Minha tradução do artigo Williams, Thomas, “John Duns Scotus”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.)
João Duns Escoto (1265/66–1308) foi um dos mais importantes e influentes filósofos e teólogos da Alta Idade Média*. Suas brilhantes, complexas e diferenciadas, que lhe renderam o título de “Doutor Sutil”, deixaram uma marca em discussões sobre tópicos tão diversos: como a semântica da linguagem teológica, o problema dos universais, a iluminação divina e a natureza da liberdade humana. Este ensaio se atém primeiramente ao que sabemos sobre a vida de Escoto e a datação de suas obras. Oferecendo, em seguida, uma visão geral de algumas de suas posições chave em quatro principais áreas da filosofia: teologia natural, metafísica, teoria do conhecimento e psicologia ética e moral.
1. Vida e Obras
. . . . 1.1 A vida de João Duns Escoto
. . . . 1.2 As obras de Escoto
2. Teologia Natural
. . . . 2.1 Algumas preliminares metodológicas
. . . . 2.2 Prova da existência de Deus
. . . . 2.3 Infinitude divina e a doutrina da univocidade
3. Metafísica
. . . . 3.1 O objeto da metafísica
. . . . 3.2 Matéria e Forma, corpo e alma
. . . . 3.3 Os universais e a individuação
4. Teoria do Conhecimento
. . . . 4.1 Sensação e Abstração
. . . . 4.2 Cognição intuitiva
. . . . 4.3 O ataque aos céticos e ao iluminacionismo
5. Ética e Psicologia Moral
. . . . 5.1 A lei natural
. . . . 5.2 A vontade, a liberdade e a moralidade
Bibliografia
. . . . Principais textos em latim
. . . . Principais textos traduzidos para o inglês
. . . . Literatura secundária
. . . . Outras fontes na Internet
1. Vida e Obras
1.1 A vida de João Duns Escoto
O nome “Escoto” ou “Scotus” identifica Escoto como um escocês. O nome de sua família era Duns, que também era o nome do vilarejo escocês no qual ele nasceu, apenas algumas milhas distante da fronteira com a Inglaterra. Não sabemos a data precisa de seu nascimento, mas sabemos que Escoto foi ordenado ao sacerdócio pela Ordem dos Frades Menores — os Franciscanos — no Prelado de Santo André em Northampton, na Inglaterra, em 17 de Março de 1291. A idade mínima para ordenação era de 25 anos, assim podemos concluir que Escoto nasceu antes de 17 de Março de 1266. Mas quanto tempo antes? A conjectura, plausível mas de nenhum modo totalmente certa, é que Escoto teria sido ordenado o mais cedo dentro da permissibilidade canônica. Visto que o Bispo de Lincoln (a diocese que incluía Oxford, onde Escoto estava estudando, e também o Prelado de Santo André) havia ordenado padres em Wycombe, em 23 de Dezembro de 1290, podemos, então, conjecturar o nascimento de Escoto entre 23 de Dezembro de 1265 e 17 de Março de 1266.
Escoto estudou filosofia e depois teologia em Oxford, começando em meados da década de 1280. No ano acadêmico de 1298–99 ele escreveu comentários aos primeiros dois livros das Sentenças de Pedro Lombardo. Escoto deixou Oxford e foi para Paris, provavelmente em 1302 e começou a lecionar sobre as Sentenças novamente (provavelmente seguindo a ordem Livro I, Livro IV, Livro II, Livro III). Em Junho de 1303, Escoto foi expulso da França junto de outros oitenta frades por terem tomado o lado do Papa Bonifácio VIII em uma disputa com o Rei Filipe IV da França. Depois da morte de Bonifácio, em Outubro de 1305, o rei autorizou que os estudantes exilados retornassem, Escoto poderia ter retornado no final do outono de 1303 para dar continuidade a suas aulas sobre as Sentenças. Tornou-se doutor em teologia em 1305 e foi o mestre regente dos Franciscanos em Paris em 1306–07. Foi transferido para o studium franciscano em Colônia, provavelmente começando seus trabalhos como professor em Outubro de 1307. Morreu em 1308, a data de sua morte é tradicionalmente tida como 8 de Novembro.
1.2 As Obras de Escoto
É um consenso que as primeiras obras de Escoto foram seus comentários sobre a Lógica Antiga: questões sobre a Isagoge de Porfírio e sobre as Categorias de Aristóteles, duas séries de questões sobre o Peri Hermeneias e sobre o De Sophisticis elenchis. Que datam de meados de 1295, as Quaestiones super De anima são bem prováveis de serem uma de suas primeiras obras também (os editores estimam entre fim da década de 1280 e o início da década de 1290). Outros comentários aristotélicos de Escoto, as Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis, parecem ter começado cedo também, mas os comentários do Livro VI ao livro IX são mais tardios ou ao menos foram revisados mais tarde na carreira de Escoto. Ele também escreveu uma Expositio da Metafísica de Aristóteles. Esta última por séculos permaneceu não identificada, mas recentemente foi identificada e editada por Giorgio Pini.
As coisas complicam mesmo quando chegamos aos comentários sobre os quatro livros das Sentenças de Pedro Lombardo, visto que ele realizou comentários às Sentenças mais de uma vez e revisou suas aulas por um longo período, as relações entre as várias versões que chegam a nós nem sempre são totalmente claras. Certamente a Lectura nos apresenta as lições sobre os Livros I e II das Sentenças em 1298–99. Há uma Ordinatio (isto é, uma versão preparada pelo próprio autor para publicação) das lições em Oxford, baseada em parte na Lectura e em material de suas aula em Paris. A Ordinatio, que Escoto parece ter revisado até sua morte, é geralmente considerada a principal obra de Escoto, a edição crítica foi enfim completa em 2013. Finalmente, Escoto lecionou sobre as Sentenças em Paris, e existem várias Reportationes dessas aulas. Uma edição crítica está em andamento, mas por enquanto temos uma transcrição razoavelmente confiável do manuscrito do Livro I. Embora as lições de Paris sejam posteriores às lições de Oxford, parece provável que partes do Ordinatio — Livro IV e talvez também o Livro III — são posteriores às partes correspondentes das Reportatio.
