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A Teoria Austríaca do Dinheiro

Tempo de Leitura: 32 minutos

Por Murray Rothbard

[Retirado de Economic Controversies, seç. 6, cap. 37]

A teoria austríaca do dinheiro praticamente começa e termina com o monumental Theory of Money and Credit de Ludwig von Mises, publicado em 1912.[1] A realização fundamental de Mises foi tomar a teoria da utilidade marginal, construída por economistas austríacos e outros marginalistas como a explicação para a demanda do consumidor e preço de mercado, e aplicá-la à demanda e ao valor, ou o preço, do dinheiro. A teoria do dinheiro não precisava mais ser separada da teoria econômica geral da ação e utilidade individuais, da oferta, demanda e preço; a teoria monetária não precisava mais sofrer isolamento em um contexto de “velocidades de circulação”, “níveis de preços” e “equações de troca”.

Ao aplicar a análise de oferta e demanda ao dinheiro, Mises usou o conceito de wicksteediano: oferta é o estoque total de uma mercadoria em um determinado momento; e a demanda é a demanda total de mercado para ganhar e manter os saldos de caixa, construída a partir das classificações de utilidade marginal das unidades de dinheiro nas escalas de valor dos indivíduos no mercado. O conceito de wicksteediano é particularmente apropriado ao dinheiro por várias razões: primeiro, porque a oferta de dinheiro é extremamente durável em relação à produção atual, como sob o padrão ouro, ou é determinada exogenamente ao mercado pela autoridade governamental; e, segundo e mais importante, porque o dinheiro, unicamente entre as mercadorias desejadas e demandadas no mercado, é adquirido não para ser consumido, mas para ser mantido para troca posterior. Demanda para manter, portanto, torna-se o conceito apropriado para analisar a função monetária exclusivamente ampla de ser mantido como estoque para venda posterior. Mises também foi capaz de explicar a demanda por saldos de caixa como resultante de utilidades marginais em escalas de valor que são estritamente ordinais para cada indivíduo. No decorrer de sua análise, Mises baseou-se no insight de seu colega austríaco Franz Cuhel para desenvolver uma utilidade marginal que era estritamente ordinal, lexicográfica e livre de todos os vestígios do erro de presumir a mensurabilidade das utilidades.

As utilidades relativas das unidades do dinheiro em relação a outros bens determinam a demanda de cada pessoa por saldos de caixa, i.e, quanto de sua renda ou riqueza ela manterá em saldos de caixa em comparação com quanto ela gastará. Aplicando a lei da utilidade marginal decrescente (ordinal) do dinheiro e tendo em mente que o “uso” do dinheiro deve ser mantido para troca futura, Mises chegou implicitamente a uma curva de demanda decrescente por dinheiro em relação ao poder de compra da unidade de moeda corrente. O poder de compra da unidade do dinheiro, que Mises também chamou de “valor de troca objetiva” do dinheiro, foi então determinado, como na análise de oferta e demanda usual, pela interseção do estoque de dinheiro e a demanda pela tabela de saldo de caixa. Podemos ver isso visualmente colocando o poder de compra da unidade de dinheiro no eixo y e a quantidade de dinheiro no eixo x do diagrama bidimensional convencional correspondendo ao preço de qualquer bem e sua quantidade. Mises concluiu a análise apontando que a oferta total de dinheiro em um determinado momento não é nem mais nem menos do que a soma dos saldos de caixa individuais naquele momento. Nenhum dinheiro em uma sociedade permanece sem ser propriedade de alguém e está assim fora dos saldos de caixa de alguns indivíduos.

Embora, para fins de conveniência, a análise de Mises possa ser expressa no diagrama usual de oferta e demanda com o poder de compra da unidade do dinheiro servindo como o preço do dinheiro, basear-se exclusivamente em tal diagrama simplificado falsifica a teoria. Pois, como Mises apontou em uma análise brilhante cujas lições ainda não foram absorvidas pela corrente mainstream da teoria econômica, o poder de compra da unidade do dinheiro não é simplesmente o inverso do chamado nível de preços de bens e serviços. Ao descrever as vantagens do dinheiro como meio geral de troca e como tal meio geral surgiu no mercado, Mises apontou que a unidade do dinheiro serve como unidade de conta e como denominador comum de todos os outros preços, mas que a mercadoria-dinheiro em si ainda está em estado de escambo com todos os outros bens e serviços. Assim, no estado de escambo pré-dinheiro, não há “preço dos ovos” unitário ; uma unidade de ovos (digamos, uma dúzia) terá muitos “preços” diferentes: o preço da “manteiga” em termos de libras de manteiga, o preço do “chapéu” em termos de chapéus, o preço de “cavalo” em termos de cavalos, e assim por diante. Todo bem e serviço terá uma gama quase infinita de preços em termos de todos os outros bens e serviços. Depois que uma mercadoria, digamos o ouro, é escolhida para ser o meio de todas as trocas, todos os outros bens, exceto o ouro, desfrutarão um preço unitário, de modo que sabemos que o preço dos ovos é de um dólar a dúzia; o preço de um chapéu é dez dólares e assim por diante. Mas, embora todo bem e serviço, exceto ouro, agora tenha um preço único em termos de dinheiro, o próprio dinheiro tem uma gama praticamente infinita de preços individuais em termos de todos os outros bens e serviços. Em outras palavras, o preço de qualquer bem é a mesma coisa que seu poder de compra em termos de outros bens e serviços. No escambo, se o preço de uma dúzia de ovos é de duas libras de manteiga, o poder de compra de uma dúzia de ovos é, inter alia, de duas libras de manteiga. O poder de compra de uma dúzia de ovos também será de um décimo de um chapéu, e assim por diante. Por outro lado, o poder de compra da manteiga é seu preço em termos de ovos; nesse caso, o poder de compra de meio quilo de manteiga é meia dúzia de ovos. Após a chegada do dinheiro, o poder de compra de uma dúzia de ovos é igual ao seu preço em dinheiro, em nosso exemplo, um dólar. O poder de compra de uma libra de manteiga será de cinquenta centavos, de um chapéu de dez dólares e assim por diante.

Qual é, então, o poder de compra ou o preço de um dólar? Será uma vasta gama de todos os bens e serviços que podem ser adquiridos por um dólar, ou seja, de todos os bens e serviços da economia. Em nosso exemplo, diríamos que o poder de compra de um dólar é igual a uma dúzia de ovos, ou duas libras de manteiga, ou um décimo de um chapéu, e assim por diante, para toda a economia. Em suma, o preço, ou poder de compra, da unidade de dinheiro será uma série de quantidades de bens e serviços alternativos que podem ser adquiridos por um dólar. Uma vez que a matriz é heterogênea e específica, ela não pode ser resumida em alguma figura de nível de preço unitário.

