Texto publicado originalmente em Pensamentos Esquecíveis em resposta ao artigo Deduzindo a Ética Argumentativa com a Lógica Proposicional do Renan Leonardi.
Em agosto, um artigo foi escrito em resposta às minhas críticas à ética argumentativa. Identifiquei vários erros no texto e publiquei uma resposta a ele aqui. Agora, uma réplica a essa minha resposta (que pode ser encontrada na íntegra aqui e aqui, ou aqui, caso os originais saiam do ar) foi publicada pelo autor do primeiro artigo, e o presente texto tem como objetivo treplicar esta réplica.
Nela, assim como na primeira resposta, há vários erros conceituais, usos inadequados da formalização lógica, definições vagas, confusões no escopo do operador de negação – não levou em conta a distinção entre negação de re e de dicto -, inadequação quanto à regra da substituição, saltos lógicos, pouquíssimo rigor formal (para não dizer nenhum), confusões entre o ato de asserir e o conteúdo assertórico, etc. Vários são erros que já foram apontados por mim anteriormente e que voltaram a se repetir, e boa parte do texto parece ser meramente pedante, desnecessariamente complicada, como se estivesse ali apenas para “encher linguiça”. Em vista disso, como de costume, farei citações das partes que julgo serem importantes e as responderei em seguida.
Já no começo os erros de se tentar misturar pragmática transcendental com lógica proposicional (coisa que já falei em outras ocasiões) se mostram evidentes:
“Sendo a proposição P “eu existo” a proposição ¬P tem uma implicação clara, que é a proposição “eu propus ¬P”, que, por sua vez, implica na proposição “eu fiz uma proposição”, que implica na proposição P “eu existo”.”
Como a proposição P tem uma partícula indexical, a saber, o pronome pessoal “eu”, precisamos fixar sua referência antes de manipulá-la logicamente. Conforme Habermas diz na citação usada pelo autor, a palavra “eu” se refere à mesma pessoa sempre. Chamemo-a de x. Assim, a proposição P pode ser lida como “x existe”, e ¬P como “não é o caso que x existe”. É dito que ¬P implica em “x propôs ¬P”, e é aqui que está o problema. O autor confunde o conteúdo proposicional de uma sentença, a saber, a sentença “eu propus ¬P” (as aspas são importantes aqui), com o próprio ato performativo de asseri-la.
É mais que óbvio que a proposição “x não existe” não implica em “x propôs ¬P”. Na verdade, “x não existe” implica justamente “não é o caso que x propôs ¬P”, porque para propor algo, deve-se antes existir. Por outro lado, o ato de x proferir “x propôs que ¬P” implica, sim, em um sentido fraco, na verdade da proposição “x fez uma proposição”, que implica na verdade de “x existe”. Mas, como eu disse, o ato de proferir e o conteúdo proposicional da sentença proferida são coisas de naturezas absolutamente distintas. Como esta confusão se estende pela tentativa de demonstração e é necessária para seu sucesso, já podemos ver de antemão que ela está fadada ao fracasso, novamente, como resultado de se tentar formalizar argumentos com elementos extra-lógicos através de algo tão limitado como a lógica proposicional.
“Pela prova anterior sabemos que a proposição P (humanos agem) é equivalente à outra proposição Q (humanos buscam fins usando meios) (obs.: aqui a chamarei de Q, mas não deve ser confundida com a proposição Q da prova anterior).
Se P⇒Q então a definição de norma (normas são regras que dizem como humanos devem ou não devem agir) é equivalente à definição “normas são regras que dizem como humanos devem ou não devem usar meios para buscar fins”.”
Aqui há uma clara confusão quanto a equivalência de proposições e o uso da substituição de termos. O fato de a proposição P ser equivalente à proposição Q diz apenas que elas têm o mesmo valor verdade em qualquer interpretação. Isso sequer significa que elas têm algo em comum além do próprio valor verdade. A equivalência não permite que P seja substituída por Q nos contextos em que P aparece. A regra da substitutibilidade é válida apenas para a identidade em contextos não intensionais, e este não é o caso, porque não há uso da identidade. Se sabemos que a=b e que Pa, então, por substituição, podemos inferir Pb. Mas se sabemos que a proposição P é equivalente a Q, não podemos substituir P por Q em uma sentença complexa (o que, aliás, não é nem bem formado na lógica proposicional).
