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Da Propriedade

Tempo de Leitura: 26 minutos

Por Ludwig von Mises

[Este artigo faz parte do livro “Socialismo”, o livro está disponível para download na página “Livros” deste mesmo site e disponível para compra aqui.]

§.1
A Natureza da Propriedade

Considerada como uma categoria sociológica, a propriedade aparece como o poder de usar bens econômicos. Um proprietário é aquele que dispõe de um bem econômico.

Assim, os conceitos sociológicos e jurídicos de propriedade são diferentes. Isso, claro, é natural, e se pode apenas ficar surpreso que o fato é ainda, por vezes, negligenciado. Do ponto de vista sociológico e econômico, propriedade é aquele ter dos bens que os propósitos econômicos dos homens requerem.1 Esse ter pode ser chamado de propriedade original ou natural, como é puramente um relacionamento físico do homem aos bens, independente das relações sociais entre homens ou de uma ordem legal. O significado do conceito legal de propriedade repousa justamente nisso — que ele diferencia entre o físico tem e o legal deveria ter. A Lei reconhece proprietários e possuidores que carecem desse ter natural, proprietários que não têm, mas que deveriam ter. Aos olhos da Lei, “aquele do qual foi roubado” permanece o dono, enquanto o ladrão nunca pode adquirir propriedade. Economicamente, no entanto, só o ter natural é relevante, e a significância econômica do deve-ter legal reside inteiramente no suporte que ele dá à aquisição, à manutenção e à recuperação do ter natural.

Para a Lei, a propriedade é uma instituição uniforme. Não faz diferença se bens de primeira ordem ou bens de ordem superior fazem parte de seu objeto, ou se lida com bens de consumo duráveis ou não duráveis. O formalismo da Lei, divorciado como está de qualquer base econômica, está claramente expresso nesse fato. É claro, a Lei não pode se isolar completamente das diferenças econômicas que lhe possam ser relevantes. A peculiaridade da terra como meio de produção é precisamente aquilo que condiciona uma posição especial à propriedade do solo e da terra no Direito. Tais diferenças econômicas são expressas, mais claramente do que na lei da propriedade em si, nos relacionamentos que são sociologicamente equivalentes à propriedade, mas juridicamente apenas aliados a isso apenas, por exemplo, em servidões e, especialmente, no usufruto. Mas, em geral, na Lei, a igualdade formal supre as diferenças materiais.

Considerada economicamente, a propriedade, de nenhuma maneira, é uniforme. A propriedade sobre os bens de consumo e a propriedade sobre os bens de produção diferem em muitos aspectos e, em ambos os casos, novamente, precisamos distinguir entre bens duráveis e bens não-duráveis.

Bens de primeira ordem, os bens de consumo, servem a satisfação imediata das necessidades. Na medida em que são bens que se esgotam, bens, isto é, que em sua natureza podem ser utilizados apenas uma vez e que perdem sua qualidade como bens quando são utilizados, o significado da propriedade reside praticamente na possibilidade de consumi-los. O proprietário também pode permitir que seus bens estraguem sem que goze deles ou mesmo permitir que sejam destruídos intencionalmente, ou dá-los em troca ou até dá-los de graça. Em todos os casos, ele dispõe de seu uso, que não pode ser dividido.

A questão é um pouco diferente com os bens de uso duradouro, aqueles bens de consumo que podem ser usados mais de uma vez. Eles podem servir a várias pessoas sucessivamente. Aqui, novamente, devem ser considerados proprietários, no sentido econômico, os que podem empregar para seus próprios propósitos os usos proporcionados pelos bens. Nesse sentido, o dono de um cômodo é aquele que o habita no momento em questão; os donos do Matterhorn, na medida em que faz parte de um parque natural, são aqueles que nele pisam para desfrutar da paisagem; os proprietários de uma fotografia são aqueles que estão aproveitando de sua vista.2 O ter dos usos que esses bens fornecem é divisível, de modo que a propriedade natural deles é divisível também.

Os bens de produção servem ao desfrutar apenas indiretamente. Eles são empregados na produção de bens de consumo. Bens de consumo emergem finalmente a partir da combinação bem-sucedida de bens de produção e trabalho. É a capacidade de servir assim, indiretamente, para a satisfação de necessidades que qualificam uma coisa como um bem de produção. Dispor de bens de produção é -los naturalmente.

O ter dos bens de produção é de significado econômico apenas em virtude de, e na medida em que, conduz finalmente a um ter dos bens de consumo.

Os bens a serem usados-inteiramente, que estão prontos para o consumo, podem ser tidos apenas uma vez — pela pessoa que os consome. Bens de uso duradouro, que estão prontos para o consumo, podem ser tidos, em sucessão temporal, por certo número de pessoas; mas o uso simultâneo perturbará o desfrutar dos outros, embora esse desfrutar não seja totalmente excluído pela própria natureza da mercadoria. Várias pessoas podem olhar simultaneamente para uma imagem, mesmo que a proximidade de outras, que talvez a afastem do ponto de vista mais favorável, possa perturbar o desfrutar de um indivíduo qualquer do grupo; mas um sapato não pode ser calçado simultaneamente por duas pessoas. No caso dos bens de consumo, o ter que leva à satisfação dos quereres através dos bens não pode ser mais dividido do que podem os usos que surgem dos bens. Isso significa que, com bens a serem usados-inteiramente, a propriedade natural por um indivíduo exclui completamente a propriedade por todos os outros, enquanto com bens duráveis a propriedade é exclusiva pelo menos em um dado ponto do tempo e mesmo em relação ao menor uso que daí decorre. Para os bens de consumo, qualquer relação economicamente significativa que não seja a de ter natural pelos indivíduos é impensável. Como bens a serem usados-inteiramente absolutamente e como bens duráveis, pelo menos à extensão do menor uso decorrente deles, eles podem estar na propriedade natural de apenas uma pessoa. A propriedade aqui também é propriedade privada, no sentido de que priva outros das vantagens que dependem do direito de dispor dos bens.