A falácia do conceito de nível de preços é ainda mostrada pela análise de Mises de precisamente como os preços sobem (i.e, o poder de compra do dinheiro cai) em resposta a um aumento na quantidade de dinheiro (assumindo, é claro, que as tabelas de demanda individual para saldos de caixa ou, mais geralmente, escalas de valores individuais permanecem constantes). Em contraste com a separação hermética neoclássica de dinheiro e níveis de preços  vindo dos preços relativos de bens e serviços individuais, Mises mostrou que uma maior oferta de dinheiro afeta de forma diferente as diferentes esferas do mercado e, portanto, muda inevitavelmente os preços relativos.

Suponha, por exemplo, que a oferta de dinheiro aumente em 20%. O resultado não será, como supõe a economia neoclássica, simplesmente um aumento generalizado de 20% em todos os preços. Vamos supor o caso mais favorável — o que podemos chamar de modelo Anjo Gabriel — que o Anjo Gabriel desça e durante a noite aumente o saldo de caixa de todos em precisamente 20%. Agora, todos os preços não irão simplesmente subir 20%; pois cada indivíduo tem uma escala de valor diferente, uma classificação ordinal diferente de utilidades, incluindo as utilidades marginais relativas de dólares e de todos os outros bens em sua escala de valor. Conforme o estoque de dólares de cada pessoa aumenta, suas compras de bens e serviços mudarão de acordo com sua nova posição em sua escala de valor em relação ao dólar. A estrutura da demanda, portanto, mudará, assim como os preços relativos e as rendas relativas na produção. A composição da matriz que constitui o poder de compra do dólar mudará.

Se as demandas relativas e os preços mudarem no modelo Anjo Gabriel, eles mudarão muito mais no curso dos aumentos do mundo real na oferta de dinheiro. Pois, como Mises mostrou, no mundo real uma inflação de dinheiro é atraente para os inflacionadores precisamente porque a injeção de dinheiro novo não segue o modelo  Anjo Gabriel. Em vez disso, o governo ou os bancos criam novo dinheiro para ser gasto em bens e serviços específicos. A demanda por esses bens aumenta, elevando esses preços específicos. Gradualmente, o novo dinheiro se espalha pela economia, aumentando a demanda e os preços à medida que avança. A renda e a riqueza são redistribuídas para aqueles que recebem o novo dinheiro no início do processo, às custas daqueles que recebem o novo dinheiro no final do dia e daqueles com renda fixa que não recebem nenhum dinheiro novo. Dois tipos de mudanças nos preços relativos ocorrem como resultado desse aumento no dinheiro: (1) a redistribuição dos recebedores posteriores para os primeiros recebedores que ocorre durante o processo de inflação e; (2) as mudanças permanentes na riqueza e na renda que continuam mesmo após os efeitos do aumento na oferta de dinheiro terem se resolvido. Pois o novo equilíbrio refletirá uma mudança no padrão de riqueza, renda e demanda resultante das mudanças durante o processo inflacionário interventor. Por exemplo, os grupos de renda fixa perdem permanentemente em riqueza e renda relativa.[2]

Se o conceito de nível de preço unitário é falacioso, ainda mais falacioso é qualquer tentativa de medir as mudanças nesse nível. Para usar nosso exemplo anterior, suponha que em determinado momento o dólar possa comprar uma dúzia de ovos, ou um décimo de um chapéu, ou um quilo de manteiga. Se, para simplificar, restringirmos os bens e serviços disponíveis apenas a esses três, estaremos descrevendo o poder de compra do dólar naquele momento. Mas suponha que no próximo momento, talvez por causa de um aumento na oferta de dólares, os preços aumentem, de modo que a manteiga custe um dólar a libra, um chapéu doze dólares e os ovos três dólares a dúzia. Os preços aumentam, mas não uniformemente, e tudo o que agora podemos dizer quantitativamente sobre o poder de compra do dólar é que ele é quatro ovos, ou um duodécimo de um chapéu, ou uma libra de manteiga. É inadmissível tentar agrupar as variações no poder de compra do dólar em um único número de índice médio. Qualquer índice desse tipo evoca algum tipo de totalidade de bens cujos preços relativos permanecem inalterados, de modo que uma média geral pode chegar a uma medida das mudanças no poder de compra do próprio dinheiro. Mas vimos que os preços relativos não podem permanecer inalterados, muito menos as avaliações que os indivíduos atribuem a esses bens e serviços.[3]

Assim como o preço de qualquer bem tende a ser uniforme, o preço ou poder de compra do dinheiro, como Mises demonstrou, tende a ser uniforme em toda a sua área de comércio. O poder de compra do dólar tenderá a ser uniforme em todos os Estados Unidos. Da mesma forma, na era do padrão ouro, o poder de compra de uma unidade de ouro tendia a ser uniforme em todas as áreas onde o ouro era usado. Os críticos que apontam para tendências persistentes de diferenças no preço do dinheiro entre um local e outro não conseguem entender o conceito austríaco do que realmente é um bem ou serviço. Um bem não se define por suas propriedades tecnológicas, mas por sua homogeneidade em relação às demandas e desejos dos consumidores. É fácil explicar, por exemplo, por que o preço do trigo no Kansas não será igual ao preço do trigo em Nova York. Do ponto de vista do consumidor em Nova York, o trigo, embora tecnologicamente idêntico nos dois lugares, é na realidade duas mercadorias diferentes: uma sendo “trigo no Kansas” e a outra “trigo em Nova York”. O trigo em Nova York, por estar mais próximo de seu uso, é uma mercadoria mais valiosa do que o trigo no Kansas e terá um preço mais alto no mercado. Da mesma forma, o fato de um apartamento tecnologicamente semelhante não ter o mesmo preço de aluguel na cidade de Nova York que na área rural de Ohio não significa que o preço do mesmo apartamento difira persistentemente; pois o apartamento em Nova York desfruta de uma localização mais valiosa e mais desejável e, portanto, terá um preço mais caro no mercado. O “apartamento em Nova York” é um bem diferente e mais valioso do que o “apartamento na zona rural de Ohio”, uma vez que as respectivas localizações são parte integrante do próprio bem. Em todos os momentos, um bem homogêneo deve ser definido em termos de sua utilidade para o consumidor, e não por suas propriedades tecnológicas.

Para estender a análise, o fato de que o custo de vida pode ser persistentemente mais alto em Nova York do que na zona rural de Ohio não nega a tendência de um poder de compra uniforme do dólar em todo o país. Pois os dois locais constituem um conjunto diferente de bens e serviços, Nova York fornecendo uma gama muito mais ampla de bens e serviços ao consumidor. Os custos de vida mais elevados em Nova York são o reflexo das maiores vantagens de localização, e da gama mais abundante de bens e serviços disponíveis.[4]

Em sua valiosa história da teoria dos preços internacionais, C.Y. Wu enfatizou a contribuição de Mises e apontou que, a explicação de Mises estava na tradição de Ricardo e Nassau Sênior, que

foi o primeiro economista a dar uma explicação clara do significado da doutrina clássica de que o valor do dinheiro era o mesmo em todos os lugares e a demonstrar que as diferenças nos preços de bens de composição semelhante em diferentes lugares eram perfeitamente conciliáveis com o pressuposto de uma igualdade do valor do dinheiro.[5]

Indicando que Mises chegou a esse conceito independentemente de Sênior, Wu então desenvolveu a aplicação de Mises para as supostas diferenças de localização no custo de vida. Como Wu declarou,

Para ele [Mises], aqueles que acreditam nas diferenças nacionais no valor do dinheiro deixaram de lado o fator posicional na natureza dos bens econômicos; caso contrário, eles deveriam ter entendido que as supostas diferenças são explicáveis por diferenças na qualidade das mercadorias oferecidas e demandadas.

