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Breves Comentários sobre a Compatibilidade entre Libertarianismo e Catolicismo Romano

Tempo de Leitura: 6 minutos

Texto autoral

[O texto a seguir é somente a primeira parte, as demais serão postadas nos próximos dias]

“Existe aquele catolicismo que dispôs às suas raízes e suas fontes vivas, e existe aquele catolicismo que se contentou com os manuais”

— Yves Congar

Apresentação

Dentro da questão sobre o libertarianismo, uma das questões mais levantadas é sobre sua possível compatibilidade com a fé católica, a Igreja Católica, diz-se, possui opiniões políticas e econômicas contrastantes demais com as opiniões levantadas pelos autores libertários, sendo, portanto, um desafio ao fiel católico ser um libertário, bem como ao libertário conseguir conciliar sua opinião política com as da Igreja Católica. Todavia, é possível haver um novo horizonte a esse tipo de discussão a partir da quebra de noções errôneas que estão enraizadas dentro desse tipo de discussão. Noções errôneas estas que tangem tanto a compreensão da fé católica quanto a compreensão da teoria libertária. À luz da destruição de tais noções, será possível realizar uma reinterpretação das principais encíclicas políticas da Igreja e uma reexaminação dos principais argumentos utilizados pelos defensores da tese de incompatibilidade entre catolicismo e libertarianismo, levando a uma reconsideração positiva sobre a relação entre libertarianismo e a Igreja Católica.

Introdução

Muito se discute em especial pelos meios da internet acerca de um “libertarianismo católico” ou, posto em outras palavras, da possibilidade de ser libertário e ao mesmo tempo católico. O mais ativo dos lados são aqueles que vão pela opção de dizer que não é possível ser libertário e fazer parte da Igreja Católica, seja como leigo ou como sacerdote. Escrevo o presente texto visando estabelecer algumas visões gerais que parecem carecer dentro da discussão até hoje, carência essa que é em especial fruto de um preconceito nocivo que, para se chegar ao jogo da questão sobre a qual se discute, deve ser deixado de lado.

Dentro das discussões nos diversos portais e até mesmo em mídias mais acadêmicas sobre a questão da compatibilidade entre catolicismo e libertarianismo os principais argumentos levantados pelo lado mais ativo (daqueles que chamarei aqui de antilibertários) estão o levantamento de diversos trechos e citações dos grandes pensadores da Igreja, bem como das encíclicas papais e a relativamente recém-compendiada Doutrina Social da Igreja.

Pois bem, não se pode dizer que aqueles que dizem acreditar na Doutrina Social da Igreja “à risca” sejam anticatólicos, pelo menos em crer nisso. Estariam essas pessoas do “lado certo”? Bem, eles parecem ter grandes pensadores da Igreja, os papas e no minimo muitos santos e quiçá toda uma história da Igreja ao lado deles.

E do outro, o que há são os que possuem uma crença que aparentemente veio a tona nos anos 1950, elaborada por um agnóstico e diretamente baseada em pensadores de pensamento escolas laicas.

De um lado, têm-se declarações que facilmente podem ser tomadas como defesas do intervencionismo do Estado na economia, doutrinas anti-laissez faire e que possuem doutrinas sobre a função do Estado na sociedade e de “limites a liberdade”, são manifestamente contra o “liberalismo” e também condenam o “individualismo”, o laicismo, a liberdade religiosa.

Do outro, há aqueles que defendem estrito laissez-faire, tomam o Estado como um construto agressivo e nocivo para os indivíduos, consideram que o imposto é uma espécie de roubo, que deve-se ter a liberdade de se desassociar do Estado e descendem de tradições liberais e secularistas.

Como, portanto, pode alguém defender as doutrinas enunciadas no parágrafo anterior e ser católico ao mesmo tempo? Se o “pensamento da Igreja Católica” é aquele; e a Igreja é “una”, então não se pode ser católico e libertário.

Não estaria então a discussão resolvida? Não se pode ser católico e libertário e ponto? A discussão parece ser fácil, e os mesmos argumentos do lado antilibertário são repetidos diversas vezes, e muitas vezes são repelidos com relatos pessoais de histórias de como alguém se converteu ou de conversas que se teve com um sacerdote, dentre outros relatos pessoais. As coisas, então, acabam por aí, e a discussão só continua quando os antilibertários, para convencer o outro lado, buscam refutar as teorias libertárias. Pois, afinal, o intelecto segue as suas próprias regras, e para compelir seu deve-se convencê-lo segundos suas regras.

I. Esboço para uma melhor compreensão prévia do Catolicismo

Na vida diversas vezes nos deparamos com dificuldades, de diversos graus e as encaramos de diversos modos. Em discussões em especial, e ainda mais quando se fala em filosofia, um modo comum de tratar problemas que não se conseguiu resolver é muitas vezes o de deixá-lo de lado, muitos são os filósofos que retomam discussões antigas que foram deixadas de lado, que buscam redefinir conceitos, que veem problemas e incompletudes em noções filosóficas tradicionais, há também aqueles que resolvem uma discussão, e que por aí encerram a discussão, estes são aqueles que formam os grandes sistemas, que escrevem os livros explicando sistemas, que buscam criar um sistema fechado em suas premissas e conclusões, irrefutável e completo, estes, muitas vezes, conforme passa a história, são desafiados por aqueles que retomam problemas, que mostram que as coisas não são tão fáceis assim, que tomam o caminho mais difícil pois o contrário para eles seria trair a própria vida.