Por essa razão, também, seria bastante absurdo pensar em retirar ou mesmo reformar a propriedade nos bens de consumo. Seria impossível em qualquer forma alterar o fato de que uma maçã que é desfrutada é usada-inteiramente e que um sapato está gasto enquanto calçado. No sentido natural, os bens de consumo não podem ser propriedade conjunta de vários ou propriedade comum de todos. No caso dos bens de consumo, o que usualmente se chama de propriedade conjunta tem de ser compartilhado antes do consumo. A propriedade conjunta cessa no momento em que uma mercadoria é usada-inteiramente ou empregada. O ter do consumidor precisa ser exclusivo.

A propriedade conjunta nunca pode ser mais do que uma base para a apropriação dos bens a partir de um estoque comum. Cada parceiro individual é proprietário daquela parte do estoque total que pode usar para si mesmo. Se ele já é proprietário legalmente, ou proprietário apenas através da divisão do estoque, ou se ele se torna proprietário legal, e se uma divisão formal do estoque precede ou não o consumo — nenhuma dessas questões é economicamente material. O fato é que mesmo sem divisão ele é dono de seu tanto.

A propriedade conjunta não pode abolir a propriedade nos bens de consumo. Só se pode distribuir a propriedade de tal forma que de outra maneira não existiria. A propriedade conjunta se restringe, como todas as outras reformas que se limitam aos bens de consumo, a efetuar uma distribuição diferente do estoque existente de bens de consumo. Quando esse estoque se esgota, seu trabalho está feito. Não é possível reabastecer os depósitos vazios. Somente aqueles que dirigem a disposição dos bens de produção e trabalho podem fazer isso. Se não ficarem satisfeitos com o que lhes é oferecido, cessa o fluxo de bens que deve repor os estoques. Portanto, qualquer tentativa de alterar a distribuição dos bens de consumo precisa, em última instância, depender do poder de dispor dos meios de produção.

O ter dos bens de produção, ao contrário dos bens de consumo, pode ser dividido no sentido natural. Sob condições da produção isolada, as condições da partilha do ter dos bens de produção são iguais às condições de partilha dos bens de consumo. Onde não há divisão do trabalho, o ter dos bens só pode ser compartilhado se for possível compartilhar os serviços por eles prestados. O ter de bens de produção não duráveis não pode ser compartilhado. O ter dos bens de produção duráveis pode ser repartido de acordo com a divisibilidade dos serviços que eles prestam. Apenas uma pessoa pode ter uma dada quantidade de grãos, mas várias podem ter um martelo sucessivamente; um rio pode impulsionar mais de uma roda d’água. Até o momento, não há peculiaridade sobre o ter dos bens de produção. Mas no caso da produção com divisão do trabalho há um ter duplo de tais bens. Aqui, de fato, o ter é sempre duplo: existe um ter físico (direto) e um ter social (indireto). O ter físico é daquele que detém a mercadoria fisicamente e a usa produtivamente; o ter social pertence àquele que, incapaz de dispor física ou legalmente da mercadoria, ainda pode dispor indiretamente dos efeitos de seu uso, isto é, aquele que pode trocar-em-escambo ou comprar seus produtos ou os serviços por ela prestados. Nesse sentido, a propriedade natural, em uma sociedade que divide o trabalho é compartilhada entre o produtor e aqueles cujas necessidades ele produz. O fazendeiro que vive autossuficiente fora da sociedade de troca pode chamar de seus os campos, o arado, os animais de tração, no sentido de que servem apenas a ele. Mas, o agricultor cuja empresa se preocupa com o comércio, que produz para e compra no mercado, é o proprietário dos meios de produção em um sentido bem diferente. Ele não controla a produção como o camponês autossuficiente. Ele não decide o propósito de sua produção; aqueles para quem ele trabalha decidem — os consumidores. Eles, não o produtor, determinam o objetivo da atividade econômica. O produtor apenas direciona a produção rumo à meta estabelecida pelos consumidores.

Mas proprietários adicionais dos meios de produção são incapazes, nessas condições, de colocar seus teres físicos diretamente a serviço da produção. Uma vez que toda a produção consiste em combinar os vários meios de produção, alguns dos proprietários de tais meios precisam transmitir a sua propriedade natural a outros, para que estes possam por em operação as combinações das quais a produção consiste. Proprietários de capital, terra e trabalho colocam esses fatores à disposição do empreendedor, que assume a direção imediata da produção. Os empreendedores, mais uma vez, conduzem a produção de acordo com a direção estabelecida pelos consumidores, que não são outros senão os donos dos meios de produção: donos do capital, da terra e do trabalho. Do produto, no entanto, cada fator recebe a parcela a que ele é economicamente intitulado, de acordo com o valor de sua contribuição produtiva na produção.