Wu concluiu com uma citação do Theory of Money and Credit de Mises:

A proporção de troca entre mercadorias e dinheiro é a mesma em todos os lugares. Mas os homens e suas necessidades não são iguais em todos os lugares, nem as mercadorias.[6]

Se a tendência do poder de compra do dinheiro é a mesma em todos os lugares, o que acontecerá se um ou mais dinheiros coexistirem no mundo? A título de explicação, Mises desenvolveu a análise ricardiana no que seria chamado de teoria da paridade do poder de compra das taxas de câmbio, a saber, que a taxa de câmbio do mercado entre dois dinheiros independentes tenderá a se igualar à proporção de seus poderes de compra. Mises mostrou que essa análise se aplica tanto à taxa de câmbio entre ouro e prata — quer os dois circulem lado a lado no mesmo país ou não — quanto a moedas correntes fiduciárias independentes emitidas por duas nações. Wu explicou a diferença entre a teoria de Mises e a versão infelizmente mais conhecida da teoria da paridade do poder de compra apresentada um pouco mais tarde por Gustav Cassel. A versão de Cassel ignora a ênfase austríaca nas diferenças de localização na contabilização das diferenças no valor de bens tecnologicamente semelhantes, e isso, por sua vez, complementa a posição austríaca e clássica mais ampla de que o poder de compra do dinheiro é um conjunto de bens específicos. Isso contrasta com Cassel e os neoclássicos, que pensam no poder de compra do dinheiro como o inverso de um nível de preço unitário. Assim, Wu declarou:

A teoria da paridade do poder de compra é que a taxa de câmbio estaria em equilíbrio quando o “poder de compra dos dinheiros” fosse igual em todos os países comercializando. Se o termo poder de compra se refere ao poder de compra de mercadorias, que não são apenas semelhantes na composição tecnológica, mas também na mesma situação geográfica, a teoria torna-se a doutrina clássica do valor comparativo dos dinheiros em diferentes países e é uma doutrina sólida. Mas, infelizmente, o termo poder de compra em conexão com a teoria às vezes implica a recíproca do nível geral de preços em um país. Enquanto assim interpretada, a teoria passa a ser que o ponto de equilíbrio das moedas estrangeiras é para ser encontrado no quociente entre os níveis de preços dos diferentes países. Isso é […] uma versão errônea da teoria da paridade do poder de compra.[7]

Infelizmente, Cassel, em vez de corrigir o erro em seu conceito de poder de compra, logo abandonou a doutrina da paridade plena em favor de uma alegação diferente e altamente atenuada de que apenas mudanças nas taxas de câmbio refletem mudanças no respectivo poder de compra — talvez por causa de seu desejo de usar medição e números de índice na aplicação da teoria.[8]

Quando ele começou a aplicar a teoria da utilidade marginal ao preço do dinheiro, Mises confrontou o problema que mais tarde seria chamado de “o círculo austríaco”. Em suma, quando alguém classifica ovos ou carne ou sapatos em sua escala de valor, ele valora esses bens para seu uso direto no consumo. Essas valorações são, obviamente, independentes e anteriores à fixação de preços no mercado. Mas as pessoas exigem dinheiro para manter em seus saldos de caixa, não para um eventual uso direto no consumo, mas precisamente para trocar esses saldos por outros bens que serão usados diretamente. Assim, o dinheiro não é útil em si mesmo, mas porque tem um valor de troca anterior, porque foi e, portanto, presumivelmente será trocável em termos de outros bens. Em suma, o dinheiro é exigido porque tem um poder de compra pré-existente; sua demanda não só não é independente de seu preço existente no mercado, mas se deve precisamente ao fato de já ter um preço em termos de outros bens e serviços. Mas se a demanda e, portanto, as utilidades do dinheiro dependem de seu preço ou poder de compra pré-existente, como então esse preço pode ser explicado pela demanda? Parece que qualquer tentativa austríaca de aplicar a teoria da utilidade marginal ao dinheiro está inextricavelmente presa em uma armadilha circular. Por essa razão, a economia mainstream não foi capaz de aplicar a teoria da utilidade marginal ao valor do dinheiro e, portanto, partiu em direções walrasianas multicausais (ou não causais).

Mises, no entanto, conseguiu resolver esse problema em 1912, desenvolvendo seu assim chamado teorema de regressão. Resumidamente, Mises sustentou que a demanda por dinheiro, ou saldos de caixa, no momento atual — digamos no dia X — repousa no fato de que o dinheiro no dia anterior, dia X–1, tinha um poder de compra. O poder de compra do dinheiro no dia X é determinado pela interação no dia X da oferta de dinheiro naquele dia e a demanda por saldos de caixa desse dia, que por sua vez é determinada pela utilidade marginal do dinheiro para os indivíduos no dia X. Mas essa utilidade marginal e, portanto, essa demanda, tem um componente histórico inevitável: o fato de que o dinheiro tem poder de compra anterior no dia X–1, e que, portanto, os indivíduos sabem que esta mercadoria tem uma função monetária e será trocável nos dias futuros por outra bens e serviços. Mas o que então determinou o poder de compra do dinheiro no dia X–1? Novamente, esse poder de compra era determinado pela oferta e demanda de dinheiro no dia X–1, e isso por sua vez dependia do fato de que o dinheiro tinha poder de compra no dia X–2. Mas não estamos presos em uma regressão infinita, sem escapatória da armadilha circular e sem explicação final? Não. O que precisamos fazer é empurrar a regressão temporal até o ponto em que a mercadoria-dinheiro não foi usada como meio de troca indireta, mas foi demandada puramente para seu próprio consumo direto. Vamos voltar logicamente ao segundo dia em que uma mercadoria, digamos ouro, foi usada como meio de troca. Nesse dia, o ouro foi exigido em parte porque tinha um poder de compra pré-existente como dinheiro, ou melhor, como meio de troca, no primeiro dia. Mas e aquele primeiro dia? Naquele dia, a demanda por ouro novamente dependia do fato de que o ouro tinha um poder de compra anterior e, portanto, empurramos a análise para o último dia do escambo. A demanda por ouro no último dia do escambo era puramente um uso para consumo e não tinha nenhum componente histórico referente a qualquer dia anterior; pois no escambo, todas as mercadorias eram demandadas puramente para seu uso de consumo atual, e o ouro não era diferente. No primeiro dia de seu uso como meio de troca, o ouro passou a ter dois componentes em sua demanda, ou utilidade: primeiro, um uso de consumo como existia na troca e, segundo, um uso monetário, ou uso como meio de troca, que teve um componente histórico em sua utilidade. Em suma, a demanda por dinheiro pode ser adiada para o último dia do escambo, ponto em que o elemento temporal na demanda pela mercadoria-dinheiro desaparece, e as forças causais na demanda atual e no poder de compra do dinheiro são total e completamente explicadas.

