentos

A terceira via parte das noções de necessidade e contingência, Tomás usa tais conceitos não no sentido frequentemente utilizado hoje em dia na Lógica Modal, na semântica dos mundos possíveis. Fala-se de necessidade e contingência no sentido de ser sujeito ou não à geração e corrupção. Assim, a terceira via parte da geração e da corrupção, é importante salientar essas noções, à medida que uma equivocada noção de necessidade e contingência aplicada a esse argumento só levaria a desentendimentos e espantalhos. Antes de continuar, a exposição de Tomás na Suma Teológica segue da seguinte forma:

A terceira via é tomada do contingente e do necessário. Ei-la. Encontramos, entre as coisas, as que podem ser ou não ser, uma vez que algumas se encontram que nascem e perecem. Consequentemente, elas podem ser ou não ser. Mas é impossível ser para sempre o que é de tal natureza, pois o que pode não ser não é em algum momento. Se tudo pode não ser, houve um momento em que nada havia. Ora, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria; pois o que não é só passa a ser por intermédio de algo que já é . Por conseguinte, se não houve ente algum, foi impossível que algo começasse a existir; logo, hoje, nada existiria : o que é falso. Assim, nem todos os entes são possíveis, mas é preciso que algo seja necessário entre as coisas. Ora, tudo o que é necessário tem, ou não, a causa de sua necessidade de um outro. Aqui também não é possível continuar até o infinito na série das coisas necessárias que têm uma causa da própria necessidade, assim como entre as causas eficientes, como se provou. Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra alhures a causa de sua necessidade, mas que é causa da necessidade para os outros: o que todos chamam Deus”. (ibid.)

De início, depara-se com uma forte afirmação, “o que pode não ser não é em algum momento”, obviamente tal coisa não se segue se tomarmos “necessidade” em seu sentido usado atualmente. É preciso observar primeiramente que São Tomás fala dos entes que são sujeitos à geração e à corrupção, a partir disso se consta: o que vem a existir pela geração, deixa de existir pela corrupção, o que é gerado precisamente em algum momento passou a ser e antes disso não era: os entes que são gerados antes de serem gerados não existiam, e os entes que se corrompem não existem depois de serem corrompidos. O contingente é, em sua essência, efeito, exige portanto uma causa. O contingente também é algo que existe e, nesse sentido, se diferencia do que é meramente possível. Disso se conclui que é impossível que só haja entes contingentes, pois é impossível que haja somente efeitos; desse modo, é preciso que haja entes necessários. Essa necessidade, segundo Tomás, pode ser uma necessidade essencial — chamada de necessidade per se — , ou uma necessidade acidental — chamada de necessidade ab alio ou então por participação. Em suma: aquilo que é necessário ou tem a causa de sua necessidade em si mesmo, ou em outro. Uma série infinita de entes necessários ab alio é impossível, à medida que se se supõe uma série infinita de causas, cada qual sendo existente por outra, nunca chegaria a existir causa alguma, pois, no final das contas, essa série constituiria uma infinita subordinação de efeitos, nenhum dos quais poderia chegar a ser, pois é antes preciso que exista uma quantidade infinita de entes que os precedem. É necessário, portanto, admitir a existência de um ente que seja necessário per se, cuja razão de necessidade é suficiente por si mesma, a que chamamos de Deus.

A Controvertida Quarta Via

A quarta via é considerada por muitos a mais controversa, e também a mais “diferente” das demais vias, vejamos a seguir:

“A quarta via se toma dos graus que se encontram nas coisas. Encontra-se nas coisas algo mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre etc. Ora, mais e menos se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximam diferentemente daquilo que é em si o máximo. Assim, mais quente é o que mais se aproxima do que é sumamente quente. Existe em grau supremo algo verdadeiro, bom, nobre e, consequentemente o ente em grau supremo, pois, como se mostra no livro II da Metafísica, o que é em sumo grau verdadeiro, é ente em sumo grau. Por outro lado, o que se encontra no mais alto grau em determinado gênero é causa de tudo que é desse gênero: assim o fogo, que é quente, no mais alto grau, é causa do calor de todo e qualquer corpo aquecido, como é explicado no mesmo livro. Existe então algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos Deus.” (Ibid.)