Em essência, portanto, a propriedade natural dos bens de produção é muito diferente da propriedade natural dos bens de consumo. Para ter bens de produção no sentido econômico, isto é, fazer com que sirvam aos próprios propósitos econômicos de alguém, não é necessário tê-los fisicamente da mesma forma que se deve ter bens de consumo se é para os usar-inteiramente ou para usá-los de forma duradoura. Para beber café, não preciso ser dono de uma plantação de café no Brasil, um vaporizador oceânico e uma torrefação de café, embora todos esses meios de produção precisem ser usados ​​para trazer uma xícara de café para minha mesa. É suficiente que outros sejam donos desses meios de produção e os empreguem para mim. Na sociedade que divide o trabalho ninguém é proprietário exclusivo dos meios de produção, seja das coisas materiais ou do elemento pessoal, a capacidade de trabalho. Todos os meios de produção prestam serviços a todos que compram ou vendem no mercado. Portanto, se não estamos inclinados a falar de propriedade como compartilhada entre consumidores e proprietários dos meios de produção, devemos considerar os consumidores como os verdadeiros proprietários no sentido natural e descrever aqueles que são considerados proprietários no sentido legal, como administradores de propriedades de outras pessoas.3 Isso, no entanto, nos levaria muito longe do significado aceito das palavras. Para evitar interpretações errôneas, é desejável administrar, tanto quanto possível, sem palavras novas e nunca empregar, em um sentido totalmente diferente, palavras habitualmente aceitas para transmitir uma ideia particular. Portanto, renunciando a qualquer terminologia, apenas sublinhemos mais uma vez que a essência da propriedade dos meios de produção numa sociedade que divide o trabalho é diferente daquela encontrada onde a divisão do trabalho não ocorre; e que difere essencialmente da propriedade de bens de consumo em qualquer ordem econômica. Para evitar qualquer mal-entendido, usaremos doravante as palavras “propriedade dos meios de produção” no sentido geralmente aceito, ou seja, para significar o poder imediato de disposição.

§.2
Violência e Contrato

A posse física dos bens econômicos, que considerada economicamente constitui a essência da propriedade natural, só pode ser concebida como originada pela Apropriação. Visto que a propriedade não é um fato independente da vontade e ação do homem, é impossível ver como ela poderia ter começado, exceto com a apropriação de bens sem dono. Em virtude do fato que a posse continua, desde que seu objeto não desapareça, até que seja cedida voluntariamente ou que o objeto seja retirado forçadamente do proprietário contra a sua vontade. A primeira acontece quando o proprietário cede voluntariamente sua propriedade; a última quando ele a perde involuntariamente — por exemplo, quando o gado se perde na selva — ou quando alguma outra pessoa toma à força a propriedade dele.

Toda propriedade deriva ou da ocupação ou da violência. Quando consideramos os componentes naturais dos bens, além do trabalho que esses contêm, e quando regredimos na história do título legal, devemos necessariamente chegar a um ponto em que esse título se originou da apropriação de bens acessíveis a todos. Ou, ao invés disso, podemos encontrar uma expropriação forçada de um predecessor cuja propriedade, podemos, por sua vez, remontar a uma apropriação anterior ou roubo. Que todos os direitos presentes de uma dada sociedade possam vir a derivar da violência, toda a propriedade possa vir tanto da apropriação quanto do roubo, podemos admitir livremente àqueles que se opõem à propriedade por motivos de lei natural. Mas, isso não oferece a menor prova de que a abolição da propriedade em si é necessária, aconselhável ou moralmente justificada.

A propriedade natural não precisa contar com o reconhecimento pelos semelhantes dos proprietários. É tolerada, de fato, apenas enquanto não há poder para perturbá-lo e ela não sobrevive ao momento em que um homem mais forte venha a aproveitá-lo para si mesmo. Criado pela força arbitrária, deve sempre temer uma força mais poderosa. Esta doutrina da lei natural começou a guerra de todos contra todos. A guerra termina quando a relação real é reconhecida como digna de ser mantida. Da violência surge a lei.

A doutrina da lei natural errou ao considerar esta grande mudança, que eleva o homem do estado de bruta à sociedade humana, como um processo consciente; como uma ação, isto é, na qual o homem está completamente ciente de seus motivos, de seus objetivos e de como persegui-los. Assim, foi suposto ter sido celebrado o contrato social pelo qual passou a existir o Estado e a comunidade, a ordem jurídica. O racionalismo não conseguiu encontrar outra explicação possível depois de se desfazer da velha crença que remontava às instituições sociais como oriundas fontes divinas ou, pelo menos, ao esclarecimento que chegou ao homem por inspiração divina.4 Por ter levado às condições presentes, as pessoas consideraram o desenvolvimento da vida social como absolutamente intencional e racional; como então esse desenvolvimento poderia ter ocorrido, exceto por escolha consciente em reconhecimento do fato de que foi proposital e racional? Hoje temos outras teorias para explicar o assunto. Falamos de seleção natural na luta pela existência e da herança de características adquiridas, embora tudo isso, de fato, não nos aproxime mais de uma compreensão dos enigmas definitivos do que o teólogo ou o racionalista. Podemos explicar o nascimento e o desenvolvimento das instituições sociais dizendo que elas foram úteis na luta pela existência, dizendo que aqueles que as aceitaram e melhor as desenvolveram estavam mais bem equipados contra os perigos da vida do que aqueles que eram retrógrados a esse respeito. Mostrar como essa explicação é insatisfatória hoje em dia seria trazer corujas a Atenas. O tempo em que nos satisfez e em que o propusemos como solução final para todos os problemas do ser e do devir já passou. Não nos leva além da teologia ou do racionalismo. Este é o ponto em que as ciências individuais se fundem, em que começam os grandes problemas da filosofia — em que termina toda a nossa sabedoria.

Na verdade, nenhum grande insight é necessário para mostrar que o Direito e o Estado não podem ser rastreados até os contratos. É desnecessário recorrer ao aparelho erudito da escola histórica para mostrar que nenhum contrato social pode ser estabelecido em qualquer lugar da história. A ciência realista foi, sem dúvida, superior ao Racionalismo dos séculos XVII e XVIII no conhecimento que pode ser obtido a partir de pergaminhos e inscrições, mas na visão sociológica ficou muito para trás. Pois, por mais que possamos reprovar uma filosofia social do Racionalismo, não podemos negar que ela fez um trabalho imperecível ao nos mostrar os efeitos das instituições sociais. A ela devemos sobretudo o nosso primeiro conhecimento do significado funcional da ordem jurídica e do Estado.