O teorema de regressão de Mises não apenas explica completamente a demanda atual por dinheiro e integra a teoria do dinheiro com a teoria da utilidade marginal, mas também mostra que o dinheiro precisa ter se originado desta forma — no mercado — com os indivíduos no mercado gradualmente começando a usar alguma mercadoria anteriormente valiosa como meio de troca. Nenhum dinheiro poderia ter se originado por um pacto social para considerar alguma coisa anteriormente sem valor como um “dinheiro” ou por súbito decreto governamental. Pois, nesses casos, a mercadoria-dinheiro não poderia ter um poder de compra anterior, o que poderia ser levado em conta nas demandas de dinheiro do indivíduo. Dessa forma, Mises demonstrou que a visão histórica de Carl Menger sobre a forma como o dinheiro surgiu no mercado não era simplesmente um resumo histórico, mas uma necessidade teórica. Por outro lado, embora o dinheiro tivesse de se originar como uma mercadoria diretamente útil, por exemplo, o ouro, não há razão, à luz do teorema de regressão, para que tais usos diretos precisem continuar depois para que a mercadoria seja usada como dinheiro. Uma vez estabelecido como dinheiro, o ouro ou seus substitutos podem perder ou ser privados de sua função de uso direto e ainda continuar como dinheiro; pois a referência histórica, o poder de compra de um dia anterior já terá sido estabelecido.[9]

Em seu abrangente tratado de 1949, Human Action, Mises refutou com sucesso as críticas anteriores ao teorema da regressão de Anderson e Ellis.[10] Posteriormente, as críticas foram feitas à teoria por J.C. Gilbert e Don Patinkin. Gilbert afirmou que a teoria falha em explicar como um novo papel-moeda pode ser introduzido quando o sistema monetário anterior entra em colapso. Presumivelmente, ele estava se referindo a exemplos como o Rentenmark alemão após a inflação galopante de 1923. Mas a questão é que o novo papel não foi introduzido de novo; ouro e moedas correntes estrangeiras existiam anteriormente, e o Rentenmark podia e foi submetido a câmbio em termos desses dinheiros previamente existentes; além disso, foi introduzido em relação fixa ao marco anterior, extremamente depreciado.[11]

Patinkin criticou Mises por alegadamente afirmar que a utilidade marginal do dinheiro se refere à utilidade marginal dos bens pelos quais o dinheiro é trocado, em vez da utilidade marginal de manter o dinheiro em si; ele também acusou Mises de manter inconsistentemente a última visão nas outras partes de The Theory of Money and Credit. Mas Patinkin estava enganado; O conceito de Mises da utilidade marginal do dinheiro sempre se refere à utilidade de manter dinheiro. O ponto de Mises no teorema de regressão é diferente, a saber, que a utilidade marginal para manter é ela própria baseada no fato anterior de que o dinheiro pode ser trocado por bens, ou seja, no poder de compra anterior do dinheiro em termos de bens. Em suma, os preços monetários dos bens, o poder de compra do dinheiro, existem primeiro para que o dinheiro tenha uma utilidade marginal para se manter, daí a necessidade do teorema de regressão romper a circularidade.[12]

A economia ortodoxa moderna abandonou a busca por uma explicação causal em nome de um mundo walrasiano de “determinação mútua” adequado para a moda atual da economia matemática. O próprio Patinkin aceitou debilmente a armadilha circular ao afirmar que, ao analisar o mercado (“experimento de mercado”), ele começou com a utilidade, ao passo que, ao analisar a utilidade, começou com os preços (“experimento individual”). Com arrogância característica, Samuelson e Stigler atacaram cada um a preocupação austríaca em escapar da circularidade a fim de analisar relações causais. Samuelson recorreu a Walras, que desenvolveu a ideia do “equilíbrio geral em que todas as magnitudes são simultaneamente determinadas por eficazes relações interdependentes”, que ele contrasta com os “medos dos escritores literários” (i.e, economistas que escrevem em inglês) sobre o raciocínio circular. [13]

Stigler rejeita Böhm-Bawerk por sua

falha em compreender alguns dos elementos mais essenciais da teoria econômica moderna, os conceitos de determinação mútua e equilíbrio (desenvolvidos pelo uso da teoria das equações simultâneas). Determinação mútua […] é rejeitada pelo antigo conceito de causa e efeito.

Stigler acrescentou a nota sarcástica de que “Böhm-Bawerk não foi treinado em matemática.”[14]

Assim, os economistas ortodoxos refletem a influência infeliz do método matemático na economia. A ideia de determinação funcional mútua — tão adaptável na apresentação matemática — é apropriada na física, que tenta explicar os movimentos desmotivados da matéria física. Mas na praxiologia, o estudo da ação humana, da qual a economia é a parte mais bem elaborada, a causa é conhecida: o propósito individual. Na economia, portanto, o método adequado é passar da ação causadora aos seus efeitos consequentes.

Em Human Action, Mises avançou a teoria austríaca do dinheiro desferindo um golpe devastador no próprio conceito de equilíbrio geral walrasiano. Para chegar a esse equilíbrio, os dados básicos da economia — valores, tecnologia e recursos — precisam ser congelados e compreendidos por todos os participantes no mercado para serem congelados indefinidamente. Dado esse congelamento mágico, mais cedo ou mais tarde a economia se acomodaria em uma rodada interminável de preços e produções constantes, com cada empresa ganhando uma taxa de juros uniforme (ou, em algumas construções, uma taxa de juros zero). A ideia de certeza e fixidez no que Mises chamou de “economia de rotação uniforme” é absurda, mas o que Mises passou a mostrar é que em tal mundo de fixidez e certeza ninguém manteria saldos de caixa. Pois, uma vez que todos teriam uma previsão e um conhecimento perfeitos de suas vendas e compras futuras, não haveria nenhum ponto em manter qualquer saldo de caixa. Assim, o homem que sabia que gastaria $5.000 em 1º de janeiro de 1977 emprestaria todo o seu dinheiro para ser devolvido precisamente naquela data. Como Mises afirmou:

Cada pessoa sabe exatamente de que quantia de dinheiro precisará no futuro. Ele está, portanto, em condições de emprestar todos os fundos que recebe, de forma que os empréstimos vencem na data em que ele vai precisar deles. […] Quando o equilíbrio da economia de rotação uniforme é finalmente alcançado, não há mais retenções de caixa.[15]

Mas se ninguém retém dinheiro e a demanda por saldos de caixa cai a zero, todos os preços sobem ao infinito, e todo o sistema de equilíbrio geral do mercado, que implica a existência contínua de câmbio monetário, desmorona. Como Mises concluiu:

Na construção imaginária de uma economia de rotação uniforme, a troca indireta e o uso do dinheiro estão tacitamente implícitos. […] Onde não há incertezas quanto ao futuro, não há necessidade de retenção de caixa. Como o dinheiro precisa ser necessariamente mantido pelas pessoas em suas retenções de caixa, não pode haver dinheiro algum. […] Mas a própria noção de uma economia de mercado sem dinheiro é autocontraditória.[16]

A própria noção de equilíbrio geral Walrasiano não é simplesmente totalmente irreal, é conceitualmente impossível, uma vez que o dinheiro e a troca monetária não podem ser sustentados nesse tipo de sistema. Outra contribuição corolária de Mises nessa análise foi demonstrar que, longe de ser apenas um dos muitos “motivos” para manter saldos de caixa, a incerteza é crucial para a retenção de qualquer caixa.

