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A dimensão interpretativa da economia: Ciência, hermenêutica e praxiologia

Tempo de Leitura: 69 minutos

Por Don Lavoie

Traduzido por Vitor Gomes Calado, todos os direitos reservados a Springer Science Business Media, LLC.

1 Introdução

Uma crise do método de pensamento econômico está tomando forma. A questão surge, em que medida o estilo de pensamento econômico que tem sido predominante por cerca de meio século, pelo menos no mundo ocidental, pode fazer justiça aos problemas da ação humana em um mundo em rápida mudança, e, em particular, numa época tempestuosa.

Ludwig M. Lachmann (1984, p. 1)

Este ensaio confronta três corpos da literatura metodológica entre si: a literatura growth of knowledge sobre os métodos das ciências em geral, a filosofia continental conhecida como “hermenêutica” (ou a ciência da interpretação) sobre os métodos das ciências sociais, e a metodologia que o economista da escola austríaca Ludwig von Mises chamou de “praxiologia” (ou a ciência da ação humana) sobre os métodos de economia em particular. O resultado deste confronto será que todos os três corpos da literatura defendem o que será chamado de abordagem “interpretativa” da explicação científica. Meu objetivo é apresentar aos filósofos e economistas duas literaturas metodológicas especializadas que passam por nomes obscuros como hermenêutica e praxiologia usando temas de um corpo de literatura com o qual tanto filósofos quanto economistas são bastante familiares, a literatura growth of knowledge.

A literatura growth of knowledge nos dá uma visão importante da natureza do conhecimento humano em geral, mas infelizmente limita sua atenção às ciências naturais. A literatura hermenêutica preenche essa lacuna com explicações importantes, amplamente consistentes com a mensagem central da abordagem growth of knowledge, daqueles aspectos do conhecimento que são particularmente importantes para as ciências sociais. Mas a própria hermenêutica, pelo menos em seus renascimentos modernos, não consegue abordar seus insights sobre métodos científicos sociais a uma das mais importantes das ciências sociais, a economia. A metodologia que os economistas austríacos chamam de praxiologia pode ser vista por sua vez como exemplar de uma abordagem hermenêutica da economia. E todas essas três literaturas metodológicas dão apoio a uma conclusão comum de que a economia neoclássica está precisando de reformas e que essa reforma poderia ser descrita como uma restauração da dimensão interpretativa ao nosso discurso econômico.

O estilo da economia neoclássica moderna que Ludwig Lachmann rotula de “formalismo clássico tardio”, e que os economistas austríacos frequentemente lamentam, pode ser atribuível a um viés metodológico intrusivo contra a dimensão “interpretativa” da economia. Esse viés tornou-se dominante relativamente tarde na história da economia (Lachmann data da década de 1930) e pode ser visto como um sintoma infeliz da perspectiva filosófica que os economistas austríacos muitas vezes chamavam de positivismo e que aqui será chamado de objetivismo. O objetivismo, eu insisto, levou a uma desvalorização inadequada das próprias características da economia neoclássica que foram melhor avançadas em seu desdobramento austríaco. Essas características “interpretativas” da explicação econômica serão elaboradas abaixo e, por enquanto, serão simplesmente nomeadas como aspectos históricos (tanto históricos propriamente ditos quanto a história das ideias), linguísticos, narrativos, dialógicos, perspectivistas, tácitos e sociológicos da explicação econômica.[1] O objetivismo tem sido uma influência tão poderosa na economia que, embora muitos dos economistas mais proeminentes da década de 1930, como Keynes e Knight, enfatizaram a importância de muitos desses aspectos interpretativos de explicação, as escolas dominantes de pensamento que afirmam descender de Keynes e Knight passaram a negligenciar seriamente essa dimensão. Felizmente, dentro dos círculos filosóficos o objetivismo tem sido agora amplamente repudiado, mais notavelmente na famosa literatura “growth of knowledge“.[2] Mas antes de sua morte, o objetivismo deixou um profundo legado do que poderia ser chamado de preconceitos cientificamente inapropriados em todas as disciplinas que tocou, incluindo, além de economia, psicologia, ciência política, história, sociologia e linguística.[3] Agora, reforçado pela tradição growth of knowledge, bem como por vários outros desenvolvimentos na filosofia contemporânea, a firmeza metodológica do objetivismo está sendo perdida na maioria dessas disciplinas e suas dimensões interpretativas estão se tornando correspondentemente enriquecidas.

Os economistas, felizmente, não levaram seu objetivismo tão a sério de modo que os tenha impedido de entender o mundo real ou de melhorar nosso conhecimento teórico e empírico. Pode ser o caso, no entanto, que o progresso do conhecimento em nossa disciplina tenha sido retardado por esse viés contra a dimensão interpretativa. Temos consistentemente mal interpretado a natureza da explicação econômica. Como McCloskey apontou, embora geralmente sejam as habilidades interpretativas dos economistas que os guiem quando pensam sobre a economia, e sejam somente as explicações que eles mesmos acham interpretativamente convincentes que os convencem, são apenas as econometrias ou as provas matemáticas que eles consideram a parte científica de seu trabalho.[4] As teorias, ensinamos solenemente a nossos alunos, devem ser aceitas ou rejeitadas somente com base em sua precisão de previsão ou rigor matemático. Uma mera “interpretação” de um episódio histórico não pode competir efetivamente por espaço em nossos periódicos contemporâneos com um teste econométrico de um modelo quantitativo específico. Nem uma mera interpretação do significado de uma teoria econômica pode competir em igualdade de condições com o rigoroso desenvolvimento de um novo modelo formal. Permanece na economia um forte “viés objetivista” contra os aspectos qualitativos/interpretativos da pesquisa em favor dos aspectos quantitativos/preditivos. O pior de tudo, o viés objetivista tornou a economia entediante.

Várias escolas minoritárias na profissão contemporânea — de marxistas, institucionalistas e pós-keynesianos até suply siders — podem ser consideradas relativamente livres desse viés objetivista em comparação com o neoclassicismo mainstream. Economistas neoclássicos, no entanto, parecem ver essas escolas como se fossem Bárbaros Obscuros batendo nos Portões da Ciência Econômica, ameaçando minar os padrões positivos e, portanto, os princípios mais fundamentais da microeconomia.[5] Embora esse medo seja certamente exagerado, muitos economistas tradicionais podem legitimamente se perguntar se o progresso que foi feito como resultado da revolução marginalista/subjetivista no micro poderia ser perdido para o historicismo anti-teórico dos institucionalistas, ou às perspectivas predominantemente macro de supply siders e de pós-keynesianos, ou a completa reversão à economia do século XIX na teoria do valor objetivo do marxismo. As verdades básicas que nós economistas ensinamos aos nossos princípios sobre oferta e demanda e a lógica de escolha podem parecer, para muitos de nós, genuinamente ameaçadas pela crescente insatisfação com a microeconomia neoclássica.

Por outro lado, o florescimento de escolas de pensamento tão diversas pode ser visto como um sinal esperançoso de que a profissão está começando a se mexer, se ainda não despertar, de seu sono metodológico. A economia hoje está, como disse Lachmann, em uma temporada tempestuosa. Ela vem cada vez mais para refletir uma rivalidade interessante entre perspectivas divergentes, cada uma implorando por uma interpretação clara das outras, em vez de um sistema monolítico de relações quantitativas objetivamente “testadas” que nem pede nem parece exigir qualquer interpretação. Como tal, parece cada vez mais provável não apenas que cada uma das escolas minoritárias terá que estender a dimensão interpretativa de suas pesquisas, a fim de explicar em linguagem simples o que sua teoria é suposta a significar, mas também que o mainstream neoclássico pode ser compelido a fazê-lo se pretende defender esses princípios queridos da teoria da escolha contra os “obscuros”. Quando for o caso, pode-se descobrir que dos três grandes ramos da economia marginalista/subjetiva que surgiram na década de 1870, o lado interpretativo da economia tem sido mais bem avançado na tradição que seguiu de Menger em vez de Walras ou de Jevons.

A tese deste artigo será que os economistas devem libertar nossa pesquisa do viés objetivista e correspondentemente alterar nosso estilo de discurso científico. Os economistas devem, à luz das literaturas growth of knowledge e hermenêuticas, restaurar a seu status pré-objetivista a dimensão interpretativa de nossa obra. A economia terá de se tornar, mais uma vez, mais um fórum para a disputa aberta entre interpretações da teoria e da história, do que o tipo de laboratório simulado para a prova objetiva de hipóteses, ou a torre de marfim para a prova de teoremas matemáticos, que é agora. Este desafio à economia neoclássica não é uma crítica externa, mas sim imanente. Não incita a derrubada do conteúdo analítico básico da economia moderna, uma vez que surgiu da revolução marginalista/subjetivista na década de 1870. A conclusão na qual este artigo visa é uma demonstração de que, no ramo austríaco do neoclassicismo, podemos descobrir uma maneira de reestabelecer uma dimensão interpretativa ao estilo do discurso econômico sem abrir as portas para os “obscuros” anti-microeconômicos.

O argumento subsequente será organizado em três estágios representando um estreitamento progressivo do foco, passando da ciência, para a ciência social e, em seguida, para a economia. Esses três estágios de argumento podem ser resumidos de forma útil, referindo-se a três livros recentes sobre metodologia que fornecem sucessivas partes de um argumento em nome da variante Austríaca da economia neoclássica. O The Politics and Philosophy of Economics, Marxians, Keynesians and Austrians de T.W. Hutchison (1981), embora amplamente favorável às contribuições dos austríacos, interpreta a praxiologia de Mises como uma metodologia pré-popperiana que se tornou obsoleta pela literatura growth of knowledge. O Beyond Positivism: Economic Methodology in the Twentieth Century (1982), de Bruce Caldwell, argumenta que, ao contrário de Hutchison, a praxiologia é totalmente consistente com a mensagem válida do popperianismo e com a literatura growth of knowledge em geral. Beyond Objectivism and Relativism: Science, Hermeneutics and Praxis (1983), de Richard J. Bernstein, embora não contenha referências específicas à economia ou metodologia austríaca, pode ser vista como mostrando por que uma abordagem como a praxiologia deveria ser considerada uma metodologia pós-popperiana para economia, uma metodologia que é consistente, mas vai além, da literatura growth of knowledge.

Apesar da avaliação bastante favorável de Hutchison sobre a “mensagem essencial austríaca de individualismo e subjetivismo” (1981, p. 224), ele objeta  extenuantemente ao que vê como uma “pretensão de conhecimento” em alguns escritos austríacos, uma pretensão com o qual a literatura growth of knowledge está em “um choque filosófico absolutamente fundamental” (1981, p. 229). Hutchison, por exemplo, ridiculariza a noção de Mises e Wieser de que uma das principais fontes de conhecimento para economia é a “introspecção”, à qual Hutchison se refere com desdém como uma espécie de “voz interior infalível”.[6] Metodologias como a de Mises e Wieser, ele argumenta, dependem do conhecimento privado e, portanto, são, em princípio, infalseáveis. Portanto, conclui Hutchison, de acordo com as ideias básicas decorrentes da literatura growth of knowledge, a praxiologia é um dogmatismo não científico.

Bruce Caldwell, por outro lado, oferece uma leitura mais simpática da metodologia austríaca, e argumenta que os ataques usuais a ela, incluindo os de Hutchison, são inadequados. Em vez de aplicar padrões falsificacionistas popperianos, que Caldwell não acredita que sejam tão claros quanto Hutchison parece pensar, nem tão apropriado para abordar o argumento dos austríacos, Caldwell (1982, pp. 128-135) fornece um esboço de como seria uma crítica que “encontra os austríacos em seu próprio terreno”:

Uma rota diferente para criticar a praxiologia faz uso da noção de escolha de teoria [theory choice]. […] Sobre que fundamentos escolhemos entre as teorias concorrentes? […] Mas nós encontramos na literatura austríaca nenhuma discussão sobre escolha de teoria. A razão não é difícil de descobrir: uma vez que o sistema austríaco presumivelmente é fundamentado em postulados verdadeiros a priori, ele é ou verdadeiro ou falso […] No entanto [essa postura] esbarra em seus próprios problemas, principalmente porque os postulados verdadeiros a priori (e os sistemas que se seguem deles por dedução) pelo menos parecem capazes de multiplicação.

Assim, Caldwell pede que os austríacos especifiquem critérios mais definidos para a escolha teórica do os que eles já têm, mas ao contrário de Hutchison ele não encontra nada na metodologia dos austríacos que a torne inerentemente não científica. A literatura growth of knowledge nos ensina a adotar uma atitude de tolerância em relação às escolas de pensamento que podem aplicar critérios diferentes de escolha de teoria ao contrário a economia neoclássica convencional.

Para Hutchison, a lição principal que os economistas devem aprender com a literatura growth of knowledge é que devemos nos esforçar por teorias mais falseáveis, das quais ele conclui que metodologias como as de alguns austríacos devem ser rejeitadas. Para Caldwell, por outro lado, a lição é que os economistas devem ser mais tolerantes a abordagens divergentes e devem promover um pluralismo metodológico, a partir do qual ele conclui que metodologias como as desses mesmos austríacos devem ser levadas mais a sério. Evidentemente, essas avaliações conflitantes da metodologia austríaca são rastreáveis a interpretações diametralmente opostas da literatura growth of knowledge. Para resolver suas interpretações conflitantes desta literatura, os livros de Hutchison e de Caldwell precisam ser complementados por um terceiro livro sobre metodologia, Beyond Objectivism and Relativism: Science, Hermeneutics, and Praxis, de Richard J. Bernstein. Que oferece uma intrigante comparação e integração da tradição growth of knowledge com “hermenêutica”.[7] O procedimento analítico de Bernstein é justapor, e, na medida do possível, integrar, três literaturas, incluindo tanto a growth of knowledge quanto as literaturas hermenêuticas aqui examinadas, bem como uma perspectiva marxiana a não ser considerada aqui, a saber, a filosofia da “Praxis” de Habermas. Como o título deste artigo sugere, meu procedimento analítico será estender o esforço integrativo de Bernstein, e em particular aplicá-lo, como ele não fez, à economia, substituindo a praxiologia pela práxis. A tradição acadêmica que remonta à teoria do valor  “subjetivo” de Menger  na economia deve ser pelo menos tão propícia à hermenêutica e ao crescimento das perspectivas growth of knowledge quanto a tradição que remonta à teoria de valor “objetivo” de Marx.[8]

A obra de Bernstein discute (e é um exemplo de) um recente florescimento de interesse, dentro da filosofia e da maioria das ciências sociais, na tradição continental da hermenêutica, mas esse desenvolvimento infelizmente deixou a economia quase intocada. Revela uma característica de todo o movimento hermenêutico moderno quando os editores de um excelente novo livro (Rabinow e Sullivan 1979, p. 10) declaram que seu objetivo é apresentar a hermenêutica moderna a “uma grande audiência” e, em seguida, listar historiadores, sociólogos, antropólogos, psicólogos, historiadores da religião, cientistas e filósofos. Os economistas podem ter ganho essa negligência, mas a economia não merece isso. Na verdade, os pioneiros da hermenêutica como Dilthey e Weber tinham um grande interesse em questões econômicas, e as lições metodológicas gerais que a hermenêutica pode ensinar aos cientistas sociais parecem eminentemente aplicáveis à economia. É a partir de insights sobre a natureza da compreensão humana surgida nessa tradição que um caminho para a adjudicação das disputas Caldwell/Hutchison pode ser encontrado.

