Bastiat diz que para tudo temos aquilo que se vê, o que é óbvio. Os efeitos claros da ação, as consequências que a gente calcula. Mas existe também o que não se vê, que são as consequências implícitas.
Tudo na vida é um pouco assim; você sabe algumas consequências do que vai fazer, mas parte delas são inimagináveis. Mesmo que se esforce muito pra pensar em boa parte das consequências, parece existir um limite do quão ciente alguém pode ser sobre alguma ação.
As máquinas, as inteligências artificiais, elas normalmente tem um problema grave que elas ainda não sabem resolver; quando elas tem que tomar uma decisão que envolve duas coisas de mesmo valor lógico, ou seja, duas decisões que são igualmente boas, elas param e não tomam decisão alguma
Nós não, nós tomamos uma decisão ainda que estejamos diante de duas coisas que valorizamos igualmente. Acredito que isso meio que explique porque temos tanta angústia. A sensação de estar perdido é porque não podemos só parar de agir.
Crianças podem, geralmente tem mais tempo para tomar suas decisões, mas adultos não. O difícil de preencher isso é porque esse algo normalmente tem um motivo. Se a angústia vem de nós termos que decidir o que fazer entre boas opções e ter que de fato sacrificar um conjunto de coisas boas que podia vir da decisão, então esse algo que nós perdemos nunca poderá ser colocado de volta.
É como se vendo um vácuo causado por uma decisão que é um quadrado, nós estivéssemos colocando um triângulo, ainda que o vácuo seja preenchido de alguma forma, não é a mesma coisa. E o mais complexo é que isso vai se acumulando, então com o passar do tempo o vazio aumenta. Toda vez que você afirma quem você é, você nega todas as outras pessoas que você poderia vir a ser.
Você sabe que não pode preencher o espaço deixado por quem você poderia ter sido, então essa consciência de que nós somos como somos apesar do que poderia ter sido e que existe um nível de erro em quem nós projetamos como ideal e quem nós conseguimos ser de fato, me parecem ser o centro de uma constatação importante:
Para além das nossas circunstâncias, os recursos que haviam disponívei, parece que uma das questões principais é o que fazemos com elas e o quão próximo o real, aquilo que somos, é do ideal, aquilo que idealizamos.
Só que aí o ideal toma um contorno ainda mais importante. Se o ideal é a régua do sucesso do real, então ele é o nosso parâmetro temporal. É vendo quem era a pessoa perfeita que nós queríamos ter sido e o quão próximos disso nós estamos que nós tentamos preencher esse vácuo.
Sabe o que é mais complicado disso tudo? Se o ideal e o real fosse apenas sobre nós, ainda seria algo mais simples de lidar, mas não é o caso. O ideal e o real são instrumentos de análise do outro também.
Nós temos o que gostaríamos que as pessoas perto de nós tivessem sido. Um ideal pra elas que pode inclusive não ser o ideal delas e que, mesmo que seja, tem uma distância do real delas
Isso é uma qualidade bacana dos grupos. As pessoas normalmente criticam grupos em geral dizendo que eles causam um pensamento em manada e que alienam as pessoas. Mas o que o grupo traz é um ideal comum.
De certa forma que você pode até olhar o outro e ver que existe uma distância entre o real e o ideal, mas pelo menos vocês estão falando de mesmos ideais, mesmo tipo de pessoa que ela quer ser, mesmo tipo de objetivo na vida, mesmo tipo de luta.
Até porque você também tem toda uma distância entre quem você é e o ideal que você queria ser. Então tem toda uma confirmação do grupo em entender suas lutas. Vale lembrar que grupos políticos são apenas uma das parcelas disso. Um grupo político é o que tem um ideal político em comum, mas o comportamento é mais ou menos o mesmo para todos os grupos do qual você faz parte.
Por exemplo: a universidade, nela, seu grupo de amigos universitários tem em comum o ideal de se formarem. Então é esse ideal comum e as dificuldades entre a acepção do real e do ideal que traz proximidade com o grupo, no caso as dificuldades do ato ideal de se formar.
Não dá pra dizer que membros de um mesmo grupo pensam da mesma forma. Na verdade, eu estou filosofando às 23:15 de um domingo, enquanto existe uma ampla gama de assuntos que talvez você se empolgasse mais em conversar.
Pensamos diferente e até aceitamos algum nível de diferença nas nossas relações. Eu diria que nós até gostamos do grupo, mas que partilhamos alguns valores que esses não aceitam diferenças.
Por exemplo, você pode achar totalmente aceitável que eu esteja conversando algo mais denso a essa hora, mas com certeza é um limite claro a ideia de eu ser grosso com mulheres. Se eu fosse um babaca com mulheres, esse seria um motivo de distância real.
Eu estou disposto a acreditar que gostamos de encontrar nos outros um conjunto de valores em comum de tal forma que ainda que o ideal do outro seja diferente e que ele pense diferente, ele esteja numa escala de aceitação e confirmação do que nos define.
A depressão me parece ser o momento em que o nosso ideal se encontra tão distante do nosso real; que não encontramos mais aquilo que queremos ser naquilo que somos; já não encontramos no grupo a confirmação de que a distância entre a realidade e a idealidade é normal, me parece ser a constatação crua e pura de que nossas ações já não dizem mais nada sobre nós mesmos.
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