Logo com uma primeira leitura nota-se o porquê da quarta via ser considerada controversa: há várias afirmações fortes e que de modo algum nos são evidentes, senão que é um argumento cujas proposições são as que mais nos evidenciam o fato de haver várias pressuposições metafísicas, e que será necessário explicar algumas delas para que se obtenha um entendimento minimamente suficiente das vias.

O fato constatado pelos sentidos aqui são os graus de perfeição, uma perfeição — creio que podemos tratar assim — é uma propriedade positiva possível a um ente, um ente que é perfeito, portanto, nada do que lhe é devido falta. Entre as perfeições, há aquelas que podem ser ditas perfeições mistas, são perfeições que, em seu conceito, sempre implicam em uma imperfeição, isto é, numa na ausência de outra perfeição, exemplos de perfeições mistas são aquelas relacionadas aos animais (os conceitos de cavalo, ave, rato, etc.), magnitudes espaciais, térmicas etc. As perfeições puras (ou perfeições simples) são aquelas que, em seu conceito, não implicam em imperfeição alguma, como por exemplo o conceito de inteligência, o conceito de vida, de vontade, etc. Entre as perfeições puras, há aquelas que chamamos de perfeições transcendentais, são chamadas de transcendentais porque se encontram em todas as coisas à medida que são conversíveis com a noção de ente. Tudo o que se concebe já pressupõe entidade, isto é, já está na esfera do “é”, já é uma positividade real. Os transcendentais são modos gerais aplicáveis a todos os entes. Assim, o ente é dito uno, pois, em última instância, ele é indivisível. Tudo o que é, é uno, é uma totalidade e único numericamente. Tudo o que é, é também verdadeiro e bom, pois a razão de bom e verdadeiro não se restringe unicamente a um ou outro grupo de entes, mas os transcende, é impossível que haja um ente que não possua tais perfeições [é impossível um ente ininteligível (o caso da verdade) ou que não seja apetecível (o caso do bem)], sendo elas, portanto, perfeições transcendentais.

É a partir dessa noção que a quarta via se baseia: encontra-se nos entes perfeições que são sujeitas a uma gradação de mais e menos, há uma gradação na inteligibilidade das coisas (verdade), na composição das coisas (unidade), no apetite pelas coisas (bem). Quando se fala em gradações nas perfeições, fala-se em perfeições possuídas pelos entes de um modo limitado e variado, mais propriamente dizendo: de um modo participado. Pois, se os entes possuíssem essas perfeições de modo ilimitado, não haveria uma gradação de mais e menos entre os entes e todos possuiriam as perfeições na mesma intensidade. Assim, dizemos que nenhuma perfeição pode limitar-se por si. Se este fosse o caso, esse algo que limita a si mesmo teria de desempenhar o duplo e contraditório ofício dela mesma e ao mesmo tempo ser sua razão de ser e razão de não ser. Se ela de fato se encontra limitada (mais ou menos, segundo seus diversos casos), ela o é por algo distinto dela mesma e com o qual entra em composição, ou melhor, participa, a saber: o sujeito que tem essa perfeição. Porém, se tal sujeito não é a perfeição e, na verdade, a tem, é necessário que algo tenha sido dado. Sendo o mesmo caso se o ente que deu a perfeição tem essa perfeição de um modo restrito, tal como o sujeito que recebe um ato e o limita segundo sua própria capacidade receptiva. Não sendo possível proceder ao infinito nessa série, pois nenhum dos entes receberia sua própria “dose” de perfeição, por ter de aguardar a recepção de perfeições de infinitos sujeitos, é necessário que exista um ente que as tenha de modo ilimitado e as confira, segundos os graus diversos, aos que as possuem de forma restrita. Tal ente não seria sujeito a uma perfeição, um portador de valores, senão que terá de se identificar com a própria perfeição, pois ao contrário a limitaria e exigiria, portanto, a recepção da perfeição por parte de outro. E como todas as perfeições transcendentais são idênticas entre si (todas são conversíveis ao ente), não é necessário que para cada uma delas exista um correspondente máximo diferente. Todas elas se identificam com a infinita perfeição do Ente Supremo, perfeição suprema da qual todos os demais entes participam, ou seja, os entes partilham de uma mesma perfeição, e tem tal perfeição à medida que participam daquele que é por si as perfeições que são conversíveis ao ente, o Ente Supremo é, portanto, maximamente ente.