De acordo com a interpretação de Bernstein sobre os debates growth of knowledge, a explicação científica envolve necessariamente não apenas uma dimensão “preditiva” [predictive], mas também o que tem sido chamado de dimensão hermenêutica ou “interpretativa”. Uma teoria não somente precisa prever com precisão, como também deve interpretar de forma inteligível, ou seja, deve contar uma história plausível sobre como os resultados explicam algum aspecto problemático da realidade. Embora um veículo apropriado de expressão para previsão seja a matemática formal, o único meio apropriado para a expressão da interpretação é a linguagem completa de uma cultura.

Antes da literatura growth of knowledge, os filósofos da ciência tendiam a acreditar que a ciência não passa de medição e previsão quantitativa e que as teorias são sempre e apenas hipóteses provisórias com as quais os “fatos” objetivos e não ambíguos são confrontados.  As teorias growth of knowledge da ciência, como disse Patrick Heelan (1983a, p. 197), “introduzem uma dimensão hermenêutica na ciência natural.” Hoje, filósofos e historiadores da ciência concordam amplamente que a imagem “objetivista” das ciências naturais é ao mesmo tempo indescritível para os métodos reais dos cientistas e internamente incoerente como uma maneira viável de avançar no conhecimento. Em particular, ela falha em deixar espaço para uma dimensão interpretativa na qual a plausibilidade qualitativa de uma explicação pode ser julgada em par com sua precisão quantitativa.[9]

O objetivo deste artigo, então, é reconstruir uma interpretação da metodologia econômica que seja capaz de responder às linhas de crítica aos austríacos representados pelos livros de Hutchison e de Caldwell, com base na abordagem metodológica elaborada pelo livro de Bernstein. Como os três, meu ponto de partida será uma lição metodológica extraída da literatura growth of knowledge. A próxima seção resumirá a mensagem central dessa literatura, nos moldes elaborados por Bernstein, como uma demonstração da indispensabilidade da dimensão interpretativa para todas as ciências, bem como a implicação deste fato para o problema da escolha de teoria levantada por Caldwell contra a metodologia austríaca. A parte 3 descreverá então alguns dos principais temas da tradição hermenêutica e a resposta que ela contém implicitamente ao problema, levantado por Hutchison contra os austríacos, do conhecimento introspectivo incriticável. A parte 4, então, delineará um caso, baseado nos escritos metodológicos de Mises, de que a abordagem dos austríacos representa uma aplicação à economia dos insights sobre a compreensão humana que foram fornecidos tanto pela literatura growth of knowledge quanto pelas literaturas hermenêuticas.

2 Ciência e o problema da escolha de teoria

O que eu, como físico, tive de descobrir por mim mesmo, a maioria dos historiadores aprende, por exemplo, no decorrer da formação profissional. Conscientemente ou não, são todos praticantes do método hermenêutico. No meu caso, no entanto, a descoberta da hermenêutica fez mais do que fazer a história parecer consecutiva. Seu efeito mais imediato e decisivo foi, em vez disso, sobre minha visão da ciência.

Thomas S. Kuhn (1977, p. xiii)

O Beyond Positivism, de Bruce Caldwell, descreve uma maneira pela qual os defensores da economia austríaca poderiam atender aos padrões da metodologia contemporânea se estivessem dispostos a enfrentar o problema da escolha de teoria.   É possível, as objeções de Hutchison contrariam, não obstante, que seja completamente legítimo construir sistemas dedutivos de economia a partir de princípios verdadeiros a priori. Mas aqueles que o fazem devem nos dizer por que todos os outros sistemas que poderíamos sonhar são menos úteis do que a própria praxiologia dos austríacos, ou articular condições sob as quais os sistemas a priori podem ser tornados comensuráveis. Como o praxiologista a priori responde ao desafio de, digamos, o marxiano a priori?[10] Caldwell (1982, p. 133) coloca a questão para os austríacos de forma concisa:

As escolhas deles, ao que parece, são duplas. Eles poderiam tentar criticar, e esperançosamente desacreditar, todos os sistemas rivais. Tal tarefa não seria apenas demorada, seria literalmente interminável. A segunda alternativa, e que parece mais razoável, é propor certos critérios que poderiam ser usados para avaliar criticamente seus próprios e outros tais sistemas.

Mas essa forma de colocar o problema da escolha de teoria é enganosa. Nessa forma, as duas escolhas de Caldwell parecem representar uma falsa alternativa entre o que Bernstein chama, respectivamente, de relativismo e objetivismo. Embora Caldwell esteja certo de que os austríacos precisam enfrentar mais diretamente a questão da escolha de teoria, a resposta a esta questão deve transcender essas alternativas igualmente indesejáveis.

Bernstein descreve a mensagem central da literatura growth of knowledge não como um enfraquecimento cético dos critérios outrora firmes da ciência, como alguns a viram, mas sim como uma libertação epistemológica do objetivismo e do relativismo. Ela “abre o caminho para uma compreensão mais historicamente situada, não algorítmico e flexível da racionalidade humana, um que destaca a dimensão tácita do juízo humano e da imaginação e é sensível às contingências insuspeitas e às novidades genuínas encontradas em situações particulares” (Bernstein 1983, p. xi). A filosofia da ciência, ele mostra, está começando a encontrar seu caminho entre os perigos metodológicos alternativos do “objetivismo” e do “relativismo”.

Por “objetivismo” quero dizer a convicção básica de que existe ou deve haver alguma matriz ou estrutura permanente, histórica a partir da qual podemos, em última instância, apelar para determinar a natureza da racionalidade, conhecimento, verdade, realidade, bondade ou justiça. […] O opositor afirma que, a menos que possamos fundamentar a filosofia, conhecimento ou linguagem de uma maneira rigorosa não podemos evitar o ceticismo radical.

Em sua forma mais forte, o relativismo é a convicção básica de que quando nos voltamos para o exame daqueles conceitos que os filósofos tomaram como os mais fundamentais […] todos esses conceitos devem ser entendidos como relativos a um esquema conceitual específico, estrutura teórica, paradigma, forma de vida, sociedade ou cultura. Uma vez que o relativista acredita que há (ou pode haver) uma pluralidade não-reduzível de tais esquemas conceituais, ele ou ela desafia a alegação de que esses conceitos podem ter um significado determinante e unívoco (Bernstein 1983, p. 8).

Em um sentido, o objetivismo aspira a livrar o raciocínio de todas as ambiguidades, livrar pesquisadores de todos os vieses, livrar disciplinas científicas de escolas alternativas ou perspectivas. O relativismo, por outro lado, quer abandonar a busca por uma única verdade e, portanto, considera as rivalidades disciplinares sem sentido. Enquanto o objetivismo pressupõe que o problema da escolha teórica é solucionável algoritmicamente, o relativismo presume que o problema é inerentemente insolúvel. A filosofia está chegando agora a uma terceira posição, que o problema da escolha de teoria é não-algoritmicamente solucionável através de um certo tipo de processo social na comunidade científica. Como Kuhn (1976, 190-191) uma vez disse, paradigmas alternativos são incomensuráveis, mas não são incomparáveis.  “O que falta não é a comparabilidade, mas uma unidade de comprimento em termos dos quais ambos podem ser medidos direta e exatamente.”

Alguns contribuintes para a literatura growth of knowledge podem ser lidos como pisando perigosamente perto de um ou outro desses perigos, que vão de Popper e Lakatos em direção ao fim objetivista e Feyerabend na outra extremidade. Na verdade, era uma característica desses debates que cada escritor acusasse repetidamente aqueles de ambos os lados dele de pecados objetivistas ou relativísticos. Assim, Lakatos acha Popper muito objetivista e Kuhn, Polanyi e Feyerabend muito relativistas, e assim por diante. Mas com a vantagem da retrospectiva podemos ver além das diferenças internas entre esses escritores, que por dentro da controvérsia parecia tão significativa, e podemos discernir uma medida muito maior de congruência entre eles. O resultado dos debates podem ser vistos como o surgimento de uma nova perspectiva sobre a natureza e os “fundamentos” filosóficos  da ciência, uma perspectiva que revela que temos permitido que regras metodológicas objetivistas intrometam e distorçam a evolução natural do progresso científico. Embora os filósofos da ciência estivessem aterrorizados que qualquer questionamento de critérios rigorosos de objetivistas da ciência abriria a porta para o relativismo desenfreado e a morte da ciência, Bernstein mostra que, na verdade, esse medo foi exagerado — ele chama de ansiedade cartesiana — e que há uma maneira de construir uma defesa não–objetivista do conhecimento científico. Esta nova defesa localiza a racionalidade determinante do crescimento do conhecimento não em alguma regra explícita conhecida por qualquer mente singular, mas nos juízos parcialmente tácitos e nos processos de interação entre os membros da comunidade científica. O membro individual dessa comunidade, seja um cientista praticante ou filósofo ou historiador da ciência, não pode articular um conjunto de critérios para medir as vantagens de uma teoria sobre outra. A forma como esse processo funciona é pela disputa entre teorias rivais pela atenção, depois pelo respeito e, em última instância, pelo apoio da maioria dos membros da comunidade de cientistas. As razões pelas quais os cientistas são influenciados por um rival mais do que outro nunca são listáveis com antecedência, mas emergem no processo de “interação ela mesma”. [11]

Uma implicação dessa visão do conhecimento é que o problema da escolha de teoria, em suas raízes, é sempre uma questão do que quer que aconteça para persuadir membros de mente aberta porém críticos da comunidade científica. Não há, como Imre Lakatos mostrou, nenhuma teoria bem-sucedida de “racionalidade instantânea”. Padrões intra-paradigmáticos podem ser feitos explícitos e isso pode ajudar o progresso científico, mas a única razão pela qual às vezes podemos confiar em critérios tão explícitos é que eles estão continuamente sob desafio dos padrões rivais. O progresso científico, como Paul Feyerabend tem gostado de mostrar, depende tanto da violação dos padrões científicos quanto de sua obediência. Sob qualquer regra metodológica explícita, se é para ajudar a ciência, há sempre um cientista fazendo seu próprio juízo pessoal diretamente sobre alguma teoria da maneira como o mundo funciona, ou indiretamente sobre os padrões (ou os padrões para selecionar padrões…) a serem usados na escolha de teorias. Assim, como Michael Polanyi mostrou, não temos escolha a não ser creditar os poderes tácitos de juízo do cientista, confiar em seu senso intuitivo do que constitui uma contribuição digna para a “República da Ciência”. Tal intuição refinada é o que decide quais contribuições potenciais “merecem” uma alocação de recursos acadêmicos escassos (páginas de artigos de revistas, painéis de conferência, espaço de escritório do departamento), e quais não.

Mas dizer que a intuição treinada pelo cientista é o que, em última análise, guia sua busca pela verdade é não dizer “Vale Tudo”. Rejeitar o objetivismo não implica abraçar o relativismo. Embora paradigmas alternativos não possam ser traduzidos objetivisticamente em uma linguagem neutra e medidos contra um conjunto comum de padrões, isso não significa que os rivais devem desistir de sua busca vã por uma verdade e seguirem todos seu próprio caminho relativístico. Pelo contrário, nosso único caminho para a verdade está no envolvimento por parte deles no processo de discussão. Está fora do confronto entre duas teorias incomensuráveis, suas tentativas mútuas de re-interpretar e criticar umas às outras, que podemos esperar construir comparações eficazes entre elas. Onde não podemos refutar a teoria do nosso oponente encontrando casos claros de falsificação de suas previsões, ainda podemos tentar persuadilo de que nossa interpretação é mais convincente que a dele.

O principal impulso dos debates growth of knowledge pode ser visto como o que Bernstein (1983, p. 30) chama de uma “recuperação da dimensão hermenêutica da ciência”:

Na crítica de formas ingênuas e até mesmo de formas sofisticadas de positivismo lógico e empirismo; no questionamento das alegações da primazia do modelo hipotético-dedutivo de explicação; no questionamento da dicotomia afiada que tem sido feita entre observação e teoria (ou linguagem observacional e teórica); na insistência na subdeterminação da teoria por fato; e na exploração das maneiras pelas quais toda descrição e observação são impregnadas por teoria, encontramos afirmações e argumentos consoantes com aqueles que estiveram no coração da hermenêutica […] (Bernstein 1983, p. 31).

Assim, pode-se dizer que existem duas dimensões necessárias para toda explicação científica, variando em importância com cada problema específico. Ao longo da dimensão preditiva de qualquer explicação científica particular, o critério decisivo de sucesso para uma teoria (questionada) é ser falseável, mas até então não falsificada contra os fatos (inquestionáveis). Aqui o que conta é o grau em que uma teoria está disposta a arriscar previsões falsificáveis e ainda sobreviver ao seu confronto com os fatos. Mas para representar uma contribuição significativa para a ciência, qualquer explicação também deve se estender à dimensão interpretativa. Aqui, pode-se dizer, levanta-se a questão dos “testes” dos fatos (questionados) contra a teoria (inquestionável).  Os fatos são carregados por teorias. Alguma perspectiva prévia, uma estrutura interpretativa de algum tipo, deve ser usada para tentar “fazer sentido” de qualquer alegado fato, e para determinar sua significância. Ademais, qualquer conjunto de dados fornecidos [given data] de fatos passados será consistente com um número infinito de teorias que tentam cobrir uma variedade ilimitada de previsões conflitantes do futuro. Na medida em que a precisão preditiva contra os fatos é insuficiente para decidir em qualquer caso particular entre duas teorias rivais, o problema da escolha de teoria se torna um de medir o peso da plausibilidade das estruturas interpretativas como dispositivos para tornar os fatos inteligíveis.