Além dessas obras, temos 46 disputações curtas chamadas Collationes que datam de 1300–1305, uma obra tardia de teologia natural chamada De primo principio , e Quaestiones Quodlibetales dos dias de Escoto como mestre regente (que datam ou do Advento em 1306 ou da Quaresma em 1307). Finalmente, há uma obra chamada Theoremata. Embora dúvidas tenham sido levantadas sobre sua autenticidade, a edição crítica recente a aceita como uma obra genuína de Escoto.
2. Teologia Natural
2.1 Algumas preliminares metodológicas
A teologia natural é, grosseiramente, o empenho em confirmar a existência e a natureza de Deus através de argumentos que de maneira alguma dependem dos conteúdos da alegada revelação. Mas seria ao menos possível que os seres humanos cheguem a conhecer Deus aparte da revelação? Escoto certamente diz que sim. Tal como todo bom aristotélico, ele acredita que nosso conhecimento começa de alguma maneira com a nossa experiência, com as coisas sensíveis. Mas ele é confiante que, mesmo partindo de pontos tão humildes, possamos chegar a Deus.
Escoto concorda com São Tomás de Aquino que todo o nosso conhecimento de Deus tem começo nas criaturas, e, como resultado, podemos apenas provar a existência e natureza de Deus pelo que os medievais chamavam de argumento quia (raciocínio partindo do efeito para a causa), não por um argumento propter quid (raciocínio partindo da essência para uma característica). São Tomás e Escoto ainda concordam que, por essa mesma razão, não podemos conhecer a essência de Deus nessa vida. A principal diferença entre os dois autores é a de que Escoto acredita que podemos aplicar determinados predicados univocamente — com exatamente o mesmo significado —a Deus e às criaturas, enquanto que Tomás insiste no fato de que isso é impossível, e de que podemos usar apenas a predicação análoga, na qual uma palavra enquanto aplicada a Deus tem um sentido diferente, embora relacionado, ao significado da mesma palavra enquanto aplicada às criaturas. (Confira medieval theories of analogy para mais detalhes).
Escoto tem um número de argumentos a favor da predicação unívoca e contra a doutrina da analogia (Ordinatio 1, d. 3, pars 1, q. 1–2, nn. 26–55). Um dos mais proeminentes usa a própria visão de São Tomás contra ele mesmo. Tomás diz que todos os nossos conceito vêm das criaturas. Escoto diz, muito bem, de onde todos estes conceitos análogos virão? Não podem vir do nada. Se todos os nossos conceitos vêm das criaturas (e Escoto não nega isso), então os conceitos que aplicamos a Deus também virão das criaturas. Não são apenas como os conceitos que vêm das criaturas, como numa predicação análoga, eles terão de ser os mesmíssimos conceitos que vêm das criaturas, como acontece na predicação unívoca. Esses são os únicos conceitos que podemos obter — os único que possivelmente podemos obter. Então, se não pudermos usar os conceitos que obtemos das criaturas, no final das contas não poderemos usar conceito algum, e assim não poderíamos falar sobre Deus — o que é falso.
Outro argumento a favor da predicação unívoca é baseado em um argumento de Santo Anselmo. Consideremos todos os predicados, diz Anselmo. Agora deixe de lado os que são meramente relativos, visto que nenhum relativo expressa a natureza de uma coisa como ela é em si mesma, (então não estamos falando de predicados como “ser supremo” ou “Criador”, visto que, mesmo que eles se apliquem a Deus, eles não nos dirão nada acerca do que Deus é em Si mesmo, apenas como Ele é relacionado às outras coisas). Agora, peguemos os predicados que restaram. Aqui está o teste. Consideremos F ser o nosso predicado —nossa variável. Para todo F, ou
(a) é em todo aspecto melhor ser F do que não ser F
~ou~
(b) é em algum aspecto melhor ser não-F do que ser F
Um predicado cairá na segunda categoria se, e se e somente se ele implicar em algum tipo de limitação ou deficiência. O argumento e Anselmo é que podemos (de fato devemos) predicar de Deus todo predicado que caia na primeira categoria, e que nós não podemos predicar de Deus qualquer predicado que caia na segunda (exceto metaforicamente, talvez). Escoto concorda com Anselmo nesse ponto (tal como Tomás: Cf. SCG I. 30). Escoto tem sua própria terminologia para o que quer que seja em todo aspecto melhor ser do que não ser. Ele chama tais coisas de “perfeições puras” (perfectiones simpliciter). Uma perfeição pura é todo predicado que não implica em limitação.
Assim, Escoto afirma que as perfeições puras podem ser predicadas de Deus. Mas ele vai mais adiante que Anselmo. Ele diz que eles devem ser predicados univocamente de Deus, de outro modo toda a questão das perfeições puras sequer faria sentido. Aqui está o argumento. Se usarmos o teste de Anselmo, devemos antes vir com nosso conceito — digamos, o conceito de bem. Então investigamos se é melhor, em todos os aspectos, ser bom em vez de ser não-bom. Percebemos que é, e assim nós predicamos “bom” de Deus. Este teste obviamente não funcionaria a não ser se utilizarmos os mesmos conceitos que estamos aplicando em ambos os casos.
Pode-se perceber isso mais claramente ao considerarmos as duas maneiras possíveis pela qual alguém pode negar que o mesmo conceito é aplicado tanto a Deus como para as criaturas. Pode-se dizer que o conceito da perfeição pura se aplica somente às criaturas, e o conceito que aplicamos a Deus tem de ser algo diferente; ou pode-se tentar da maneira contrária e dizer que o conceito de perfeição pura e aplica somente a Deus, e o conceito que aplicamos às criaturas tem de ser algo diferente. Tal visão destruiria a ideia de que Deus é o maior e mais perfeito ser. Assim alguém poderia apelar à segunda possibilidade: o conceito de perfeição pura se aplica realmente apenas a Deus. Escoto aponta que isso também não pode ser verdadeiro. Pois quando as perfeições que aplicamos às criaturas não forem mais perfeições puras, e então a criatura não estaria em sua melhor condição pois teria essa pseudo-perfeição. Mas todo o caminho que percorremos para chegarmos à ideia de perfeição pura vêm, em primeiro lugar, ao considerarmos as perfeições nas criaturas — em outras palavras, ao considerarmos quais características fizeram as criaturas melhores em todos os aspectos. Assim, essa possibilidade faz o teste ao contrário: diz que devemos começar com o conhecimento de quais características Deus tem e, desse modo, determinar qual seria uma perfeição pura, mas, na verdade, precisamos antes descobrir o que são as perfeições puras e por meio disso saber quais características Deus tem.
