Vivemos em uma sociedade em rede. Vivendo numa sociedade em rede podemos não ser capazes de perceber como as relações ao nosso redor se estabelecem uma a uma. Como assim? Pense num pedido que você tenha feito a um restaurante perto de casa. Você fez o pedido a um aplicativo ou ligou no estabelecimento em questão. O indivíduo que atendeu precisou fazer compras de um fornecedor que prestou seus serviços a ele ou individualmente ou localmente, através de um mercado, por exemplo. As compras para esse mercado precisarão passar por indústrias que também compraram individualmente seus insumos. Cada um dos produtos que envolve sua refeição é naturalmente tratado individualmente por agentes que, embora não se conheçam, estiveram diretamente relacionados. Tudo, em geral, com a maior tranquilidade e da forma mais orgânica possível. Não há intermediários nesse processo, as chamadas terceiras partes confiáveis.
E por isso mesmo pode parecer muito distante entender de que forma haja a participação de uma terceira parte confiável na maior parte das nossas transações. De fato, se nós precisássemos de uma terceira parte envolvida em todas as transações, nós nos veríamos rapidamente presos numa armadilha contra qualquer eficácia social. Entender isso é crucial.
A razão pela qual não podemos ignorar esse fenômeno é porque ele nos permite entender como e com que profundidade a confiança se estabelece na sociedade. Ela é a regra e não a exceção. Dito isso, é evidente que em alguns casos teremos a necessidade da intervenção de um terceiro na relação entre dois sujeitos. É a relação conflituosa que descreve a exceção. Assim, vamos pensar nela um pouco.
O que significa conflitar? Um desacordo vem da visão de que o melhor conjunto de alterações em um ambiente possível para determinado sujeito não é compatível com o melhor conjunto de alterações em um ambiente possível para outro determinado sujeito. Eles discordam sobre como o mundo deve ser. Entender essa discordância em termos de um terceiro mundo ideal é vital para entender o que acontece quando há uma intervenção de uma terceira parte.
Estamos estabelecendo que o mundo escolhido pela terceira parte é um mundo melhor a se viver do que o mundo em que vivemos. E durante muito tempo isso bastou. Pareceu razoável para muitos acreditar que deveria haver uma terceira parte última que decidisse o mundo que se manifesta para as duas partes discordantes. Entretanto, pessoas ao longo da história perceberam como a própria parte também era um discordante, afinal tinha seu próprio conjunto de interesses e seu próprio mundo desejado.
A resposta? O consenso poderia ser impossível de chegar a partir do momento em que as duas partes já estivessem em conflito, mas ele poderia ser chegado antes do conflito, gerando assim uma cadeia confiada e por isso confiável de arbitragem entre dois indivíduos. Essa cadeia não é de forma alguma uma cadeia imparcial, afinal os indivíduos tem individualmente suas próprias reflexões sobre como as transações devem ser feitas. Mas, ela é tomada apesar de sua parcialidade, com cada uso reafirmando o consenso. Foi desse conjunto de circunstâncias e análises que surgiu o Bitcoin.
Não apenas isso, Bitcoin é tempo. Por quê? As pessoas depositaram sua confiança em uma cadeia numerada de eventos, a tal cadeia de blocos é única e exclusivamente uma forma de expressar um avanço numerado de acontecimentos. Cada segundo na rede implica e carrega todas as transações nominalmente, explicitamente de cada um dos indivíduos. Dessa forma nós conseguimos ver a relação entre o estado atual da rede e a disposição de cada indivíduo com a própria rede.
É como pensar em um livro que você leu. Uma das propriedades dele é o tempo que você passou nele. E a propriedade central do bitcoin é como as pessoas alocam seus recursos em determinados períodos do tempo. Ele nunca esquece, nunca pode ser apagado. É uma ferramenta poderosa porque armazena o tempo e mais ainda porque cada uma das ações seguintes que se darão serão feitas sob a égide da vida das pessoas envolvidas a partir de sua criação.