“W := normas existem para resolver conflitos
Agora, se ¬W fosse verdadeira isso significaria que existe uma norma que não existe para resolver conflitos, ou seja…
¬W = existe uma norma que resolve algo que não é um conflito”
Aqui há dois problemas, sendo um causado pelo outro. O primeiro é traduzir proposições quantificadas como sendo proposições atômicas (coisa que eu já critiquei em minha resposta anterior). Proposições como “todos que tem cromossomos sexuais xy são homens” são universais, e são formalizadas como ∀x(Cx⊃Hx), isto é, “para todo x, se x tem cromossomos sexuais xy, então x é homem”. Em lógica proposicional, porém, a única coisa que você pode fazer é chamar essa proposição de P, ou de qualquer outra letra, e isso não te dá informação alguma sobre a forma lógica dela. E é justamente a falta de informações sobre a forma lógica da proposição que leva ao segundo problema, que é em relação ao escopo do operador de negação.
A proposição “normas existem para resolver conflitos” é um tanto confusa para ser formalizada, porque ela é universal (já que fala sobre normas) e existencial (já que afirma a existência de normas). No entanto, podemos tomá-la como sendo apenas universal, se considerarmos que o universo de discurso não é vazio e que todos os termos (no caso, normas) têm denotação. Assim, em vez de “existe para resolver conflitos”, usaremos o predicado “tem a finalidade de resolver conflitos”. A proposição, então, pode ser formalizada como ∀x(Nx⊃Cx), isto é, “para todo x, se x é uma norma, então x tem a finalidade de resolver conflitos”.
Se negarmos esta proposição, que é universal e afirmativa, chegaremos a uma proposição existencial e negativa, a saber, ∃x(Nx∧¬Cx), ou seja, “existe um x que é uma norma e que não tem a finalidade de resolver conflitos”. O autor, porém, considera que a negação da proposição é “existe uma norma que resolve algo que não é um conflito”, o que requer que o predicado Cx seja desfeito no predicado “tem a finalidade de” e na função “resolver(x)”, que variará sobre o conjunto das coisas que podem ser resolvidas, dentre as quais estão os conflitos. Isso, porém, já é demasiado complexo e mais que o suficiente para mostrar o equívoco.
Uma proposição do tipo ∀x(Px) (para todo x, x é P) pode ser negada de duas maneiras diferentes. Uma é dita de re (da ‘coisa’), e ocorre quando a negação está dentro do escopo do quantificador universal, ou seja, ∀x(¬Px) (“para todo x, não é o caso que x é P”); e a outra é dita de dicto (do ‘dito’), e ocorre quando a negação está antes do quantificador, negando toda a sentença, ou seja, ¬∀x(Px) (“não é o caso que para todo x, x é P”; o que é equivalente a “existe um x que não é P”). Em outras palavras, “existe uma norma que não tem a finalidade de resolver conflitos” e “existe uma norma com a finalidade de resolver coisas que não são conflitos” são proposições diferentes, e a confusão se dá em função de uma inadequação na formalização, coisa que já havia no artigo anterior. Os parágrafos que seguem deste que foi citado reproduzem o mesmo erro e, portanto, serão omitidos aqui.
“A próxima fase da argumentação consiste em demonstrar que W⇒E, sendo que…
E := normas devem evitar conflitos
Isso pode ser demonstrado facilmente por uma prova contrapositiva.
Aqui, não fica claro o que o termo ‘deve’ significa. Imagino que não seja em um sentido normativo, porque, neste caso, a própria proposição E constituiria uma norma, e o sujeito desta norma seriam outras normas, o que não faz sentido, já que normas se aplicam a indivíduos, e não a normas. Então presumo que o termo ‘deve’ tenha o sentido de ‘precisa’, ‘tem que’, algo como o ‘must’ do inglês. Porém, se isso for verdade, então W→E é trivial, porque se normas existem para resolver conflitos, então certamente elas tem que evitar conflitos, já que esta é a finalidade delas.