Não apenas podemos chegar a conceitos que se aplicam univocamente a Deus e às criaturas, podemos até mesmo chegar a um conceito apropriado (distintivo) de Deus. Agora, de um modo não podemos ter um conceito apropriado de Deus nesta vida, já que não podemos conhecer sua essência enquanto coisa particular. Conhecemos Deus da maneira que conhecemos, digamos, uma pessoa que já ouvimos falar mas nunca nos encontramos. Isto é, nós O conhecemos através de conceitos gerais que se aplicam tanto a ele quanto às outras coisas. De outro modo, entretanto, podemos ter um conceito apropriado de Deus, isto é, um que se aplique apenas a Deus. Se tomarmos qualquer uma das perfeições puras a seus graus mais altos, ele serão predicados de Deus apenas. Melhor ainda, podemos descrever Deus de forma mais completa completamente ao pegarmos todas as perfeições puras em seus graus mais altos e atribuir toda elas a Ele.
Mas estes são todos conceitos compostos, todos envolvem colocar duas noções consideravelmente diferentes juntas: “sumo” com “bem”, “primeira” com “causa”, e assim em diante. Escoto diz que podemos chegar a um conceito relativamente simples que é apropriado a Deus apenas, o conceito de “ente infinito”. Agora que o conceito possa parecer em cada parte tão composto como “sumo bem” ou “causa primeira”, mas na verdade não é. Pois “ente infinito” é um conceito de algo essencialmente uno: um ente que tem a infinitude (ilimitação) como um modo intrínseco de existência. Retornarei ao papel crucial do conceito de ente infinito na teologia natural de Escoto depois de examinar sua prova da existência de Deus.
2.2 Prova da existência de Deus
O argumento de Escoto para a existência de Deus é certamente tido como uma das maiores contribuições feita à teologia natural. O argumento é enormemente complexo, com vários sub-argumentos para quase toda conclusão importante, e eu só poderia esboçá-los aqui (Diferentes versões da prova são dadas em Lectura 1, d. 2, q. 1, nn. 38–135; Ordinatio, 1, d. 2, q. 1, nn, 39–190; Reportatio 1, d. 2, q. 1; e De Primo Principio).
Escoto começa argumentando que há um primeiro agente (um ente que é a primeira causa eficiente). Consideremos primeiro a distinção entre causas essencialmente ordenadas e causas acidentalmente ordenadas. Numa série acidentalmente ordenada, o fato de que um dado membro dessa série ser causado é acidental a própria atividade causal do membro. Por exemplo, Avô A tem um filho, Pai B, que, por sua vez, tem um próprio filho, que é o Neto C. A causalidade de B em C de modo algum depende de A — A poderia estar a muito tempo morto quando B começar a ter crianças. O fato de que B foi causado por A é irrelevante para a própria atividade causal de B. É assim que uma série acidentalmente ordenada de causas funciona.
Numa série essencialmente ordenada, em contraste, a atividade causal do último da série depende essencialmente da atividade causal dos membros anteriores. Por exemplo, meus ombros movem meus braços, que, por sua vez, movem meu bastão de golfe. Meus braços são capazes de mover meu bastão de golfe apenas porque eles estão sendo movidos por meus ombros.
Com essa distinção em mente, podemos examinar o argumento de Escoto para a existência de uma primeira causa eficiente:
(1) Nenhum efeito pode causar a si mesmo.
(2) Nenhum efeito pode ser causado pelo nada.
(3) Uma série circular de causas é impossível.
(4) Portanto, um efeito deve ser causado por outra coisa. (1),(2), (3)
(5) Não há regressão infinita numa série essencialmente ordenada de causas
(5a) Não é necessariamente o caso em que um ente possuindo o poder causal C, possui C de uma maneira imperfeita.
(5b) Portanto, é possível que C seja possuído sem imperfeições por algum ente.
(5c) Se não é possível para cada ente possuir C sem depender de algum ente anterior, então não é possível que haja qualquer ente que possua C sem imperfeição, visto que a dependência é um tipo de imperfeição.
(5d) Portanto, é possível que algum ente possua C sem depender de algum ente anterior. (modus tollens), (5b), (5c)
(5e) Todo ente que possua C sem depender de algum ente anterior é um primeiro agente (isto é, um agente que não é subsequente a alguma causa anterior numa série essencialmente ordenada).
(5f) Portanto, é possível que algo seja um primeiro agente (5d), (5e)
(5g) Se é possível que algo seja um primeiro agente, então algo é um primeiro agente (Pois, por definição, se não houvesse primeiro agente, não haveria causa que poderia trazê-lo a tona, então não seria de fato possível haver um primeiro agente).
(5h) Portanto, algo é um primeiro agente (isto é, um agente que não é posterior a alguma causa anterior numa série essencialmente ordenada — Escoto ainda tem de provar que há um agente que não é subsequente a alguma causa anterior numa série acidentalmente ordenada também. É isso o que ele faz abaixo). (5f), (5g)
(6) Não é possível haver uma série acidentalmente ordenada de causas a não ser que haja uma série essencialmente ordenada.
(6a) Numa série acidentalmente ordenada, cada membro da série (exceto o primeiro, se há um primeiro) passa a existir como resultado da atividade causal de um membro anterior da série.
(6b) Essa atividade causal é exercida em virtude de uma certa forma.
(6c) Portanto, cada membro da série depende daquela forma para sua atividade causal.
(6d) A forma não é em si um membro da série.
(6e) Portanto, a série acidentalmente ordenada é essencialmente dependente de uma causa superior.