Que tais problemas estão agora preocupando a economia mainstream é revelado pela demonstração de F.H. Hahn de que o modelo bem conhecido de equilíbrio geral de Patinkin só pode estabelecer a existência de uma demanda por dinheiro apelando para noções como uma alegada incerteza dos momentos exatos das vendas futuras e compras e às “imperfeições” no mercado de crédito — nenhuma das quais, como Hahn apontou, é consistente com o conceito de equilíbrio geral.[17]

Com respeito à oferta de dinheiro, Mises voltou ao insight ricardiano básico de que um aumento na oferta de dinheiro nunca confere qualquer benefício geral à sociedade. Pois o dinheiro é fundamentalmente diferente dos bens de consumo e de produção em pelo menos um aspecto vital. Outras coisas sendo iguais, um aumento na oferta de bens de consumo beneficia a sociedade, uma vez que um ou mais consumidores estarão em melhor situação. O mesmo é verdade para um aumento na oferta de bens de produção, que será eventualmente transformado em um aumento na oferta de bens de consumo; pois a própria produção é o processo de transformar recursos naturais em novas formas e locais desejados pelos consumidores para uso direto. Mas o dinheiro é muito diferente: o dinheiro não é usado diretamente no consumo ou na produção, mas é trocado por esses bens diretamente utilizáveis. No entanto, uma vez que qualquer mercadoria ou objeto é estabelecido como um dinheiro, ele executa o trabalho de troca máximo de que é capaz. Um aumento na oferta de dinheiro não causa nenhum aumento no serviço de troca do dinheiro; tudo o que acontece é que o poder de compra de cada unidade monetária é diluído pelo aumento da oferta de unidades. Consequentemente, nunca há necessidade social de aumentar a oferta de dinheiro, seja por causa de uma maior oferta de bens, seja por causa de um aumento da população. As pessoas podem adquirir uma proporção maior de saldos de caixa com uma oferta fixa de dinheiro gastando menos e, assim, aumentando o poder de compra de seus saldos de caixa, aumentando assim seus saldos de caixa reais em geral. Como escreveu Mises:

Os serviços prestados pelo dinheiro são condicionados pelo nível de seu poder de compra. Ninguém quer ter em sua retenção de caixa um determinado número de notas de dinheiro ou um determinado peso de dinheiro; ele quer manter uma retenção de caixa com uma quantia definida de poder de compra. Como o funcionamento do mercado tende a determinar o estado final do poder de compra do dinheiro em uma altura em que a oferta e a demanda por dinheiro coincidam, nunca pode haver excesso ou deficiência de dinheiro. Cada indivíduo e todos os indivíduos juntos sempre desfrutam plenamente das vantagens que podem derivar da troca indireta e do uso do dinheiro, seja a quantidade total de dinheiro grande ou pequena. Mudanças no poder de compra do dinheiro geram mudanças na distribuição da riqueza entre os vários membros da sociedade. Do ponto de vista das pessoas ansiosas por enriquecer com essas mudanças, a oferta de dinheiro pode ser considerada insuficiente ou excessiva, e o apetite por tais ganhos pode resultar em políticas destinadas a provocar alterações induzidas por dinheiro no poder de compra. No entanto, os serviços prestados pelo dinheiro não podem ser melhorados nem prejudicados pela alteração da oferta de dinheiro. […] A quantidade de dinheiro disponível em toda a economia é sempre suficiente para garantir a todos tudo o que o dinheiro faz e pode fazer.[18]

Um mundo de oferta de dinheiro constante seria semelhante a esse de grande parte dos séculos XVIII e XIX, marcado pelo florescimento bem-sucedido da Revolução Industrial, com aumento do investimento de capital, aumento da oferta de bens e queda dos preços desses bens, bem como queda dos custos de produção.[19] Conforme demonstrado pela notável teoria austríaca do ciclo econômico, mesmo uma expansão inflacionária de dinheiro e do crédito apenas compensando a queda secular dos preços criará as distorções da produção que ocasionam o ciclo econômico.

Diante de argumentos esmagadores contra a expansão inflacionária da oferta de dinheiro (incluindo aqueles não detalhados aqui), o que explica a persistência da tendência inflacionária no mundo moderno? A resposta está na forma como o novo dinheiro é injetado na economia, no fato de que definitivamente não é feito de acordo com o modelo Anjo Gabriel. Por exemplo, um governo não multiplica a oferta de dinheiro dez vezes em toda a linha, emitindo um decreto adicionando outro zero a cada número monetário na economia. Em qualquer economia que esteje em um padrão 100% mercadoria, a oferta de dinheiro está sob o controle do governo, do banco central e do sistema bancário controlado. Essas instituições emitem dinheiro novo e o injetam na economia, gastando-o ou emprestando-o a devedores favorecidos. Como vimos, um aumento na oferta de dinheiro beneficia os primeiros recebedores, ou seja, o governo, os bancos e seus devedores ou contratantes favorecidos, às custas dos grupos de renda relativamente fixa que recebem o novo dinheiro tarde ou nem recebem e sofrem uma perda de renda real e riqueza. Em suma, a inflação monetária é um método pelo qual o governo, seu sistema bancário controlado e grupos políticos favorecidos são capazes de expropriar parcialmente a riqueza de outros grupos da sociedade. Aqueles com poderes para controlar a oferta de dinheiro emitem dinheiro novo para sua própria vantagem econômica e às custas do restante da população. Renda ao governo o monopólio sobre a emissão e a oferta de dinheiro, e o governo inflará essa oferta em seu próprio benefício e em detrimento dos politicamente impotentes. Uma vez que adotamos a abordagem distintamente austríaca de “individualismo metodológico”, uma vez que percebemos que o governo não é uma instituição sobrehumana dedicada ao bem comum e ao bem-estar geral, mas um grupo de indivíduos dedicados a promover seus interesses econômicos, então a razão para o inflacionismo inerente ao governo como monopolista do dinheiro torna-se cristalino.

