Como a União Soviética venceu a Guerra Fria

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Escrito por Kevin Carson e Traduzido por Gabriel de Camargo

Não sei quando esta coluna será publicada, mas, no momento em que a escrevo, pessoas de todo o mundo estão comemorando—com o devido entusiasmo—a queda da Cortina de Ferro há 25 anos. Durante a Guerra Hispano-Americana, William Graham Sumner fez um discurso sobre “A Conquista dos Estados Unidos pela Espanha”, no qual argumentou que, apesar de ter perdido no campo de batalha, a Espanha havia, na verdade, triunfado porque, durante a guerra, os Estados Unidos haviam se transformado em uma potência imperialista à imagem da Espanha. Os paralelos com a queda da Cortina de Ferro e o comunismo são óbvios.

Embora o degelo pós-soviético nos antigos países do Bloco Oriental tenha sido deformado e pervertido pelo “capitalismo do desastre” neoliberal, pelo confinamento corporativo das antigas economias estatais e pela incorporação desses países ao sistema corporativo global, os eventos de 1989-91 ainda foram, no geral, uma grande vitória para o povo do Bloco Soviético. Para o resto do mundo, nem tanto.

Por mais sangrento e autoritário que fosse o sistema de poder soviético dentro da URSS e de seus satélites do Pacto de Varsóvia—e o era muito—, quando se tratava de agressão militar externa e subversão, ele estava totalmente à sombra dos Estados Unidos e do bloco americano. Como Noam Chomsky disse certa vez, a Guerra Fria—em uma primeira aproximação—consistiu em uma guerra da URSS contra seus satélites e dos EUA contra o Terceiro Mundo.

Havia também uma dinâmica direta de superpotência em ação, mas ela era comparativamente fraca. As linhas gerais da ordem do pós-guerra—o FMI e o Banco Mundial integrando as economias nacionais sob o controle do capital corporativo americano, e as forças armadas dos EUA (sob a tutela do Conselho de Segurança da ONU) operando como força de imposição contra qualquer deserção nacional do domínio corporativo global—funcionaram exatamente como haviam sido projetadas nos círculos de planejamento dos EUA a partir de 1944, como se a URSS nunca tivesse existido.

A União Soviética, de fato, às vezes se aventurava fora de seu bloco, quando podia ajudar um movimento de libertação nacional com risco relativamente baixo para si mesma e aumentar os custos imperiais para os Estados Unidos. E até mesmo a possibilidade externa de confronto militar direto com uma superpotência nuclear provavelmente dissuadiu algumas ações marginais americanas (como uma invasão do Irã ou a introdução de tropas terrestres na Guerra Árabe-Israelense de 1973).

Mas, no geral, a URSS era apenas uma lacuna ou espaço em branco—rotulado “Here Be Commies”—no mapa da Pax Americana neoliberal. Fora desse sistema regional encapsulado de dominação, os Estados Unidos agiram como a maior e mais agressiva potência imperial da história da humanidade, invadindo ou subvertendo diretamente e derrubando mais governos do que qualquer outro império anterior. O “Livro Negro do Comunismo” é, de fato, um registro sangrento. Mas o Livro Negro do Imperialismo Americano incluiria os milhões de mortes infligidas à Indochina depois que os EUA assumiram o papel da França, mantendo uma oligarquia fundiária no poder em Saigon, as centenas de milhares (estimativa conservadora) de mortos por Suharto depois do golpe patrocinado pelos EUA na Indonésia e o número muito maior de mortos por Mobutu depois do assassinato de Lumumba, as incontáveis mortes no ataque genocida da Indonésia ao Timor-Leste, as centenas de milhares ou milhões de pessoas mortas pelos esquadrões da morte da América Central desde a derrubada de Arbenz, as vítimas torturadas pela ditadora militar no Brasil, no Chile e em outros países da América do Sul varridos pela Operação Condor e os milhões de pessoas mortas de fome ou bombardeadas até a morte no Iraque desde 1990.

A queda da URSS como contrapeso, mesmo que parcial, resultou em uma dominação totalmente incomparável e sem controle dos EUA no quarto de século que se seguiu. Nesse período, não apenas o sistema global de poder apoiado pelos EUA se consolidou e cresceu em seu autoritarismo, como também o autoritarismo interno americano aumentou com ele.