(7) Portanto, há um primeiro agente. (4), (5), (6)
Escoto então argumenta que há um fim último do agir (um ente que é primeiro na causalidade final), e um ente maximamente excelente (um ente que é primeiro no que Escoto chama de “preeminência”)
Assim, ele prova o que chama de “tríplice primazia”: há um ente que é primeiro na causalidade eficiente, na causalidade final e na preeminência. Escoto em seguida prova que as três primazias são coexistentes: isto é, que qualquer ente que é o primeiro em uma destas maneiras será também primeiro das outras duas maneiras. Escoto então argumenta que um ser que goze da tríplice primazia é endossado com intelecto e vontade, e qualquer ente que seja assim é infinito. Por fim, ele argumenta que só pode haver um ente com tais atributos.
2.3 A infinitude divina e a doutrina da univocidade
Ao apresentar a prova escotista da existência de Deus, passei rapidamente pela afirmação de que Deus é infinito. Mas a infinitude divina merece um tratamento mais detalhado. Como nós já vimos, o conceito de “ente infinito” tem um papel privilegiado na teologia natural de Escoto. Como uma primeira aproximação, podemos dizer que a infinitude divina é para Escoto o que é a simplicidade divina para Aquino. É o principal atributo do qual Escoto deriva outros atributos divinos. Mas há outras diferenças importantes entre o papel da simplicidade em Tomás e o papel da infinitude em Escoto. O mais importante, penso eu, é que, em Tomás, a simplicidade atua como um estraga-prazeres para a semântica teológica. Simplicidade é, de certo modo, a coisa chave sobre Deus, metafisicamente falando, mas complica seriamente a nossa linguagem acerca de Deus. Deus é substância simples, mas pelo motivo de que nossa linguagem é derivada das criaturas, que são ou substâncias mas complexas ou simples mas não-substâncias, não temos uma maneira de aplicar a nossa linguagem diretamente a Deus. A natureza divina sistematicamente resiste em ser capturada pela linguagem.
Para Escoto, porém, a infinitude não é somente o que é ontologicamente central sobre Deus, é o componente chave de nosso melhor conceito de Deus e um garantidor do sucesso da linguagem teológica. Isto é, nossa melhor ontologia, longe de complicar nossa semântica teológica, auxilia e é auxiliada por nossa semântica teológica. A doutrina da univocidade reside em parte na afirmação de que “a diferença entre Deus e as criaturas, pelo menos no que diz respeito à posse de Deus das perfeições puras é, em última análise, em grau” (Cross [1999], 39). Lembremos de um dos argumentos de escoto a favor da univocidade. Se seguirmos Santo Anselmo ao atribuir a Deus toda perfeição pura, devemos afirmar que estamos atribuindo a Deus a mesmíssima coisa que estamos atribuindo às criaturas: Deus as tem infinitamente, as criaturas as tem de um modo limitado. Dificilmente pode-se perguntar por uma cooperação mais harmoniosa entre ontologia (o que Deus é) e semântica (como podemos pensar e falar sobre Ele).
Escoto imputa a Tomás o seguinte argumento a favor da infinitude divina: Se uma forma é limitada pela matéria, ela é finita, Deus, sendo simples, não é limitado pela matéria. Portanto, Deus não é finito. Isso, aponta Escoto, é um argumento falacioso (é um tipo de negação do antecedente). Mas mesmo aparte da falácia, da simplicidade não se pode derivar a infinitude. Como Escoto aponta: “Se um ente é finito ou infinito, não o é pela razão de algo acidental a si, mas porque tem seu grau intrínseco de perfeição finita ou infinita” (Ordinatio 1, d. 1, pars 1, q. 1–2, n. 142). Assim, a simplicidade não abarca a infinitude, pois a finitude não é resultado de composição. De uma perspectiva diferente, a concepção de Tomás de infinitude é negativa e relacional. O infinito é o que não é limitado por outra coisa. Mas Escoto pensa que podemos ter uma concepção positiva de infinitude, segundo o qual a infinitude não é uma propriedade relacional negativa, mas em vez disso uma propriedade intrínseca positiva. É um “grau intrínseco de perfeição”.
Como nós chegamos na concepção de uma infinitude positiva e intrínseca? A história começa assim. Comecemos com a “infinitude potencial em quantidade”. De acordo com Aristóteles, não se pode ter uma infinitude quantitativa em ato, visto que não importa o quão grande uma quantidade pode ser, pode sempre haver mais. O que se pode ter (e, de fato, tem; como pensa Aristóteles) é uma infinitude quantitativa por partes sucessíveis. O próximo passo é imaginar que todas as partes dessa infinitude quantitativa permanecessem existindo simultaneamente, ou seja, imaginemos uma infinitude em ato. Escoto pede, assim, para que passemos deixemos de pensar num infinito quantitativo e passemos a pensar numa infinitude qualitativa. Pensemos em alguma qualidade (digamos, a bondade) como existindo infinitamente: de modo que não haja, por assim dizer, nenhuma bondade a mais que você possa adicionar a essa bondade para torná-la maior em qualquer grau. Essa é a bondade infinita. Mas note que você não pode imaginar a bondade infinita como sendo de uma maneira composta de mais “parcelas” de bondade (apenas um número infinito delas). Se eu dizer que um anjo é melhor que um ser humano, eu não posso dizer que um ser humano tem um determinado número de “parcelas” de vontade enquanto o anjo tem uma determinada quantidade a mais. Ao invés disso, o grau de bondade de uma coisa é uma característica somente intrínseca, não-quantitativa, da coisa. O ente infinito é justamente o que Escoto descreve como “uma medida de excelência intrínseca que não é finita”. É por isso que o conceito de “ente infinito” é o conceito mais simples para nós entendermos Deus. A infinitude não é um tipo de adição acidental ao ser, mas um modo intrínseco de ser. É claro, se isso estiver certo, então os conceitos de “bondade infinita”, “poder infinito” e assim adiante, são tão simples quanto o conceito de “ente infinito”. Então por que Escoto destaca tanto o “ente infinito”? Porque o “ente infinito”, “contém virtualmente” todas as outras perfeições infinitas de Deus. Isto é, que podemos deduzir as outras perfeições infinitas do ente infinito. Assim, além de ser um conceito simples, é o conceito mais teoricamente frutífero que podemos ter de Deus nesta vida.