Como mostra a análise austríaca do dinheiro, no entanto, o processo de inflação gerada não pode durar indefinidamente, pois o governo não pode, em última análise, controlar o ritmo da deterioração monetária e da perda de poder de compra. O resultado final de uma política de inflação persistente é a inflação galopante e o colapso total da moeda corrente. Como Mises analisou o curso da inflação galopante (antes e depois do primeiro exemplo de tal colapso em um país industrializado, na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial), essa inflação geralmente procede da seguinte maneira: No início, o aumento do governo na oferta de dinheiro e a subida subsequente dos preços é considerada pelo público como temporária. Visto que, como aconteceu na Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, o início da inflação é frequentemente ocasionado pelas despesas extraordinárias de uma guerra, o público presume que, após a guerra, as condições, incluindo os preços, voltarão à norma pré-inflação. Consequentemente, a demanda do público por saldos de caixa aumenta enquanto aguarda a redução antecipada dos preços. Como resultado, os preços aumentam menos do que proporcionalmente e muitas vezes substancialmente menos do que a oferta de dinheiro, e as autoridades monetárias tornam-se mais ousadas. Como no caso dos Assignats durante a Revolução Francesa, aqui está uma panaceia mágica para as dificuldades do governo: injete mais dinheiro na economia e os preços só aumentarão um pouco! Incentivadas pelo aparente sucesso, as autoridades aplicam mais daquilo que funcionou tão bem, e a inflação monetária segue em ritmo acelerado. Com o tempo, no entanto, as expectativas e visões do público sobre o presente e o futuro econômicos passam por uma mudança de vital importância. Eles começam a ver que não haverá retorno à norma do pré-guerra, que a nova norma é uma inflação de preços contínua — que os preços continuarão a subir em vez de cair. Segue-se a fase dois do processo inflacionário, com uma queda contínua na demanda por saldos de caixa com base nesta análise: “É melhor gastar meu dinheiro em X, Y e Z agora, porque sei muito bem que os preços do próximo ano vão ser mais altos.” Os preços começam a subir mais do que o aumento da oferta de dinheiro. O ponto crítico de virada chegou.

Nesse ponto, a economia é considerada como sofrendo de escassez de dinheiro, como evidenciado pela superação da expansão monetária pelo aumento dos preços. O que agora é chamado de crise de liquidez ocorre em larga escala, e surge um clamor por maiores aumentos na oferta de dinheiro. Como escreveu o economista da escola austríaca Bresciani-Turroni em seu estudo definitivo sobre a hiperinflação alemã:

A alta dos preços fez surgir uma demanda intensa pelo meio circulante, pois a quantidade existente não era suficiente para o volume das transações. Ao mesmo tempo, a necessidade de dinheiro do Estado aumentou rapidamente […] os olhos de todos se voltaram para o Reichsbank. A pressão exercida sobre ele tornou-se cada vez mais insistente e o aumento das emissões, por parte do banco central, apareceu como um remédio. […]

As autoridades, portanto, não tiveram coragem de resistir às pressões de quem exigia cada vez maiores quantidades de dinheiro de papel e de enfrentar com ousadia a crise que […] seria, inegavelmente, o resultado de uma paralisação da emissão de notas. Eles preferiram continuar o método conveniente de aumentar continuamente as emissões de notas, tornando assim a continuação dos negócios possível, mas ao mesmo tempo prolongando o estado patológico da economia alemã. O Governo aumentava os salários na proporção da desvalorização do marco, e os empregadores, por sua vez, concediam aumentos contínuos de salários, para evitar disputas, com a condição de que pudessem aumentar os preços de seus produtos. […]

Assim foi estabelecido o círculo vicioso; a troca depreciava; os preços internos subiam; as emissões de notas eram aumentadas; o aumento da quantidade de dinheiro de papel diminuía mais uma vez o valor do marco em ouro; os preços subiam mais uma vez; e assim por diante. […]

Por muito tempo o Reichsbank — tendo adotado a ideia fatalista de que o aumento das emissões de notas era a consequência inevitável da desvalorização do marco — considerou como sua principal tarefa, não a regulação da circulação, mas a preparação da economia alemã para as quantidades crescentes e contínuas de dinheiro de papel, exigidas pelo aumento dos preços. Dedicou-se especialmente à organização, em grande escala, da produção de marcos de papel.[20]

O tipo de pensamento que dominou as autoridades monetárias alemãs no auge da hiperinflação pode ser medido a partir desta declaração do presidente do Reichsbank, Rudolf Havenstein:

A depreciação totalmente extraordinária do marco criou naturalmente uma demanda rapidamente crescente por moeda corrente adicional, que o Reichsbank nem sempre foi capaz de satisfazer plenamente. Uma produção simplificada de notas de grandes denominações permitiu-nos colocar em circulação quantidades cada vez maiores. Mas essas enormes somas, mal são suficientes para cobrir o enorme aumento da demanda por meios de pagamento, que recentemente atingiu um nível absolutamente fantástico. […]

O funcionamento da organização de impressão de notas do Reichsbank, que se tornou absolutamente enorme, está exigindo muito de nosso pessoal.[21]

Os Estados Unidos parecem estar entrando na fase dois da inflação (1975), e é notável que economistas como Walter Heller já levantaram o grito de que a oferta de dinheiro precisa ser expandida a fim de restaurar os saldos de caixa reais do público, com efeito, para aliviar a escassez de saldos reais. Como na Alemanha no início da década de 1920, está sendo empregado o argumento de que a quantidade de dinheiro não pode ser a culpada pela inflação, uma vez que os preços estão subindo a uma taxa maior do que a oferta de dinheiro.[22]

A terceira fase da inflação é o último estágio de descontrole: o colapso da moeda corrente. O público foge em pânico do dinheiro para os valores reais, para qualquer mercadoria, seja qual for. A psicologia do público não é simplesmente comprar agora, e não mais tarde, mas comprar qualquer coisa imediatamente. A demanda do público por saldos de caixa chega a zero.

A razão do entusiasmo de Mises e outros economistas austríacos pelo padrão ouro, quanto mais puro e menos diluído, melhor, agora deve ser cristalina. Não é que esta “relíquia bárbara” tenha qualquer atração fetichista. A razão é que um dinheiro sob o controle do governo e de seu sistema bancário está sujeito a pressões inexoráveis para a continuação da inflação monetária. Em contraste, a oferta de ouro não pode ser fabricada ad libitum pelas autoridades monetárias; precisa ser extraída do solo, pelo mesmo processo caro que rege a oferta de quaisquer outras mercadorias no mercado. Essencialmente, a escolha é: ouro ou governo. A escolha do ouro em vez de outras mercadorias de mercado é a experiência histórica de séculos de que o ouro (assim como a prata) é unicamente adequado como mercadoria monetária — por razões já apresentadas no primeiro capítulo de todo livro-texto sobre dinheiro e bancos.

Pode-se criticar o fato de que o ouro também pode aumentar em quantidade e que esse aumento na oferta, embora limitado, também não traria nenhum benefício à sociedade. Além da escolha ouro versus governo, entretanto, há outra consideração importante: um aumento na oferta de ouro melhora sua disponibilidade para usos não monetários, uma vantagem dificilmente conferida pelas moedas correntes fiduciárias do governo ou pelos depósitos do sistema bancário.

