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Valor Subjetivo: A Escola Austríaca é “Kantiana”?

Tempo de Leitura: 6 minutos

Texto autoral

Recentemente, deparei-me com uma série de conteúdos de crítica à escola austríaca, em especial um vídeo do canal católico “Flos Carmeli Videos”, uma aula do Prof. Marcelo Andrade sobre “História da Economia”. As críticas que vi são vindas especialmente de católicos e dizem respeito às influências da Escola Austríaca, e que na verdade muitas vezes servem de crítica corolária a teses como a teoria do valor e à própria praxiologia, à noção de uma ciência livres de valores (wertfrei), algumas concepções políticas denominadas de “Iluministas”, etc.

Essas críticas são muitas vezes baseadas nessa concepção da Escola Austríaca como sendo uma “viúva” do kantismo, tendo muita influência herdada das teses de Immanuel Kant. Mas, talvez, uma investigação mais a fundo dentro do assunto ou, de fato, uma leitura qualquer em algum livro dos autores fundamentais da Escola Austríaca ou, no caso deste texto em específico, Menger, mostrará que a influência de Kant na Escola Austríaca em suas teses fundamentais é significativamente menor do que a de outros autores na filosofia como, por exemplo, Aristóteles.

Desconsiderando os debates sobre o que Kant realmente quis dizer, isto é, sobre as diversas interpretações que existem do autor e assumindo aqui uma interpretação vulgar ou popular; interpretação esta que, em suma, classificaria a filosofia de Kant como uma filosofia (1) caracterizada por um projeto de elaboração de uma “teoria do conhecimento” na qual o “sujeito” possui um papel predominante e ativo no processo do conhecimento e que busca revelar os nexos da relação entre a esfera de um “sujeito” cartesiano com o mundo externo a sua mente, ou com o “mundo dos objetos”, (2) que, disso, conclui que de algum modo não poderíamos conhecer “as coisas em si mesmas”, devido a nossa impressão sensível das coisas, bem como os conceitos que formamos a partir delas, estar sempre dotada de alguma “mancha” de algo como as “formas a priori” de nosso intelecto, que não possuem uma função somente passiva, mas que em verdade “dão forma” à realidade. Essa filosofia, desse modo, (3) possui um caráter subjetivista e idealista, sendo, desse modo, contrária a doutrinas realistas como é o caso do aristotelismo.

Com tudo isso, deixo claro aqui que o mérito, de se tal interpretação do pensamento de Kant está correta ou não, não é o alvo deste texto — tal não é, por exemplo, a posição de Hoppe sobre Kant, confira seu “Ciência Econômica e o Método Austríaco” para notas sobre a interpretação Hoppeana de Kant. Basta o reconhecimento de que tal posição hermenêutica acerca do kantismo — que aqui, por fins de simplificação, será tratada como “o pensamento de Kant” — existe e que se tem para muitos que as ideias da Escola Austríaca são pautadas em tal posição para podermos prosseguir.

I.

A primeira das teses à qual se atribui tal influência do pensamento de Kant da qual gostaria de aqui abordar é a do valor subjetivo. Sustenta-se que, para os austríacos, o valor é de algum modo “puramente subjetivo”, sem fundamentação alguma no objeto que é valorado. Uma concepção do valor realmente como uma “ideia” na mente do “sujeito”, que “imprime” tal valor na coisa, despida por si mesma de qualquer valor ou de algum fator condicionante de valoração.

Como um antídoto a tal má-interpretação do pensamento austríaco, nada melhor do que se utilizar do assim considerado fundador da Escola Austríaca, Menger. Em capítulos prévios à sua “doutrina sobre o valor”, estabelece a “doutrina sobre os bens”, onde é separada a noção de coisa útil (ou utilidade) e bem:

As coisas capazes de serem colocadas em nexo causal com a satisfação de nossas necessidades humanas denominam-se coisas úteis; denominam-se bens na medida em que reconhecemos esse nexo causal e temos a possibilidade e capacidade de utilizar as referidas coisas para satisfazer efetivamente às nossas necessidades.

Principles of Economics, cap. 1

Vale ressaltar, logo em seguida, Menger coloca uma nota ao trecho, onde referencia primeiro a Aristóteles (Política, I, 3)[1] em uma definição de “bens” como “os meios de que o homem necessita para viver e para seu bem estar”.

Ademais, parágrafos antes, no início do primeiro capítulo, a “Doutrina Geral Sobre os Bens”, são colocadas declarações que ao menos não parecem tão próprias do pensamento de Kant:

Todas as coisas são regidas pela lei da causa e do efeito. Esse grande princípio não sofre exceção; seria inútil procurar algum exemplo contrário no campo da experiência.

Ibid.