“Se assumíssemos que ¬E é verdadeiro, sendo que…
¬E := existe uma norma que não deve evitar conflitos
…então, pela definição de evitar conflitos, haveria uma norma que não deva ser de tal forma que, caso seja seguida por todos, não gere conflito algum. Se esta norma existisse, então, ao ser seguida por todos, ainda surgiriam conflitos. O problema desta norma é que ela implicaria em ¬W, pois se conflitos surgem mesmo com todas as pessoas seguindo a norma, então eles não estão sendo resolvidos, ou seja, a norma não está resolvendo conflitos.”
Aqui há um salto lógico. Do fato de que há uma norma que não deve (não precisa) evitar conflitos não segue que surgiriam conflitos, mas sim que eles poderiam surgir. Podemos pensar em uma norma hipotética que não tenha a finalidade de evitar conflitos (que não deva evitar conflitos, que não precise, etc.) e, mesmo que todos a sigam, por algum motivo diverso, conflitos não são gerados (mas não por conta do seguimento da norma). De maneira análoga, se eu digo que você não precisa estudar, disso não segue que você não vai estudar, mas apenas que lhe é permitido não estudar.
“Q := normas devem estabelecer quem tem o direito de uso exclusivo de um meio
W := normas devem estabelecer quem tem o direito de uso definitivo de um meio
[…]
Se assumíssemos ¬Q estaríamos dizendo que existe uma norma que garante direitos de uso não-exclusivos.
[…]
Se ¬W fosse verdadeira isso significaria que existe uma norma que garante direitos de uso não-definitivos.”
Aqui há novamente a confusão entre as negações de re e de dicto. A proposição “normas devem estabelecer quem tem o direito de uso exclusivo de um meio” é formalizada como ∀x(Nx⊃Dx), isto é, “para todo x, se x é uma norma, então x deve estabelecer quem tem o direito de uso exclusivo de um meio, e a proposição “normas devem estabelecer quem tem o direito de uso definitivo de um meio” tem a mesma forma. Em ambos os casos, a negação tem a forma ∃x(Nx∧¬Dx), ou seja, “existe uma norma que não deve estabelecer quem tem o direito de uso xxxxx de um meio”, e isso é completamente diferente de “existe uma norma que estabelece quem tem o direito de uso não-xxxxx de um meio”, em que ‘xxxxx’ é ‘exclusivo’ ou ‘definitivo’.
“Peguemos uma nova proporção chamada de P, sendo a proposição P denotada como qualquer proposição normativa que um indivíduo tente justificar.
Se um indivíduo propõe P, isso implica que a proposição Q (estou tentando justificar uma proposição normativa) é verdadeira.
Ou seja, P⇒Q.
[…]
Ou seja, P⇒E. Lembrando que P é qualquer proposição normativa que um indivíduo tente justificar.”
A proposição P não é ‘denotada como qualquer proposição normativa’; são as proposições normativas que são denotadas por P, pois é a alguma delas que P se refere. De qualquer forma, a confusão entre o ato de asserir e o conteúdo assertórico da sentença se repete. Neste caso, não seria P que implicaria Q e E, mas sim o fato de o indivíduo propor P. E, ainda assim, não é por que alguém propõe uma proposição que este alguém está tentando justificá-la. Alguém pode simplesmente asseri-la com o intuito de comunicá-la a outros indivíduos, sem, porém, ter a intenção de justificá-la argumentativamente. Então, mesmo da maneira logicamente correta, essa implicação é falsa.
“Porém, conforme o que já foi provado, Q também implica em outra proposição, a proposição W (estou tentando justificar uma proposição sobre a validade de uma regra que evite conflitos).
Ou seja, Q⇒W.
Porém esta proposição, por sua vez, implica em E (normas devem evitar conflitos).
Ou seja, W⇒E.
Aqui há outro salto lógico. O fato de eu tentar justificar uma proposição sobre a validade de uma regra que evite conflitos não implica em normas deverem evitar conflitos, por mais que ambas as proposições possam ser verdadeiras. Uma das proposições diz respeito a uma ação que eu pratico e a outra diz respeito à natureza das normas (que, aliás, era o que se pretendia provar na tentativa de demonstração anterior, em que houve a confusão do escopo da negação).