Que a dimensão preditiva da explicação é necessária é certamente bem reconhecido entre os economistas, graças em boa medida à influência multidisciplinar da obra de Karl Popper. Uma teoria que não proíbe nada, uma estrutura interpretativa perfeitamente flexível com a qual qualquer contingência imaginável poderia ser consistente, pode ser considerada um ramo de matemática pura ou arte, mas não representa nenhuma contribuição para a ciência empírica. Uma teoria não só precisa ser consistente com “os fatos”, ou seja, não falsificada até então, mas também deve ser falseável, como enfatizou a obra inicial de Popper; uma ciência empírica deve fazer “previsões” de algum tipo. Mas essa visão popperiana tem sido substantivamente qualificada no percurso dos próprios escritos de Popper e durante os debates growth of knowledge. É difícil, na história da ciência, encontrar qualquer caso de falsificação clara. As previsões podem propriamente ser muito gerais, protegidas ou até mesmo infalseáveis na prática. E o grau de falseabilidade de uma teoria não é mensurável nem adequado como o principal critério de escolha teórica. Mas, é claro, apesar de todos os esclarecimentos desde que o Logic of Scientific Discovery foi escrito pela primeira vez, o cerne da verdade permanece que uma explicação que não pode proibir nada não pode realmente explicar nada.

Isso de nenhum modo implica, no entanto, que a falseabilidade é a consideração mais importante na decisão de se qualquer suposta explicação dos processos do mundo real deve ou não ser levada a sério. Um modelo preditivo, não importa o quão preciso no passado, se ele carece completamente de plausibilidade interpretativa, é tão inútil quanto uma estrutura interpretativa convincente que é ou infalseável em princípio ou já foi claramente falsificada. As assim chamadas “ciências marginais” [“fringe sciences”] da astrologia à parapsicologia ao criacionismo, permanecem tão fora da comunidade científica porque são grosseiramente intuitivas à mente treinada do cientista contemporâneo, como por qualquer violação particular que possam ter feito de regras metodológicas definidas, popperianas ou não.[12] Apenas uma fração minúscula de todas as alegações específicas de fenômenos “paranormais” é ao menos sequer examinada por “cientistas sérios”, muito menos escrutinadas com o tipo de rigor intelectual que associamos aos corredores da ciência. Os cientistas marginais não são tipicamente provados errados, eles são descartados e ignorados. Sem dúvida, os leitores do National Enquirer, etc., deleitam-se com isso que eles vêem como sendo evidência de dogmatismo científico.

Alguns metodologistas da ciência armaram uma armadilha para si mesmos, insistindo justamente que todos os desafios à ciência aceitada devem ser enfrentados com cuidadosa consideração, como se não houvesse escassez de recursos científicos. Aqueles como Kuhn ou Polanyi que sugerem que alguns desafios são e devem ser considerados indignos de exame severo pela comunidade científica foram rotulados como “elitistas”. Mas claramente os cientistas têm a escolha de deixar sua atenção ser dirigida por um pequeno subconjunto arbitrariamente selecionado de todo e qualquer desafiante ou de ser pré-seletivo em direcionar sua atenção para os desafios que, a sua frente, parecem pertinentes ao estágio atual de evolução do diálogo dos cientistas. Sem tal pré-exibição do “intuitivo”, a ciência simplesmente estaria à mercê de malucos.

Os cientistas, em geral, recusam-se a prestar muita atenção às supostas evidências da influência das estrelas nos assuntos humanos, pela razão perfeitamente legítima de que isso atinge sua intuição treinada como uma área de pesquisa infrutífera. Eles têm coisas melhores para fazer com seu valioso tempo. O processo contínuo de aprendizagem pelo qual um cientista entra em sua comunidade profissional imbui nele um senso aguçado de quais perguntas precisam ser feitas urgentemente, e as astrológicas não estão mais entre elas. Se não fosse pela popularidade angustiante de tais ideias no público leigo, os cientistas virtualmente as ignorariam completamente. Mesmo quando os cientistas se limitam às questões que parecem produtivas para eles, becos sem saída são frequentes o suficiente. Se fosse privada da pré-exibição do “não intuitivo”, a ciência estaria vagando para sempre em becos sem saída. Os cientistas não têm escolha a não ser confiar no que poderia ser chamado de “capacidade de ver o que é questionável”.[13]

O que os cientistas em qualquer tempo e lugar particular creem ser os problemas apropriados para prestar atenção é moldado como diz Bernstein, “dialogicamente”, pela tradição histórica dos debates a partir dos quais os tópicos atuais nas “conversas” das ciências evoluíram. A ciência não é um acúmulo desgovernado de dados brutos, mas uma orientação direcionada ao mundo pela qual fatos relevantes são buscados a fim de abordar problemas que são eles mesmos produtos do diálogo contínuo dos cientistas.[14] Longe de ser um convite ao relativismo anárquico, a verdadeira lição dos debates modernos na metodologia é que a ciência será fortalecida aprendendo a confiar responsavelmente em julgamentos hábeis e na disputa dialógica entre seus participantes. Estender a dimensão interpretativa da ciência, devidamente compreendida, não abrirá suas portas aos bárbaros. De fato, pode ser precisamente porque os filósofos têm tentado e falhado em proteger esses portões com critérios lógicos explícitos da ciência que os assim chamados bárbaros estão, em primeiro lugar, ameaçando-os.

Mas o papel na aquisição de conhecimento da intuição treinada pelo cientista não é de modo algum limitado a proteger as margens. Cada decisão significativa que um estudioso toma em sua pesquisa é guiada por seu hábil juízo de relevância, desde a apreensão mais preliminar de um problema, até a resolução a ser posta sobre uma “solução” como suficientemente plausível para justificar a mudança para outras questões.

A dimensão hermenêutica ou interpretativa da ciência foi minimizada por metodologias objetivistas em economia e outras ciências humanas precisamente porque esse aspecto da explicação foi pensado para sofrer de um defeito básico ao qual a dimensão preditiva não estava sujeita: o problema da escolha de teoria. Se as teorias são não hipóteses arbitrárias a serem testadas pelo confronto com os fatos, mas sim, como Mary Hesse (1980, p. 172) disse, “são o modo pelo qual os fatos eles mesmos são vistos”, então surge a questão (para usar a metáfora de Michael Polanyi), como você decide com qual par de lentes teóricas você deve tentar ver o mundo? Como alguém se decide entre estruturas teóricas alternativas se a simples precisão na previsão dos fatos não pode decidir algoritmicamente o assunto? Restringir a ciência à sua dimensão preditiva, onde apenas a precisão conta, era visto como uma maneira de tornar a escolha da teoria objetivamente solucionável. A literatura growth of knowledge mostrou agora que essa abordagem objetiva só se esquiva, mas não consegue resolver, o problema da escolha de teoria.

De fato, em um sentido, ninguém pode resolver o problema da escolha de teoria se o que é exigido é uma lista de critérios específicos que distinguirão de uma vez por todas a verdade da falsidade. É irracional, no entanto, impor tais critérios de “racionalidade” ao processo de crítica científica. De fato, o problema da escolha de teoria pode ser resolvido e é resolvido todos os dias da única maneira que a mente humana pode resolver problemas: tentando olhar para o mundo através de pares de lentes alternativos até que se esteja convencido, por agora, de que se está “vendo” claramente. Ou como Fritz Machlup costumava dizer, não temos escolha a não ser confiar no critério do “ahah” [“ahahness” criterion]. Conhecemos uma boa explicação quando vemos uma, e quando isso nos induz a dizer “ahah”.[15] Bernstein chama de o “tema dominante” da literatura growth of knowledge que

a escolha de teoria é uma atividade de julgamento que requer imaginação, interpretação, avaliação de alternativas e aplicação de critérios que são essencialmente abertos. Mas tais julgamentos também precisam ser apoiados por razões (razões que mudam e variam no percurso do desenvolvimento científico). Não é uma deficiência, mas uma característica intrínseca desse processo de julgamento que indivíduos racionais podem e discordam sem que nenhum deles seja culpado de cometer um erro. Embora o “equilíbrio de argumento e contra-argumento” em apoio a um desses juízos conflitantes “às vezes possa ser muito próximo de fato”, no percurso de mais desenvolvimento científico, a força dos argumentos em apoio a um desses juízos conflitantes torna-se decisiva para a comunidade de cientistas relevantes.[16]

O processo crítico na comunidade científica envolve critérios para avaliar estruturas interpretativas, mas estas operam como máximas modificáveis norteando juízos tácitos em vez de operarem como máximas específicas, objetivas e como certas regras de escolha de teoria. E este processo é de fato um processo que não acaba, embora sua inconclusividade não precise implicar em um recuo ao relativismo. O problema da escolha de teoria feito por Caldwell precisa ser respondido pelos misesianos, mas precisa igualmente ser abordado por todos os economistas, e de fato por todos os cientistas sociais e naturais. Em nenhum caso há uma resolução fácil ou conclusiva. A escolha de teoria inevitavelmente repousa nos juízos dos cientistas sobre essas estruturas interpretativas por dentro das quais eles acreditam que podem ver melhor o mundo.

Richard Rorty (1979) pode ter sido o filósofo contemporâneo que mais claramente identificou o problema que tem atormentado nosso raciocínio metodológico objetivista. A aspiração do que Rorty chama de “fundacionalismo” em suas muitas formas é colocar todo o conhecimento em uma fundação metodológica firme que pode, assim, torná-lo imune a críticas futuras. A economia moderna parece estar sob a poderosa influência de duas variedades de fundacionalismo que poderiam ser chamadas de euclidianas e falsificacionistas. O fundacionalismo euclidiano espera “encontrar” nosso conhecimento, encaixando-o em uma estrutura axiomática e detutiva nos moldes da teoria do equilíbrio geral e da teoria dos jogos (e alguns diriam do apriorismo misesiano). O fundacionalismo falsificacionista, por outro lado, se esforça para proteger nosso conhecimento da crítica, insistindo que formulemos todas as nossas explicações sob a forma de hipóteses que podem ser falsificadas em testes estatísticos. Ambas as variedades de fundacionalismo têm tentado essencialmente fornecer um algoritmo para a escolha de teoria, o outro ao fazer nosso raciocínio rigidamente dedutivo sobre o modelo da matemática axiomatizada, o outro ao fazer nosso raciocínio rigidamente indutivo sobre o modelo das ciências naturais experimentais. Ao contrário de ambos, a literatura growth of knowledge nos ensina que as teorias científicas não são nem estritamente dedutíveis e, portanto, dicotomizadas da história nem estritamente hipotéticas e geradas pela indução da história, mas podem ser mais bem descritas como dispositivos alternativos para interpretar o mundo histórico. A escolha entre tais teorias interpretativas não é algoritmicamente solucionável por qualquer procedimento fundacionalista, mas depende dos juízos tácitos e processos interativos que ocorrem na comunidade de cientistas.

3 Hermenêutica e “conhecimento por dentro”

Acreditando, com Max Weber, que o homem é um animal suspenso em teias de significância que ele mesmo teceu, eu tomo a cultura como sendo essas teias, e a análise dele não é, portanto, uma ciência experimental em busca da lei, mas uma ciência interpretativa em busca de significado. É a explicação que eu busco, construindo expressões sociais em sua superfície enigmática.

Clifford Geertz (1973, p. 5)

O principal impulso da crítica de T.W. Hutchison à praxiologia é sua alegação de que, uma vez que se baseia em “introspecção”, ela nunca pode constituir uma adição à ciência, mas apenas uma afirmação de crença pessoal. Seu desafio é que a metodologia austríaca não atende aos padrões da ciência representados pela literatura growth of knowledge. Contra essa visão, a presente seção argumentará que a fonte de conhecimento que Hutchison (1981, 282-283) ridiculariza como “certezas introspectivas dadas por observação interior” não deve ser tão casualmente descartada. Há uma noção, comum às tradições metodológicas hermenêuticas e austríacas, de um tipo de conhecimento que é chamado de “por dentro” [from within], mas que não é exclusivamente privado nem além da crítica interpessoal. Uma vez que, como a seção anterior argumentou, o tema central da literatura growth of knowledge foi a introdução de uma dimensão interpretativa na explicação científica, o desafio de Hutchison pode ser voltado contra ele. Pode não ser Mises quem violou o espírito da literatura growth of knowledge, abrindo a ciência para o “conhecimento por dentro”, mas sim Hutchison que o faz fechandoa.

O objetivo desta seção é apresentar a perspectiva hermenêutica como uma que seja totalmente coerente com a visão da literatura growth of knowledge sobre a explicação científica, mas como uma importante extensão desse trabalho para o domínio específico das ciências sociais ou humanas. O conjunto de dados a partir do qual as teorias growth of knowledge da ciência foram formuladas foi, afinal, confinado quase inteiramente às ciências naturais. Em sua maioria, os escritores growth of knowledge parecem ter tomado como garantido o monismo metodológico, assim como seus antecessores objetivistas. Como mais de um economista apontou, “a falta de estudos de caso de ciências sociais como insumos neste debate filosófico nos deixa inseguros sobre o que exatamente podemos aprender com ele”.[17] Mas se Richard Bernstein e outros estão corretos em identificar a lição essencial da abordagem growth of knowledge como hermenêutica, então a economia e as ciências sociais em geral constituem conjuntos de dados melhores, e não piores, para a abordagem. A dimensão interpretativa da explicação assume um significado ainda maior nas ciências sociais do que nas ciências examinadas na literatura growth of knowledge.

A hermenêutica entrou pela primeira vez em debates metodológicos com as contribuições de Wilhelm Dilthey no final do século XIX, do lado do estrito dualismo metodológico. Como a maioria dos economistas austríacos, eles deixaram o “objetivismo” para as ciências naturais e promoveram a interpretação como um método que se pensava ser específico apenas para as ciências humanas e não para as ciências naturais. Dilthey formulou o método de verstehen, entendendo o significado subjetivo das coisas e eventos para os seres humanos individuais, como a dimensão única das ciências históricas. Antes de Dilthey, a hermenêutica tradicional foi desenvolvida a partir da prática de interpretação textual, tanto de textos bíblicos quanto legais, culminando na obra de Schleiermacher. Mas com Dilthey e então Max Weber, a hermenêutica passou a aspirar a ser uma metodologia científica em par com a metodologia das ciências naturais. A principal fraqueza da contribuição de Dilthey para a teoria da interpretação foi a sua separação da interpretação da explicação causal. Explicar causa e efeito era para ser tarefa das ciências naturais, a compreensão dos propósitos era para ser tarefa das ciências sociais. O dualismo metodológico rigoroso parece, assim, afastar as ciências humanas das ciências empíricas. O foco da hermenêutica pós-Diltheyiana tem sido a reconexão da explicação com a interpretação. As ciências humanas também são empíricas; eles também, como as ciências naturais, devem se estender na dimensão preditiva, devem negar alguns estados de coisas imagináveis. Ao contrário das ciências naturais, entretanto, as ciências humanas estudam o mundo da experiência cotidiana, o “mundo da vida”.  Este mundo é, como Richard M. Zaner (1974, p. 392) escreveu: “povoado com os outros e seus ‘produtos’ (objetos culturais, instituições, costumes, valores, receitas para fazer, leis e afins); ‘coisas’ no mundo não são para nossas vidas diárias simplesmente ‘físicas’, mas são sedimentadas com ‘significados’, ‘propósitos’ e ‘valores’ (normas, objetivos, histórias, usos e o resto)”.