Porém, ainda mais importante do que a escala e a agressividade do Império Americano, em comparação ao Império Soviético, é a natureza da sociedade a que ele serve. Assim como no caso da União Soviética e seus satélites, a política externa dos EUA e de seus principais aliados atende aos interesses de um sistema doméstico de poder de classe.

O sistema de poder estatal-corporativo americano, assim como o antigo estado socialista burocrático Soviético, depende do controle da informação. No bloco Soviético, isso significava censurar a imprensa e licenciar o uso de fotocopiadoras para impedir o livre fluxo de informações que desafiassem a estruturação de eventos do regime ou minassem suas reivindicações de legitimidade. No bloco americano, isso significa o controle corporativo da replicação e distribuição de informações para obter lucro com elas.

Globalmente, isso significa que a chamada “propriedade intelectual” é fundamental para os modelos de lucro de todos os setores dominantes da economia corporativa mundial. Alguns dos setores mais lucrativos—entretenimento e software—dependem da venda direta de informações proprietárias que poderiam ser reproduzidas praticamente de graça. Outros—medicamentos, eletrônicos, sementes geneticamente modificadas—dependem de patentes sobre projetos de produtos ou processos de produção. Outros—praticamente toda a fabricação terceirizada—dependem do uso de patentes e marcas registradas para transferir a produção para fábricas com regimes de exploração no Terceiro Mundo, mantendo o monopólio legal do direito exclusivo de compra e descarte do produto. Esses setores corporativos globais provavelmente entrariam em colapso sem os padrões draconianos de “propriedade intelectual” que estão sendo exportados pelos EUA na forma de “acordos de livre comércio” (que obviamente não são nada disso).

Desde a queda da URSS, os Estados Unidos agiram agressivamente não apenas para punir os desafios ao seu status de hegemonia (no Iraque e nos Bálcãs), mas também criaram uma estrutura legal de tratados e estatutos (NAFTA, a Rodada Uruguai do GATT, a Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital e diversos “Acordos de Livre Comércio” que essencialmente integram a maior parte do planeta ao seu modelo de capitalismo corporativo).

Internamente, a dependência central do poder corporativo no controle de informações significou o uso de gestão de direitos digitais (GDD) para tornar filmes, músicas e softwares não-copiáveis, a proibição legal de desenvolver ou disseminar técnicas para quebrar a GDD e o aumento do uso de poderes extrajudiciais e sem lei lastreadora, como a tomada direta de sites sem acusação ou julgamento com base em alegações de hospedagem de conteúdo “pirata”. Joe Biden supervisionou pessoalmente—da sede da Disney!—uma força-tarefa do Departamento de Justiça que derrubou dezenas desses sites, em total violação da Quarta e Quinta Emendas. Os Provedores de Serviços de Internet (PSI) assumiram a função de policiar seus próprios clientes pagantes em nome do setor cinematográfico e musical, interrompendo o serviço com base em reclamações de violação não investigadas. Os acordos comerciais globais mencionados acima estão pressionando a adoção mundial da nova e severa lei de “propriedade intelectual” dos EUA.

Enquanto isso, o estado de segurança doméstica nos EUA—que já estava fora de controle com a militarização das equipes SWAT relacionadas à Guerra das Drogas e a lei antiterrorismo de Clinton de 1996—cresceu ainda mais após o 11/9. A infraestrutura de triagem aeroportuária da Administração de Segurança dos Transportes e seus empreiteiros industriais, a vigilância ilegal da NSA por telefone e Internet e os PSIs e redes sociais que cooperam com ela, e a interseção com a crescente militarização da polícia com a supressão de protestos no estilo militar, como Occupy e Ferguson, se uniram em um Complexo Industrial de Segurança no valor de dezenas de bilhões de dólares e um estabelecimento de aplicação da lei que opera quase totalmente fora dela.

Portanto, o capitalismo corporativo de estilo Ocidental e a economia global legalmente integrada a ele (com o apoio definitivo das forças armadas dos EUA) equivalem a uma Cortina GDD.