Em contraste com a teoria misesiana de “superinvestimento monetário” dos ciclos econômicos, sobre a qual um trabalho considerável foi feito por F.A. Hayek e outros economistas austríacos, quase nada foi feito na teoria do dinheiro propriamente dita, exceto pelo próprio Mises. Existem três áreas nubladas e inter-relacionadas que precisam de mais elaboração. Uma é a rota pela qual o dinheiro pode ser liberado do controle do governo. De importância primordial seria o retorno a um padrão ouro puro. Fazer isso envolveria, primeiro, elevar o “preço do ouro” (na verdade, diminuindo a definição do peso do dólar) drasticamente acima do pseudo-preço atual de $42,22 a onça e, em segundo lugar, uma transformação deflacionária dos depósitos bancários atuais em certificados de poupança não monetários ou certificados de depósito. Qual deve ser o preço exato ou a combinação exata é um assunto para pesquisa. Inicialmente, a proposta de Mises de um retorno ao ouro a um preço de mercado e a proposta de teóricos monetários austríacos como Jacques Rueff e Michael Heilperin de um retorno a um preço deliberadamente dobrado de $70 a onça pareciam distantes. Mas o preço de mercado atual (1975) de aproximadamente $160 a onça aproxima as rotas de um preço deliberadamente mais alto e o preço de mercado muito mais próximos.[23]

Uma segunda área de pesquisa é a questão do sistema bancário livre em comparação com os requisitos de reserva de 100% para depósitos bancários em relação ao ouro. O Theory of Money and Credit de Mises foi um dos primeiros trabalhos a desenvolver sistematicamente a maneira como os bancos criam dinheiro por meio da expansão do crédito. Foi seguido pelo economista austríaco CA. Phillips com sua famosa distinção entre os poderes expansionistas de bancos individuais e os do sistema bancário como um todo. No entanto, um dos argumentos de Mises permaneceu negligenciado: sob um regime de sistema bancário livre, ou seja, onde os bancos não são regulamentados, mas são obrigados estritamente a prestar contas para honrar suas obrigações de resgatar notas ou depósitos em dinheiro padrão, as operações do mercado controlam monetariamente expansão pelos bancos. A ameaça de corridas aos bancos, combinada com a impossibilidade de um banco se expandir mais do que um concorrente, mantém a expansão do crédito no mínimo. Talvez Mises tenha subestimado a possibilidade de um cartel de bancos bem-sucedido para a promoção da expansão do crédito; parece claro, no entanto, que há menos chance de expansão do crédito bancário na ausência de um banco central para fornecer reservas e ser um credor de último recurso.[24]

Finalmente, há a questão relacionada, que Mises não desenvolveu totalmente, da definição adequada do conceito crucial de oferta de dinheiro. Na economia mainstream atual, existem pelo menos quatro definições concorrentes, variando de M1 a M4. De um dos pontos um austríaco está certo: a definição precisa repousar na essência interna do próprio conceito e não na metodologia que foge da questão atualmente em voga, mas questionável, de correlação estatística com a renda nacional. Leland Yeager foi veementemente crítico de tal abordagem:

Uma abordagem familiar para a definição de dinheiro despreza qualquer linha supostamente a priori entre dinheiro e quase-dinheiros. Em vez disso, busca a definição que funciona melhor com estatísticas. Uma vertente dessa abordagem […] busca a quantidade estreita ou amplamente definida que se correlaciona mais intimamente com a renda em equações ajustadas a dados históricos. […] Mas seria estranho se a definição de dinheiro, consequentemente, tivesse que mudar de tempos em tempos e de país para país. Além disso, mesmo que o dinheiro definido para incluir certos quase-dinheiros se correlacione um pouco mais de perto com a renda do que o dinheiro estritamente definido, esse fato não impõe necessariamente a definição ampla. Talvez o valor desses quase-dinheiros dependa do nível de receita de dinheiro e, por sua vez, do valor do meio de troca. […] De maneira mais geral, não é óbvio por que a magnitude com a qual alguma outra magnitude se correlaciona merece atenção prioritária. […] O número de banhistas em uma praia pode se correlacionar mais intimamente com o número de carros estacionados lá do que com a temperatura ou o preço do ingresso, embora a primeira correlação possa ser menos interessante ou útil do que qualquer uma das últimas. A correlação com a renda nacional pode ser mais próxima para consumo ou investimento do que para quantidade de dinheiro.[25]

O dinheiro é o meio de troca, o ativo pelo qual todos os outros bens e serviços são negociados no mercado. Se uma coisa funciona como tal meio, como pagamento final por outras coisas no mercado, então ela serve como parte da oferta de dinheiro. Em seu Theory of Money and Credit, Mises distinguiu entre o dinheiro padrão (dinheiro no sentido estrito) e os substitutos de dinheiro, como notas bancárias e depósitos à vista, que funcionam como uma oferta de dinheiro adicional. Deve-se notar, por exemplo, que no clássico não austríaco de Irving Fisher, The Purchasing Power of Money, escrito mais ou menos na mesma época (1913), M consistia em dinheiro padrão apenas, enquanto M1 consistia em substitutos de dinheiro na forma de depósitos bancários à vista resgatáveis em padrão em valor nominal. Hoje, nenhum economista pensaria em excluir os depósitos à vista da definição de dinheiro. Mas se ponderarmos sobre o problema, veremos que, se um banco começa a falir, seus depósitos não são mais equivalentes a dinheiro; eles não servem mais como dinheiro no mercado. Eles são apenas dinheiro até o colapso iminente de um banco.

Além disso, da mesma forma que M1 (moeda mais depósitos à vista) é mais amplo do que a definição mais restrita, podemos estabelecer definições ainda mais amplas incluindo depósitos de poupança de bancos comerciais e valores de resgate em dinheiro de companhias de seguros de vida, que são todos resgatáveis ​​sob demanda em valor nominal em dinheiro padrão e, portanto, todos servem como substitutos monetários e como parte da oferta monetária até que o público comece a duvidar de que sejam resgatáveis. Os partidários do M1 argumentam que os bancos comerciais são excepcionalmente poderosos na criação de depósitos e, além disso, que seus depósitos circulam mais ativamente do que os depósitos de outros bancos. Suponhamos, no entanto, que em um país de padrão-ouro, um homem tenha algumas moedas de ouro em sua escrivaninha e outras trancadas em um cofre de banco. Seu estoque de moedas de ouro em casa circulará ativamente e as de seu cofre vagarosamente, mas certamente ambas fazem parte de seu estoque de dinheiro. E, se também se objetar que os depósitos das caixas econômicas e instituições semelhantes piramidam sobre os depósitos dos bancos comerciais, deve também notar-se que estes últimos, por sua vez, piramidam sobre as reservas e o dinheiro padrão.