Nos debates sobre os métodos próprios das ciências humanas que ocorreram na literatura hermenêutica podem ser discernidas as mesmas tentativas de transcender os perigos gêmeos do relativismo e do objetivismo que podem ser encontrados na literatura growth of knowledge. Uma importante vertente da hermenêutica, que vai de Dilthey a Emilio Betti a E.D. Hirsch, tem se esforçado para objetificar ou codificar algumas das lições centrais que foram reunidas ao longo dos anos a partir da prática da interpretação textual. Esse ponto de vista critica a hermenêutica tradicional por ser relativista demais. Outra vertente, que vai de Dilthey a Martin Heidegger a Hans-Georg Gadamer, por outro lado, critica a hermenêutica tradicional por ser muito objetivista. De uma maneira que lembra uma das críticas de Kuhn ou Feyerabend às regras metodológicas objetivas de Popper ou Lakatos, Gadamer critica os “cânones hermenêuticos” de Betti. E de uma maneira que lembra as críticas de Lakatos e Popper do suposto relativismo de Feyerabend, podemos encontrar Betti suspeitando de Gadamer ter “[aberto] a porta para arbitrariedades subjetivas.”[18]

Mas, novamente, um olhar mais atento revela um maior consenso subjacente dentro desta literatura do que seus próprios participantes costumam reconhecer. Os cânones de Betti e Hirsch não são bem os dispositivos metodológicos claros para revelar a “uma verdadeira interpretação” do mesmo modo que seus proponentes às vezes sugerem, do que são as regras de Popper e Lakatos o tipo de dispositivos que seus proponentes queriam para demarcar claramente a ciência do dogma. Mas em ambos os casos, como Gadamer e Kuhn mostraram, os cânones ou regras não devem ser rejeitados como inúteis. Em vez disso, devem ser redefinidos como máximas ou regras de ouro [rules-of-thumb] cuja aplicação depende das habilidades parcialmente tácitas dos membros da comunidade científica. Eles são aprendidos no processo de aprendizagem do potencial cientista e aplicados habilmente por praticantes de métodos científicos. Essas máximas não eliminam a necessidade de o cientista individual assumir a responsabilidade pessoal por sua capacidade de fazer juízos informados. Elas não tornam algorítmico o problema da escolha de teoria.

Embora, do ponto de vista moderno, alguns contribuintes para a hermenêutica possam ser acusados de ter concedido demais o objetivismo, presumindo-o apropriado para as ciências naturais, eles tinham razões para enfatizar as diferenças entre o que poderia ser chamado de ciências naturais mais preditivas e as ciências humanas mais interpretativas. Nas ciências naturais não interpretamos literalmente as “ações” dos objetos de nossa pesquisa, como se tivessem suas próprias intenções (embora muitas vezes possamos fazê-lo metaforicamente). A interpretação entra no nível da percepção (tanto observando diretamente os fenômenos sob exame quanto indiretamente na leitura de instrumentos científicos) quanto no nível da compreensão das explicações de outros cientistas. A ciência moderna entende que não devemos ver eventos naturais como se fossem ações significativas ou mensagens de algum ser sobrenatural. As ciências sociais, por outro lado, são sobre significados já interpretados. As ciências naturais são interpretações de coisas externas, ou como disse o sociólogo weberiano Alfred Schütz, “construtos de primeiro grau” [“constructs of the first degree”] enquanto as ciências sociais são interpretações de interpretações, ou “construtos de segundo grau”.[19]

Vemos fenômenos naturais, por assim dizer, “de fora”, e por isso somos forçados a inventar possíveis modelos para explicar suas regularidades. É verdade que nossas invenções, mesmo aqui, nunca são realmente ab novo, mas surgem de metáforas relacionadas ao mundo da vida. De objetos naturais em si mesmos, no entanto, nós imediatamente sabemos muito pouco. Postulamos possíveis “significados” e os imputamos a fenômenos naturais metafórico e hipoteticamente. Tratamos a natureza como se ela confirmasse “propósitos” incorporados em leis. Como disse Dilthey (1976, p. 248), “A compreensão da natureza — interpretatio naturae — é uma expressão figurativa”.

Em contraste, quando estudamos as sociedades humanas, os propósitos que atribuímos aos objetos do nosso exame não são metafóricos, mas reais e já significativos para elas. Nós somos capazes de vê-los “por dentro”. Richard Zaner (1974, p. 392) observou que “o mundo social é experimentado como já constituído e significativo por cada um de nós em nossas vidas diárias”. Ou como Gadamer (1976, p. 15) disse: “Há sempre um mundo já interpretado, já organizado em suas relações básicas, no qual a experiência dá passos”. A tarefa do cientista social é encontrar e explicar um significado que já está sempre lá, em vez de inventar um “significado” meramente metafórico que funciona em testes preditivos.

A questão surge, no entanto, por que não poderíamos usar o procedimento bem-sucedido das ciências naturais para ver fenômenos humanos como “comportamento” objetivo, vendo-os de fora, também? Por que precisamos nos preocupar com qualquer significado subjetivo que os objetos do nosso estudo possam ter sobre suas ações? Alfred Schütz provavelmente colocou este desafio à hermenêutica melhor do que seus críticos fizeram:

Por que não descrever honestamente em termos objetivos honestos o que realmente acontece, e isso significa falar nossa própria língua, a linguagem de observadores qualificados e cientificamente treinados do mundo social? E se for objetado que esses termos não são senão convenções artificiais criadas por nossa “vontade e prazer”, e que, portanto, não podemos utilizá-los para uma visão [insight] real do significado que os atos sociais têm para aqueles que agem, mas apenas para nossa interpretação, poderíamos responder que é precisamente essa construção de um sistema de convenções e de uma descrição honesta do mundo que é e sozinha é a tarefa do pensamento científico; que nós cientistas somos não menos soberanos em nosso sistema de interpretação do que o agente é livre na criação de seu sistema de metas e planos; que nós, cientistas sociais em particular, temos senão de seguir o padrão das ciências naturais, que têm realizado, com os próprios métodos que deveríamos abandonar, o trabalho mais maravilhoso de todos os tempos (1970, p. 265).

O problema com esse ponto de vista behaviorístico é que aqueles que afirmam sustentá-lo não o levam a sério. Em suas próprias atividades científicas eles prosseguem com base em uma aceitação ingênua do mundo da vida. Como Schütz apontou, “o behaviorismo radical se sustenta e desaba com a suposição básica de que não há possibilidade de provar o fato de que ‘o companheiro’” é inteligente, que o behaviorismo considera, portanto, como um “fato fraco” não capaz de ser testado empiricamente. Schütz vira essa visão contra si mesma, quando ele observa,

No entanto, então não é bem compreensível o porquê de um indivíduo inteligente dever escrever livros para outros ou mesmo conhecer outros em congressos onde é reciprocamente provado que a inteligência do outro é um fato questionável. É ainda menos compreensível que os mesmos autores que estão convencidos de que nenhuma verificação seja possível para a inteligência de outros seres humanos tenham tanta confiança no princípio da própria verificabilidade, o qual só pode ser realizado através da cooperação com outros pelo controle mútuo (1970, p. 266).

Como mostrado também na literatura growth of knowledge, o abandono do objetivismo não tem de implicar em incorporar o relativismo. Schütz (1970, p. 265), por exemplo, chama de “a essência” da ciência como sendo “objetiva” no sentido de “válida não só para mim, ou para mim e para você e alguns outros, mas para todos” e afirma seu anti-relativismo inequivocamente: “proposições científicas não se referem ao meu mundo privado, mas ao único e unitário mundo da vida comum a todos nós”. Visões semelhantes podem ser encontradas ao longo da literatura hermenêutica e, muitas vezes, em palavras semelhantes às usadas contra o relativismo nos debates growth of knowledge. E, mais uma vez, a direção rumo a qual essas ideias apontam não é um enfraquecimento de todo o conhecimento, mas uma aceitação de sua dependência final de um processo sociológico desarticulado pelo qual os cientistas e suas interpretações interagem. A “fundação” da explicação científica não é uma questão dos critérios explícitos de ciência de qualquer filósofo, mas sim de ser descoberta na compreensão linguística do senso comum em que cada um de nós foi enculturado, ou seja, no “mundo da vida”.

Em certa medida, as ciências naturais podem, por assim dizer, fugir com a tomada implícita do mundo da vida e da inteligência de outras mentes como garantida, enquanto explicitamente repudia qualquer crença nelas. Mas as ciências humanas não podem se dar ao luxo de deturpar qual é o seu principal objeto de investigação. Um dos seguidores de Schütz, Aron Gurwitsch (1974, p. 24), declarou concisamente o problema especial que enfrenta o cientista social nesses termos:

Dado um certo mundo cultural como o mundo da vida de um grupo sócio-histórico, a tarefa é encontrar e esclarecer os atos de consciência que, em sua concatenação sistemática e intertextura, tornam este mundo específico possível como correlato deles. Responder a essa pergunta para um mundo cultural em particular equivale a compreender esse mundo por dentro, ao referi-lo à vida mental em que ele se origina.

Uma das contribuições importantes da tradição hermenêutica tem sido a demonstração de que os cientistas sociais não podem prestar atenção exclusiva ao “que este mundo significa para eles” se eles quiserem fornecer uma explicação satisfatória da história humana. Eles devem sim direcionar sua atenção ao “sentido subjetivo”, para a “estrutura específica de sentido e relevância para os seres humanos que vivem, agem e pensam aí”.[20] A sociologia interpretativa desses escritores tem uma semelhança impressionante com a tradição do individualismo metodológico na microeconomia pós-1870. Para Max Weber, os princípios de escolha sob escassez são uma preocupação central das ciências humanas interpretativas. Ele sustentou que “Toda reflexão séria sobre os elementos finais da conduta humana significativa é orientada principalmente em termos das categorias ‘fins’ e ‘meios’” (1949, p. 52), e, como Robbins, definiu o tema da economia com base na escolha sob escassez:

Mais grosseiramente expresso, o elemento básico em todos esses fenômenos que chamamos, no sentido mais amplo, de “sócio-econômicos” é constituído pelo fato de que nossa existência física e a satisfação de nossas necessidades mais ideais estão em todos os lugares confrontados com os limites quantitativos e a inadequação qualitativa dos meios externos necessários, de modo que satisfação deles requer provisão e trabalho planejados,  luta com a natureza e associação de seres humanos (1949, pp. 63-64).

O método, se pode ser chamado assim, que esses escritores propuseram para o cientista social não é fundamentalmente diferente do método pelo qual compreendemos nosso próximo [fellow man] na vida cotidiana, mas simplesmente pretende representar um esforço mais cuidadoso e sistemático. Schütz (1970, p. 273) usa o exemplo de decidir se um réu demonstrou “malícia premeditada” ou “intenção” de matar uma pessoa, a fim de sugerir que, novamente, falando de forma prática, todos confiamos em nossa capacidade de entender os sentidos um do outro. O cientista social, Schütz demonstrou, não só precisa confiar, assim como precisa o cientista natural bem-sucedido, mas também confiar principalmente neste verstehen ou compreensão em seu esforço para interpretar a história como uma sequência inteligível de eventos significativos.

Infelizmente, Dilthey e outros às vezes descreveram o método verstehen como uma espécie de apropriação mística do ponto de vista do objeto através de empatia. Essa visão da compreensão como empatia psicológica tem sido rejeitada pela maioria dos contribuintes modernos para a tradição hermenêutica como Schütz, Gadamer, Paul Ricoeur e Clifford Geertz. Como Geertz descreve este ponto, pode-se facilmente ver paralelos com as tentativas de ir além do objetivismo e do relativismo na literatura growth of knowledge: Ele sugere que devemos tentar “produzir uma interpretação da maneira como uma pessoa vive que não está nem presa dentro de seus horizontes mentais, uma etnografia da bruxaria como escrita por uma bruxa, nem sistematicamente surda às tonalidades distintas da bruxaria escrita por um geômetra?” (1979, p. 227). Não podemos nem ignorar o ponto de vista do nosso objeto, nem escapar do nosso e adotar o seu.

A obra de Hans-Georg Gadamer esclareceu o “outro lado” do evento de interpretação, a observação de que o historiador não pode tentar prestar atenção exclusiva ao “que este mundo significa para os agentes nele” se eles desejam fornecer uma explicação satisfatória da história humana. Não podemos pular de nossas peles culturais para aquelas dos objetos de nossas investigações. Ao contrário de muitas das declarações de Dilthey, Weber, Schütz, Betti e Hirsch, seria cognitivamente desastroso levar a sério o papel de um cientista “desapegado”, tentar se isolar a si mesmo do próprio plano de fundo histórico/cultural, ou tentar realmente ver as coisas “como os agentes eles mesmos devem tê-las visto”. A boa história não pode ser mais sem perspectiva do que a boa ciência pode ser. Os escritores iniciais em hermenêutica tendiam a tomar a distância histórica e cultural como sendo estritamente problemas a serem superados, enquanto Gadamer ressalta que eles também podem ser a fonte de uma visão profunda. O intérprete não deveria somente tentar se livrar de sua própria perspectiva para “adotar” a do interpretado, mas deve tentar encontrar novas formas de usar seus pressupostos para obter uma melhor compreensão das atividades humanas em estudo. Embora ele nunca possa saltar para a pele de outro, ele pode tentar expandir seu próprio horizonte para se sobrepor ao do outro, como Gadamer diz, engajando-se em uma espécie de diálogo com a outra perspectiva.[21]

A hermenêutica, como fraseou David Linge (1976, p. xii), “tem sua origem em violações na intersubjetividade”. A tradição começou com o problema de corrigir falhas na transmissão interpessoal de sentido dentro do mundo da vida. Textos difíceis escritos de línguas estrangeiras ou de pontos de vista ou épocas históricas eram o que exigia um esforço sustentado de interpretação. Foi a partir desse tipo de esforço na explicação de textos incongruentes que surgiu a abordagem analítica distinta dessa literatura: o círculo hermenêutico. O sentido subjetivo de qualquer subconjunto não interpretado (digamos, uma frase) da obra de vida de um escritor só pode ser desvelado por referência ao todo (um parágrafo, ou todo o artigo, ou obra de sua vida) do qual faz parte. Do mesmo modo, no entanto, o todo é composto inteiramente de tais partes, e, portanto, seu sentido só pode ser derivado a partir deles.

O círculo hermenêutico, como mostra o livro de Bernstein, nos ajuda a transcender o falso ideal do objetivismo sem afundar no relativismo.  Um dos tradutores de Dilthey, H.P. Rickman, descreveu concisamente a concepção de Dilthey do círculo hermenêutico:

Colocado negativamente, este princípio significa que não há pontos de partida absolutos, não há certezas evidentes em si mesmas e contidas em si mesmas sobre as quais possamos nos basear, porque sempre nos encontramos no meio de situações complexas que tentamos desembaraçar ao criar, depois revisar, suposições provisórias. Essa circularidade — ou talvez alguém possa chamá-la de aproximação espiral para maior precisão e conhecimento — permeia toda a nossa vida intelectual (1976, p. 11).