É claro que a PI não é a única forma de autoritarismo estatal envolvida na manutenção do domínio corporativo. Outro objetivo central da política externa dos EUA é manter o controle neocolonial da terra e dos recursos naturais em todo o Terceiro Mundo pelas corporações transnacionais. O capital ocidental, em aliança com as elites governantes nacionais, perpetua o roubo original desses recursos pelos impérios coloniais Europeus. Voltando aos Espanhóis e Ingleses no Novo Mundo e a Warren Hastings em Bengala, esses impérios cercaram terras e expulsaram milhões de camponeses, convertendo suas antigas propriedades em agricultura de colheita comercial. Eles se apoderaram de depósitos minerais e os exploraram com trabalho escravo. Os herdeiros desse roubo—as corporações transnacionais de mineração e petróleo e as oligarquias latifundiárias nativas em conluio com empresas globais de agronegócio—continuam a saquear centenas de bilhões de dólares em riqueza do Sul Global. E contam com o exército dos EUA e a CIA para intervir quando os povos desses países tentam retomar o que é deles por direito (como na derrubada de Arbenz na Guatemala).

Entre a Guerra às Drogas e a Guerra ao Terror (que são, na verdade, uma guerra contra a Quarta, a Quinta e a Sexta emendas) e a atual expansão de sua aplicação e vigilância na Guerra contra a Pirataria e PI, os EUA possuem um sistema de gulag brutal com uma parcela maior de sua população presa do que qualquer outro país, com exceção da Coreia do Norte.

Talvez o mais irônico seja que a economia corporativa americana esteja até mesmo desafiando o antigo sistema Soviético na única área que era seu orgulho e alegria—planejamento central e ossificação burocrática. Desde o surgimento de uma economia corporativa estável há um século, com os principais setores de manufatura dominados por um punhado de empresas oligopolistas, a grande corporação Americana tem sido uma burocracia planejada centralmente, muito parecida com os antigos ministérios industriais Soviéticos. Elas ignoram ou punem as pessoas com conhecimento real da situação, interferem arbitrariamente em seu julgamento, alocam irracionalmente bilhões em investimentos de capital e utilizam um sistema interno de preços tão divorciado da realidade quanto o do Gosplan. E desde a revolução neoliberal e a ascensão do Capitalismo Cowboy nos anos 80, as corporações foram assumidas internamente por uma autoperpetuadora oligarquia de MBAs praticamente indistinguível da nomenklatura Soviética. Elas conseguem sobreviver, apesar de sua ineficiência e corrupção grosseiras, pelo mesmo motivo que a economia planejada Soviética conseguiu sobreviver por tanto tempo: elas existem em um sistema de poder maior e estatista que as protege da concorrência externa.

Portanto, no lugar do mundo de 25 anos atrás, com uma superpotência global muito ruim parcialmente restringida por uma superpotência regional muito ruim que impunha uma oligarquia burocrática planejada centralmente em uma parte da massa terrestre da Eurásia, o que temos hoje é uma única superpotência global realmente horrível e sem restrições que impõe o capitalismo financeiro monopolista centralmente planejado em todo o planeta. No lugar de uma Cortina de Ferro na Europa Central e na Península Coreana, policiada por arame farpado e torres de metralhadoras, temos um Império global com uma Cortina GDD policiada por drones e porta-aviões. A URSS está morta. Viva a URSS.

Mas não posso deixar por isso mesmo. Esse novo sistema de poder não é mais inevitável, ou mesmo sustentável, do que aquele que entrou em colapso há vinte e cinco anos. Ele faz um trabalho ainda pior, na prática, de controle de informações do que o regime Soviético fazia. Os Soviéticos aprenderam que trancar fotocopiadoras não poderia impedir a circulação da literatura Samizdat, mas seus esforços em fazer isso foram um sucesso retumbante em comparação com a forma como seus sucessores Americanos se saíram contra o The Pirate Bay, Chelsea Manning, Wikileaks, Anonymous e Edward Snowden. As tecnologias de controle e repressão das quais a “propriedade intelectual” depende estão sendo—têm sido—rapidamente minadas por tecnologias libertárias de evasão. As tecnologias reativas para desafiar a projeção do poder militar Americano são muitas vezes mais baratas e possuem um ciclo de inovação muito mais rápido do que as tecnologias Americanas para agressão militar. Os dias desse Império do Mal, assim como do anterior, estão contados.

Artigo original aqui: https://c4ss.org/content/33391

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