“Conforme é demonstrado pela Ética Argumentativa, o ato de uma pessoa de justificar proposições normativas faz com que ela faça certas pressuposições sobre normas. Porém, tais pressuposições têm conteúdo proposicional, ou seja, qualquer proposição normativa que tente se justificar implica em determinadas outras proposições normativas (as pressuposições), a proposição E sobre a qual falei acima, por exemplo.
Agora, é fato que esta implicação existe apenas enquanto o indivíduo justifica a proposição, e que ela se dá apenas no momento no qual ele decida subjetivamente fazer esta proposição; sim, nunca discordei disso, porém isto não invalida, de forma alguma, a conclusão da Ética Argumentativa, pois a conclusão da Ética Argumentativa é simplesmente “A única norma logicamente defensável é a Ética Libertária”. Ou seja, a conclusão diz simplesmente que se um indivíduo tentar justificar uma norma ele só será capaz de justificar logicamente a Ética Libertária, e esta conclusão segue perfeitamente das premissas.“
Estes parágrafos parecem estar soltos no texto; não entendi de que maneira isso possivelmente responde a qualquer um dos meus apontamentos. Sim, o argumento do Hoppe é válido (ou, pelo menos, pode ser reescrito de maneira logicamente válida), e eu nunca disse que minhas críticas invalidam a conclusão da ética argumentativa. Na verdade, a conclusão da ética argumentativa nunca foi alvo de crítica minha, pelo menos não nos artigos que eu fiz.
“Apenas justificações intersubjetivas sobre normas são logicamente defensáveis”
Este título é ambíguo. Quer dizer que justificações intersubjetivas sobre coisas que não são normas não são logicamente defensáveis ou que justificações não intersubjetivas sobre normas não são logicamente defensáveis? Esta ambiguidade será desfeita mais para frente, mas, em qualquer um dos casos, se justificar é, segundo o próprio autor, “dar razões para”, então por que não seria possível dar razões para algo que não seja uma norma, ou, no segundo caso, por que não seria possível dar razões para normas de maneira não intersubjetiva (como quando você tenta deduzir, sozinho, a ética argumentativa através da lógica proposicional, por exemplo)?
“Primeiro comecemos com a proposição P, sendo ela qualquer proposição sobre normas que o indivíduo tente justificar. P tem uma clara implicação, que é a de que “o indivíduo tenta justificar proposições” (Q).
Ou seja, P⇒Q.”
Outra vez, aqui e nos parágrafos seguintes, confusão entre o ato de asserir e conteúdo assertivo.
“Agora a proposição U (apenas justificações intersubjetivas sobre normas são logicamente defensáveis) é uma implicação lógica da proposição Y, e buscarei demonstrar isso de forma contrapositiva.
Se assumíssemos ¬U como verdadeira estaríamos dizendo que existe pelo menos uma norma justificável de forma não-intersubjetiva (i.e. monológica), o que implicaria que os envolvidos em qualquer conflito que se relacionasse a esta norma não seriam capazes de ter qualquer conhecimento sobre sua resolução (sobre a resolução da questão que se tenta fazer com a justificação de proposições normativas), ou seja, o conflito não seria evitado.”
Como eu disse, aqui a ambiguidade do título (a proposição U) foi desfeita. Ela quer dizer que não há justificações sobre normas logicamente defensáveis que não sejam intersubjetivas. Porém, é dito que sua negação, ou seja, que “há normas justificáveis de forma não-intersubjetiva”, implica em os envolvidos em conflitos relacionados com estas normas não serem capazes de ter conhecimento sobre sua resolução, o que é mais um salto lógico. O fato de a norma ser justificável de maneira não intersubjetiva não implica em ela não poder ser justificada de maneira intersubjetiva. No caso de os indivíduos entrarem em um conflito que se relaciona com uma determinada norma N, eles poderiam argumentar sobre a possível resolução de maneira intersubjetiva, e isso não anula o fato de a norma N poder ser justificada de maneira não intersubjetiva, isto é, monologicamente.