Esse “círculo” é visto por esses escritores como uma espécie de procedimento de interpretação que envolve, nas palavras de Clifford Geertz, “uma aderência dialética contínua entre o mais local do detalhe local e o mais global da estrutura global de modo a trazer ambos em visão simultaneamente” (1979 , p. 239). Aceitamos esses quadros interpretativos que evocam a figuração gestalt mais convincente do todo como constituído por suas partes subsidiárias e das partes em referência à sua relação estrutural com o todo.[22] Figurações mais convincentes nesse sentido seriam aquelas que mais confortavelmente se conformam com as pressuposições individuais do cientista, elas mesmas produtos de uma longa evolução de diálogo científico.

São apenas tais pressupostos dos quais Gadamer estava falando quando pediu que restaurássemos ao uso linguístico “um conceito positivo de preconceito”, para o qual Bernstein (1983, p. 128) cunha o termo “permissão” [enabling] como contrastado com preconceitos cegos:

Preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo que inevitavelmente distorcem a verdade. De fato, a historicidade de nossa existência implica que preconceitos, no sentido literal da palavra, constituem o direcionamento inicial de toda a nossa capacidade de experiência (1976, p. 9).

A preocupação de grande parte da inicial literatura hermenêutica sobre a resolução da má interpretação, isto é, sobre falhas de interpretação em vez de sucessos, tem sido criticada por Gadamer por disfarçar os aspectos positivos ou permissivos [enabling] do “preconceito”.[23]

A intersubjetividade bem-sucedida às vezes era dada como certa como norma, sem rastreá-la às suas condições de permissibilidade, e o procedimento para eliminar o erro interpretativo às vezes era descuidadamente colocado em termos de uma forma de objetivismo, de lutar para descartar todos os vieses herdados da própria cultura. Schütz, por exemplo, refere-se à atitude do cientista social como a de “um mero observador desinteressado” que “se desprende de sua situação biográfica” (1970, pp. 275-276). Gadamer argumenta que as tentativas de alcançar esse tipo de objetividade só poderiam resultar em tornar a interpretação impossível.

Ninguém contesta o fato de que controlar os preconceitos do nosso próprio presente a tal ponto que não compreendemos mal as testemunhas do passado é um objetivo válido, mas obviamente tal controle não cumpre completamente a tarefa de compreender o passado e suas transmissões (1976, p. 6).

Uma abordagem hermenêutica exige que reconheçamos a história não como uma reconstrução neutra do passado puramente com base nos sentidos subjetivos de seus agentes, mas como uma mediação entre um presente e um passado ao qual esse presente está, fortuitamente, relacionado. Não só o sentido subjetivo do observado é um referente indispensável de qualquer explicação científica social apropriada, como Dilthey mostrou, também é o sentido subjetivo do observador, cujos “preconceitos” orientam a investigação. Para Dilthey, pode-se dizer, interpretar um texto antigo exige que o intérprete tente voltar ao seu contexto original, enquanto que para Gadamer exige que o intérprete traga o texto e o que sabemos de seu contexto original ao presente na “presença viva da conversa, cujo procedimento fundamental é sempre questão e resposta” (1975a,  p. 331).

Gadamer argumenta, assim, que “compreender o significado histórico de uma ação pressupõe que não nos restrinjamos aos planos subjetivos, intenções e disposições dos agentes”, e que esse significado não pode ser totalmente separado da observação.[24] Como R.G. Collingwood (1946, p. 215) disse: “O historiador não só reafirma [re-enacts] o pensamento passado, ele o reafirma no contexto de seu próprio conhecimento e, portanto, ao reafirmá-lo, critica-o, forma seu próprio juízo de seu valor, corrige quaisquer erros que possa discernir nele”.

Assim, “preconceitos permissivos”, elementos de compreensões compartilhadas que são “passados” para nós como tradições, são o que torna possível a comunicação mútua entre os cientistas. Só compreendemos nosso mundo porque compreendemos um ao outro. Nós só nos compreendemos, por sua vez, porque todos nós passamos alguma parte substancial de nossas vidas sendo enculturados no mundo da vida, um domínio específico que temos em comum. É neste campo do intersubjetivo e do tomado como certo que nossas potências tácitas de juízo são desenvolvidas. Estamos, pela maioria, desapercebidos [unaware] das potências tácitas, como Michael Polanyi as chama, pelas quais direcionamos nossas mentes para a solução de problemas que “achamos” interessantes, mas são elas que tornam possível o discurso racional. Não podemos, portanto, nos dar ao luxo de desligarmos a nós mesmos de todos os pressupostos, como é a meta do objetivismo, pois alguns desses “preconceitos” constituem nosso mundo da vida comum que permite todo o processo pelo qual o conhecimento científico emerge e cresce.

Pode ser tão importante possuir os pressupostos corretos — para fazer as perguntas certas — quanto é respondê-los com precisão. E se este é o caso, então toda contribuição para a ciência deve estar pronta e disposta a justificar a pertinência das perguntas que tenta responder, uma questão que só pode ser tratada qualitativamente, e não quantitativamente. As observações de Gadamer sobre estatísticas ressaltam a necessidade da dimensão interpretativa até mesmo da pesquisa mais quantitativa.

As estatísticas nos fornecem um exemplo útil de como a dimensão hermenêutica abrange todo o procedimento da ciência. […] [O] que é estabelecido pelas estatísticas parece ser uma linguagem de fatos, mas que questões esses fatos respondem e quais fatos começariam a falar se outras questões fossem perguntadas são questões hermenêuticas (1976, p. 11).

A esterilidade metodológica, pela qual Gadamer quer dizer “a aplicação de um método a algo que não vale realmente a pena conhecer” é o produto de não reconhecer a importância de fazer a pergunta certa. “Nenhuma afirmação é possível”, escreve Gadamer, “que não possa ser entendida como uma resposta a uma pergunta, e afirmações só podem ser compreendidas dessa forma” (1976, p. 11).

As estatísticas também não podem ser consideradas um árbitro final entre interpretações alternativas, como Max Weber havia sugerido. O filósofo wittgensteiniano Peter Winch (1958, p. 113) argumentou concisamente contra Weber que “se uma interpretação oferecida estiver errada, as estatísticas, embora possam sugerir que esse é o caso, não são o tribunal decisivo e definitivo de apelação para a validade das interpretações sociológicas” e que “O que é […] necessário é uma interpretação melhor, não algo diferente em espécie”. A escolha de teoria não pode ser tornada algorítmica ao tentar (como Popper fez) restringir a dimensão interpretativa à fase de descoberta da ciência, à formulação de hipóteses que possam então ser selecionadas por rigorosos testes quantitativos. A interpretação, Polanyi (1972) tem mostrado, subjaz todas as fases da ciência, incluindo a validação e teste de hipóteses, e, como disse Bernstein, não é meramente útil “em ajudar a esclarecer como os cientistas sociais fazem bons palpites e inventam hipóteses” (1983, p. 27).

Segue-se a partir dessa visão de “preconceitos permissivos” que um dos aspectos-chave de qualquer explicação interpretativa deve ser uma ênfase sobre as raízes históricas de nossas ações e conhecimentos presentes. A história do pensamento não pode mais ser vista como uma especialidade extra para aqueles com uma curiosidade peculiar sobre ideias de homens mortos, mas deve ser visto como parte integrante de qualquer disciplina científica. E a história propriamente dita não é, nessa visão, uma tentativa de encontrar leis quantitativas encobridoras que determinam totalmente uma sequência de eventos, mas uma tentativa de fornecer uma interpretação qualitativa de alguma parte da “história” da humanidade. Todo o propósito de todas as ciências sociais teóricas (incluindo a economia) é equipar o historiador com a capacidade de distinguir melhor as narrativas históricas aceitáveis das inaceitáveis. Foi a aspiração de Dilthey construir uma base epistemológica para as ciências humanas como um todo, que ele dividiu em “duas grandes classes”, isto é, “o estudo da história (incluindo a descrição do estado contemporâneo da sociedade) e os estudos humanos sistemáticos” que ele diz “são, do começo ao fim, dependentes um do outro e formam um todo sólido”  (1976, p. 171).

Como Paul Ricoeur mostrou, a articulação da história humana tem um “caráter irredutivelmente narrativo”, e a boa história compartilha muitos dos atributos da boa ficção. Essencialmente transmitir o significado subjetivo e o significado dos acontecimentos na história nos envolve não em uma busca por leis determinadas, mas no ato de contar histórias.[25]

Assim, seguir uma história é compreender as sucessivas ações, pensamentos e sentimentos como exibição de uma determinada direção. Com isso, quero dizer que somos pressionados pelo desenvolvimento e que respondemos a esse impulso com expectativas sobre o resultado e a culminação do processo. Nesse sentido, a “conclusão” da história é o polo de atração de todo o processo. Mas uma conclusão narrativa não pode ser deduzida nem prevista. Não há história a não ser que nossa atenção seja mantida em suspense por mil contingências. Portanto, devemos seguir a história até sua conclusão. Então, em vez de ser previsível, uma conclusão precisa ser aceitável. Olhando para trás a partir da conclusão para os episódios que o levaram até ele, devemos ser capazes de dizer que este fim exigiu esses eventos e essa cadeia de ação (1981, p. 277).

O que nos encontramos fazendo nas ciências sociais não é tanto o teste de previsões ex ante, mas é mais da natureza de uma explicação ex post de princípios. O único “teste” que qualquer teoria pode receber é na forma de um juízo qualitativo da plausibilidade da sequência de eventos que tem sido amarrada pela narrativa. Ciências teóricas como a economia podem fornecer os princípios de explicação, mas somente a narrativa histórica pode colocar esses princípios para funcionar e estabelecer sua aplicabilidade e significância em algumas circunstâncias concretas específicas sob investigação.[26] Mas elevar o papel da história e da tradição na ciência não implica em um denegrimento da razão. Pelo contrário, esses escritores acusam seus críticos de terem causado um empobrecimento da razão ao divorciá-la do raciocínio prático e equalizando-a em vez disso a “uma metodologia científica estritamente formal” (Rabinow e Sullivan 1979, p. 9). Bernstein aponta que se procurarmos rastrear as fontes de nossos preconceitos, tanto aqueles que distorcem nossa visão da realidade quanto aqueles que a permitem, “então precisamos recorrer ao passado, à tradição, e à autoridade adequada (baseada no conhecimento) que ‘implanta’ esses preconceitos”. É nesse sentido que Bernstein, seguindo Gadamer, desafia a oposição entre razão e tradição:

Toda razão funciona dentro de tradições. […] Houve uma deformação do conceito de tradição quando pensamos nela como o “peso morto” do passado. Uma tradição viva não só informa e molda o que somos, mas está sempre em processo de reconstituição. Quando a tradição não está mais aberta dessa maneira, podemos falar dela como “morta”, ou como não mais uma tradição (1983, p. 130).

Através da transmissão de pressupostos pela tradição, cada mente individual é capaz de obter acesso e, assim, ele mesmo influencia o campo do intersubjetivo. É a partir desse confronto interpessoal de mentes subjetivas que o corpo progressivo do conhecimento mutuamente aceito que chamamos de ciência emerge.

O mecanismo mais importante por meio do qual cada um de nós ganha acesso ao intersubjetivo é o aprendizado de uma língua.[27] Como enfatiza Gadamer (1976, p. 87), falar é mais do que um uso deliberado de “ferramentas” de comunicação de ideias, como se fossem mantidas dentro da mente independentemente de sua cultura e modo de expressão. Em vez disso, aprender a falar “significa adquirir uma familiaridade e conhecimento [acquaintance] com o próprio mundo e como ele nos confronta” (1976, p. 63).

A linguagem que se domina é tal que se vive dentro dela, isto é, “sabe” o que se deseja comunicar de nenhum modo que não na forma linguística.  “Escolher” as palavras de alguém é uma aparência de efeito criada na comunicação quando a fala é inibida (1976, p. 87).

Essa linguagem é uma janela indispensável através da qual compreendemos o mundo não é dizer que o que compreendemos da fala e da escrita um do outro é de alguma forma limitado ao que é realmente articulado em palavras. “A linguagem”, escreve Gadamer (1976, p. 88), “não é coincidente, por assim dizer, com aquilo que é expressado nela, com o que nela é formulado em palavras”. Como mostra Bernstein, essa concepção do que Gadamer chama de “o que é dito apesar de não ser dito” tem grande semelhança com temas na literatura growth of knowledge, tal como as discussões de Kuhn sobre os limites das traduções de paradigmas e a noção de Polanyi de conhecimento não articulado.

Assim, a interpretação significa sempre somar ao que é dito através de uma mediação dos “horizontes” do intérprete e do interpretado. O que Gadamer diz de entender o significado de um texto é igualmente verdadeiro de todas as tentativas de entender as ações ou declarações de outras pessoas:

O verdadeiro significado de um texto que aborda o intérprete não depende apenas dos fatores ocasionais que caracterizam o autor e seu público original. Pois também é sempre co-determinado pela situação histórica do intérprete e, assim, pelo todo do percurso objetivo da história […] O significado de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Assim, a compreensão é não um procedimento reprodutivo, mas em vez disso sempre produtivo. […] Ela basta em dizer que se compreende de forma diferente quando se simplesmente compreende. [28]

O poder da linguagem reside principalmente em sua capacidade de significar mais do que pode ser explicitamente dito. Ela abre a comunidade de seus usuários para “o infinito daquilo que não é dito”.[29] Aqueles da profissão da economia que descartam a expressão linguística por sua falta de precisão, pelo fato de ela se deixar aberta a mais de uma interpretação, estão simultaneamente condenando a fonte de toda a força genuinamente comunicativa da linguagem. Reduzir o discurso econômico ao formalismo pode acrescentar, em alguns casos, à sua clareza, mas também pode reduzir seriamente o que a ciência é capaz de dizer. Gadamer observa que “Expressões linguísticas, quando são o que podem ser, não são simplesmente inexatas e necessitadas de refinamento, mas na verdade, por necessidade, elas sempre ficam aquém do que evocam e se comunicam”.[30]

Este fato de que “vivemos totalmente dentro de uma linguagem”, para Gadamer (1976,  15-16), não constitui uma forma de “relativismo linguístico” porque não há “absolutamente nenhum cativeiro dentro de uma língua”, mais do que há, para Kuhn, qualquer cativeiro rígido dentro de um paradigma. É precisamente através do uso da linguagem no diálogo científico que a aquisição de conhecimento é capaz de ocorrer. É a partir do debate acadêmico, do esforço de confrontar interpretações alternativas da realidade entre si no discurso verbal, que nossa capacidade de entender essa realidade se expandiu, onde quer que tenha expandido.

