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Uma Nova Justificação da Lei Natural

Tempo de Leitura: 9 minutos

Dentre as diversas discussões filosóficas, a discussão em torno da ética é, de fato, uma das mais difundidas. Filósofos, em todos os tempos, se preocupam em desvendar um curioso mistério: existe o certo e o errado? Neste artigo, pretendo defender uma posição cognitivista de que existe uma verdade ética, bem como argumentar que essa verdade acerca do dever é a lei natural – tal qual se mostrou duvidosa desde John Locke [1] e sua justificação acerca do direito. Comentarei ainda sobre outros argumentos que passaram por diversas críticas e se essas críticas possuem certa relevância para esta discussão. Ao ler este texto, eu espero que o leitor se questione, duvide e contra-argumente. Qualquer crítica construtiva será bem vinda para um argumento novo na filosofia.

Primeiramente, eu gostaria de explicar o que é a lei natural e o direito natural. Na filosofia, nós discutimos conceitos e as suas justificativas. Ao se formar um conceito, é necessário se demonstrar o porquê, uma vez que se pretende fazer com que se aceitem seu ponto de vista. Com a ética, ramo da filosofia que se investiga o dever e o direito, não é diferente. Uma das posições que surgiram na filosofia foi o jusnaturalismo. Esse ponto de vista se refere ao termo jusnaturale, que significa juiz natural. Assim, o jusnaturalismo é a ideia que o dever e o direito são dados pela natureza humana e não pela criação do homem, posição defendida pelo juspositivismo [2].

Em segundo lugar, vou explicar brevemente algumas das posições concernentes ao jusnaturalismo que me influenciaram a pensar em meu próprio argumento que apresentarei a diante. Um dos maiores nomes da corrente de pensamento é, sem dúvidas, como já mencionado, John Locke. Em seu trabalho “Segundo Tratado do Governo Civil”, Locke defende que:

“O “estado de Natureza” é regido por um direito natural que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda a humanidade aprende que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens; todos os homens são obra de um único Criador todo-poderoso e infinitamente sábio, todos servindo a um único senhor soberano, enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço; são portanto sua propriedade, daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém.”

(LOCKE, 2014, p. 36)

Embora a questão teológica aqui presente não se faça imprescindível, neste trecho Locke destaca que toda humanidade possui um direito de propriedade privada, que é o que resume todos os pontos mencionados por ele no parágrafo: de vida, saúde, liberdade e de seus bens. Nenhum destes pontos pode ser violado se a propriedade for respeitada. Sendo assim, para justificar o direito natural, Locke satisfaz as condições da defesa do direito apresentando a ideia de uma escassez presente no estado de Natureza.

Todos os recursos físicos presentes nesta são escassos na medida em que não podem ser usado para fins excludentes, e então surge um conflito, uma disputa por esses recursos. Isso é evitado se for seguido o que Locke propõe: a regra do “primeiro que usa é o primeiro que possui”. Se os recursos estiverem com o primeiro a se apropriar, e assim este misturar seu trabalho com a natureza, a fim de evitar futuros conflitos demarcando os limites de seu território, não haverá conflito.

O problema observado nesse argumento é demonstrado por David Hume [3] com a seguinte máxima: de um fato não pode ser derivado uma norma. Isto é, de um conjunto de premissas que apoiam uma conclusão, sendo assim um argumento, se estas premissas forem descritivas, do tipo que se fala sobre os fatos, elas não podem apoiar uma conclusão normativa, do tipo que se fala sobre o dever, sobre as normas. Dessa forma, quando explicamos o que as coisas são, estamos falando de propriedades naturais, enquanto que as propriedades referentes ao dever são propriedades não naturais, porque se algo deve ser, é o caso que algo não seja. Portanto, não se segue que se deva respeitar propriedade na justificativa de descrever a natureza humana tal qual ela é.