Outro exemplo servirá para responder à objeção comum de que um depósito de caixa econômica não é dinheiro porque não pode ser usado diretamente como meio de troca, mas precisa ser resgatado nesse meio. (Isso sem contar o fato de que as caixas econômicas estão cada vez mais autorizados a emitir cheques e abrir contas correntes.) Suponha que, por alguma peculiaridade cultural, todos no país decidam não usar notas de cinco dólares na troca real. Eles usariam apenas notas de dez e um dólar e manteriam seus saldos de caixa de longo prazo em notas de cinco dólares. Como resultado, as notas de cinco dólares tenderiam a circular muito mais lentamente do que as outras notas. Se um homem quisesse gastar parte de seu saldo em dinheiro, ele não poderia gastar uma nota de cinco dólares diretamente; em vez disso, ele iria a um banco e trocaria por cinco notas de um dólar para uso no comércio. Nessa situação hipotética, o status da nota de cinco dólares seria o mesmo do depósito de poupança hoje. Mas, embora o titular da nota de cinco dólares tivesse que ir a um banco e trocá-la por notas de dólares antes de gastá-la, certamente ninguém diria que suas notas de cinco dólares não faziam parte de seu saldo de caixa ou da oferta de dinheiro.

Uma definição ampla de oferta de dinheiro, no entanto, exclui ativos não resgatáveis sob demanda ao valor nominal em dinheiro padrão, ou seja, qualquer forma de responsabilidade em tempo genuíno, como certificados de poupança, certificados de depósito negociáveis ou não negociáveis e títulos do governo. Títulos de poupança, resgatáveis ao valor nominal, são substitutos do dinheiro e, portanto, fazem parte da oferta total de dinheiro. Finalmente, assim como as reservas dos bancos comerciais são devidamente excluídas da oferta de dinheiro pendente, os depósitos à vista que, por sua vez, funcionam como reservas para os depósitos dessas outras instituições financeiras também teriam de ser excluídos. Seria uma contagem dupla incluir a base e o múltiplo de qualquer uma das pirâmides de dinheiro invertidas da economia


[1] Ludwig von Mises, Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel (1912); veja a terceira edição em inglês, The Theory of Money and Credit (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1953).

[2] Sobre as mudanças nos preços relativos decorrentes de um aumento na oferta de dinheiro, veja Mises, Theory of Money and Credit, pp. 139-45.

[3] Para mais sobre as falácias de medição e de números de índice, veja Mises, Theory of Money and Credit, pp. 187-94; idem, Human Action: A Treatise on Economics (New Haven, Conn .: Yale University Press, 1949), pp. 221–24; Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State (Princeton, N.J.: D. Van Nostrand, 1962), vol. 2, pp. 737–40; Bassett Jones, Horses and Apples: A Study of Index Numbers (Nova York: John Day, 1934); e Oskar Morgenstern, On the Accuracy of Economic Observations, 2ª ed. rev. (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1963).

[4] Veja Mises, Theory of Money and Credit, pp. 170-78.

[5] Chi-Yuen Wu, An Outline of International Price Theories (Londres: George Routledge and Sons, 1939), p. 126.

[6] Ibid., p. 234; Mises, Theory of Money and Credit, p. 178. O desenvolvimento da teoria por Mises foi independente do de Senior porque este foi publicado apenas em 1928 em Industrial Efficiency and Social Economy (Nova York, 1928), pp. 55-56; veja Wu, Outline of International Price Theories, p. 127n.

[7] Ibid., p. 250; A formulação de Mises está em Theory of Money and Credit, pp. 179-88.

[8] Veja Wu, Outline of International Price Theories, pp. 251–60.

[9] O teorema de regressão de Mises pode ser encontrado em Theory of Money and Credit, pp. 97-123. Para uma explicação e uma representação diagramática do teorema de regressão, veja Rothbard, Man, Economy, and State, pp. 231-37. A visão de Menger sobre a origem do dinheiro no mercado pode ser encontrada em Carl Menger, Principles of Economics (Glencoe, Ill .: The Free Press, 1950), pp. 257-62. Sobre a relação entre a abordagem de Menger e o teorema de regressão, veja Mises, Human Action, pp. 402–04.

[10] Mises, Human Action, pp. 405–07. A análise de regressão foi adotada ou obtida independentemente por William A. Scott em Money and Banking, 6ª ed. (Nova York: Henry Holt, 1926), pp. 54–55.

[11] J.C. Gilbert, “The Demand for Money: The Development of an Economic Concept”, Journal of Political Economy 61 (abril de 1953): 149.

[12] Don Patinkin, Money, Interest, and Prices (Evanston, Ill .: Row, Peterson, 1956), pp. 71-72, 414.

[13] Paul A. Samuelson, Foundations of Economic Analysis (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1947), pp. 117–18.

[14] George Stigler, Production and Distribution Theories: The Formative Period (Nova York: Macmillan, 1946), p. 181; veja também o ataque semelhante, embora mais educado, a Menger por Frank H. Knight, “Introduction”, em Menger, Principles, p. 23. Para uma discussão contrastante do economista matemático filho de Menger, Karl Menger, veja “Austrian Marginalism and Mathematical Economics”, em Carl Menger and the Austrian School of Economics, John R. Hicks e Wilhelm Weber, eds. (Oxford: Clarendon Press, 1973), pp. 54-60.

[15] Mises, Human Action, p. 250.

[16] Ibid., pp. 249–50, 414.

[17] F.H. Hahn, “On Some Problems of Proving the Existence of an Equilibrium in a Monetary Economy”, em The Theory of Interest Rates, F.H. Hahn e F.P.R. Breckling, eds. (Londres: Macmillan, 1956), pp. 128–32.

[18] Mises, Human Action, p. 418

[19] Sobre as vantagens de um “nível” de preços em queda secular, veja CA. Phillips, T.F. McManus e R.W. Nelson, eds., Banking and the Business Cycle (Nova York: Macmillan, 1937), pp. 186–88, 203–07.

[20] Costantino Bresciani-Turroni, The Economics of Inflation (Londres: George Allen e Unwin, 1937), pp. 80-82; veja também Frank D. Graham, Exchange, Prices, and Production in Hyper-inflação: Germany 1920–23 (Nova York: Russell e Russell, 1930), pp. 104–07. Para uma análise da hiperinflação, veja Mises, Theory of Money and Credit, pp. 227-30; e idem, Human Action, pp. 423-25.

[21] Rudolf Havenstein, Discurso ao Comitê Executivo do Reichsbank, 25 de agosto de 1923, traduzido em The German Inflation of 1923, Fritz K. Ringer, ed. (Nova York: Oxford University Press, 1969), p. 96

[22] Veja Denis S. Karnofsky, “Real Money Balances: A Misleading Indicator of Monetary Actions”, Federal Reserve Bank of St. Louis Review 56 (fevereiro de 1974): 2–10.

[23] A proposta de Mises está em Theory of Money and Credit, pp. 448-57; veja também Michael A. Heilperin, Aspects of the Pathology of Money (Genebra: Michael Joseph, 1968); e Jacques Rueff, The Monetary Sin of the West (Nova York: Macmillan, 1972).

[24] Veja Mises, Human Action, pp. 431-45.

[25] Leland B. Yeager, “Essential Properties of the Medium of Exchange”, Kyklos (1968), reimpresso em Monetary Theory, R. W. Clower, ed. (Londres: Penguin Books, 1969), p. 38

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