Voltamos, então, às conclusões da seção anterior, de que a ciência é mais dialógica do que lógica, é mais uma questão de uma interação de frente e para trás de perspectivas parcialmente implícitas do que um acúmulo linear de fatos explícitos, é mais um processo dinâmico entre os cientistas no qual o significado se desenrola espontaneamente do que um corpo estático de dados deliberadamente adquiridos. Tudo isso é tão verdadeiro do ser humano quando é das ciências naturais. Além disso, uma fonte indispensável de conhecimento do mundo para todas as ciências, mas de especial significância para as humanas, é a compreensão que compartilhamos do mundo da vida, do domínio do intersubjetivo. Somos capazes, porque somos humanos, de tornar inteligível o significado subjetivo dos outros, seja o significado de suas ações ou suas palavras. É somente essa habilidade que torna qualquer ciência possível. E nas ciências humanas, incluindo a economia, é essa estrutura dos sentidos intersubjetivos dos agentes individuais que forma o material primário para nossa atenção acadêmica.

4 A Praxiologia como uma abordagem interpretativa da economia

Abordamos o tema das ciências naturais por fora. O resultado de nossas observações é o estabelecimento de relações funcionais de dependência. As proposições concernentes a essas relações constituem os princípios gerais pelos quais explicamos os fenômenos da natureza. Uma vez que tenhamos construído o sistema desses princípios, fizemos tudo o que podemos fazer. Nas ciências da ação humana, por outro lado, compreendemos os fenômenos por dentro. Porque somos seres humanos, estamos em uma posição de captar o sentido que o agente se apegou em sua ação. É essa compreensão de sentido que nos permite formular os princípios gerais por meio do qual explicamos os fenômenos da ação.

Ludwig von Mises (1981, p. 130)

Vertentes hermenêuticas definidas podem ser encontradas pelos escritos metodológicos da escola Austríaca. Vários membros da escola, incluindo Lachmann (1971), Grinder (1977), Ebeling e Richard (1985), O’Driscoll e Rizzo (1985), e Rothbard (1973), vincularam explicitamente seu trabalho a partes da tradição hermenêutica. Há uma semelhança impressionante entre os argumentos de todos os escritores das tradições Austríacas e hermenêuticas sobre a necessidade de interpretar a história humana, referindo-se aos sentidos subjetivos dos indivíduos. O estilo no qual os austríacos praticam sua economia pode ser dito como sendo exatamente o que a hermenêutica recomenda para a ciência social em geral. O pouco trabalho aplicado em que essa escola se engajou tem sido feito de forma extremamente desagregada, sendo preferidos estudos de caso, e o aparato teórico é construído em palavras e para o uso como aparato interpretativo para a compreensão da história. Tanto a hermenêutica quanto a economia austríaca defendem o subjetivismo consistente e o individualismo metodológico e parecem empenhados em fazer o que outros muitas vezes consideram como ênfase indevida na história das ideias, e na interpretação dos textos.

Essa foi, segundo os austríacos, nada menos do que a mensagem central da revolução marginalista, na qual nasceu a economia neoclássica, que o valor e outros fenômenos econômicos devem ser explicados por referência ao sentido subjetivo anexados a eles por mentes humanas individuais. Seria impossível equalizar as posições metodológicas de todos os diversos escritores da tradição Austríaca. De fato, pode-se discernir nos debates metodológicos dos Austríacos contemporâneos a mesma luta entre os ramos mais objetivistas e mais relativísticos como foi encontrado nas tradições growth of knowledge e hermenêuticas.[31]  Mais uma vez, podemos encontrar uma unidade subjacente dentro da tradição que sugere um modo de transcender esses perigos alternativos. De fato, os próprios aspectos da dimensão interpretativa que chamei de aspectos históricos, linguísticos, narrativos, dialógicos, perspectivistas, tácitos e sociológicos poderiam quase servir também para distinguir os Austríacos modernos de outros ramos da economia neoclássica como podem delinear os temas da hermenêutica.

Por exemplo, Friedrich Hayek não é de todo difícil de interpretar como totalmente consistente com as abordagens growth of knowledge e hermenêuticas. Amigo próximo de Karl Popper, Hayek estava bem ciente e em concordância geral com os escritos growth of knowledge, e seu método de “explicação do princípio” pode ser visto como um uso hermenêutico da teoria como uma estrutura para a interpretação dos fatos. Um livro recente sobre Hayek pelo filósofo de Oxford John Gray mostrou que a perspectiva epistemológica de Hayek é amplamente consistente com os próprios aspectos das contribuições epistemológicas de Ludwig Wittgenstein, Michael Polanyi e outros que foram elaborados na seção anterior.[32]

Mas e quanto a Ludwig von Mises, o controverso defensor do “extremo apriorismo”? Como geralmente interpretado, por exemplo, por Hutchison, Mises via a teoria econômica como uma espécie de corpo privilegiado do que o próprio Mises às vezes chamava de conhecimento apoditicamente certeiro que era “estritamente deduzido” de um pequeno número de “axiomas” da mesma forma que a geometria Euclidiana é considerada não ambígua e exaustivamente gerada a partir de um conjunto fixo de axiomas. Em verdade, muitos matemáticos negariam que até a geometria ou matemática em geral sejam sistemas axiomáticos rigorosos nesse sentido, mas a maioria dos economistas concordaria que sua disciplina não é tal coisa. E certamente se isso é o que Mises quis dizer com praxiologia ele pode ser acusado do próprio fundamentalismo que as tradições growth of knowledge e hermenêuticas nos ensina que precisamos transcender. De fato, ele tem sido tão criticado diretamente por um dos principais contribuintes da growth of knowledge, Imre Lakatos (1978, p. 10) e essa crítica tem sido entusiasticamente apoiada por Hutchison (1981, p. 294, 303). Até mesmo seguidores tão próximos de Mises como Hayek se dissociaram deste extremo apriorismo.

O objetivo desta seção não será submeter essa interpretação euclidiana comum de Mises a críticas detalhadas, mas mostrar que uma interpretação totalmente diferente é possível, uma na qual Mises parece notavelmente semelhante aos contribuintes para as tradições growth of knowledge e hermenêuticas.[33]

Agora é verdade que Mises em muitas passagens caracteriza sua própria metodologia como “axiomática” e “estritamente dedutiva” e “independente” dos fatos históricos. Mas é mais importante ver como um estudioso realmente procede em seu próprio trabalho do que ouvi-lo articular sua metodologia explícita.

Antes de tudo, deve-se mencionar que Mises foi profundamente influenciado por Dilthey e Weber e foi exatamente sobre essa escola hermenêutica na filosofia das ciências sociais que ele dependeu inteiramente suas opiniões sobre as tarefas adequadas do historiador, incluindo o historiador econômico. Ele disse que “primeiro, Dilthey, depois Windelband, Rickert, Max Weber, Croce e Collingwood […] conseguiram brilhantemente elucidar as características epistemológicas do estudo da história”, uma realização que Mises chamou de “uma das contribuições mais importantes da epistemologia moderna”.[34]

Há uma impressão generalizada entre os economistas, pela qual o próprio Mises é parcialmente culpado, de que ele queria dicotomizar estritamente a teoria da história. O professor Seligman (1971, p. 330), apenas para dar um exemplo, chegou ao ponto de dizer que Mises “alegremente expulsou a investigação histórica dos fenômenos econômicos”, “lutou heroicamente para manter […] a história fora da economia”, e “insistiu que tais abordagens refletiam apenas a personalidade e o viés do escritor”. Em verdade, no entanto, os métodos que ele realmente usou e muitos dos argumentos que ele oferece em seu nome indicam que Mises pensava na praxiologia como um “esquema de interpretação” (1966, p. 26) que foi tanto moldado pela quanto iluminou a história. A teoria econômica precisava ser aplicada como um esquema interpretativo à explicação de circunstâncias históricas reais, a fim de produzir seus frutos intelectuais. Para Mises, quanto para os escritores growth of knowledge, a teoria é um dispositivo através do qual vemos fatos do mundo histórico. Como será discutido abaixo, Mises viu a teoria e a história como duas metades complementares das ciências humanas, qualquer uma das quais, sozinha, é fundamentalmente incompleta.[35]

Ecoando os temas da hermenêutica, Mises criticou aqueles que se recusam a compreender a ação humana “como comportamento dotado de sentido e propositado”. É impossível “compreender a ação humana intelectualmente […] sem entrar no sentido que as partes agentes atribuem à situação” (1966, p. 26). Não se pode, como Geertz disse, estudar bruxaria como um geômetra. O modo como Mises descreve a primeira percepção de que há regularidades nos fenômenos econômicos é que as pessoas descobriram que “há outro aspecto a partir do qual a ação humana pode ser vista do que o de boa ou má, de justa e injusta” (1966, p. 2). Mises vê sua teoria econômica como nos fornecendo um esquema viável para a interpretação subjetiva da conduta humana, e que não é a única perspectiva possível. Como Mises (1978, p. 71), disse,

O que sabemos sobre nossas próprias ações e sobre as de outras pessoas está condicionado pela nossa familiaridade com a categoria de ação que devemos a um processo de autoexame e introspecção, bem como à compreensão da conduta de outras pessoas. Questionar essa visão não é menos impossível do que questionar o fato de que estamos vivos.

Como Schütz argumentou, aqueles que tentam suspender o juízo sobre se outras mentes são inteligentes irão, em qualquer caso, contradizer-se na prática, argumentando por seu caso behaviorístico para outras “mentes” na comunidade científica. Tanto para Mises, quanto para Schütz, o ponto de partida da investigação da sociedade é uma reflexão sobre o mundo da vida já interpretado, o mundo da ação humana na experiência cotidiana prática. “Devemos nos colocar e refletir sobre a estrutura da ação humana. Como a lógica e matemática, o conhecimento praxiológico está em nós; não vem de fora” (Mises 1966). Ao chamar seu método de “apriorístico”, Mises usa a linguagem dos filósofos kantianos e frequentemente compara praxiologia com lógica e matemática, mas ele não tenta fornecer qualquer tipo de “base” metafísica ou ontológica para seu apriorismo. Em vez disso, ele se baseia em um argumento pragmático, dizendo simplesmente que as circunstâncias nos impõem não um apriorismo metafísico, mas um “apriorismo metodológico” (1966, p. 35):

Todos em seu comportamento diário de novo e de novo testemunham a imutabilidade e universalidade das categorias de pensamento e da ação. Aquele que se dirige ao seu próximo, que quer informá-los e convencê-los, que faz perguntas e responde às perguntas dos outros, só pode proceder dessa forma porque ele pode apelar para algo comum a todos os homens […] (1966, p. 36).

Precisamos aceitar não apenas a existência, mas também a significância do mundo da vida já interpretado ou nos envolveremos na autocontradição. Aceitamos a suposição de que compartilhamos uma intersubjetividade uns com os outros não por causa de “fundamentos” filosóficos, mas porque esse procedimento funciona na vida cotidiana e na ciência. Mises diz que o vazio do objetivismo, ou, como ele diz, “positivismo”, torna-se manifesto “precisamente quando aceitamos esse ponto de vista pragmático” (1966, p. 24).

Em uma passagem na qual uma referência a Schütz (1932) é anexada, Mises mostra que sua defesa da validade do “a priori” é a mesma da defesa hermenêutica: praticamente falando todos nós já estamos tomando o mundo da vida como garantido. As proposições a priori, como a de que todos os seres humanos compartilham a mesma lógica do senso comum, devem ser empregadas porque já estão em uso extensivo e “funcionam na prática e na ciência”:

[O] positivista não deve ignorar o fato de que ao se dirigir ao seu próximo ele pressupõe — tacitamente e implicitamente — a validade intersubjetiva da lógica e, assim, a realidade do pensamento e ação do alter Ego, de seu eminente caráter humano (1966, p. 24).

Até mesmo “cidadãos comuns ansiosos por compreender mudanças em ocorrência” recorrem a uma abordagem apriorística nesse sentido. Qualquer debate sobre assuntos humanos “inevitavelmente se afasta das características acidentais e ambientais do evento relacionado a uma análise de princípios fundamentais, e abandona imperceptivelmente qualquer referência aos acontecimentos factuais que evocaram o argumento”. A reflexão sobre os eventos humanos invariavelmente nos leva à direção de isolar conceitualmente diferentes características do mundo da vida já interpretado. A teoria é o modo como capturamos significados que já estão aí no mundo prático, não é simplesmente um conjunto de hipóteses sobre as quais os fatos da história dominam unilateralmente.

A verdade é que a experiência de um fenômeno complexo — e não há outra experiência no domínio da ação humana — pode ser sempre interpretada no terreno de várias teorias antitéticas. Se a interpretação é considerada satisfatória ou insatisfatória depende da apreciação das teorias em questão estabelecidas de antemão sobre o fundamento do raciocínio apriorístico (1966, p. 41).

Sem os “esquemas fornecidos pelo raciocínio praxiológico”, insiste Mises, “perceberíamos moções, mas não compra nem venda, nem preços, taxas salariais, taxas de juros, e assim por diante.” Mises não é mais ou menos um apriorista do que cada um de nós é em sua vida cotidiana. Para todos nós, se carecêssemos de “tal conhecimento pré-existente” como o que é um meio de troca, veríamos em moedas “apenas placas redondas de metal, nada mais” (1966, p. 40).

“Os métodos intelectuais da ciência”, diz Mises, “não diferem em espécie daqueles aplicados pelo homem comum em seu raciocínio mundano diário” exceto que o cientista usa as ferramentas do leigo “com mais habilidade e cautela” (1966, p. 58). Assim como as tradições growth of knowledge e hermenêuticas, Mises sustentou que “O raciocínio e a investigação científica nunca podem trazer total facilidade de espírito, certeza apodíctica e perfeita cognição de todas as coisas” (1966, p. 25). O homem, ele admite, nunca pode ser certeiro e, portanto, embora Mises às vezes chame o a priori de apoliticamente certo, até mesmo este não pode estar além da crítica.  “Tudo o que o homem pode fazer é submeter todas as suas teorias repetidamente ao reexame mais crítico” (1966, p. 68).

E se olharmos nos escritos de Mises para suas recomendações para métodos específicos de análise econômica, descobrimos que, em vez de incitar a construção de uma série de teoremas lógicos ou matemáticos bem conectados, ele recomenda um procedimento aberto e virtualmente desenfreado para exercitar a imaginação humana. Esperar-se-ia de um verdadeiro euclidiano nada menos do que um sistema matemático formal, mas como é bem conhecido a obra de Mises é conspícua na economia do século XX por sua evitação da matemática ou da modelagem formal, e ele até argumentou que a economia não é principalmente uma ciência quantitativa, embora os números (na forma de preços monetários) estejam entre os fenômenos centrais a serem explicados.

