Uma análise do filme Fragmentado e o livro A Anatomia do Estado
INTRODUÇÃO
De um lado, dado a existência do estado, pela sua dominância – seja culturalmente, tanto pelo seu estabelecimento pelo uso da força – tem-se, então, o grande paradigma do estamento burocrático que é: como se manter no poder. Conjectura-se, pois, endossando as palavras de Rothbard:
“embora o seu modus operandi seja o da força, o problema básico e de longo prazo é ideológico. Pois para continuar no poder, qualquer governo (não simplesmente um governo ‘democrático’) tem de ter o apoio da maioria dos seus súditos” (ROTHBARD, 2012, p. 15)
Do outro lado do texto temos o filme fragmentado, ou Split em inglês, trata do caso de Kevin, um homem com múltiplas personalidades. Não é a primeira vez que o cinema aborda este tema, sendo “Psicose” um dos mais conhecidos e aclamados, como “Bates Motel”, onde e contada a história de Norman Bates, isto é, a história que originaria o longa-metragem “Psicose”. A dissociação de personalidade, tal como vista no filme é rara, e muitos detalhes do filme tem um caráter cinematográfico, mais do que psicológico, que será abordada de forma simbólica neste texto.
O presente artigo fará, portanto, uma abordagem, buscando demonstrar a forma em que o estado se mantêm no poder; construindo uma ponte entre o filme Fragmentado e o livro A Anatomia do Estado.
FRAGMENTADO: A MULTIPLICIDADE DE FACES DA MESMA COISA
O filme retrata a vida de Kevin Wendell Crump, vítima de abuso infantil, diagnosticado com TDI ( Transtorno Dissociativo de Identidade), o qual apresenta 23 personalidades diferentes, sendo 4 mais evidentes no filme: Dennis, um homem frio e metódico; Patrícia, uma mulher misteriosa, e de certa forma carinhosa com as vítimas; Hedwig, uma criança de 9 anos de idade que tem o poder “ir para a luz” quando quiser; E Barry, um extrovertido estilista de moda e uma 24 º personalidade que se manifesta no final da trama. Conhecida como “A Besta”, queria exterminar os impuros, pessoas que nunca sofreram na vida. Kevin sequestra três garotas e passa a conviver com seus “eus” interiores, com as garotas e com a psiquiatra. E a partir disto se desenrola a trama.
O TDI é um transtorno mental de difícil diagnóstico, sintomatologia diversificada e forte comorbidade, sendo caracterizado pela existência dentro do indivíduo de duas ou mais personalidades distintas, cada qual dominante num momento específico. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-V (2014) define a dissociação como uma perturbação e/ou descontinuidade da integração normal de consciência, memória, identidade, emoção, percepção, representação corporal, controle motor e comportamento. A manifestação mais evidente dos sintomas varia em função da motivação, nível de stress, cultura, conflitos internos, dinâmicos e resiliência emocional.
Freud ainda diz que talvez o segredo dos casos daquilo que é descrito como personalidade múltipla seja que as diferentes identificações apoderam-se sucessivamente da consciência, podendo assim ocorrer uma ruptura do ego, em consequência de as diferentes identificações se tornarem separadas umas da outras através de resistências (FREUD, 1923). E isso se dá, geralmente, devido a traumas psíquicos/físicos ocorridos na primeira infância; isto é, as multiplicidade de faces que o TDI traz é um resposta às sequelas. Temos, no filme, como exemplo, o personagem Dennis, que é uma das 24 personalidades de Kevin, e como o autor denomina de personalidade perpetradora que é modelada pelo abusador e dirige o comportamento abusivo para dentro, para ferir as outras personalidades. Independente de seu comportamento ser inaceitável, essa personalidade é importante para a sobrevivência da criança abusada. Dennis é uma resposta dura às ocorrências da vida, mas que, em tese, mantém a salvo Kevin.