3. Metafísica
3.1 O objeto formal da metafísica
A metafísica, de acordo com Escoto, é uma “ciência teorética real”: é real pois trata as coisas em vez dos conceitos, teorética no sentido de que é uma busca por si mesma em vez de ser um guia para fazer ou criar coisas, e uma ciência no sentido de que procede de princípios evidentes em si mesmos para conclusões que se seguem dedutivamente desses princípios. As diversas ciências teoréticas reais são distinguidas pelo seu objeto material, e Escoto dedica uma considerável atenção para determinar qual é o objeto material distintivo da metafísica. Sua conclusão é que a metafísica diz respeito ao “ente enquanto ente” (ens inquantum ens). Isto é, o metafísico estuda o ente simplesmente como tal, em vez de estudar o ente enquanto material.
O estudo do ente enquanto ente inclui, antes de tudo, o estudo dos transcendentais, chamados assim porque transcendem a divisão do ente em finito e infinito, e também a divisão do ente finito nas dez categorias de Aristóteles. O ente enquanto tal é um transcendental e também o são os “atributos apropriados” do ente — uno, verdade, e o bem — que são coexistentes com o ente. Escoto também identifica um número indefinido de disjunções que são coexistentes com o ente e, portanto, contam como sendo transcendentais, por exemplo os predicados infinito ou finito e necessário ou contingente. Finalmente, todas as perfeições puras (ver acima) são transcendentais, visto que eles transcendem a divisão do ente em finito e infinito. Diferente dos atributos apropriados do ente e os transcendentais disjuntivos, entretanto, eles não são coexistentes com o ente. Pois Deus é sábio e Sócrates é sábio, mas minhocas — embora elas certamente sejam entes — não são sábias.
O estudo das categorias de Aristóteles também pertencem a metafísica na medida em que as categorias, ou as coisas que recaem sobre elas, são estudadas como entes (se são estudadas como conceitos, elas pertencem, em vez disso, a lógica). Há exatamente dez categorias, argumenta Escoto. A primeira e mais importante é a categoria de substância. Substâncias são entes no sentido mais robusto, visto que eles têm uma existência independente: isto é, elas não existem em alguma coisa. As nove categorias dos acidentes são a quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, posição e estado (habitus).
3.2 Matéria e forma, corpo e alma
Agora imaginemos alguma substância particular, digamos, eu. Suponha que eu deixe de ser pálido e passe a ser bronzeado. Ainda sou eu que existo tanto antes quanto depois do sol ter exercido seu efeito característico em mim. Isso ilustra uma característica importante das substância: elas podem sucessivelmente ter acidentes contrários e ainda manter sua identidade numérica. Esse tipo de mudança é conhecida, apropriadamente, como mudança acidental. Numa mudança acidental, uma substância persiste ao longo da mudança, tendo primeiro um acidente então outro acidente. Mas claramente nem todas as mudanças são mudanças acidentais. Houve um tempo em que eu não existia, e então eu passei a existir. Não podemos analisar essa mudança como sendo acidental, visto que não parece que há substância alguma que persiste ao longo dessa mudança. Em vez disso, uma substância é precisamente o que vem a ser; isso não é uma mudança acidental mas sim uma mudança substancial. E ainda sim aqui deve haver algo que persiste até mesmo através da mudança substancial, visto que, de outro modo, não haveria mudança no final das contas; as substâncias viriam a existir do nada e desaparecer ao nada. Escoto segue de Aristóteles ao identificar a matéria como o que persiste através da mudança substancial e a forma substancial como sendo o que faz dada parcela de matéria ser a substância definitiva, única e individual (há também formas acidentais, que são as qualidades acidentais de uma substância).
Assim, Escoto repete a ortodoxia aristotélica, e nenhum de seus contemporâneos ou predecessores imediatos teriam achado isso estranho. Mas conforme Escoto elabora suas visões sobre forma e matéria, ele expõe três importantes teses que o distinguem de outros filósofos contemporâneos a ele: ele sustenta que a matéria pode existir por mais que não tenha qualquer forma, que nem todas as substâncias criadas são compostos de forma e matéria, e que alguém e a mesma substância podem ter mais de uma forma substancial. Examinemos, por sua vez, cada uma dessas teses.
Primeiro, Escoto argumenta que Deus pode criar e conservar o que era chamado de “matéria prima”: isto é, a matéria que não possui qualquer forma (para uma análise dos argumentos, confira Ward 2014). A matéria a a forma são coisas distintas, como fica claro no caso da mudança substancial: a forma permanece enquanto a matéria vai e vem. Agora, esse fato pode por si mesmo ser tomado para mostrar apenas que a matéria pode existir aparte de qualquer forma dada (e assim também pensa Escoto), mas Escoto leva a separabilidade da matéria e forma ainda mais adiante. A onipotência divina significa que Deus pode causar imediatamente (isto é, sem uma causa secundária) independente d’Ele normalmente causar através de uma causa secundária; mas dada a onipotência divina, Ele não precisa. Ele pode criar a matéria sem qualquer forma. Ademais, dado que a matéria é uma coisa distinta da forma, Deus cria a matéria diretamente e imediatamente; e o que Deus cria imediatamente, ele pode conservar imediatamente. De modo que Deus pode conservar a matéria sem conservar todas as formas que caracterizam essa matéria.
Segundo, Escoto nega o “hilemorfismo universal”, a visão de que todas as substâncias criadas são compostos de matéria e forma (Lectura 2, d. 12, q. un., n. 55). O Hilemorfismo universal (do grego hyle, que significa “matéria”, e morphe, que significa “forma”) foi a visão predominante entre os franciscanos antes de Escoto. São Boaventura, por exemplo, argumenta que até mesmo os anjos não poderiam ser totalmente imateriais; eles devem ser compostos de forma e “matéria espiritual”. Pois a matéria é potência e a forma é ato, então, se os anjos fossem totalmente imateriais, eles teriam de ser ato puro sem qualquer mescla com a potência. Mas apenas Deus é ato puro. Mas, como nós já vimos em sua afirmação acerca da existência da matéria prima, Escoto simplesmente nega a equação não qualificada da matéria com a potencia e a forma com o ato. A matéria prima, embora seja totalmente informe, poderia ser atual, e um ser puramente imaterial não é automaticamente despido de potência.