Os números aplicados pelo homem agente no cálculo econômico não se referem às quantidades medidas, mas às relações cambiais [exchange ratios] como são esperadas — com base na compreensão —a serem realizadas nos mercados do futuro para os quais somente toda a ação é dirigida e que sozinha conta para o homem agente.

Não estamos lidando […] com o problema de uma “ciência quantitativa da economia”, mas com a análise dos processos mentais realizados pelo homem agente na aplicação de distinções quantitativas ao planejar a conduta (1966, p. 210).[36]

O método específico da praxiologia não é lógica formal ou matemática, mas o que ele chama de “o método de construtos imaginários”. Mais uma vez Mises nos diz que isso não é o que ele acha que deve ser o método, mas é e tem sido o principal método que as pessoas têm usado.  “Todos que querem expressar uma opinião sobre os problemas comumente chamados econômicos recorre a esse método”, o cientista somente elabora seus construtos imaginários com mais cuidado, precisão e crítica do que o leigo (1966, p. 236).

Um construto imaginário é uma imagem conceitual de uma sequência de eventos logicamente evoluídos dos elementos de ação empregados em sua formação. Trata-se de um produto de dedução, em última análise derivado da categoria fundamental de ação, o ato de preferir e deixar de lado. Ao projetar um construto tão imaginário, o economista não se preocupa com a questão de retratar ou não as condições da realidade que ele quer analisar. Também não se preocupa com a questão de se um sistema como o imaginário dele poderia ser concebido como realmente existente e em operação. Até mesmo construtos imaginários inconcebíveis, contraditórios em si mesmos ou irrealizáveis, podem ser serviços úteis, até mesmo indispensáveis, na compreensão da realidade, desde que o economista saiba como usá-los apropriadamente (1966, p. 236).

Aqui novamente Mises se baseia em uma defesa pragmática e não fundamentalista desse “método”, afirmando simplesmente que ele é “justificado pelo seu sucesso”. Enquanto Mises é como de costume inclinado a exagerar a utilidade única deste método de experimentação mental para a praxiologia,[37] ele não pode ser culpado por forçar a economia a qualquer molde metodológico rigoroso. O “método” dos construtos imaginários é um modo ilimitado de discurso especulativo e reflexão que já se mostrou capaz de gerar insights na economia tradicional. A única “fórmula” que Mises recomenda para projetar essas imagens mentais é “abstrair a partir do funcionamento de algumas condições presentes em ação real” a fim de “compreender as consequências hipotéticas da ausência dessas condições e conceber os efeitos de sua existência” (1966 , p. 237). Resumindo, usamos nossas imaginações. Falamos sobre Crusoés e equilíbrios e utopias sem escassez e todo tipo de outras ficções a fim de esclarecer nossos pensamentos sobre economias de troca, processos de mudança, problemas de alocação, etc. Em vez de quaisquer regras processuais específicas, Mises oferece ao economista um aviso geral de que o método “pode facilmente resultar em silogismo falacioso” e, portanto, deve ser usado com “autocrítica impiedosa” (1966, p. 237). Seria difícil encontrar regras metodológicas avançadas de qualquer economista que estejam mais no espírito das tradições growth of knowledge e hermenêuticas do que essas. Mas se este relato da concepção aberta e hermenêutica da teoria de Mises está correta, então por que tantos escritores, de Hutchison a Seligman, leem-no como dicotomizando a teoria da história? Devemos lembrar que Mises tomou conhecimento da metodologia em um momento e lugar onde a própria possibilidade de uma ciência teórica dos assuntos humanos era considerada altamente questionável. Isso foi especialmente verdade entre os historiadores, que sob a influência da escola histórica alemã viram as ciências humanas como envolvendo uma coleta e gravação de fatos sem teoria. Para se opor a essa visão, Mises frequentemente enfatizava que há uma contribuição cognitiva legítima a ser feita pelo tipo de teorização reflexiva descrita acima, como distinta da atenção a particularidades que é o domínio apropriado da história. Combinado com seu estilo combativo, a insistência de Mises na diferença entre teoria e história levou à visão equivocada de que ele queria separá-las.

Há uma distinção entre fazer a pergunta “O que aconteceu? “, e fazer a pergunta “O que pode acontecer?” e, de fato, responder à questão histórica implicará tomar algumas decisões implícitas ou explícitas sobre a questão teórica. É inapropriado para o historiador interromper o economista, antes de, digamos, Crusoé ter acabado de fazer sua rede, insistir que o homem primitivo viveu na sociedade, não sozinho. Teóricos econômicos, insistiu Mises, estão fazendo um tipo diferente de pergunta. Um debate histórico, como diz Mises, “inevitavelmente se volta” para uma discussão sobre “princípios fundamentais”. Assim, devemos reservar um domínio legítimo da atenção científica ao uso de nossa imaginação especulativa, à contemplação de construtos imaginários. Na verdade, uma vez que isso já é feito tacitamente pelo historiador mais historicista, podemos muito bem reconhecer o que estamos fazendo. Mas o ambiente intelectual de hoje tende mais para denegrir a história do que a teoria. Na medida em que a teoria econômica é buscada nos periódicos contemporâneos, ela é buscada como um exercício que não faz referência aos “problemas históricos e políticos concretos” dos quais a teoria do pensamento de Mises nunca deve ser estritamente separada (1966, p. 66). Diante desse tipo de público, Mises provavelmente teria argumentado tão vigorosamente pela dependência mútua da teoria e da história como ele argumentou contra os historicistas que cada uma tem seus próprios objetivos e procedimentos distintos.

Além disso, se a intenção de Mises era exorcizar a história da economia por que ele permitiu que a forma de seu próprio discurso econômico fosse aquela em que “a teoria e a interpretação dos fenômenos históricos estão entrelaçadas”? Todos os livros de Mises estão cheios de detalhes históricos. Isso não atrapalha desnecessariamente o raciocínio estritamente dedutivo?

Mises precisa ter considerado a teoria e a história como inerentemente conectadas e não apenas conectadas na forma em que a economia geralmente chega a ser apresentada. Cada uma, teoria e história, é fundamentalmente incompleta sem a outra. A teoria “não nos transmite a plena cognição da realidade” embora sem ela “não haja compreensão da realidade da ação humana”. Teoria e história “não estão em oposição uma a outra”, mas são dois aspectos complementares da cognição (1966, 38-39). A história molda a direção da investigação teórica, enquanto a teoria é usada como estrutura interpretativa com a qual as narrativas históricas específicas podem ser contadas. A concepção de “O que pode acontecer?” que trazemos conosco para um episódio histórico molda a maneira como trabalharemos sobre as evidências enquanto fazemos a pergunta “O que aconteceu?” Ao mesmo tempo, as questões sobre “O que aconteceu?” influenciam as agendas dos economistas sobre as quais, do número infinito de específicos “O que pode acontecer?”, questões que ele pode ser capaz de evocar, são dignas de sua atenção séria.

A discussão de Mises sobre a história, como a da vertente de Gadamer da tradição hermenêutica, salienta que a história sempre é e deve ser guiada por permitir pressupostos derivados da teoria, incluindo, mas não confinados, à teoria a priori que vem da reflexão sobre o mundo da vida.

A história não é uma reprodução intelectual, mas uma representação condensada do passado em termos conceituais. O historiador não deixa simplesmente que os eventos falem por si mesmos. Ele os organiza a partir do aspecto das ideias subjacentes à formação das noções gerais que ele usa na apresentação deles. Ele não relata fatos como aconteceram, mas apenas fatos relevantes. Ele não aborda os documentos sem pressupostos, mas equipado com todo o aparato do conhecimento científico de sua época, isto é, com todos os ensinamentos da lógica contemporânea, matemática, praxiologia e ciências naturais (1966, pp. 47-48).

Em suma, como Gadamer enfatiza, a compreensão nunca pode implicar tentar ver eventos exclusivamente do ponto de vista do interpretado, mas precisa ser informado pelos equipamentos intelectuais do intérprete. Mises (1966, pp. 50-51) ilustra seu argumento apontando que um historiador moderno da Idade Média não estaria justificado em atribuir agência causal ao “diabo” mesmo que todas as suas “testemunhas” históricas concordem entre si que o diabo foi responsável. Uma vez que esse “fato” viola nossas visões contemporâneas do que pode acontecer, o historiador precisa questionar o fato e tentar reconstruir o que realmente precisa ter acontecido, apesar da unanimidade de suas testemunhas. Como Geertz disse, não queremos uma etnografia de bruxaria enquanto escrita por uma bruxa. Da mesma forma, o economista moderno veria adequadamente os relatos das testemunhas de que uma inflação em particular foi causada por uma queda na oferta monetária como não confiável. O raciocínio econômico nos diz que isso não pode existir.

Assim, Mises permite que “a história nunca possa ser estudada sem pressupostos” e que “a dissidência em relação aos pressupostos” deve ser a base para o estabelecimento de fatos históricos (1966, p. 53). Isso significa que, à medida que a ciência progride e os pressupostos mudam, isso implica uma contínua “reescrita da história”.

Toda geração deve tratar de novo os mesmos problemas históricos porque eles aparecem para ela de uma forma diferente. A visão de mundo teológica dos tempos mais antigos levou a uma abordagem da história diferente dos teoremas da ciência natural moderna. A economia subjetiva produz obras históricas muito diferentes daquelas baseadas na doutrina mercantilista (1966, pp. 53-54).

Mas embora a história dependa de pressupostos teóricos, a teoria também depende da história em pelo menos duas maneiras. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da teoria em algumas direções, em vez de outras, depende dos problemas postos pela nossa compreensão prévia da história. E segundo, a aceitação ou rejeição de uma teoria depende da utilidade com que ela serve como um dispositivo para interpretar a história. Mises aceitou explicitamente o primeiro ponto quando argumentou que a invenção teórica tem de ser guiada por considerações de pelo menos relevância indireta para circunstâncias históricas reais.

Pode ser concebível, aponta Mises, inventar experimentos mentais para todas as circunstâncias históricas concebíveis “delineando todas as condições imagináveis e deduzindo-as de todas as inferências logicamente admissíveis”. Mas para Mises “o fim da ciência é conhecer a realidade […] não ginástica mental”. Ou como diz Gadamer (1976, p. 11), “existe algo como esterilidade metodológica”. Assim, Mises diz que a praxiologia “restringe suas investigações ao estudo da ação nessas condições e pressupostos que são dados na realidade”. Condições irrealizáveis devem ser imaginadas “se tal inquérito é necessário para uma compreensão satisfatória do que está acontecendo sob as condições presentes na realidade” (1966, p. 65), enquanto os métodos de Mises não são estritamente governados por regras (objetivistas) eles também não são completamente desorientados (relativísticos). A especulação teórica deve ser direcionada para a realidade que tem necessidade de interpretação.

No segundo ponto, Mises é menos claro, mas ele pode ser lido como endossando a posição de que a razão pela qual aceitamos uma estrutura interpretativa é que acreditamos que “vemos” a história melhor através dela do que através de estruturas alternativas. Mises considerou que todo o propósito da teoria é “prestar serviços úteis para a compreensão da realidade” (1966, p. 66). Para Mises, então, o valor da teoria é uma exigência derivada. Aquilo do que a teoria é digna depende do quão bem ela “funciona”, isto é, de quão bem uma captação dos eventos da realidade ela permite que seu usuário alcance. É na mensuração da utilidade de uma teoria para interpretar a história que essa teoria é “testada” do único modo que uma teoria sempre é.

Voltando à pergunta de Caldwell sobre escolha de teoria, se as teorias a priori parecem capazes de multiplicação, como vamos escolher uma sobre a outra? A resposta de Mises parece não ser diferente da das tradições growth of knowledge e hermenêuticas. A única maneira de se escolher entre as estruturas interpretativas é tentar ver a realidade através delas, uma a uma, tentar debater onde as discordâncias parecem cruciais e, em última instância, fazer um juízo sobre qual perspectiva resulta na melhor compreensão sobre o fluxo dos eventos. Ao argumentar pelo método apriorístico, Mises não estava reivindicando validade especial ao seu próprio desenvolvimento particular da teoria apriorística, muito menos sua própria compreensão da história, mas estava tentando ecoar o ponto dos hermenêuticos de que todos os teóricos sociais na prática e cada um de nós em nossas vidas cotidianas vêem fenômenos sociais como já interpretados, ou por dentro. Embora enfatizasse as diferenças entre teoria e história, ele não queria, e não as dicotomizou ele mesmo. Ele insistiu, como ambos as literaturas growth of knowledge e hermenêuticas, que as teorias são estruturas para a interpretação dos fatos da história, mais do que hipóteses a serem testadas por esses fatos. No entanto, não há como ter certeza na vida de que a própria perspectiva interpretativa é a melhor. Isso não necessita implicar em relativismo, mas apenas reforça o fato de que nossa única maneira de eliminar erros é submeter o nosso trabalho e nossos companheiros, como Mises diz, “ao reexame mais crítico”.

O problema da escolha de teoria pode ser “resolvido” não de forma algorítmica, mas intersubjetivamente; não logicamente dentro de uma mente, mas dialogicamente entre várias. Os adeptos de estruturas interpretativas alternativas precisam se esforçar para tornar suas declarações mais inteligíveis umas com as outras, para interpretar o sentido um do outro, para colocar os problemas uns dos outros, para persuadir uns aos outros. Através de uma interação espontânea de crítica mútua, uma espécie de cabo de guerra de interpretações rivais, a evolução do conhecimento pode continuar a ser progressiva, desde que o suficiente de suas mentes participantes permaneça genuinamente comprometida em descobrir a verdade. Para o objetivista, é claro, isso parece não ser uma solução real do problema da escolha de teoria. Não podemos apontar para nenhuma técnica objetiva que possa ser usada para nos dizer como podemos selecionar melhores estruturas interpretativas da multidão de candidatos. Em vez disso, resta ser resolvido anonimamente, e continuamente, pelo processo crítico de controvérsia que pode ocorrer entre pessoas que se comprometem com a busca de conhecimento.