Ou fiz uma transação no bloco 2003 ou não fiz. Não há outra possibilidade.
Outras Moedas na História
Mas, não se chegou a essa engenhosa solução desde o início. Nós tivemos fases anteriores por todo o mundo. Um livro em especial trata de algumas de suas principais partes: Revolução Satoshi. Nele aprendemos a história de algumas moedas importantes: Nota de Trabalho de Josiah Warren, Higley Token de Samuel Higley, EB de Ephraim Brasher, o Ouro Bechtler de Christopher Bechtler e o Lingote Moffat da Moffat & Co.
A Nota de Trabalho de Josiah Warren era baseada na sua teoria de valor trabalho. Para ele, o preço das mercadorias deveria ser baseado no número de horas trabalhadas em cada um dos produtos. Assim, se demoraram três horas para serem feitos um par de sapatos ele deveria ser trocado com uma peruca que tenha demorado as mesmas três horas. Trocar coisas que levaram menos horas de trabalho por coisas que levaram mais horas de trabalho era para ele considerado canibalismo.
Após alguns anos, ele encerrou a loja com sucesso! Se ele teve ou não sucesso devido a sua teoria monetária é coisa para ser analisada em outro cenário, ainda mais se ele teria sucesso caso tivesse continuado com esse negócio por muito tempo, em sociedades de consumo cada vez maiores e mais expressivas.
O Higley Token desempenhou um papel importante porque a cunhagem de suas moedas não envolvia o estabelecimento de um preço nominal em sua face. Por isso, os comerciantes tinham que decidir qual preço estariam dispostos a pagar pelo bom cobre.
O Ouro Bechtler que era inteiramente baseado na reputação do ourives que cobrava 2.5% do ouro que lhe traziam para cunhar moedas com o máximo de ouro possível, superando em muito a fineza das moedas governamentais, até mesmo sendo usado pelo próprio estado na comercialização dos produtos com a Europa e no pagamento de dívidas.
E a Moffat & Co que criou um padrão excelente de fabricação de moedas que concorreu diretamente com o estado e mesmo sem receber sua autorização diretamente foi largamente comercializada. Essa concorrência, entretanto, foi desleal. Enquanto o estado proibia a comercialização de moedas com valores nominais inferiores a quatro troy, ele garantia para si o direito de comercializar usando dois troy, de forma a minar a concorrência.
Além disso, recusou seu próprio padrão de moeda quando a alfândega dos Estados Unidos passou a considerar inválida moedas com padrão de pureza inferiores a 900/1000 de pureza, invalidando com isso a própria moeda emitida pelo Gabinete de Ensaios da Califórnia que tinha padrão entre 884 e 887/1000 de pureza.
Muito tempo se passou antes que novas soluções fossem tentadas e a sensação geral era que a moeda era algo que pertencia ao Estado. Isso porém estava para mudar com o advento da internet e a possibilidade de fornecer uma rede confiável comum para pessoas de diferentes localidades geográficas.
Tentativas de Moedas Digitais
“Um espectro está assombrando o mundo moderno, o espectro da anarquia da criptografia. […]
[…] Assim como a tipografia alterou e reduziu o poder das guildas medievais e a estrutura do poder social, os métodos criptológicos também alteram fundamentalmente a natureza das corporações e da interferência do governo nas transações econômicas. Combinado com mercados de informação emergentes, a anarquia criptográfica criará um mercado líquido para todo e qualquer material que possa ser colocado em palavras e imagens. E assim como uma invenção aparentemente pequena como o arame farpado tornou possível o cercamento de vastas fazendas e campos, alterando para sempre os conceitos de terra e direitos de propriedade na fronteira oeste, também a descoberta aparentemente menor de um ramo arcaico de a matemática passa a ser o cortador de arame que desmonta o arame farpado em torno da propriedade intelectual.
Levanta-te, não tens nada a perder senão as cercas de arame farpado!”