“U := apenas justificações intersubjetivas sobre normas são logicamente defensáveis
Temos também a proposição P, sendo P, novamente, qualquer proposição que o indivíduo faz tentando justificar uma norma.
Sabemos que P⇒U, com o correto exame lógico podemos também chegar à conclusão de que (P∧U) implicam uma terceira proposição (I), sendo…
I := estou argumentando com oponentes sobre normas”
Mais uma vez, confusão entre o ato de asserir e conteúdo assertivo, o que compromete toda a linha de raciocínio que daí se segue.
“O := estou argumentando com oponentes sobre a resolução de conflitos
S := busco fazer meus oponentes aceitarem minhas proposições normativas sem o uso da força contra eles
Porém O e S implicam em mais uma terceira proposição, a proposição D, sendo…
D := ninguém pode, por meio de coerção, impedir um agente de exercer sua participação na argumentação ou de introduzir ou questionar qualquer asserção
A implicação se dá da seguinte forma: se estou argumentando com oponentes (O) e se não posso usar a força contra eles nesta justificação (S), assim como se não posso usar a força contra qualquer novo oponente que tente entrar na argumentação, então a proposição D é verdadeira.
Ou seja, (O∧S)⇒D.”
Aqui está algo que eu já esperava neste e em qualquer outro texto que pretenda justificar uma teoria normativa através da lógica. Esta inferência cai na famosa guilhotina de Hume, e aparentemente o autor mexeu em algumas coisas na hora de explicar afim de evitar que isso fosse tão evidente. As proposições O e S são descritivas. A primeira descreve o fato de que se está argumentando e a segunda descreve o fato de que se tem determinada preferência. Apesar de S ser descritivo-valorativo, não há aí qualquer normatividade. A proposição D, porém, é ou normativa ou falsa. Normativa caso o “ninguém pode” tenha o significado de “ninguém deve”, “todos devem não…”, e falsa caso o “ninguém pode” tenha o significado de impossibilidade, porque é obviamente possível impedir, por meio de coerção, um agente de exercer sua participação na argumentação.
E quando o autor vai explicar a maneira com a qual a implicação se dá, a proposição S é tomada como “não posso usar a força contra eles nesta justificação“, o que não condiz com seu próprio conteúdo (busco fazer meus oponentes aceitarem minhas proposições normativas sem o uso da força contra eles), que é descritivo. A introdução da partícula “não posso” como se já fizesse parte da proposição S é ou fruto de um descuido ou de um raciocínio capcioso.
“Primeiro comecemos com a proposição S, sendo…
S := busco fazer meus oponentes aceitarem minhas proposições normativas sem o uso da força contra eles
Para que um oponente aceite a proposição ele deve ser capaz de agir, pois aceitar é, por definição, uma escolha, ou seja, uma ação. Naturalmente sem o uso do meio primário para a ação isso não seria possível, o que leva quem aceita S, a aceitar a proposição “meus oponentes têm o direito de usar seus meios primários da ação”. chamarei-a aqui de proposição Q.
[…]
Lembrando que a proposição Q é aceita como verdadeira por qualquer indivíduo que faça uma proposição normativa, e apenas isso;”
Outro non sequitur. Eu posso aceitar S, isto é, posso buscar fazer meus oponentes aceitarem minhas proposições normativas sem o uso da força contra eles, mas não aceitar que eles “têm o direito de usar seus meios primários da ação” (o que dá a entender que se trata do direito de uso exclusivo). Posso crer que eles têm apenas o direito de uso parcial, e não exclusivo, do meio primário da ação. Este direito parcial seria usado pelos meus oponentes para argumentarem comigo, e eu não precisaria reconhecer que eles têm o direito de, por exemplo, falarem com outras pessoas. E a proposição Q não seria aceita por qualquer indivíduo que faça uma proposição normativa, mas sim por aqueles que a fazem em uma argumentação. Mas, mesmo corrigindo esta frase, ela continuaria falsa, conforme o que acabei de apresentar.
Repare que não estou aqui dizendo que na argumentação há apenas o reconhecimento parcial do direito de propriedade, como alguns argumentam por aí, mas sim que é possível aceitar S e rejeitar Q.