A Quinta Via

A quinta via possui como ponto de partida a experiência com a causalidade final, isto é, a finalidade dos agentes. É uma das mais sensíveis para se entender, e muitas explicações sobre ela podem deixar a desejar, na medida em que o argumento se assemelha bastante ao(s) argumento(s) do design inteligente. Embora de fato se assemelhe, a quinta via possui um arcabouço conceitual próprio e, diferente de muitas formulações do design inteligente, esse argumento possui (ou ao menos busca possuir) um caráter de apoditicidade, isto é, de uma conclusão que necessaria e exclusivamente segue das premissas, e não de mera probabilidade ou razoabilidade para a existência de um ente pelo qual todas as coisas naturais são dirigidas em suas ações e que não é dirigido por nenhum outro.[8]

O caráter de apoditicidade da quinta via se dá a partir da aplicação do princípio da finalidade. Esse princípio pode ser tirado da própria noção dos binômios potência e ato. Há duas formulações, a primeira que diz respeito ao adágio escolástico potentia dicitur ad actum, a potência se diz do ato, nos enuncia que a potência só se diz (potência passiva) em relação ao ato que a determina e a aperfeiçoa ou a atualiza, algo sobre o qual já chegamos a falar anteriormente (ver a nota de número 5, referente a exposição da primeira via). Outra versão desse princípio, que parece ser mais apropriado para ser aplicado a quinta via vem do enunciado omne agens agit propter finem, todo agente age em vista de um fim. A primeira versão do princípio nos diz que toda potência se refere ao ato que a determina, nos diz que toda potência só se diz enquanto relacionada a um ato, que toda potência possui uma inclinação ao ato a que ela se refere. A versão sobre a qual a quinta via se calca é intercambiável, pois, embora seja estranho para muitos leitores, a noção de “agente” é tratada em seu sentido análogo.

O princípio da finalidade apreende o ente sob o aspecto da ação ou operação, postulando um ato no qual uma essência é aperfeiçoada, um ato acima do simples fato de se existir, um ato que consiste numa realização efetiva[9]. Por um lado o ente é considerado como um agente, por outro lado como tendo uma tendência— semelhante àquela ideia de que  consciência é sempre direcionada, nesse caso a um bem para o qual o agente é referido enquanto tal — em outras palavras, um fim. Analisaremos essas duas noções.

Em filosofia tomista, distingue-se dois tipos essencialmente diferentes de ação, de modo que a noção e o termo ação aplicada a ambos é análoga. Há a ação imanente e a ação transitiva. A ação imanente consiste não em fazer ou produzir algo, mas em aperfeiçoar o ser do agente; o ato de intelecção, isto é, o de tornar o ente de extramental a intencional é um exemplo disso. O termo agente possui a mesma compreensão análoga que tem o termo ação e pode se relacionar tanto ao agente capaz da ação transitiva ou ao agente capaz de ação imanente. O agente é, antes de tudo, causa eficiente da ação. A ação transitiva consiste na comunicação de uma perfeição a outro ente — diferente da ação imanente, que é a comunicação de uma perfeição ao próprio agente.

Agora que mais sabemos sobre o ente enquanto agente ou operante — espero eu — outra apreensão do ente se revela aqui, a saber, o ente enquanto bem[10], isto é, enquanto a perfeição pela qual se deseja e a direção para a qual ele tende e se inclina em virtude de seu próprio ser. O ente enquanto agente é “referência a” e “tendência para” um bem particular, é um apetite, tendência, desejo, um anseio em direção a uma superação de seu estado presente, a isso damos o nome de causa final. E é a causa final, por assim dizer, o motivo da operação de um determinado ente[11].

Mas veja bem, afirmar que todo agente age em vista de um fim não quer dizer que todo agente age da mesma forma para um fim. Cada ente se comporta de acordo com o que é. Os entes dotados de razão se dirigem conscientemente (voluntariamente) e por si mesmos em direção aos fins que lhes são solicitados. Mas os entes carentes de razão procedem de um modo sem consciência, em virtude não de um ato deliberado, mas de uma ordenação a qual ele está sujeito — como as diversas leis da natureza que são postuladas pelas ciências naturais. Em última instância, toda orientação a um fim implica em um prévio conhecimento deste fim, seja pelo agente consciente, ou por outro ente que já havia prescrito sua orientação. Isso significa que o conhecimento é necessário para que o agente — por si mesmo determinado ou determinado por outro — possa chegar a um fim. O devido conhecimento do fim é uma condição necessária para que o agente se comporte como causa, pois não basta que algo seja apetecível, mas é preciso que seja de fato apetecido, de modo que isso exige que o objeto se comporte como um objeto de conhecimento e de vontade, ou melhor, como um objeto intencionado.