A ação econômica exige condições estáveis. O extenso e demorado processo de produção é tanto mais bem-sucedido quanto maiores são os períodos de tempo aos quais está adaptado. Exige continuidade, e essa continuidade não pode ser perturbada sem as mais sérias desvantagens. Isso significa que a ação econômica requer paz, a exclusão da violência. A paz, diz o racionalista, é o objetivo e o propósito de todas as instituições jurídicas; mas afirmamos que a paz é seu resultado, sua função.5 Direito, diz o racionalista, surgiu de contratos; dizemos que a Lei é um acordo, o fim da contenda, uma forma de evitar a contenda. Violência e Direito, Guerra e Paz, são os dois polos da vida social; mas seu conteúdo é a ação econômica direta, diz o racionalista, surgiu de contratos; dizemos que a Lei é um acordo, o fim da contenda, uma forma de evitar a contenda. Violência e Direito, Guerra e Paz, são os dois polos da vida social; mas seu conteúdo é a ação econômica.

Toda violência visa a propriedade de terceiros. A pessoa — vida e saúde — é objeto de ataque apenas na medida em que impede a aquisição de bens. (Excessos sádicos, atos sangrentos que são cometidos por causa da crueldade e nada mais, são ocorrências excepcionais. Para evitá-los não se requer um sistema legal. Hoje o médico, não o juiz, é considerado como sendo antagonista adequado.) Assim, não é por acaso que é precisamente na defesa da propriedade que o Direito revela mais claramente o seu caráter pacificador. No sistema duplo de proteção concedido ao ter, na distinção entre propriedade e posse, é vista mais vividamente a essência da lei como pacificadora — sim, pacificadora a qualquer preço. A posse é protegida embora não seja, como dizem os juristas, nenhum título. Não apenas honesto, mas mesmo desonestos possuidores, até mesmo ladrões e assaltantes podem visar a proteção para sua posse. 6

Alguns acreditam que a propriedade, conforme se mostra na distribuição da propriedade em um determinado momento, pode ser atacada ao apontar que surgiu ilegalmente de aquisição arbitrária e roubo violento. De acordo com essa visão, todos os direitos legais nada mais são do que ilegalidade consagrada pelo tempo. Portanto, uma vez que entra em conflito com a ideia eterna e imutável de justiça, a ordem jurídica existente deve ser abolida e, em seu lugar, um novo conjunto deve se conformar com essa ideia de justiça. Não deveria ser tarefa do Estado “considerar apenas a condição de posse em que encontra seus cidadãos, sem inquirir sobre os fundamentos legais da aquisição”. Em vez disso, é “a missão do Estado primeiro dar a cada um o que é seu, primeiro colocá-lo em sua propriedade, e só então protegê-lo nela”.7 Neste caso, ou se postula uma ideia eternamente válida de justiça que é dever do Estado reconhecer e realizar; ou então encontra-se a origem do verdadeiro Direito, bem no sentido da teoria do contrato, no contrato social, contrato esse que só pode surgir pelo acordo unânime de todos os indivíduos que nele se despojam de uma parte de seus direitos naturais. Na base de ambas as hipóteses está a lei natural, do “direito que nasceu conosco”. Devemos nos conduzir de acordo com ele, diz o primeiro; ao nos despojarmos dele de acordo com as condições do contrato, surge o sistema jurídico existente, diz o último. Quanto à fonte da justiça absoluta, isso é explicado de maneiras diferentes. De acordo com um ponto de vista, foi o presente da Providência à Humanidade. De acordo com outro, o Homem o criou com sua Razão. Mas, ambos concordam que a habilidade do homem de distinguir entre a justiça e a injustiça é precisamente o que o distingue do animal; que esta é sua “natureza moral”.

Hoje não podemos mais aceitar essas visões, pois os pressupostos com os quais abordamos o problema mudaram. Para nós, a ideia de uma natureza humana que difere fundamentalmente da natureza de todas as outras criaturas vivas parece estranha; na verdade, não pensamos mais no homem como um ser que acalentou uma ideia de justiça desde o início. Mas, se, talvez, não oferecemos nenhuma resposta à questão de como surgiu o Direito, ainda devemos deixar claro que ele não poderia ter surgido legalmente. A lei não pode ter se gerado por si mesma. Sua origem está para além da esfera jurídica. Ao reclamar que o Direito nada mais é do que uma injustiça legalizada, não se percebe que só poderia ser de outra forma se ele existisse desde o início. Se é suposto que tenha surgido em algum momento, então aquilo que naquele momento se tornou lei não poderia ter sido lei antes. Exigir que o Direito tivesse surgido legalmente é exigir o impossível. Quem o faz aplica a algo fora da ordem jurídica um conceito válido apenas dentro da ordem.

Nós, que vemos apenas o efeito da Lei — que é fazer a paz — devemos perceber que ela não poderia ter se originado a não ser por meio do reconhecimento do estado de coisas existente, independentemente de como isso tenha surgido. As tentativas de fazer o contrário teriam renovado e perpetuado a luta. A paz só pode ocorrer quando protegemos um estado de coisas momentâneo de distúrbios violentos e fazemos todas as mudanças futuras dependerem do consentimento da pessoa envolvida. Este é o significado real da proteção dos direitos existentes, que constituem o núcleo de todo direito.