“H := todos os agentes têm o direito de autopropriedade
[…]
Sendo que W = meus oponentes têm o direito de autopropriedade
[…]
Tomemos J como “apenas normas universalizáveis para todos os agentes são logicamente defensáveis
[…]
Porém (W∧J)⇒H, que era a proposição que desejávamos provar.”
Mais um non sequitur, e dos grandes. O fato de meus oponentes terem o direito de autopropriedade e de apenas normas universalizáveis para todos os agentes serem logicamente defensáveis não dá nenhum sinal de que todos os agentes têm direito de autopropriedade. Isto é literalmente partir de conhecimentos particulares (sobre os meus oponentes na argumentação) e querer inferir algo universal (sobre todos os agentes), sem que a universalidade esteja presente nas premissas. No caso, a universalidade que ocorre na proposição J diz respeito a normas, não a todos os agentes.
“Primeiro temos a proposição Q (agentes têm o direito de usar meios sem uso do ambiente), sendo que a proposição Q pode ser provada de forma contrapositiva…
¬Q pode ser expressa como “ao menos um agente tem o direito de impedir outro de usar um meio do ambiente ainda sem uso”. Se ¬Q fosse verdadeira, sabendo que para usar um meio do ambiente sem uso o agente deve usar seu meio primário para a ação, isso implicaria que quem está impedindo teria o direito de usar o meio primário para a ação do outro para um fim que exclua o seu, ou seja, violar seu direito de autopropriedade.”
Esse trecho é bastante esquisito. Eu não sei o que significa “usar meios sem uso do ambiente”. Nunca vi esta expressão antes e isso nem parece fazer algum sentido. Mas, ainda assim, há aqui novamente o erro referente à negação de re e de dicto. A proposição Q seria formalizada como ∀x(Ax⊃Dx), isto é, “para todo x, se x é agente, então x tem o direito de usar meios sem uso do ambiente”, seja lá o que isso signifique. A negação de Q, portanto, é ∃x(Ax∧¬Dx), isto é, “há pelos menos uma coisa que é agente e não tem o direito de usar meios sem uso do ambiente”. Acho que não preciso mais comentar sobre isso.
“V := direitos de propriedade podem ser adquiridos apenas com ações específicas que criem um elo objetivo com o meio
Elo objetivo := elo intersubjetivamente verificável e determinável (que possa ser determinado e verificado por qualquer agente)
[…]
Se assumíssemos ¬V estaríamos dizendo que ao menos um indivíduo teria o direito de se apropriar de meios ainda não utilizados sem a criação do elo objetivo (é o que é denotado como “apropriação por declaração”), porém isso significaria que ele teria o direito de se apropriar dos meios primários para a ação de indivíduos que ainda não tenham começado a agir, o que negaria o direito de autopropriedade.”
Aqui, os erros induzidos pela ausência do uso de quantificadores ficam claríssimos. A proposição V diz que ∀x(Dx⊃Ox), isto é, que “para todo x, se x é direito de propriedade, então x só pode ser adquirido com ações específicas que criem um elo objetivo com o meio”. Sua negação é, portanto, ∃x(Dx∧¬Ox), ou seja, “há algum direito de propriedade que pode ser adquirido não apenas com ações específicas que criem um elo objetivo com o meio”. No entanto, o autor diz que a negação de V diz que há “a menos um indivíduo com tal direito”, como se o domínio de quantificação fosse o dos indivíduos, quando, na verdade, é dos direitos.
Incontáveis outros pontos poderiam ter sido levantados sobre o texto, como os questionamentos que eu fiz em minha primeira resposta e que não foram respondidos, ou mesmo os apontamentos que eu faço em cada um dos meus dois artigos sobre a EA e que também não foram respondidos, mas toda essa discussão não vai levar a lugar algum enquanto as ferramentas erradas estiverem sendo usadas no processo. Isso significa que não responderei a uma possível quadrúplica que tente justificar a ética argumentativa através da lógica proposicional, porque, neste caso, mesmo os erros tendo sido esmiuçados mais de uma vez, certamente eles serão cometidos novamente e eu já estou saturado desse tema.
Toda essa “treta” por conta da EAH?
Não, é por conta de uma tentativa falha de formalização da EAH.