Dennis sofre de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), a caracterização do TOC baseia-se na ocorrência primária de: i) obsessões, que são pensamentos, impulsos ou imagens mentais recorrentes, intrusivos e desagradáveis, reconhecidos como próprios e que causam ansiedade ou mal-estar relevantes ao indivíduo, tomam tempo e interferem negativamente em suas atividades e/ou relacionamentos; ii) compulsões: comportamentos ou atos mentais repetitivos que o indivíduo é levado a executar voluntariamente em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras rígidas, para reduzir a ansiedade/mal-estar ou prevenir algum evento temido. Assim, enquanto as obsessões causam desconforto emocional, os rituais compulsivos (sempre excessivos, irracionais ou mágicos) tendem a aliviá-lo (TORRES; SMAIRA, 2001). Dennis sempre tem que estar no controle da situação, e o controle da situação era algo que Kevin não costumava ter. Dennis vem para ajudá-lo a ter o controle absoluto de tudo.
Dennis é apenas uma das diferentes faces de Kevin, sendo que, todas as personas atuam de um modo que a sobrevivência de Kevin esteja intacta, mesmo que inconscientemente. Todos os fragmentos são uma resposta que busca que o corpo de Kevin sobreviva, exista, perdura; já que sua existência representa a existência dos demais. Mas não querem que Kevin assuma a luz da consciência.
Como explanado, anteriormente, o estado necessita manter a estrutura parasitária. Há as mais diversas armas para isto: seja a arma intelectual, a arma cultural, a arma da represália, etc. De todo modo, ainda é necessário manter o apoio da população, contra a possibilidade de detrimento do governo coercitivo; de modo a legitimar o estado. Aqui endosso o seguinte trecho acerca da aprovação popular perante o governo estatal:
E esse apoio, vale observar, não precisa ser um entusiasmo ativo; pode bem ser uma resignação passiva, como se se tratasse de uma lei inevitável da natureza. Mas tem de haver apoio no sentido de algum tipo de aceitação; caso contrário, a minoria formada pelos governantes estatais seria em última instância sobrepujada pela resistência ativa da maioria do público (ROTHBARD, 2012, p. 15)
Dentre os vários métodos de tentativa de validação do estado, há a política, no sentido democrático, onde a população, em tese, escolhe seus representantes.
Todavia, sabe-se que o estado nunca foi criado por um “contrato social”, ele sempre nasceu da conquista e da exploração. E como foi apontado por Franz Oppenheimer, há apenas duas formas de relacionamento inter social, o modo econômico e o modo político. Neste espectro o estado se encontra no meio político, utilizando da força e repressão para afirmar-se.
Existem duas formas fundamentalmente opostas através das quais o homem, em necessidade, é impelido a obter os meios necessários para a satisfação dos seus desejos. São elas o trabalho e o furto, o próprio trabalho e a apropriação forçosa do trabalho dos outros. Eu proponho, na discussão que se segue, chamar ao trabalho próprio e à equivalente troca do trabalho próprio pelo trabalho dos outros, de “meio econômico” para a satisfação das necessidades enquanto a apropriação unilateral do trabalho dos outros será chamada de “meio político”. O estado é a organização dos meios políticos. Como tal, nenhum estado pode existir enquanto os meios econômicos não criaram um definido número de objetos para a satisfação das necessidades, objetos que são passíveis de ser levados ou apropriados por roubo bélico (OPPENHEIMER, 1926, p. 24, 27)
E ainda disse:
O Estado, totalmente na sua génese, essencialmente e quase completamente durante os primeiros estádios da sua existência, é uma instituição social, levada a efeito por um grupo vitorioso de homens sobre um grupo derrotado, com o único propósito de regular o domínio do grupo vitorioso sobre o vencido, defendendo-se da revolta interna e dos ataques do exterior. Teleologicamente, este domínio não seguia outro objectivo que não fosse a exploração económica dos vencidos pelos vencedores.”