Terceiro. Escoto sustenta que algumas substâncias têm mais de uma forma substancial (Ordinatio 4, d. 11, q. 3, n. 54). Essa doutrina da pluralidade das formas substâncias foi comumente aceita entre os Franciscanos, mas vigorosamente disputada por outros. Podemos muito facilmente ver a motivação por essa visão ao relembrar que uma forma da substância deve ser o que faz uma dada parcela de matéria ser a substância definitiva, única e individual que ela é. Agora, supomos, tal como vários pensadores medievais (incluindo Tomás) fizeram, que a alma é uma e a única forma substancial do ser humano. Seguiria-se, então, que quando um ser humano morresse, a alma deixe de informar aquela parcela de matéria, o que foi deixado não foi o mesmo corpo que existia logo antes da morte; há toda uma substância nova, com acidentes totalmente novos (pois acidentes dependem de estar na substância na qual eles subsistem). Pois o que fez aquele corpo ser ele mesmo foi sua forma substancial, a qual (ex hypothesi) não está mais ali.
Para Escoto e muitos de seus irmãos franciscanos pareceu óbvio, portanto, que precisamos assumir uma pluralidade de formas substanciais para evitar estas incongruências metafísicas. Uma forma padrão de tal pluralismo postulou uma “forma do corpo” (forma corporeitatis) que faz uma dada parcela de matéria ser um organismo individual definitivo e único, e a “forma animadora”, ou alma, que faz aquele corpo ser vivo. Na morte, a alma deixa de vivificar o corpo, mas numericamente o mesmo corpo permanece, e a forma do corpo deixa a matéria organizada, ao menos por um tempo. Visto que a forma do corpo é muito fraca para manter o corpo em existência indefinidamente por si só, assim, ela gradualmente decompõe.
A visão e Escoto ainda é mais complicada, pois ele trata cada órgão de uma substância viva como sendo uma substância (um composto de matéria e forma substancial). Se escoto também reconhece a forma corporeitatis sobre e acima as formas dos órgãos corporais é incerto (confira Ward 2014, 90–93). Se ele não a faz, ele deveria aceitar a impalatável conclusão de que um cadáver não é o mesmo corpo que o corpo do organismo. Ele pode, entretanto, desviar da conclusão de que nenhum acidente daquele corpo permanece: qualquer acidente que inere nos órgãos pode permanecer, pois os órgãos são substâncias e continuam a existir (por um tempo) quando o corpo do qual eles eram partes deixa de existir.
Note que a tendência geral das teorias de Escoto de forma e matéria é permitir um grau maior de independência em forma e matéria. Ao postular a existência da matéria prima, Escoto imagina a matéria como existente sem nenhuma forma, ao negar o hilemorfismo universal, ele imagina a forma como sendo existente sem matéria alguma. E a doutrina da pluralidade das formas substanciais sugere fortemente que a alma humana é um indivíduo identificável por direito próprio. Assim, tudo que Escoto diz nessa conexão deixa leva para a possibilidade da alma sobreviver a morte do corpo e continuar a existir como uma substância imaterial por si só. Mas Escoto concebe uma série de argumentos filosóficos a favor da afirmação de que essa possibilidade é de fato realizada, mas ele não acha nenhuma delas como sendo convincente. Que a alma humana sobreviva a morte do corpo é algo que podemos saber apenas pela fé.
3.3 Os universais e a individuação
O problema dos universais pode ser pensado como a questão do que, antes se algo, é a base metafísica do nosso uso do mesmo predicado para mais de um indivíduo distinto. Sócrates é humano e Platão é humano. Isso significa que deve haver alguma realidade universal — a humanidade — que é, de algum modo, repetível, da qual Platão e Sócrates compartilham? Ou não há coisa alguma metafisicamente comum a eles? Aqueles que dizem que há um universal que existe fora da mente são chamados realistas; aqueles que negam os universais extra-mentais são chamados de nominalistas. Escoto era um realista em relação aos universais, e, tal como todos os realistas, ele teve de prestar contas a questão do que exatamente estes universais são: quais são seus status, qual tipo de existência eles têm fora da mente. Assim, no caso de Sócrates e Platão, a questão é “Qual tipo de predicado é essa humanidade que exemplificam tanto Sócrates quanto Platão?” Uma questão relacionada que os realistas têm de encarar é o problema da individuação. Dado que há alguma realidade extra-mental comum a Sócrates e Platão, também devemos saber o que é que, neles, fazem-los exemplificações distintas dessa realidade extra-mental.
Escoto chama o universal extra-mental de “natureza comum” (natura comunis) e o princípio de individuação a “hecceidade” (haecceitas). A natureza é comum no que é “indiferente” a existir em qualquer número de indivíduos. Mas tem sua existência extra-mental apenas nas coisas particulares na qual existe. e nelas é sempre “contraída” pela hecceidade. De modo que a natureza comum que é a humanidade exista tanto em Sócrates quanto em Platão, embora em Sócrates seja feita individual pela haecceitas de Sócrates e em Platão pela haecceitas de Platão. A humanidade-de-Sócrates é individual e não repetível, tal como é a humanidade-de-Platão; mesmo assim a humanidade é e em si comum e repetível, e é ontologicamente anterior a qualquer exemplificação particular dela (Ordinatio 2, d. 3, pars 1, qq. 1–6, traduzido em Spade [1994], 57–113).
4. Teoria do Conhecimento
4.1 Sensação e abstração
Escoto adota a visão medieval aristotélica padrão de que os seres humanos, único entre os animais, têm dois diferentes tipos de potências cognitivas, os sentidos e o intelecto. Os sentidos diferem do intelecto pois os sentidos têm órgãos físicos; e o intelecto é imaterial. Para o intelecto fazer uso da informação sensorial ele deve, portanto, de algum modo tomar o material puro providenciado pelos sentidos na forma de imagens materiais e transformá-los em objetos adequados ao nosso entendimento. Esse processo é conhecido como abstração, do latim abstrahere, que significa literalmente “arrastar”. O intelecto puxa o universal, por assim dizer, do singular que é material no qual o universal está inserido. Essa atividade é performada pelo intelecto ativo ou agente, que pega os “fantasmas” derivados da experiência sensível e os transforma em “espécies inteligíveis”. Estas espécies são atualizadas no intelecto possível ou receptivo, cuja função é receber e então armazenar as espécies inteligíveis providenciadas pelo intelecto ativo. Escoto nega que o intelecto passivo e o intelecto ativo são realmente distintos. Em vez disso, há apenas um intelecto que possui estas duas funções ou potências distintas.