A lei não entrou na vida como algo perfeito e completo. Por milhares de anos, ela cresceu e ainda está crescendo. A idade de sua maturidade — a era da paz inexpugnável — pode nunca chegar. Em vão os Sistemáticos da Lei procuraram dogmaticamente manter a divisão entre direito público e privado que a doutrina tem transmitido a nós e que na prática eles acham que não podemos prescindir. O fracasso dessas tentativas — que de fato tem levado muitos a abandonar a distinção — não deve nos surpreender. A divisão não é, de fato, dogmática; o sistema do Direito é uniforme e não pode compreendê-la. A divisão é histórica, resultado da evolução gradual e concretização da ideia de Direito. A ideia da Lei é realizada em primeiro lugar na esfera em que a manutenção da paz é mais urgentemente necessária para assegurar a continuidade econômica — ou seja, nas relações entre os indivíduos. Somente com o desenvolvimento da civilização que nasce nesta fundação a manutenção da paz em uma esfera mais avançada torna-se essencial. Este propósito é atendido pelo Direito Público. Não difere formalmente do Direito Privado. Mas, é sentido como algo diferente. Isso porque só mais tarde atinge o desenvolvimento anteriormente conferido ao Direito Privado8. No Direito Público a proteção dos direitos existentes ainda não está tão fortemente desenvolvida como no Direito Privado. Exteriormente, a imaturidade do Direito Público pode ser mais facilmente reconhecida, talvez pelo fato de ter ficado para trás na sistematização do Direito Privado. Direito internacional é ainda mais desagradável. As relações entre as nações ainda reconhecem a violência arbitrária como uma solução permissível sob certas condições, ao passo que, no terreno restante regulamentado pelo Direito Público, a violência arbitrária na forma de revolução permanece, mesmo que não efetivamente suprimida, fora da lei. No domínio do Direito Privado, esta violência é totalmente ilegal, exceto como um ato de defesa quando é permitida em circunstâncias excepcionais como um gesto de proteção legal.

O fato de o que se tornou Direito ser outrora injusto ou, mais precisamente, juridicamente indiferente, não é um defeito da ordem jurídica. Quem tenta justificar jurídica ou moralmente a ordem jurídica pode sentir que assim é. Mas, estabelecer esse fato de forma alguma prova que seja necessário ou útil abolir ou alterar o sistema de propriedade. Forçar esse ponto para demonstrar a partir deste fato de que as demandas para a abolição da propriedade são legais seria absurdo.

§.3
A teoria da violência e a teoria do contrato

É apenas lentamente e com dificuldade que a ideia de Lei triunfa. Só lentamente e com dificuldade ela rebate o princípio da violência. Vez a vez existem reações; vez a vez a história do Direito deve começar mais uma vez de seu início. Dos antigos alemães, Tácito relata: “Pigrum quin immo et iners videtur sudore adquirere quod possis sanguine parare.”9 Existe uma grande distância desta visão para os pontos de vista que vieram a dominar a vida econômica moderna.

Esse contraste de visões transcende os problemas de propriedade e abrange toda a nossa atitude em relação à vida. É o contraste entre a forma feudal e uma forma burguesa do pensamento. A primeira se expressa na poesia romântica, cuja beleza nos encanta, embora sua visão da vida só possa nos levar de passagem e enquanto a impressão da poesia é fresca.10 O segundo é desenvolvido na filosofia social liberal em um grande sistema, na construção do qual as melhores mentes de todas as idades têm colaborado. Sua grandeza é refletida na literatura clássica. No liberalismo, a humanidade se torna consciente dos poderes que orientam seu desenvolvimento. As trevas que cobrem os caminhos da história retrocedem. O homem começa a compreender a vida social e permite que ela se desenvolva de forma consciente. A visão feudal não alcançou uma sistematização igualmente fechada. Era impossível cogitar, até sua conclusão lógica, a teoria da violência. Tente perceber completamente o princípio da violência, mesmo que apenas em pensamento, e seu caráter antissocial será desmascarado. Ela leva ao caos, à guerra de todos contra todos. Nenhum sofisma pode escapar disso. Todas as teorias sociais antiliberais precisam, necessariamente, permanecer fragmentadas ou chegar às conclusões mais absurdas. Quando acusam o liberalismo de considerar apenas o que é terreno, de negligenciar, em prol das lutas mesquinhas da vida diária, as coisas superiores da vida, eles estão apenas abrindo a fechadura de uma porta aberta. Pois o liberalismo nunca pretendeu ser mais do que uma filosofia de vida terrena. O que ela ensina diz respeito apenas à ação terrena e à desistência de agir. Ela nunca pretendeu desvendar o último ou o maior segredo do Homem. Os ensinamentos antiliberais prometem tudo. Eles prometem felicidade e paz espiritual, como se o homem pudesse ser abençoado pr fora. Só uma coisa é certa: sob seu sistema social ideal, a oferta de mercadorias diminuiria consideravelmente. Quanto ao valor do que é oferecido em compensação, as opiniões, no mínimo, estão divididas.11

O último recurso dos críticos do ideal liberal de sociedade é tentar destruí-lo com as armas que ele mesmo fornece. Eles procuram provar que serve e deseja servir apenas aos interesses de classes individuais; que a paz que busca favorece apenas um círculo restrito e é prejudicial a todos os demais. Mesmo a ordem social, alcançada no estado moderno constitucional, é baseada na violência. Os contratos livres em que pretende descansar são, na verdade, dizem eles, apenas as condições de uma paz ditada pelos vencedores aos vencidos, sendo os termos válidos enquanto durar o poder de que brotaram, e não mais. Toda propriedade é baseada na violência e mantida pela violência. Os trabalhadores livres da sociedade liberal nada mais são do que os não-livres dos tempos feudais. O empresário os explora como um senhor feudal explorava seus servos, como um fazendeiro explorava seus escravos. O fato de que tais e semelhantes objeções possam ser feitas e acreditadas mostrará até que ponto o entendimento das teorias liberais decaiu. Mas, essas objeções de forma alguma expiam a ausência de uma teoria sistemática para o movimento contra o liberalismo.