As dificuldades nos incomodam, dificultam nossa compreensão, obscurecem, o que é no mínimo difícil, em especial para aqueles cujo objetivo é ser claro e limpo, e ainda, concluir seu Sistema em vida. É de se esperar, portanto, que muitas vezes na pressa de se fazer “O Sistema” passe-se por cima de dificuldades ou trapaceia-se na corrida para fazer tal sistema.

É comum entre ambos os grupos em questão, e para muitos em geral, a busca por um “sistema”, seja de filosofia ou de qualquer outra disciplina que responda às suas diversas perguntas, o “sistema” não necessariamente é um livro, pode ser uma escola de pensamento, uma miríade de autores de uma determinada abordagem, uma teoria política e, muitas vezes e infelizmente, de uma religião.

1.

E o primeiro dos preconceitos a serem desbancados aqui é este: o catolicismo não é um “sistema”, escrevo isso sem medo algum: não há um “sistema do catolicismo” sobre o qual se segurar, sobre o qual poder dizer: “paz e segurança”, pois então “sobrevirá uma morte repentina”.

O próprio modo de se discutir sobre o tema da compatibilidade entre catolicismo e libertarianismo, em especial por parte dos antilibertários, parte justamente dessa compreensão errônea sobre o que é a própria religião católica: a Igreja não é “Sistema”, é Caminho. A compreensão da Igreja aqui é de uma Igreja que está imersa na história da humanidade, na vida privada dos fiéis e também na vida pública, em todo esse caminho são encontradas as dificuldades e obstáculos que vemos em toda a história humana pelos quais a Igreja passou, bem como constante discussões e querelas, havendo diversas posições contrastantes e que não são resolvidas simplesmente à base de decretos e carimbos! Os mártires não morreram por um sistema, muito menos por opinião política ou por apoiar ou não o Estado, morreram por sua fé em Deus por meio de cuja Igreja O acessam e a Ela devem o fato de terem tido acesso a revelação dada por Deus aos homens e sua perpetuação na história.

2.

Historicamente, e recentemente depois do Concíclio Vaticano II, a Igreja “abriu-se” e foi vista uma heterogeneidade de opiniões aparentemente nunca antes vista [mentira! Tomem os diversos debates durante toda a Idade Média entre nominalistas, realistas e conceitualistas, os debates acerca do dogma da Imaculada Conceição (concluídos só no século XIX!), a polêmica De Auxilis, entre outros], desafiadora aos proponentes do “sistema do catolicismo”, que, em virtude de serem caudatários de tal ideia grotesca se voltam a outras aberrações como sedevacantismo, sedeprivacionismo e ideias derivadas como o lefebvrismo.

Em matéria de política, em especial hoje, muito se pergunta sobre posicionamentos das autoridades em política: chama-se um de “comunista”, diz-se que “o liberalismo é pecado”, e em meio a toda essa discussão por dentro da Igreja, nenhum é excomungamos. Por incompreensão, acaba-se por caricaturar uma discussão: tomam-se as coisas como garantidas e as interpretações de todo texto, bem como da força doutrinária deles, como sendo uma só e não passível de leituras alternativas e autenticamente católicas — ignora-se a incerteza na discussão ainda em curso –, algo incentivado pela própria Igreja.

Esta é, então, a mais basilar das dificuldades que prejudica a discussão sobre o tema e sobre a qual pode-se fundamentar tanto uma tolerância a noções não libertárias por parte de um católico que se diz libertário (algo essencial) tanto para uma possível compatibilidade entre catolicismo e libertarianismo.

3.

A Igreja não é “Sistema”, se se for ao catolicismo buscando um sistema, não se chega ao catolicismo. Na ambiguidade que acompanha aquele que se converte, o fiel; na ambiguidade que acompanha aquele que peca e se arrepende, aquele vive já preparado para a vinda do Senhor e ao mesmo tempo não sabe se será salvo, aquele que faz preces a Deus e obtém, na ansiedade de uma resposta imediata, somente o silêncio. Este sou eu, talvez você e tenho certeza que vários outros que se dizem católicos. A própria vivência da fé é recheada de crises e de dificuldades, as quais devemos superar num exercício de angústia, para manter-nos na fé. Sendo a própria experiência do cristão em meio a vida e ao mundo algo tão instável como poderia a discussão sobre isso estar tão resolvida?

No final das contas, se a própria descrição de uma vivência na fé é muitas vezes ambigua, múltipla e recheada de “voltas” a estágios anteriores numa reflexão existencial sobre nossa própria fé e sobre nosso lugar em meio a todo esse movimento da vida. A toda essa dificuldade típica da vida, e da qual fugimos ao buscar pelos “sistemas” e pelas respostas definitivas a tudo. Com essa reflexão, incita-se a pergunta: estariam os documentos da Igreja, os santos e papas tão do lado dos antilibertários assim?

O ponto de partida para qualquer discussão acerca de compatibilidade entre catolicismo e libertarianismo, e não somente para essa questão como também para se ter uma compreensão mais essencial do catolicismo, é necessário ter essa mudança de postura em relação a própria discussão sobre o tema. Bem como sobre a própria compreensão do que é catolicismo. A tarefa agora se torna apresentar e esclarecer a noção prévia de libertarianismo, uma que seja suficiente para possibilitar a realização de um confronto com o corpo dogmático da Igreja Católica, ainda não tratado aqui.

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