Também sobre declarações em questões sobre a natureza da investigação empreendida por Menger, o que lançou as bases para a metodologia austríaca posteriormente desenvolvida, é uma leitura claramente incompatível com o pensamento de Kant:

É necessário, à maneira das ciências empíricas, buscar classificar os diversos bens de acordo com suas características inerentes, aprender o lugar que cada bem ocupa no nexo causal dos bens e, finalmente, descobrir as leis econômicas às quais eles estão sujeitos. [ênfase adicionada]

Ibid., p. 56

É de notar o quanto a noção “kantiana”, “subjetivista pura”, alegadamente presente nesta tese da Escola Austríaca, parece ser no mínimo contestável; na medida em que Menger nos apresenta tanto um aspecto presente no próprio bem (a aptidão dele para satisfazer uma necessidade nossa, ou, em termos mais aristotélicos, a causa final do objeto, determinada pelo entrelaçamento entre as causas formal e material — por exemplo, uma cadeira, que tem aptidão para alguém sentar nela, e tal é possível somente devido a forma que ela assume de assento atrelada a seu material, madeira por exemplo) quanto um aspecto subjetivo.

Ademais, como se fez, é bem possível e cabe perfeitamente aos enunciados de Menger aqui citados uma interpretação aristotélica. Entretanto, uma investigação sobre as influências do aristotelismo dentro do pensamento Austríaco — e em outras obras Menger tais como seu Investigations — é algo ainda a ser investigado e que já também possui algumas pesquisas e conclusões dignas de nota.[2]

Ademais, para concluir a questão sobre o valor na perspectiva austríaca, temos o seguinte enunciado,

[…] se a demanda de determinado bem for maior que a quantia disponível do mesmo, é certo que, pelo fato de parte das respectivas necessidades ter de qualquer forma de permanecer desatendida, é impossível consumir qualquer parcela da quantia disponível sem que com isso deixe de ser atendida alguma das necessidades existentes, ou sem que as necessidades deixem de ser atendidas com a mesma plenitude que o seriam, se não ocorresse tal consumo de parcela disponível do bem em questão. Toda vez, portanto, que se tratar desses tipos de bens (em que a demanda supera a oferta), a satisfação das necessidades humanas sempre fica dependendo do consumo de cada parcela, por mínima que seja, do bem em questão.

No momento em que as pessoas (envolvidas em atividades econômicas) se derem conta desse fato, e, por conseguinte, perceberem que o atendimento de uma de suas necessidades concretas está na dependência de qualquer parcela que consumirem do respectivo bem, esses bens adquirem, para essas pessoas, o sentido do que denominamos valor. Em consequência, o valor é a importância que determinados bens concretos adquirem para nós, pelo fato de estarmos conscientes de que só poderemos atender às nossas necessidades na medida em que dispusermos deles [de tais bens].

Ibid., cap. 3

Com isso, são colocados três aspectos dentro dos quais podemos atribuir uma determinação do valor: escassez (demanda maior que a quantia disponível), utilidade objetiva (característica inerente de algo de satisfazer alguma de nossas necessidades, ou suas limitações) e a utilidade subjetiva (a percepção de que esse ou aquele bem possui um nexo causal com a satisfação de uma necessidade do sujeito).

O que Menger coloca ao nos dizer que “valor é a importância que determinados bens concretos adquirem para nós”, é justamente acompanhada de uma frase de conexão causal, “pelo fato de…”. Necessariamente, então, a importância que damos a algo não pode ser considerada de modo algum “cega” ou “puramente subjetiva”, mas é guiada pelos aspectos concretos das coisas do mundo no qual estamos imersos.

Menger esclarece isso melhor em outros trechos do primeiro capítulo de seu Principles ao fazer a distinção entre bens reais e bens imaginários.

Conclusão

Com um pouco de leitura vemos como tal noção acerca das influências do pensamento austríaco podem ser falseadas com simples leitura dos autores (uma mera checagem de fontes!). Infelizmente muitos dos maus entendimentos que se têm hoje acerca do pensamento austríaco, todavia, são fruto da própria postura intelectual de diversos austríacos e libertários pela internet.

A influência de Kant no pensamento austríaco, em sua concepção original e ao menos em sua tese sobre o valor subjetivo, não pode ser tomada como sendo decisiva, ou pelo menos muito menos pode ser entendida como o único modo de se interpretar o pensamento austríaco.

É inegável a influência de Kant nas diversas discussões e nos diversos paradigmas subsequentes a ele na filosofia, mas isso não faz de todos aqueles que discutiram sobre “epistemologia” ou que trataram de problemas dentro da abordagem do paradigma do “sujeito e do objeto” de kantianos.

O objetivo aqui, cumprido, foi de estabelecer uma abordagem não-Kantiana (e apresentar evidência de uma abordagem alternativa, no caso a aristotélica) para a teoria do valor. Este assunto, a saber, da relação entre o pensamento de Kant e o pensamento austríaco, é um que pode render riquíssimas reflexões, tanto em questões de história do pensamento econômico, metodologia e filosofia da economia em geral, que merecem um tratamento separado.

Notas

[1] Ao longo de seu Principles, diversas outras menções e citações de obras de Aristóteles (e nenhuma a Kant!) são feitas.

[2] Cf., o artigo “Aristotle, Menger, Mises: An Essay in the Metaphysics of Economics”, de Barry Smith, disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith/articles/menger.html

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