A concepção liberal da vida social criou o sistema econômico baseado na divisão do trabalho. A expressão mais óbvia da economia de trocas é o assentamento urbano, o que só é possível em tal economia. Nas cidades, a doutrina liberal foi desenvolvida em um sistema fechado e é aqui que ela encontrou a maioria dos seus defensores. Mas, quanto mais rápido crescia a riqueza e quanto mais numerosos eram os imigrantes do campo para as cidades, mais fortes se tornavam os ataques que o liberalismo sofria por causa do princípio da violência. Os imigrantes logo encontram seu lugar na vida urbana, logo adotam, externamente, os modos e as opiniões da cidade, mas por muito tempo permanecem alheios ao pensamento cívico. Não se pode fazer uma filosofia social tão facilmente quanto um novo traje. Ela deve ser conquistada — ganha com o esforço de pensamento. Assim, descobrimos, repetidamente na história, que épocas de crescimento fortemente progressivo do mundo liberal do pensamento, quando a riqueza aumenta com o desenvolvimento da divisão do trabalho, alternam-se com épocas em que o princípio da violência tenta ganhar a supremacia e então a riqueza diminui porque a divisão do trabalho decai. O crescimento das cidades e da vida urbana foi rápido demais. Foi mais extenso do que intensivo. Os novos habitantes das cidades haviam se tornado cidadãos superficialmente, mas não em termos de pensamento. E assim, com sua ascensão, o sentimento cívico declinou. Sobre esta rocha todas as épocas culturais repletas do espírito burguês do liberalismo foram à ruína; sobre esta rocha também nossa própria cultura burguesa, a mais maravilhosa da história, parece estar em ruínas. Mais ameaçadores do que os bárbaros atacando as paredes de fora são os cidadãos de aparências dentro — aqueles que são cidadãos em gestos, mas não em pensamento.

As gerações recentes testemunharam um poderoso renascimento do princípio da violência. O imperialismo moderno, cujo desfecho foi a Guerra Mundial com todas as suas terríveis consequências, desenvolve as velhas ideias dos defensores do princípio da violência sob uma nova máscara. Mas, é claro que nem mesmo o imperialismo foi capaz de colocar em oposição à teoria liberal um sistema próprio completo. Que a teoria segundo a qual a luta é a força motriz do crescimento da sociedade deva de alguma forma levar a uma teoria da cooperação está fora de questão — embora toda teoria social deva ser uma teoria da cooperação. A teoria do imperialismo moderno é caracterizada pelo uso de certas expressões científicas, como a doutrina da luta pela existência e o conceito de raça. Com eles, foi possível cunhar uma infinidade de slogans, que se mostraram eficazes para a propaganda, mas para nada mais. Todas as ideias apresentadas pelo imperialismo moderno há muito foram explodidas pelo liberalismo como falsas doutrinas.

Talvez o mais forte dos argumentos imperialistas seja aquele que deriva de uma concepção totalmente errônea da essência da propriedade dos meios de produção em uma sociedade baseada na divisão do trabalho. A relação tem como uma de suas tarefas mais importantes a disposição da nação com suas próprias minas de carvão, fontes próprias de matérias-primas, navios próprios, portos próprios. É claro que tal argumento procede a partir da visão de que a propriedade natural nestes meios de produção é indivisível, e que somente aproveitam-se benefícios que surjam a partir deles aqueles que os tem fisicamente. Essa argumentação não percebe que esta visão conduz logicamente a doutrina socialista sobre o caráter da propriedade dos meios de produção. Pois, se é errado que os alemães não possuam suas próprias plantações alemãs de algodão, por que deveria ser certo que cada alemão não possua sua mina de carvão, sua fiação? Um alemão pode chamar mais de sua uma mina de minério de ferro da Lorena quando um cidadão alemão de outra região a possui do que quando um cidadão francês a possui?

Então, agora, o imperialista concorda com o socialista na crítica da propriedade burguesa. Mas, o socialista tentou conceber um sistema fechado de uma ordem social futura, e isso o imperialista não pôde fazer.

§.4
Propriedade Coletiva dos Meios de Produção

As primeiras tentativas de reformar a propriedade podem ser descritas precisamente como tentativas de alcançar a maior igualdade possível na distribuição de riqueza, alegando ou não serem guiadas por considerações de utilidade social ou justiça social. Todos devem possuir um certo mínimo, mas não mais que um certo máximo. Todos devem possuir aproximadamente a mesma quantidade — isso era, grosseiramente, o objetivo. Os meios para esse fim não eram sempre os mesmos. O confisco de toda ou parte da propriedade era geralmente proposto, seguido pela distribuição. Um mundo povoado apenas por agricultores autossuficientes, deixando espaço para no máximo alguns artesãos — essa seria a sociedade ideal para qual cada um se empenhava. Mas, hoje nós não precisamos nos preocupar com todas essas propostas. Elas se tornaram impraticáveis numa economia de divisão do trabalho. Uma ferrovia, uma laminadora e uma fábrica de máquinas não podem ser distribuídas. Se essas ideias tivessem sido colocadas em prática séculos ou milênios atrás, nós estaríamos até hoje no mesmo nível de desenvolvimento econômico que estávamos na época — ao menos que, é claro, nós não tivéssemos mergulhado de volta a um estado dificilmente distinguível daquele dos bárbaros. A terra poderia sustentar apenas uma pequena fração da multidão que ela alimenta hoje e todos seriam muito menos adequadamente providos do que estamos hoje, menos ainda que o mais pobre membro de um estado industrial. Nossa civilização perdura no fato que os homens sempre conseguiram repelir o ataque dos redistributivistas. Mas, a ideia da redistribuição ainda goza de muita popularidade, mesmo nos países industriais. Nos países onde a agricultura predomina, a doutrina é chamada, não apropriadamente, de socialismo Agrário, e é a finalidade última dos movimentos de reforma social. Ele era a base principal da grande Revolução Russa, que contra sua vontade temporariamente tornou seus líderes revolucionários, originalmente marxistas, nos protagonistas do seu ideal. Ele pode triunfar no resto do mundo e, em um curto período, destruirá a cultura que um esforço de milênios construiu. Por tudo isso, deixe-me repetir, uma única crítica a mais que seja é supérflua. As opiniões no assunto não estão divididas. Quase não é necessário provar hoje que é impossível se basear num “comunismo de fazenda” como uma organização social capaz de sustentar as centenas de milhões de pessoas de raça branca.