Os fantasmas não se tornam, entretanto, irrelevantes uma vez que as espécies inteligíveis são abstraídas. Escoto sustenta (tal como São Tomás), que o intelecto humano, que o intelecto não consegue alcançar o entendimento sobre as coisas senão através da conversão dos fantasmas (Lectura 2, d. 3, pars 2, q. 1, n. 255). Isto é, a fim de implantar um conceito que já foi adquirido, deve-se fazer algum uso dos dados sensíveis — embora os fantasmas empregados no uso de um conceito adquirido não precisam ser iguais aos fantasmas dos quais aquele conceito foi abstraído primeiramente. Eu adquiro a espécie inteligível do cão de fantasmas de cães, mas eu posso fazer uso desse conceito agora não apenas ao rememorar uma imagem de um cão mas também ao, por exemplo, imaginar o som da palavra em latim para cão. O ponto de Escoto é simplesmente que deve haver algum contexto sensorial para qualquer ato de cognição intelectual.
E mesmo esse ponto não é tão geral quanto minha afirmação desqualificada sugere. Por uma coisa, Escoto acredita que a necessidade de fantasmas por parte de nosso intelecto é um estado temporário. É apenas nesta vida presente que o intelecto deve recorrer aos fantasmas, na próxima vida poderemos fazer isso sem precisar deles. Por outra coisa, Escoto argumenta, em suas obras mais tardias, que mesmo nesta vida nós ainda gozamos de uma cognição intelectual que desvia dos fantasmas. Ele a chamou de “cognição intuitiva”.
4.2 A cognição intuitiva
Escoto entende a cognição [ou intelecção] intuitiva a título de contraste com a cognição abstrativa. A última, como já vimos, envolve o universal e um universal como tal não precisa ser exemplificado. Isto é, minha espécie inteligível de cão informa apenas o que é ser um cão, não informa que um determinado cão particular existe em ato. A cognição intuitiva, em contraste, “produz informações sobre como as coisas estão agora” (Pasnau [2002]). A cognição sensorial, como Escoto explicitamente reconhece, corresponde, por causa disso, a cognição intuitiva. No final das contas é bem incontroverso que a visão ou audição que tenho de um cachorro dê-me informações sobre algum cachorro particular como sendo existente quando eu o vejo ou o ouço. O ponto muito mais ousado de Escoto diz respeito a cognição intuitiva intelectual, por meio da qual o intelecto reconhece uma coisa particular como existente no mesmíssimo momento. A cognição intelectual intuitiva não requer fantasmas, nem envolve espécies inteligíveis (as quais, tal como os fantasmas, são abstrativas).
A intuição cognitiva intelectual tem dois tipos de objetos, objetos extra-mentais sensíveis e os atos da alma (Escoto afirma a possibilidade de tal cognição de objetos extra-mentais em suas obras mais tardias, tendo as negado anteriormente em sua carreira, ele é consistente da possibilidade da cognição intuitiva dos atos da alma, confira Cross 2014, 43–84, sobre a qual eu disserto através desta seção). Devemos ter uma cognição intuitiva dos objetos extra-mentais porque podemos organizá-los intelectualmente enquanto existentes, podemos formar proposições sobre eles e usarmos tais proposições como silogismos. Se, por exemplo, eu formar a proposição “esta flor é vermelha”, os conteúdos dessa proposição devem estar no intelecto, não meramente nos sentidos. Esta é uma cognição intelectual porque é conceitual, é uma cognição intuitiva porque diz respeito a algo em existência. A informação contida nas espécies sensíveis — a superfície e cor da flor — é “promovida” pelo intelecto agente da existência material em um órgão para a existência imaterial no intelecto não-orgânico, de modo que esteja disponível para a cognição intelectual. O papel das espécies sensíveis na cognição intuitiva intelectual explica o porquê de Escoto negar que podemos ter tal cognição de objetos não sensíveis, tais como anjos, nesta vida.
Também temos a cognição intuitiva de nossos atos mentais (Como discutirei na próxima seção, Escoto dedica considerável importância a nossa consciência de si intuitiva) . A cognição abstrativa poderia providenciar a mim, com um conceito abstrato de pensar sobre Escoto, por exemplo, mas eu preciso da cognição intuitiva para saber que eu sou estou de fato exemplificando esse conceito nesse exato momento. Este tipo de cognição intuitiva claramente dispensa até mesmo com espécies sensíveis, visto que o intelecto age como o próprio intelecto, são imateriais e, portanto, não são os tipos de coisas que podem ser sentidos.
4.3 O ataque ao ceticismo e ao iluminacionismo
Escoto argumenta que o intelecto humano é capaz de alcançar a certeza em seu conhecimento da verdade simplesmente pelo exercício de suas potências naturais, sem uma ajuda divina especial. Ele, portanto, rejeita tanto o ceticismo, que nega a possibilidade do conhecimento com certeza, e o iluminacionismo, que insiste que precisamos de uma iluminação divina especial para alcançar a certeza. Ele trabalha este ataque às duas doutrinas no curso de sua resposta a Henrique de Gand em Ordinatio 1. d. 3, pars 1, q. 4 (Para uma tradução, consulte van den Bercken [2016], 114–143).