Desse modo, a experiência nos mostra que entes carentes de razão atuam sempre, ou na maioria das vezes, de maneira uniforme, de acordo com suas respectivas naturezas, alcançando os efeitos mais adequados a eles. Em outras palavras: entes carentes de razão são sujeitos à causalidade final, mas o que atinge um fim sempre ou na maioria das vezes o faz intencionalmente, é necessário, pois, que os entes que carecem de razão sejam dirigidos a seu fim, em última instância, por um ente que seja dotado de razão e que não receba um fim de nenhum outro ente, e esse ente chamamos de Deus.

Considero essa exposição fidedigna aos textos originais, bem como a exposições de tomistas de longa data:

A quinta via é tomada do governo das coisas. Com efeito, vemos que algumas coisas que carecem de conhecimento, como os corpos físicos, agem em vista de um fim, o que se manifesta pelo fato de que, sempre ou na maioria das vezes, agem da mesma maneira, a fim de alcançá totalidade rem o que é ótimo. Fica claro que não é por acaso, mas em virtude de uma intenção, que alcançam o fim . Ora, aquilo que não tem conhecimento não tende a um fim, a não ser dirigido por algo que conhece e que é inteligente, como a flecha pelo arqueiro. Logo, existe algo inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso nós chamamos Deus. (Ibid.)

Com o final da exposição das vias, nem todas as dúvidas do leitor despreparado (e até a de alguns com preparo) são sanadas, várias questões cujas respostas não são evidentes ainda intrigam: cada via termina em um único ente? Tal ente é o mesmo em todas elas? Esse ente é onipresente, onisciente e onipotente? Essas são perguntas que, para alguém habituado já com a filosofia tomista enxerga implicitamente as respostas dentro de cada via, mas que de modo algum são evidentes ao leitor desabituado. Creio eu que essas exposições foram suficientes não para servir de base crítica ao argumento tomista enquanto um propulsor do interesse do leitor, para que ele busque a resposta de suas dúvidas indo à própria fonte do pensamento e naqueles que dela bebem integralmente.

Apêndice I — A via do De Ente et Essentia

Um outro argumento a favor da existência de Deus feito pelo próprio Tomás em um de seus opúsculos, é um argumento que se baseia na distinção real entre essência e a existência, podendo também ser chamado de ato de ser (esse ut actus essendi, ser enquanto ato de ser, ato de existir). Em outras palavras: a existência de algo é algo diferente (em ordem extramental, em ordem real e não meramente ideal) da natureza, isto é, da essência desse algo. Assim, uma vez que o ente nos é manifestado como sendo resultado da composição de sua essência (o que é) e de seu esse (o próprio ato por meio do qual uma essência é), imediatamente surge a pergunta do porquê do ser de um ente. O ser é o ato de todos os atos, perfeição das perfeições, o que mais imediata e intimamente convém a cada coisa, em outras palavras: é o pressuposto de todo ato; sua causa não poderá ser encontrada na causalidade predicamental. Esta explica o fieri (o operar) do efeito, porém não o seu esse, é necessário buscar a causa do esse, que se chama causa transcendental, que, ao contrário da causa predicamental, não se limita ao tempo e nem aos binômios matéria e forma, ao operar próprio efetivo da causa transcendental damos o nome de criação. Pois bem, a causa do esse não pode ter raiz na natureza — essência — do mesmo ente, já que então ele produziria a si mesmo no ser[12], o que é impossível, sendo portanto necessário um ente onde o seu ser e sua essência, não sejam realmente distintos entre si, recebendo tal ente o nome de Ipsum Esse per se Subsistens, o Próprio Ser Subsistente por Si mesmo — a essência de Deus então, é idêntica a seu ato de ser, sendo então ele mesmo o próprio esse. Tal conclusão não é própria apenas desse argumento, ela também está presente nas vias, mas essa conclusão é alcançada aqui de forma mais direta:

Tudo o que convém a qualquer coisa é causado pelos princípios da sua natureza, como a capacidade de rir no homem, ou provém de algum princípio extrínseco, como a luz na atmosfera, proveniente do Sol. é impossível que o mesmo ser seja causado pela mesma forma ou quididade da coisa — falo como de causa eficiente — porque assim determinada coisa seria causa de si própria e se produziria a si própria na existência. Portanto, importa que toda a realidade, cujo ser é diferente da sua natureza, receba o ser de outrem. E porque tudo o que é por outrem se reduz ao que é por si, como à sua causa primeira, importa que haja alguma realidade que seja causa de ser de todas as realidades, porque ela própria é apenas Ser. Aliás, ir-se-ia até ao infinito nas causas, porque tudo o que não é apenas Ser tem causa do seu ser, corno se disse. É claro, portanto, que a inteligência é forma e ser e que tem o ser a partir do primeiro Ente, que é apenas Ser. Este Ser é a causa primeira: Deus.

[13] São Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, C. IV, traduzido ao português com introdução e posfácio por Henrique Pinto Rema, pp. 72–73, ênfases retiradas por mim.

Apêndice II — Sobre a Analogia

Coisas análogas são coisas que partilham de um mesmo nome mas a noção aplicada a esse nome é em parte uma noção igual e em parte uma noção diferente, em contraste com as coisas que são unívocas, que partilham de mesmo nome e de [quase] a mesma noção, bem como contrasta com as coisas equívocas, que de iguais possuem apenas o nome, pois a noção aplicada aos nomes nada tem em comum. Assim, no caso da equivocidade, cão pode significar o animal, ou então a peça de uma arma, ou talvez até uma constelação, no caso caso da univocidade, quando se predica animal de homem e de cavalo, essa predicação é unívoca — pois o nome animal convém a ambos e a definição aplicada a ambos é a mesma. Por último, quando se predica saudável de remédio e de homem, essa predicação é análoga, pois remédio e homem pertencem a gêneros diferentes, enquanto se diz que o remédio é saudável no sentido de que ele saúde, enquanto se diz que o homem é saudável à medida que ele possui saúde.

Coisas análogas por atribuição são aquelas que possuem em comum o nome e a noção significada por esse nome é a mesma no que diz respeito ao termo, mas diferente no que tange às relações das coisas com os termos — isto é, da relação dos analogados com o termo. O exemplo anterior de se predicar saúde de homem e remédio, é um perfeito exemplo de analogia de atribuição. A analogia de atribuição extrínseca é aquela onde apenas um dos analogados possui formalmente o predicado, de modo que os outros analogados só possuem o predicado através de uma denominação extrínseca, ou derivada — isto é, o termo análogo encontra-se intrinsecamente em apenas um dos analogados, o primeiro analogado, enquanto no outro o predicado encontra-se extrinsecamente, de modo que é derivado de uma relação com a primeira aplicação do termo, esse é o analogado menor. É o exemplo clássico do predicado saudável: quem é saudável (o primeiro analogado) é o animal, enquanto a urina pode dizer-se saudável por indicar a saúde do animal, o remédio por causar a saúde do animal (veja que causar e indicar são noções relacionais). A analogia de atribuição intrínseca acontece quando o significado do nome se predica formalmente de todos os analogados, mas de modo desigual, um possuindo mais que o outro, assim é a aplicação da mesma noção metafísica de bem enquanto sendo presente intrinsecamente nos entes, mas de modo desigual se compararmos, por exemplo, o ser humano e Deus, é presente de modo mais realizado em Deus do que no homem.

Em filosofia escolástica, há disputas sobre os tipos de analogia existentes, mas há uma linha comum onde se concebe dois tipos: analogia de proporcionalidade e analogia de atribuição. Quatro “subtipos”: analogia de proporcionalidade própria e analogia de proporcionalidade imprópria, analogia de atribuição intrínseca e analogia de atribuição extrínseca.