Outro argumento que recebeu bastante adeptos foi o Princípio de Não Agressão [4] de Murray N. Rothbard [5] no qual o pensador foi o primeiro a justificar a ideia de direito natural apenas com proposições descritivas. Rothbard no seu livro “A Ética da Liberdade” argumenta que as condições de um discurso satisfazem o reconhecimento do direito de propriedade privada – seja ela sua autopropriedade, i.e., propriedade sua sobre seu corpo ou de propriedade sobre um bem. Isto porque ao ingressar numa argumentação são abdicados os meios de agressão em favor da argumentação pacífica, e então as condições de vida, liberdade e busca de felicidade são respeitados entre os percursores do discurso.

Uma vez que discusar exige respeito a vida do outro para que a atividade aconteça, bem como o respeito da liberdade do outro em argumentar ou não, sobre o que quer que ele defenda, como também respeita a busca de felicidade dos mesmos que decidiram por participar estando. Dessa forma, se sentindo mais confortáveis participando, em detrimento a não participar, é reconhecido o direito de propriedade privada do indivíduo. O problema deste argumento não é a Guilhotina de Hume, explicada de antemão, como muitos dizem. O argumento só descreve as condições aceitas por todo ser humano enquanto potencial argumentador. O problema é que faltam determinadas justificações nesse argumento.

Uma parte destas argumentações em falta foi suprida por Hans-Hermann Hoppe [7] em seus livros “Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo” e em “Economics And Ethics Of Private Property”. A argumentação de Hoppe em defesa ética ficou conhecida como “Ética Argumentativa Hoppeana“. O argumento, bastante parecido com o PNA [6], buscava justificar o direito natural como um reconhecimento da comunidade comunicativa expresso em toda argumentação possível. Assim, o princípio de universalização, que é o critério onde encontramos o dever que, sendo feito entre todos, os conflitos serão evitados. Nessa direção, se encontra a fonte do direito: a lei natural do respeito à propriedade privada.

Esse argumento possui influências de Karl Otto Apel [8], Jürgen Habermas [9] e Ludwig Von Mises [10], sem contar as influências supracitadas já neste texto. Apel e Habermas contribuíram para a ideia de que a fonte do direito estava presente na comunicação do discurso. De acordo com ambos, Hoppe defendeu que todas as proposições podem ser classificadas como verdadeiras ou como falsas – caso seja negado que sua proposição possua pretensão de verdade você incorreria em afirmar outra verdade. Toda argumentação se enquadra em uma comunidade de (pelo menos dois) indivíduos, desse modo, nenhuma argumentação é solitária tendo em vista que, embora se possa escrever, gravar ou ensaiar para si um argumento, não é possível aprender a como se comunicar ou como argumentar sozinho, mas inserido em uma comunidade com outros indivíduos.

A argumentação é uma atividade intersubjetivamente determinável entre os indivíduos. Em todos os casos há o reconhecimento mútuo de controle de uso exclusivo sobre a propriedade dos indivíduos; sendo assim, reconhece-se que o indivíduo é o proprietário legítimo. Como é uma interação livre de conflitos (disputas por recursos escassos), se exige abstenção do uso da força contra a propriedade de outrem (agressão) para a troca pacífica de proposições buscando evitar um conflito resolvendo uma discordância.

Com Mises, Hoppe aprendeu sobre o axioma da ação. Trata-se da busca dos indivíduos por uma situação de maior conforto, sendo assim, eles abdicam de uma situação conflituosa para entrar em uma situação livre de conflitos. Nessa interação há respeito mútuo de propriedade pelas discordâncias um do outro e há pelo menos uma concordância: que um discorda do outro. Toda argumentação, por demonstrar esse respeito mútuo de propriedade, não pode incorrer num argumento válido de que a agressão é justificável, pois, se assim alguém o fizesse, entraria em contradição performática tendo em vista que ele reconheceu a legitimidade da propriedade ao ingressar nesta atividade pacífica que envolve uma discordância evitando um conflito. Hoppe conclui que:

“Dizer isso [que é possível sempre discordar da validade do que foi dito] não é nada mais do que o reconhecimento mútuo de que o controle exclusivo de cada pessoa sobre seu próprio corpo deve estar pressuposto enquanto houver argumentação.”