Nenhum estado primitivo conhecido na História teve origem de outra forma. Onde quer alguma respeitável tradição mostrar outra coisa, ou respeita dois estados primitivos bem desenvolvidos que se amalgamassam num corpo de organização mais completa, ou então trata-se de uma adaptação aos homens da fábula das ovelhas que fizeram de um veado seu rei com o propósito de ficarem protegidos do lobo. Mas mesmo neste último caso, a forma e conteúdo do Estado tornaram-se precisamente os mesmos que os daqueles estados onde não houve qualquer inrtervenção, e que se tornaram imediatamente ‘estados lobos’ (OPPENHEIMER, 1922, p. 15).
Os políticos proponham soluções ludibriosas, falsas; e como escultores criam imagens gloriosas de deuses, a classe política cria uma espécie de messianismo. Enquanto o messianismo religioso vive na expectativa da vinda de Deus, e, portanto, é inseparável da preservação do senso da falibilidade humana; já o messianismo profano dos políticos o impele a considerar o paraíso como algo perfeitamente realizável pelo homem. É um “otimismo catastrófico”; o qual face à escatologia transcendentalista, ela é um messianismo secularizado.
Isso representa uma posição olimpiana do estado frente à população, como fosse este, um deus. E para aquele que desafiar o aparato estatal, o leviatã mostra sua garra. E, assim como Sísifo ao desafiar os deuses gregos sofreu uma punição eterna, o opositor também sofrerá!
No cenário político, figuram personagens dos mais diversos: esquerda vs direita; liberais vs estatistas; um cenário onde vociferam os mais diversos tipos de xingamentos. Apresentando, assim, diferentes vertentes. Porém, isto se equipara àquilo que chamamos de mais do mesmo, e como há na dialética os conceitos de tese vs antítese onde chegam na síntese, há também, na política, o conceito de esquerda vs direita, onde ambas têm um objetivo em comum, manter o poder. Como é proposto na teoria da estratégia das tesouras uma dialética política da esquerda, faz-se, na verdade, uma dialética política ambilateral. Ora, pois, senão apenas para manter a aceitação, mesmo que de forma passiva, dos súditos estatais.
CONCLUSÃO
Em suma, no filme Fragmentado (2017), como resposta às sequelas de infância, o protagonista Kevin demonstra uma multiplicidade de personalidades. Sendo que, todas prezam pela existência, mesmo que apenas física, por vezes, de Kevin; pois a existência dele significa a existência dos demais. Conjectura-se, no entanto, que assim se faz no jogo estatal. Políticos de esquerda e de direita fazem os jogos de corteses, o jogo da falsidade, a troca de cadeiras, para que, no fim, apenas eles se mantenham sentados no aposento do poder. A classe política mantêm o estado. Isto é, apresentam multifacetadas “opções” para o eleitor, sendo que todas representam a garantia do asseguramento da represália estatal. Os políticos ignoram as diferenças entre si, pois sabem que a existência do estado significa a subsistência deles.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2014.
FRAGMENTADO. Direção: M. Night Shyamalan. Produção: Jason Blum, M. Night Shyamalan e Marc Bienstock. Roteiro: M. Night Shyamalan. EUA. Distribuição: Universal Pictures. 2017. 117 min. Título Original: SPLIT.
FREUD, Sigmund. O Ego e o ID. Em. J. Strachey (Org. e Trans.), Edição STANDARD Brasileira das Obras Psicológicas Completas. (Vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago. 1996. (Original publicado em 1923).
OPPENHEIMER, Franz. The State: it’s history and development viewed sociologically. New York: Vanguard Press, 1922.
ROTHBARD, Murray N. A Anatomia do Estado. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012.
TORRES, A. R; SMAIRA, S. I. Quadro clínico do transtorno obsessivo-compulsivo. In: Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 23, supl. 2, 2001.
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