Coisas análogas por proporcionalidade são aquelas cuja predicação se traduz como se fosse uma proporção matemática, A está para B tal como C está para D. Uma analogia de proporcionalidade imprópria, ou analogia metafórica, ocorre quando o termo em comum possui apenas um significado que se predica de forma absoluta no primeiro analogado e se predica do outro analogado apenas segundo um aspecto, assim, por exemplo, se eu digo “Aquiles foi corajoso, tal como um leão”, a coragem aqui se diz primariamente e mais propriamente de Aquiles, enquanto se predica coragem de leão de forma metafórica. A analogia de proporcionalidade própria ocorre quando o nome é predicado de ambos os analogados sem o uso de metáforas, assim, posso predicar princípio ou fundamento de “coração” no que diz respeito à vida de um animal e predicar também de “alicerces” no que diz respeito à construção de uma casa. A analogia de proporcionalidade própria é tida pela linha tomista tradicional como sendo a analogia que nos leva ao objeto próprio da metafísica, o objeto próprio da metafísica é o ente considerado enquanto tal, o ente enquanto ente, ou ente comum, a noção de ente é pressuposta em qualquer coisa ou pensamento, e a metafísica o persegue, persegue pura e simplesmente o ente. Há tomistas que também propõem uma espécie de analogia mista [originalmente proposta por Francisco de Araújo (1580–1664)] que nos levaria ao objeto próprio da metafísica. De qualquer forma, a doutrina da analogia em filosofia escolástica é não só essencial para a compreensão do arcabouço metafísico tomista, mas também deixa uma abertura epistêmica para a própria metafísica.

Apêndice III — Sobre a Aseidade Divina, por Daniel Estevão

[Nota do editor: Aseidade pode ser tratada segundo o termo “independência” utilizado nas exposições anteriores neste texto]

A essência metafísica de Deus consiste na aseidade, ou seja, a existência por si mesmo de modo incondicionado e absoluto, uma vez que o próprio existir é idêntico à essência de Deus, o distinguindo radicalmente dos entes criados. A aseidade é a raiz e razão suficiente para todas as demais perfeições (dizemos que Deus é onipotente, onisciente, etc. por conta da aseidade e não o contrário), sendo tal conjunto de perfeições positivas, que se identificam realmente com Deus, o que chamamos de essência física.

A infinidade in actu divina, no sentido de conter todas as perfeições possíveis, é a consequência lógica mais imediata da aseidade, pois esta repugna qualquer espécie de limitação, visto que tudo que é limitado, o é ou por sua essência, ou por causas externas, ou por si mesmo; ora, a essência divina, consistindo no ser a se puro e absoluto, inclui todo o ser e, por conseguinte, repugna qualquer limitação, uma vez que a limitação não é outra coisa que não um não ser; Ser limitado por outro também não cabe à Deus, pois inclui em sua essência a existência independente e com necessidade absoluta, sendo por natureza anterior e superior ao todo que se distingue realmente d’Ele; Uma limitação que provenha de si mesmo também não é possível, pois do Ser puro e absoluto não pode emanar qualquer limitação ou deficiência, visto que seria dizer que o ser é causa do não ser ou do nada. Dada tais demonstrações, é evidente que não convém limitação de qualquer espécie à Deus.

Com este corolário da aseidade, todas as demais perfeições divinas se seguem de modo evidente, sendo assim, é conveniente responder aqui algumas objeções simples, pois, mesmo que extremamente fracas e oriundas de pessoas que não se aprofundaram na filosofia escolástica, podem induzir iniciantes ao erro.

Primeira objeção: Em Deus não há limitação alguma; ora, não poder realizar o mal é uma limitação da liberdade; logo, se Deus possuir uma vontade livre, não repugna seu ser a realização do mal.

Resposta: Tal objeção provém de uma confusão no que diz respeito à liberdade, pois a aptidão para o mal não é algo próprio desta, uma vez que, tendo a liberdade o bem como objeto próprio (ora, ninguém anseia por algo se não considerar tal coisa um bem), a realização do mal pela vontade não é outra coisa senão uma falha desta, pois o que foi considerado como um bem na realidade não o é; tal erro ocorre ou por ignorância do entendimento na classificação do bem ou por deturpação das paixões sobre o movimento natural ao bem, sendo assim, do mesmo modo que o entendimento humano pode errar visando atingir a verdade, a vontade humana erra em relação ao bem, ora, em ambos os casos o erro se dá pelas condições falíveis do homem (todos os seres finitos possuem capacidade radical para o mal, justamente por serem finitos), e não por serem condições essenciais de tais perfeições.

Do que foi dito segue-se o motivo pelo qual Deus não pode realizar o mal, com tal impossibilidade (longe de ser derivada de uma imperfeição) se seguindo da condição divina que rejeita qualquer falibilidade ou imperfeição que convém ao homem.