Um novo ideal social há muito tempo suplantou o ingênuo fanatismo pela igualdade dos distribuidores, e agora não mais a distribuição, mas a propriedade coletiva é o lema do socialismo. Abolir a propriedade privada dos meios de produção, tornar os meios de produção em propriedades da comunidade, esse é o objetivo do socialismo.

Na sua mais forte e pura forma, a ideia socialista não tem mais nada em comum com o ideal de redistribuição. É igualmente distante da concepção nebulosa do conceito de propriedade coletiva dos meios de consumo. O objetivo é tornar possível para todos uma existência adequada. Mas, ela não é vulgar a ponto de acreditar que isso pode ser alcançado pela destruição do sistema social de divisão do trabalho. É verdade, a antipatia pelo mercado, que caracteriza os entusiastas da redistribuição permanece; mas o socialismo busca abolir o comércio em vez de abolir a divisão do trabalho e retornar à autarquia da economia familiarou pelo menos a organização de trocas mais simples do distrito de autossuficiência agrícola.

Tal ideia socialista não poderia ter surgido antes da propriedade privada dos meios de produção ter assumido o papel que possui na sociedade de divisão do trabalho. A inter-relação de unidades produtivas distintas deve chegar a um ponto em que a produção para demanda externa seja a regra antes que a ideia de propriedade coletiva dos meios de produção assuma sua forma definitiva. As ideias socialistas não puderam ser claras até que a filosofia social liberal tivesse revelado o caráter da produção social. Nesse sentido, o socialismo pode ser considerado como uma consequência da filosofia liberal.

Qualquer que seja a nossa visão acerca de sua utilidade ou viabilidade, deve ser admitido que a ideia do socialismo é ao mesmo tempo grandiosa e simples. Até mesmo seus adversários mais determinados não poderão negá-la um exame detalhado. Podemos dizer, de fato, que é uma das mais ambiciosas criações do espírito humano. A tentativa de erguer a sociedade em uma nova base enquanto quebra com todas as formas de organização social tradicionais, conceber um novo plano mundial e prever a forma com que todas as relações humanas devem assumir no futuro, — isso é tão magnífico, tão audacioso, que tem justamente despertado a maior das admirações. Se desejarmos salvar o mundo da barbárie, não temos que conquistar o socialismo, mas não podemos dispensá-lo de forma descuidada.

§.5
Teorias de Evolução da Propriedade

É um velho truque dos inovadores políticos descrever o que eles buscam realizar como Antigo e Natural, como algo que tenha existido desde o início e que tem se perdido apenas pelos contratempos do desenvolvimento histórico; a humanidade, eles dizem, deve retornar para este estado de coisas e reviver a Era de Ouro. Dessa forma, a lei natural explicava os direitos demandados pelo indivíduo como inatos, direitos inalienáveis concedidos a ele pela Natureza. Isso não seria uma questão de inovação, mas de restauração dos “direitos eternos advindos de cima, inextinguíveis como as próprias estrelas”. Da mesma forma a Utopia romântica da propriedade coletiva dos meios de produção como uma instituição de uma antiguidade longínqua surgiu. Quase todos os povos tiveram esse sonho. Na Roma Antiga foi a lenda da Era Dourada de Saturno, descrita fabulosamente por Virgílio, Tibulo, e Ovídio, e elogiado por Sêneca.12 Esses eram dias despreocupados e felizes quando ninguém possuía propriedade privada e todos prosperavam com a doação generosa da Natureza.13 O socialismo moderno, é claro, imagina-se além de tal simplicidade infantil, mas seus sonhos pouco se diferenciam daqueles dos Romanos Imperiais.

A doutrina liberal enfatizou o papel da propriedade privada dos meios de produção na evolução da civilização. O socialismo pode ter se contentado em negar a utilidade de manter a instituição da propriedade privada, sem negar, ao mesmo tempo, a utilidade da propriedade no passado. O marxismo certamente a faz representando as épocas de produção simples e capitalistas como estágios necessários no desenvolvimento da sociedade. Por outro lado, ele se junta a outras doutrinas socialistas ao condenar com elevada indignação toda propriedade privada que tenha surgido no curso da história. Era uma vez os bons tempos quando a propriedade privada não existia; esses bons tempos retornarão quando não houver mais propriedade privada.

Para que tal visão pareça plausível, a jovem ciência da História Econômica teve de fornecer uma fundamentação das suas provas. Uma teoria demonstrando a antiguidade do sistema comum de terras foi construída. Havia uma época, dizia-se, em que toda a terra era de propriedade comum entre todos os membros da tribo. No início, todos a usaram comunitariamente; apenas depois, enquanto a propriedade coletiva ainda era mantida, os campos foram distribuídos aos membros individuais para seu uso independente. Mas, haviam novas distribuições continuamente, primeiramente todo o ano, depois em intervalos mais longos de tempo. A propriedade privada, de acordo com essa visão, era uma instituição relativamente jovem. Como ela surgiu não é muito claro. Mas, assume-se que ela se infiltrou mais ou menos como um hábito durante as omissões nas redistribuições — isso é, se ninguém quisesse traçá-la até seu ponto de aquisição legal. Dessa forma, dar muito crédito à propriedade privada na história da civilização parece ter sido um erro. Argumenta-se que a agricultura se desenvolveu sob a regra da propriedade coletiva com a distribuição periódica. Para um homem arar e semear os campos, precisa-se apenas que seja garantido a ele o produto de seu trabalho, e para esse propósito a posse anual bastava. Nos é dito que é falso traçar a origem da propriedade da terra na ocupação dos campos sem dono. A terra desocupada em nenhum momento foi sem dona. Em todo lugar, desde os primórdios, o homem declarou que ela pertencia ao Estado ou à comunidade; consequentemente, dos primórdios até hoje, o confisco da propriedade nunca poderia ter acontecido.14