(HOPPE, 2013, pp. 129)

Este argumento possui algumas faltas assim como todos os anteriores, porque não justifica o porquê de evitar conflitos. E esse é um dos pontos onde eu pretendo aqui tampar a lacuna. Outro ponto bastante questionado em relação a este argumento é que o reconhecimento seja um elemento subjetivo do discurso – o que não me parece ser o caso. O ato de reconhecer, embora seja subjetivo porque pode ou não ser feito, não muda o fato de que, não só o conteúdo do discurso é objetivo, pois duas premissas opostas não podem ser logicamente aceitas (~[~A ^ A]) [11], como também é objetivo o reconhecimento em si. Reconhecer é aceitas que determinadas condições são válidas. Portanto, se o reconhecimento à propriedade privada se dá com a argumentação e todo ser humano tem esse potencial, então o ponto da Ética Argumentativa não está errada nesse ponto.

Apesar de eu assentir que as críticas feitas à EAH [12] não são válidas, e nem todas eu citei aqui, pois não é este o ponto central deste texto, eu deixei a defesa deste argumento de lado para criar meu próprio argumento. Isto porque o pensamento hoppeano perdeu bastante credibilidade, não necessariamente porque penso estar errado. Assim, seguimos com meu argumento.

O argumento que eu defendo assume o princípio de universalização, o evitamento de conflitos, a apropriação originária e, é claro, a lei natural. Mas a justificação para essa lei, diferente dos demais argumentos que usaram pressupostos do discurso ou do caso de Locke, que acabou por ser guilhotinado, é um argumento baseado na assunção dos próprios violadores de propriedade a favor da propriedade. Se até mesmo os agressores não estão dispostos a serem agredidos, pois o conceito de agressão se explica pelo não consentimento da violação de propriedade feita. Sendo assim, se os agressores não aceitam que sejam agredidos, não é possível que seja justificado agredir a outrem.

Além disso, como dito antes, é justificado o porquê de se evitar conflitos. A praxis, enquanto presente em torno da discussão da ética, demonstra que agir é buscar maior conforto. Dessa forma, se todos estamos buscando um ponto em comum, i.e., evitar o desconforto, então os conflitos, onde a busca por maior conforto em detrimento do conforto é evidente, tem que ser evitados em razão de se alcançar uma harmonia, algo que os seres de direito alcancem seus fins sem a violação dos fins buscados pelos outros indivíduos. Ainda que se possa argumentar que isso valeria então para qualquer ação que atrapalhe os fins de outros indivíduos, não só aquelas em que violassem a propriedade, estas outras ações podem ser justificadas, cada qual para seu caso, enquanto que as ações agressivas não. Afinal, a relação de força que o agressor possui contra a vítima não fica a critério da escolha de quem é passivo a situação.

Torna-se evidente, portanto, que as ações de agressão ou de violação de propriedade não se justificam em termos praxeológicos. Nessa direção, aqueles que discordaram do argumento, escrito aqui, de minha autoria, refutá-los com outro argumento de cunho filosófico, porque, afinal, um argumento de outra natureza que não seja de filosofia cairia no mesmo erro que da guilhotina de Hume: não se segue uma conclusão de um tipo apoiada por premissas de outro tipo. Eu espero que ao ter lido este artigo você tenha entendido a questão e isso te dê o repertório filosófico que você estava buscando.

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NOTAS

[1] John Locke (1632-1704) foi um filósofo moderno inglês que foi considerado o pai do empirismo, ele foi um dos três fundadores da ideia juntamente com David Hume e George Berkley.


[2] Jusposivitismo é o nome dado a corrente de pensamento sobre o direito proposta por Hans Kelsen (1881-1973) que acreditava que o direito é definido de acordo com as ordens de uma legislação criada por homens. Sendo assim, o jurisdição funciona sob critério positivo e não negativo como na lei natural (onde se permite fazer todas as coisas, exceto violar a propriedade.


[3] David Hume (1711-1776) é um filósofo moderno inglês que, assim como Locke, foi um dos fundadores do empirismo britânico. Ele é popularmente conhecido pela sua obra magna “Tratado da Natureza Humana” e seu célebre argumento que ficou conhecido como “Guilhotina de Hume”.