Nota: Existe também uma outra objeção similar, que seria a de que Deus, sendo ato puro, deveria possuir em seu ser também o ato do mal. Tal objeção é tão infantil e ridícula que não merece uma resposta própria, entretanto, do que foi dito até aqui já se mostra evidente os vários erros dela.

Segunda objeção: Deus, sendo o Ser Subsistente por si mesmo e ato puro, se identifica com o próprio mundo.

Resposta: Esta objeção, que acaba em um panteísmo, provém de um grave engano, que consiste na confusão do modo com que as perfeições das criaturas estão contidas em Deus. Quando é dito que Deus possui em si todas as perfeições das criaturas, a relação entre eles (diferentemente do que esta objeção supõe) não se dá como partes em um todo, mas como o efeito em relação à causa, pois Deus, possuindo todas as perfeições, as possui de um modo infinitamente perfeito e absoluto, havendo a identificação destas com a própria essência divina na realidade, de maneira que haja uma distância infinita entre Deus e a criatura. Além de que, dada a afirmação do Ato puro se identificar com o mundo, segue-se consequências absurdas que destroem a própria razão, pois o mundo, de modo evidentíssimo, possui como atributo a mutabilidade, o que significa, claramente, mescla de potencialidade passiva, ora, o Ato Puro rejeita qualquer espécie de potencialidade passiva, sendo assim, afirmar a identidade entre eles é afirmar que algo pode ser e não ser sob o mesmo aspecto, logo, sequer é necessário estender mais a resposta.

Notas

[1] Trato “realismo” não somente como o realismo no tocante ao problema dos universais, mas também uma posição que sustenta as seguintes posições:

  1. A existência objetiva do “mundo externo”, isto é, partilha de uma noção de que há uma “natureza” existente, bem como “sujeitos” existentes.
  2. Uma concepção de um “Eu” como uma realidade complexa composta de corpo, mente e/ou alma e possuindo um núcleo de subjetividade [entrando o realismo dentro, portanto, dos crivos de “objetividade”, “subjetividade” e “intersubjetividade”] que se orienta no “mundo”.
  3. A convicção acerca da validez e objetividade de nosso conhecimento e da capacidade abstrativa do nosso intelecto, isto é, de, começando com a experiência, chegar a conhecimentos que a ultrapassam: das aparências às essências, da parte ao todo, dos efeitos às causas e vice-versa.

[2] Kierkegaard, Philosophical Fragments, traduzido ao inglês por Howard V. Hong, p. 109

[3] Kierkegaard, The Sickness Unto Death, editado e traduzido ao inglês por Howard V. Hong e Edna H. Hong (Novar Jersey, Princeton University Press), p. 87. Citação Original: “Therefore, it is certain and true that the first one to come up with the idea of defending Christianity is de facto a Judas…”

[Nota de um amigo] Vale ressaltar que Kierkegaard compara o “inventor”, seja este o primeiro ou não, na cristandade de uma defesa cristã, como um outro Judas, ao contrário do que diz a tradução aparenta dizer,que o apologéta é necessariamente um Judas, ele compara o beijo de Judas não como um beijo de traição, mas como um “beijo de estupidez”. Suponhamos que alguém, proprietário de um grande armazém lotado de ouro queira dar todos os seus ducados aos pobres, se este cai ao mesmo tempo na “estupidez” de começar sua caridosa ação via um discurso, demonstrando em três pontos tudo o que ele tem de defensável, nada seria mais preciso para que fosse posta em dúvida a caridade do seu gesto. O entusiasmo caritativo nunca seria de defesa, mas um tipo de “ataque”, saindo vencedor o crente. Pode ser, por parte do leitor, um pouco chocante ver uma declaração dessas: “onde Kierkegaard chega a declarar um “novo” Judas aquele que defende a fé cristã”, mas isso não parece ser de todo ruim, pois aquele que se interessasse por tal, aparentemente escandalosa afirmação (cuja ironia é; neste capítulo do Sickness unto Death, Kierkegaard está justamente explicando uma nota geral sobre o escândalo), veria justamente o que Kierkegaard por toda vida defendeu sua falta de autoridade e antes de tudo, um poeta, antes de filósofo (posição bem debatida entre seus posteriores, como Jean Wahl explica no Études kierkegaardiennes, que ele seria, antes de filósofo, um poeta religioso).

[4] Aqui, faço uma pressuposição meramente metodológica da existência de Deus para apresentar uma breve antítese ao fideísmo absoluto e como uma preliminar para um bom entendimento das vias.