Esse trecho retirado do Manifesto Cripto-Anarquista explicita bem a expectativa geral em relação ao cenário otimista do poder transformador da chamada anarquia criptográfica. Esse cenário foi originado por uma série de indivíduos que lutaram para garantir alguma liberdade na internet e que expressavam uma voz única, anônima e poderosa.
Para citar alguns nomes relevantes podemos falar de Whitfield Diffie e a forma que ele inseriu chaves públicas de criptografia, criando um cenário em que cada indivíduo, e não o administrador da rede, é responsável por sua própria criptografia. Podemos citar David Chaum com o estabelecimento da relação entre moedas digitais e criptografia e Phil Zimmermann com o advento do PGP. Isso é claro sem falar dos cypherpunks que deram início a guerra cripto contra o estado. Todos esses indivíduos foram vitais para o clima geral que se estabelecia em torno dessas possibilidades de libertação.
Duas grandes moedas são precursoras do Bitcoin. A primeira delas é o DigiCash, baseado no já mencionado David Chaum e seu sistema de Assinatura Cega. Ele é análogo com o sistema do voto secreto. Nele, as pessoas votam em uma cédula e repassam para uma pessoa que não sabe seu conteúdo, mas que reconhece a legitimidade da assinatura do lado de fora do envelope. Então, o voto é repassado para um contador de votos que, sem saber quem foi o emissor do voto, irá contar os votos um por um. Assim, nem o conteúdo do voto nem o próprio voto podem ser ligados a um eleitor individual.
Ela falhou por alguns dos seguintes motivos possíveis. David Chaum acreditava em direitos autorais e portanto não podia levar sua moeda tão longe quanto poderia em outro cenário, com a produção livre. Precisava de autenticadores que exerciam papel de terceiro confiável, preservava o sistema existente e era baseado em um CEO. Todas essas vulnerabilidades que não estão presentes no Bitcoin.
O E-gold por sua vez foi criado pela Gold & Silver Reserve, tendo assumido a forma de um ouro digital que teria emissão limitada e preço livre. A moeda falhou em grande parte por causa da pressão dos reguladores em cima da mesma, bem como da grande centralização em torno do seu modelo de negócio.
Essas falhas, vulnerabilidades, erros de governança não estão presentes no Bitcoin. Ele se manifesta como uma moeda forte, segura e descentralizada, que não depende da situação legal de um conjunto estático de indivíduos para ser usada. Nem Satoshi Nakamoto poderia parar o Bitcoin. Mas, alguns governos vão tentar.
Governos e a Contra-Ofensiva
O governo atua por meio de propaganda: ligando as criptomoedas a crimes como terrorismo, resgates e tráfico de seres humanos de uma maneira que faz com que esses crimes pareçam ser os usos predominantes.
Ele atua também com o Uso da Força: Como o próprio estado é uma força institucionalizada, esta é sua estratégia final em situações em que a obediência não pode ser obtida de outras maneiras. E as criptomoedas são irremediavelmente desobedientes.
Seus métodos são o saque, os acordos com os obedientes, a proteção dos obedientes contra os concorrentes, tentativas de transformar as criptomoedas em dinheiro fiduciário (El Salvador te lembra alguma coisa?) e o uso de uma moeda digital que não use blockchain, nas palavras de Wendy McElroy:
“Isso permitirá uma inflação lucrativa e que o estado rastreie todas as transações de volta para um usuário []. […]
[…] O conflito entre dinheiro privado e dinheiro fiduciário persistirá porque os dois têm dinâmicas fundamentalmente antagônicas que se ameaçam. Um dos principais campos de batalha será a opinião pública. Nesse campo de batalha, o maior desafio que o mundo cripto enfrenta é convencer um número suficiente de pessoas a simplesmente dizer “não”.
Todas essas tentativas serão em vão. A revolução que se aproxima é uma revolução silenciosa, de esperanças crescentes e de uma crença no indivíduo inabalável. Viver essa revolução é uma honra para os vivos do presente assim como presenciar o advento da internet foi uma honra para os vivos do passado. Qual será sua postura diante dessa Revolução?
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