[4] Hoje também nomeado como “Axioma Discursivo Rothbardiano” pois o princípio, que significa “da onde começa”, é a propriedade privada, a não agressão da propriedade é uma consequência de se aceitar a inviolabilidade daquela.

[5] Murray Newton Rothbard (1926-1995) é um filósofo e economista americano da Escola Austríaca de economia e, a partir de Ludwig Von Mises, professor de Rothbard, uma escola também de filosofia.

[6] Sigla referente à Princípio de Não Agressão.

[7] Hans-Hermann Hoppe (1949-presente) é um filósofo e economista alemão-americano da escola austríaca de economia e filosofia.

[8] Karl Otto-Apel (1922-2017) foi um filósofo alemão e professor emérito da Johann Wolfgang Goethe-Universität de Frankfurt am Main. Produziu o argumento da ética do discurso na Escola de Frankfurt, assim como Habermas.

[9] Jürgen Habermas (1929-presente) é um filósofo e sociólogo alemão que participa da tradição da teoria crítica e do pragmatismo, sendo membro da Escola de Frankfurt e foi professor de Hoppe.

[10] Ludwig Von Mises (1881-1973) foi um filósofo e economista austríaco que fundou a Praxeologia, o método austríaco da Escola Austríaca de economia e filosofia.

[11] Sendo A uma premissa e ~A a negação da premissa A. Ambas assumidas ao mesmo tempo, p. ex., A representando a premissa “Fui à praia”, ao implicar que ~A, “Não fui à praia” ao mesmo tempo se entra em contradição. E isso é logicamente recusado.

[12] Sigla de “Ética Argumentativa Hoppeana”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

VON MISES, L. Ação Humana: Um Tratado de Economia. Traduzido por Donald Stewart Jr. 3.1ª Edição. São Paulo: Ed. Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010.

Rothbard, M. N. Praxeologia: O método dos economistas austríacos. Artigo traduzido por Daniel Chaves Claudino. Instituto Ludwig Von Mises Brasil. The Foundation of Modern Austrian Economics, 1976. Disponível em https://foda-seoestado.com/praxeologia-o-metodo-dos-economistas-austriacos/

CALLAHAN, G. O que é ciência apriorística e porque a economia é uma. Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2008. . Acesso: em 12 de junho de 2019.

MURPHY, R. Praxeologia – A constatação nada trivial de Mises. Instituto Ludwig Von Mises Brasil. Disponível em https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=230. Acesso em: 12 de junho de 2019.

POLLEIT, T. O apriorismo de Mises contra o relativismo nas ciências sociais. Instituto Ludwig Von Mises Brasil. Disponível em https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=644. Acesso em 12 de junho de 2019.

Bertini, T. Prêmio Nobel para a praxeologia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil. Disponível em https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1464. Acesso em 14 de junho de 2019.

HOPPE, H.H. Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo. 2º Ed. São Paulo – SP: Ed. Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2013.

HOPPE, H. H. Economics and Ethics of Private Property. 2º Edição. Auburn, Alabama: Ed. Ludwig von Mises Institute, 2006.

LOCKE, J. Segundo Tratado do Governo Civil. Tradução: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 1ª Edição. Ed. Edipro, 2014.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Ed. Unesp. 2ª edição, 25 de março de 2009.

Hans Kelsen e o Juspositivismo. Por Eduardo Telischewsky. Publicado em 15 de junho de 2006. Acesso em: https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/1324/hans-kelsen-juspositivismo

O positivismo jurídico de Hans Kelsen. Por Luiza Tângari Coelho. Publicado em feveireiro de 2011. Acesso em: https://jus.com.br/artigos/18443/o-positivismo-juridico-de-hans-kelsen.

“John Locke”. 25 de novembro de 2020. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke

“Murray Rothbard”. 25 de novembro de 2020. Acesso em: https://en.wikipedia.org/wiki/Murray_Rothbard

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“Hans-Hermann Hoppe”. 25 de novembro de 2020. Acesso em:

“Ludwig Von Mises”. 25 de novembro de 2020. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ludwig_von_Mises

“Karl-Otto Apel”. 25 de novembro de 2020. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Karl-Otto_Apel

“Jürgen Habermas”. 25 de novembro de 2020. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%BCrgen_Habermas

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