[5] Explicamos a noção de perfeição posteriormente, na quarta via. A potência passiva é uma carência de perfeição à medida que estar em potência é sempre estar em potência para um ato, isto é, estar apto a receber uma perfeição, ou estar em potência para algo implica que esse ente que está em potência para algo carece desse algo (carece desse ato, carece de uma perfeição e, por isso, a recebe). Desse modo, o movimento pode ser definido também como o ato do que está em potência enquanto está em potência para algo. Assim, um ente é móvel na medida em que se relaciona com algum termo, alguma perfeição, algum bem que lhe carece — está em ato em relação às perfeições que já possui e, ao mesmo tempo (mas não sob o mesmo aspecto), em potência às que carece. Por exemplo, imaginemos um copo que está numa temperatura de 10 graus celsius, e isto está fixo nele de algum modo, este copo que está com 10 graus de temperatura, ele estaria em potência também para 15 graus: o ato de ser a 10 graus e o ato de ser a 15 graus são nesse caso, justapostos no tempo mesmo não formando uma unidade de relação [relação no sentido da razão de (um) ato não entrar na razão de (uma) potência e vice-versa].

[6] Por “pelo nada”, diz-se um ente móvel que é movido “sem motor” ou “sem causa prévia”, então isso não se aplicaria ao primeiro motor imóvel, pois, não tendo causa ou motor prévio, não é movido.

[7] Essa foi uma formulação mais ou menos simples do argumento contra a regressão infinita que foi usado na primeira via, mas transposta ao contexto da segunda

[8] Nesse ponto a quinta via se assemelha a primeira, à medida que todas as coisas da realidade natural são móveis — por “natural” entenda-se aqui os entes sujeitos a serem composto pelos binômios matéria-forma e destes dois deriva-se a sujeição ao movimento — e, portanto são dirigidos em última instância pelo Primeiro Motor Imóvel, que por nenhum outro é dirigido.

[9] Chamamos essa realização efetiva de uma ação, isto é, de um aperfeiçoamento efetivo, de ato segundo, enquanto a mera potência ativa, isto é, a capacidade de dar uma perfeição é chamada de ato primeiro.

[10] Veja aqui um dos elementos que se relacionam com a quarta via, a noção de bem aqui é a do bem enquanto um dos transcendentais.

[11] Uso “motivo” para diferenciar a causa final da causa eficiente, pois a causalidade final se põe como uma “meta”, um alvo. Enquanto a causa eficiente seria justamente um “pontapé” para que se atinja o alvo: a causa final é o motivo, e a causa eficiente é o motor, esta é o que faz a coisa, aquela sendo aquilo porquê em última análise a coisa é feita.

[12] Pode-se aqui partir da mesma compreensão da justificação da afirmação “tudo o que se move é movido por outro”, tomando os binômios essência-existência (existência enquanto ato de ser) como sendo respectivamente correlatos transcendentais da potência (a essência sendo este correlato) e do ato (o ato de ser, chamado justamente de ato de todos os atos). Quando falo em “correlato transcendental”, falo em termos análogos que são conversíveis às noções de potência e ato e vice-versa.

[13] São Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, C. IV, traduzido ao português com introdução e posfácio por Henrique Pinto Rema, pp. 72–73, ênfases retiradas por mim.

[14] Digo “quase”, pois se fosse exatamente a mesma noção, as coisas às quais se refere univocamente seriam totalmente iguais.

Referências e Fontes

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Cajetan, Tommaso de vio, The Analogy of Names, Literally Translated and Annotated by Edward a. Bushinski, C.S.Sp, M.A., S.T.L.

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Giovanni Cavalcoli O. P., Sobre as Provas da Existência de Deus, tradução minha disponível aqui

H.D. Gardeil, Introdução à Filosofia de S. Tomás de Aquino

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Leandro Bezerra, Do Vértice da Realidade: a ascensão do ente finito ao esse separatum

Leandro Bezerra, Notas de uma Teologia Natural Tomista

Maurílio Teixeira-Leite Penido, A Função da Analogia em Teologia Dogmática

R. garrigou-Lagrange, Dios, I. Su Existencia: Solución Tomista de las Antinomias Agnósticas, ediciones Palabra

Tomás de Aquino, Suma Teológica,Vol I, Edições Loyola

Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Vol I, tradução de D. Odilão Moura O.S.B.

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