Antes da década de 1930, a história da economia exibia, em sua maioria, somente esse tipo de rivalidade tumultuada de interpretações e críticas mútuas. Debates  vívidos entre diversas perspectivas foram a dieta básica dos assinantes das revistas profissionais. Isso não foi, como muitas vezes nos dizem nos livros didáticos contemporâneos, apenas um borrão de opiniões desfocadas das quais a matemática nos salvou. Progressos substanciais vinham ocorrendo na economia política há 150 anos, entre eles a própria revolução marginalista/subjetivista. Essa revolução, a revolução keynesiana e numerosas outras escaramuças analíticas estavam em andamento em vívido discurso quando as ciências sociais ficaram sob o controle do objetivismo. O micro subjetivista e o macro de Keynes foram ambos reduzidos a modos de expressão cada vez mais formais e foram transformados em teorias rarefeitas do equilíbrio, problemas de maximização restritos e o modelo IS/LM. Algumas gerações de economistas ficaram imbuídas na metodologia objetivista e permitiram que isso interferisse no desenvolvimento natural da ciência. O apelo interpretativo de supostas explicações científicas foi sistematicamente desvalorizado em favor da elegância matemática no trabalho teórico e em favor da precisão quantitativa no trabalho empírico. A economia se tornaria uma ciência rigorosa e quantitativa e sua linguagem se tornaria matemática. Mises, teimosamente aderindo ao seu estilo “literário” ultrapassado, foi uma das vítimas da paixão de sua profissão pelo formalismo.  Suas antecipadas desconsiderações da economia matemática como sendo “estéril” provavelmente soaram estridentes na época, e pode ter sido prematura. Mas um número crescente de economistas hoje estaria disposto a admitir, depois de ver os frutos do desenvolvimento da economia em direções formalistas por cinquenta anos, que ele estava certo quando disse que o formalismo iria “desviar a mente do estudo de problemas reais” (1966, p. 350).

É claro que os economistas pensavam que essa “rigorização” de sua ciência acabaria com a disputa entre escolas divergentes e resolveria muitas disputas antigas. O que vemos de fato é que as escolas radicalmente divergentes permanecem e que as disputas não foram resolvidas, mas dissolvidas e esquecidas. O que se perdeu, além da pura diversão das controvérsias econômicas, foi a própria força que impulsionou o progresso em nossa ciência.

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Notas de Rodapé

[1] Cada um desses aspectos relacionados da dimensão interpretativa da explicação será elaborado ao longo das partes 2 e 3 deste ensaio e são especificamente observados nos números 11, 14, 21, 26 e 30.

[2] Por literatura growth of knowledge quero dizer os escritos de Popper (1964;  1965;  1972), Lakatos (1978), Lakatos e Musgrave (1970), Kuhn e Feyerabend (1975). Discussões estreitamente relacionadas e complementares sobre a natureza da ciência em geral podem ser encontradas nas seguintes obras: Barnes (1982), Gelwick (1977), Hattiangadi (1983), Hesse (1980), Polanyi (1958a;  1969), Polanyi e Prosch (1975), Toulmin (1972) e Weimer (1980).

[3] Veja Ions (1977) que aponta muitos desses vieses objetivistas entre economistas, teóricos dos jogos, cientistas políticos, cliometristas, jurimetristas, psicólogos, linguistas, entre outros.  Suas observações sobre economia são particularmente interessantes:

Faz parecer a um novato, depois de uma imersão fresca, senão incompleta, na literatura, que a economia parece mais do que nunca se separar em duas subdisciplinas distintas, aquela formal, axiomática, dedutiva, e pertencente peculiarmente ao mundo da matemática pura; a outra salientando que a economia é uma ciência social aplicada, ou não é nada. O segundo grupo não pode ser descartado como não educado em matemática […] mas eles claramente acham mais agradável localizar seu trabalho em uma tradição intelectual cognata a outras disciplinas, especialmente filosofia e política […] (1977, pp. 50-51).

[4] Hahn e Hollis (1979, p. 1) observam que na economia “a imagem da ciência feita por Popper como sendo conjecturas e refutações tem sido amplamente admirada e endossada, mas não vista como uma ameaça às esperanças de uma economia positiva baseada em princípios positivistas ortodoxos. A revolta causada pelo pragmatismo de Quine, os paradigmas de Kuhn e outras viradas mais recentes ainda não enviou mais do que um tremor através do templo.” Além do brilhante artigo sobre “A Retórica da Economia”, de  Donald McCloskey (1983), e o livro de Caldwell, os economistas geralmente não conseguiram apreciar o significado radical para seu trabalho de crescimento da literatura do conhecimento.

[5] McCloskey (1983, pp. 509-510) atribui esse medo de uma violação na “parede contra ameaças irracionais e autoritárias de inquérito” a uma “baixa opinião sobre o livre jogo de ideias. “

[6] Hutchison (1981, p. 206) estava emprestando esta infeliz frase “voz interior” de um dos principais contribuintes da escola austríaca, Friedrich von Wieser (1928, p. 8). A frase “pretensão de conhecimento” foi emprestada de outro famoso austríaco, F.A. Hayek.

[7] Para efeitos deste artigo, incluirei sob a rubrica da hermenêutica não apenas a tradição alemã específica que descende diretamente de Schleiermacher, Dilthey e Weber (1949;  1980), mas também vários outros escritores cujo trabalho esteve intimamente relacionado a essa tradição, incluindo partes da fenomenologia e movimentos existencialistas, e especialmente aqueles cujo trabalho remonta a Vico, Croce, Bergson, Husserl (1962), Dewey (1929), Collingwood, ou o Wittgenstein tardio (1958). Veja Austin (1962), Barrett (1979), Berlin (1969), Bernstein (1983), Bleicher (1980), Gadamer (1975a;  1975b;  1976;  1982), Geertz (1973), Gier (1981), Gurwitsch (1974), Heelan (1983a;  1983b), Hirsch (1967), Howard (1982), Ihde (1971), Lauer (1965), Levy (1981), Linge (1976), Luckmann (1978;  1981), Merleau-Ponty (1962;  1964), Natanson (1973), Polanyi (1958b), Polkinghorne (1983), Rabinow e Sullivan (1979), Randall (1984), Ricoeur (1965;  1981), Rorty (1979), Sayer (1984), Schutz (1970), Schutz e Luckmann (1973), Simmel (1980), Strickland (1981), Taylor (1964;  1971;  1980), e Zaner ( 1974).

[8] Estou, naturalmente, ciente de que esses termos objetivismo e subjetivismo têm significados muito diferentes na economia a partir de seu significado na filosofia. Mesmo assim, há na teoria objetiva do valor uma luta pela medição quantitativa e leis objetivas da evolução histórica que felizmente está ausente da teoria do valor subjetivo de Menger.

[9] Mises, embora possa ser dito ter exagerado as diferenças entre as ciências humanas e naturais, argumentou para a necessidade de todas as ciências se estenderem em suas dimensões interpretativas.

[N]enhum físico jamais acreditou que o esclarecimento de algumas das suposições e condições dos teoremas físicos está fora do escopo da pesquisa física. A principal questão que a economia está fadada a responder é qual é a relação de suas declarações com a realidade da ação humana cuja compreensão mental é o objetivo dos estudos econômicos (1966, p. 6).

[10] Tanto Hutchison (1981, pp. 294-295) quanto Caldwell (1982, p. 131) citam o livro de Hollis e Nell (1975) como um dilema para o apriorismo austríaco. Hollis e Nell propõem um apriorismo que postula uma base axiomática muito diferente para uma ciência dedutiva da economia baseada na noção de Marx de reprodução econômica. Fiz uma breve tentativa de responder a Hollis e Nell em Lavoie (1977), mas agora acredito que uma resposta satisfatória requer o tipo de reinterpretação do apriorismo de Mises que é apresentado aqui.

[11] Podemos ver aqui os aspectos da dimensão interpretativa da explicação que eu desejei os aspectos tácitos e sociológicos. Entre os escritores growth of knowledge, as obras de Kuhn (1970;  1977) e Polanyi (1958a;  1969) elaboraram longamente esses aspectos. Veja também Barnes (1982) e Lavoie (1985a;  1985b).

[12]        Um pequeno periódico mensal chamado The Skeptical Inquirer é um dos poucos lugares onde algumas das reivindicações específicas da ciência marginal são abordadas por cientistas genuínos.

[13]        As palavras citadas são as de Hans-Georg Gadamer, cuja vertente de hermenêutica será examinada na parte 3. Gadamer ressalta que é a imaginação que é a “função decisiva do estudioso. A imaginação naturalmente tem uma função hermenêutica e serve aos sentidos para o que é questionável. Serve a capacidade de expor questões reais e produtivas […]” (1976, p. 12).

[14]        Essa orientação para as conversas contínuas da comunidade científica é o que eu cunhei como um aspecto “dialógico” da dimensão interpretativa.  Veja Hattiangadi (1983, p. 109) para um argumento semelhante.

[15] Para uma discussão útil da metodologia de Machlup, que mostra sua afinidade com Schütz, consulte Langlois e Koppl (1984).

[16] Bernstein (1983, pp. 56-57). As palavras que Bernstein cita aqui são de Kuhn (1970, p. 157).

[17] Axel Leijonhufvud (1981, p. 291). Leijonhufvud ofereceu várias razões pelas quais ele acha que os economistas, em particular, devem hesitar em aplicar essa visão de metodologia orientada à ciência natural aos diferentes estudos de caso encontrados na economia.

[18] Veja Bleicher (1980, p. 83).

[19] Schütz (1970, p. 273). Veja também Gurwitsch (1974, p. 129).

[20] Schutz (1970, pp. 267 e 273).

[21] Isso constitui o que foi chamado de aspecto “perspectivista” da dimensão interpretativa.

[22] A epistemologia de Michael Polanyi é construída sobre esta abordagem Gestalt envolvendo a relação entre pistas subsidiárias e consciência [awareness] focal.

[23] Dilthey reconheceu esse ponto em várias passagens, por exemplo, quando ele disse de seu ponto de vista básico que “reconhece consistentemente que é impossível ir além da consciência, ver, por assim dizer, sem olhos ou direcionar um olhar cognitivo para além do próprio olho” (1976, p. 161), ou quando ele disse:

A compreensão do sistema histórico de interações cresce, em primeiro lugar, a partir de pontos individuais nos quais remanescentes relacionados do passado estão ligados na compreensão por sua relação com a experiência: o que está ao nosso redor nos ajuda a entender o que é distante e passado (1976, p. 203).

Mas logo na próxima passagem, Dilthey parece implicar, ao contrário de Gadamer, que “o que colocamos” nossas interpretações só devem ser “permanente e universalmente válidas para o homem”, como se todas as características não universais do passado do historiador pudessem ser perfeitamente eliminadas de sua mente. Mises, veremos, não sofreu dessa ilusão.

[24] Gadamer (1976, p. 122), ênfase adicionada. Hirsch (1967) argumentou que uma distinção nítida pode ser feita entre o conteúdo da história e seu significado, e que os preconceitos do historiador podem ser cuidadosamente eliminados das declarações de fato, mas não de declarações sobre a significância dos fatos.

[25] Em uma fascinante review de três livros recentes (Earl 1983; Ford 1983; Kay 1984) que critica a abordagem da escolha feita pela economia neoclássica como um exercício de otimização estreita, o economista matemático John D. Hey (1984, p. 207) concorda com os pontos feitos pelos três críticos, mas não consegue parecer se levar a tolerar seus estilos não formais. Encontrando as partes aplicadas de um dos livros “frustrantemente anedóticas”, ele se pergunta “se isso é inevitável com uma abordagem não-ótima (ou não-neoclássica…). Uma vez que se afastar de uma área de problemas bem definida e uma função objetiva bem definida, parece-se se desviar para a narrativa [storytelling]”. Vistos a partir das vendas dos pressupostos objetivistas, os estudos de caso são meras anedotas e as histórias narrativas são consideradas inferiores aos testes de “funções objetivas bem definidas”.  Veja também Randall (1984).

[26] Isso representa o que foi chamado de aspectos “históricos” e “narrativos” da dimensão interpretativa da explicação. Edmund Ions (1977, pp. 152-153), resumindo as visões de Giambattista Vico, descreve o perigo de excluir a dimensão histórica das ciências humanas:

Ao rejeitar a insistência de Descartes no método dedutivo nos Discours, e sua ênfase concomitante sobre métodos geométricos para a exploração da retórica e da poesia, Vico avançou sua própria abordagem mais profunda para os estudos humanos. O postulado principal foi o papel da imaginação em ordenar o passado e o presente em formas inteligíveis. Para essa tarefa, Vico argumentou, as verdades a priori da matemática são de utilidade limitada. De importância muito maior é um sentido da história, criado pela imaginação histórica; uma tentativa consciente e deliberada de explorar os sentimentos, as volições, as visões, as intuições do conhecimento do homem sobre si mesmo, então permitir que estes joguem com a compreensão humana, em todas as suas contradições, harmonias e desarmonias. Excluir tais reflexões por alguma circunscrição estreita de como o conhecimento chega […] é empobrecer a investigação.

[27] Gadamer (1976, pp. 62-63) observa que “Nós crescemos e nos familiarizamos com os homens e na última análise com nós mesmos quando aprendemos a falar”.

[28] Gadamer (1960, p. 280), como citado e traduzido por Linge (1976, p. xxv).

[29] Veja Gadamer (1960, pp. 443-444). Também linge (1976, pp. xxxii-xxxiii) diz: “A infinidade daquilo que não é dito que é essencial para a linguagem não pode ser reduzida a proposições, ou seja, para o meramente presente, pois cada nova interpretação traz consigo um novo ‘círculo daquilo que não é expresso’”.

[30] Gadamer (1976, p. 88). Este é o aspecto da dimensão interpretativa que eu chamei de “linguístico”.

[31] Veja, por exemplo, o debate em curso entre o ramos anti-equilíbrio e anti-niilistas nos primeiros volumes do Austrian Economics Newsletter.

[32] Ver Hayek (1952;  1967;  1978a;  1978b) e Gray (1984).

[33] O espaço não permite elaborar essas interpretações alternativas do apriorismo de Mises neste artigo.

[34] Mises (1966, p. 50). Durante um semestre no final da Primeira Guerra Mundial, Weber visitou Viena e, escreveu Mises, eles “tornaram-se bons amigos”, (1978, p. 70). Schütz foi um bom amigo de Mises por muitos anos em Nova York e tinha sido um participante regular no seminário privado de Mises em Viena.

[35] Essa visão da complementaridade da teoria e da história eleva a significância do endosso de Mises à Dilthey sobre os métodos apropriados à história.

[36] Mises pode, no entanto, ter colocado as coisas um pouco duramente quando ele chamou a economia matemática de “um método totalmente cruel, partindo de falsas suposições e levando a inferências falaciosas” (1966, p. 350).

[37] Mises toma em vez disso uma posição extrema bem dualista metodológica chamando o método da praxiologia de “totalmente diferente” daqueles da física e biologia (1966, p. 237). No entanto, ele admite alguns paralelos próximos entre a análise do biólogo sobre o que ele chama de “quase-ação”, ou seja, comportamento instintivo, e o estudo do praxiologista sobre a ação humana (1966, pp. 27-28). Veja Hayek (1967) e Polanyi (1958b) para uma posição metodológica mais defensável que poderia ser chamada de dualismo metodológico por grau. Processos fundamentais de persuasão são comuns a todas as ciências, mas variam das menos complexas e mais distantes de nós mesmos na ponta da ciência natural, em direção ao mais complexo e mais próximo de nós mesmos, na ponta da ciência social, com ciências como a biologia ocupando um meio termo.

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