Dos altos desse recém obtido conhecimento histórico, era possível olhar com compaixão e divertimento os ensinamentos da filosofia social liberal. As pessoas estavam convencidas de que a propriedade privada se provou pertencente apenas à categoria histórico-legal. Ela nem sempre existiu, era nada além de uma consequência indesejada da cultura, e, portanto, poderia ser abolida. Socialistas de todos os tipos, mas especialmente marxistas, eram fervorosos propagandistas dessas ideias. Eles trouxeram aos escritos de seus campeões uma popularidade antes negada aos pesquisadores de História Econômica.

Mas, pesquisas mais recentes refutaram a suposição que a propriedade coletiva da terra agrícola foi um estágio essencial de todos os povos, que foi a forma primordial de propriedade. Eles demonstraram que o Mir russo surgiu nos tempos modernos sob a pressão da servidão e impostos per capita, que as cooperativas Hauberg do distrito de Sieger não foram estabelecidas antes do século XVI, que a Casa de fazenda em Trier evoluiu no século XIII, ou talvez somente no século XVII e XVIII e que a Zadruga Sul-Eslávica surgiu por meio da introdução do sistema Bizantino de taxação.15 A história agrícola alemã antiga ainda não é suficientemente clara; em relação às perguntas importantes, uma opinião unânime não foi possível. A interpretação da escassa informação dada por César e Tácito apresenta diversas dificuldades. Mas, na tentativa de entendê-las, não se pode nunca negligenciar o fato de que as condições da antiga Alemanha como descritas por esses dois escritores tiveram este aspecto característico — boas terras aráveis eram tão abundantes que as questões da propriedade sobre ela ainda não eram economicamente relevantes. Terra comum, esse era o fato básico das condições agrárias alemãs no tempo de Tácito.16

Na verdade, entretanto, não é necessário considerar as provas aduzidas pela História Econômica, que contradizem a doutrina da propriedade original para perceber que essa doutrina não oferece argumentos contra a propriedade privada dos meios de produção. Definir se a propriedade privada foi ou não, em todo o lugar, precedida pela propriedade coletiva é irrelevante quando formamos um julgamento em relação a sua realização histórica e sua função na constituição econômica do presente e do futuro. Mesmo se pudéssemos demonstrar que a propriedade coletiva já foi a base da lei da terra para todas as nações e que toda a propriedade privada surgiu por meio da aquisição ilegal, ainda estaríamos longe de provar que a agricultura racional com o cultivo intensivo pudesse ter se desenvolvido sem a propriedade privada. Ainda menos permissível seria concluir com dadas premissas que a propriedade privada poderia ou deveria ser abolida.

1 Böhm-Bawerk, Rechte und Verhältnisse vom Standpunkte der volkswirtschaftlichen Güterlehre, Innsbruck 1881, p. 37.

2 Fetter, The Principles of Economics, 3rd Ed., Nova York 1913, p. 408.

3 Veja os versos de Horácio:

‘Si proprium est quod quis libra mercatus et aere est,

quaedam, si credis consultis, mancipat usus:

qui te pascit ager, tuus est; et vilicus Orbi

cum segetes occat tibi mox frumenta daturas,

te dominum sentit, das nummos: accipis uvam

pullos ova, cadum temeti”.

(2. Epistol., 2, 158-63). – A atenção dos economistas foi primeiramente atraída para esta passagem por Effertz (“Arbeit und Boden”, new edition, Berlim 1897, Vol. I, pp. 72, 79).

4 A filosofia social estatista, que leva todas essas instituições de volta ao “estado”, retorna à velha explicação teológica. Nela, o Estado assume a posição que os teólogos atribuem a Deus.

5 J. S. Mill, Principles of Political Economy, People’s Edition, Londres 1867, p. 124.

6 Dernburg, Pandekten, Sixth Edition, Berlim 1900, Vol. I, Part 11, p. 12.

7 Fichte, Der geschlossene Handelsstaat, herg. v. Mediciu, Leipzig; 1910, p, 11.

8 O liberalismo tentou expandir a proteção dos direitos adquiridos, desenvolvendo os direitos públicos subjetivos e estendendo a proteção jurídica através dos tribunais. O estatismo e o socialismo, pelo contrário, tentam restringir cada vez mais a esfera do direito privado em favor do direito público.

9 Tacitus, Germânia, 14

10 Um belo escárnio poético do anseio romântico, “Onde não estás, há felicidade”, encontra-se nas experiências do Conselheiro Knap em “As Galochas da Fortuna” de Andersen.

11 Wiese, Der Liberalismus in Vergangenheit und Zukunft, Berlim 1917, p. 58 et seq.

12 Poehlmann, Geschichte der sozialen Frage und des Sozialinnus in der antiken Welt, Second Edition, München 1912, Vol. II, p. 577 et seq.

13ipsaque tellus omnia liberius nullo poscente ferebat” (Virgílio, Georgica, I, 127 et seq.)

14 Laveleye, “Das Ureigentum”, tadução Alemã por Bücher, Leipzig 1879, p. 514 et seq.

15 Below, “Probleme der Wirtschaftsgeschichte”, Tübingen 1920, p. 13 et seq.

16 Germania, 26.

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