De acordo com Henrique, a verdade envolve uma relação com um “exemplar” (podemos pensar essa relação como análoga a relação de correspondência apelada por certas teorias da verdade, e o exemplo em si como o ente mental que é um dos relativos da relação de correspondência. O outro relatum, é claro, é “o modo pelo qual as coisas realmente são”). Agora há dois exemplares: o exemplar criado, que é a espécie do universal causado pela coisa conhecida, e o exemplar incriado, que é uma ideia na mente divina. Henrique argumenta que o exemplar criado não pode nos providenciar conhecimento certo e infalível sobre uma coisa. Pois, primeiro, o objeto do qual o exemplar é abstraído é, em si, mutável e, portanto, não pode ser a causa de algo imutável. E como poderia haver determinado conhecimento aparte de alguma base imutável para o conhecimento? Segundo, a própria alma é mutável e sujeita a erro, ela pode ser preservada do erro apenas por algo menos mutável do que ela mesma. Mas o exemplar criado é ainda mais mutável que a alma. Terceiro, o exemplar criado por si mesmo não nos permite distinguir entre a realidade e o sonho, visto que o conteúdo do exemplar é o mesmo em ambos os casos. Henrique, portanto, conclui que, se podemos obter alguma certeza, devemos nos atentar ao exemplar incriado. E, visto que não podemos atentar ao exemplar incriado a partir de nossas potências naturais, é certamente impossível aparte de alguma iluminação divina especial.
Escoto argumenta que, se Henrique estiver certo acerca das limitações de nossas potências naturais, até mesmo a iluminação divina não seria o necessário para nos salvarmos da incerteza avassaladora. Ao primeiro argumento de Henrique ele responde que não há certeza para se ter ao conhecer um objeto mutável como imutável. Ao segundo argumento ele responde que qualquer coisa na alma — incluindo o próprio ato do entendimento que Henrique pensa ser alcançado pela iluminação — é mutável. Então, pelo argumento de Henrique, seria impossível para qualquer coisa preservar a alma do erro. E ao terceiro argumento ele responde que, se o exemplar criado é tão débil que impede a própria certeza, adicionar exemplares extras não resolverá o problema: “Quando algo incompatível com a certeza concorre, a certeza não pode ser alcançada” (Ordinatio 1, d. 3, pars 1, q. 4, n. 221).
Então, os argumentos de Henrique passaram longe de provar que a certeza é possível através da iluminação divina, parece levar a um ceticismo penetrante. Escoto contraria isso mostrando que o ceticismo é falso. Podemos, de fato, alcançar a certeza, e podemos fazê-lo sozinhos com o esforço de nossa potencias intelectivas naturais. Há quatro tipos de conhecimento nos quais a certeza infalível é possível. Primeiro, o conhecimento dos primeiros princípios é certo, pois o intelecto precisa apenas formar tais juízos para perceber que são verdadeiros (e visto que a validade da inferência silogística pode ser conhecida deste modo, segue-se que tudo que é visto como sendo propriamente derivado dos primeiros princípios através da inferência silogística é também conhecido com certeza). Segundo, temos a certeza a respeito de vários juízos causais derivados da experiência. Terceiro, Escoto diz que muitos de nossos próprios atos são tão certos como os primeiros princípios. Não é uma objeção apontar que nossos atos são contingentes, visto que algumas proposições contingentes podem ser conhecidas imediatamente (isto é, sem precisar de ser derivado de alguma outra proposição). Pois, se for o contrário, ou alguma proposição contingente se seguiria de uma proposição necessária (o que é impossível), ou haveria uma regressão infinita nas proposições contingentes (que seria o caso em que nenhuma proposição contingente poderia ser conhecida). Quarto, determinadas proposições sobre a experiência sensível presente também são conhecidas com certeza se elas estão propriamente examinadas pelo intelecto a luz dos juízos causais derivados da experiência.
5. Ética e Psicologia Moral
5.1 A lei natural
Para Escoto, a lei natural, em sentido estrito, contém apenas aquelas proposições morais que são per se notae ex terminis (notadas por si do termo), juntamente com qualquer proposição que possa ser derivada delas dedutivamente (Ordinatio 3, d. 37, q. un.). Per se notae significa que elas são evidentes em si mesmas; ex terminis, significa que elas são evidentes em si mesmas em virtude de serem analiticamente verdade. Agora, um fato importante sobre proposições que são evidentes em si mesmas e analiticamente verdade é que o próprio Deus não pode fazê-las falsas. Elas são verdades necessárias. De modo que a lei natural, em sentido estrito, não depende da vontade de Deus. Isso significa que mesmo que (como eu acredito) Escoto seja algum tipo de teórico da ética dos comandos divinos, ele não se enquadra totalmente na teoria dos comandos divinos. Algumas verdades morais são verdades necessárias, e mesmo Deus não pode mudá-las. Elas seriam verdade independente do que Deus quisesse.
Que verdades são estas? A resposta básica de Escoto é que elas são os mandamentos da primeira tábua do Decálogo (Dez Mandamentos). Frequentemente se pensou que o Decálogo envolvia duas tábuas. A primeira cobre nossas obrigações perante Deus e consistindo nos três primeiros mandamentos: Não terás outros deuses além de mim, não invocará o nome do Senhor teu Deus em vão, e lembra-te do dia do Shabbath, para santificá-lo (Note que muitos protestantes os dividem de forma diferente). A segunda tábua diz as nossas obrigações perante os outros: Honra teu pai e tua mãe, não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho contra teu próximo, e dois mandamentos contra a cobiça. Os mandamentos da primeira tábua são parte da lei natural em sentido estrito porque elas dizem respeito ao próprio Deus, e na maneira pela qual Deus deve ser tratado. Pois Escoto diz que a proposição que se segue é per se nota ex terminis: “Se Deus existe, então Ele deve ser amado como Deus, e nada mais deve ser adorado como Deus, e nenhuma irreverência deve ser feita a Ele”. Dada a própria definição de Deus, segue-se que se há algum ente que seja Tal, Ele Deve ser louvado e adorado, e nenhuma irreverência deve ser mostrada a Ele. Pois estes mandamentos são autoevidentes e analíticos, elas são verdades necessárias. Nem o próprio Deus poderia torná-las falsas.
Mas mesmo os primeiros três mandamentos, uma vez que prestarmos atenção neles, não são, em sentido estrito, partes da lei natural. Em particular o terceiro andamento, sobre o dia do Shabbath, é bem complicado. Obviamente, a proposição “Deus deve ser adorado no Sábado” não é autoevidente ou analítica. Na verdade, diz Escoto, isso sequer é verdade mais, visto que os cristãos adoram no Domingo, não no Sábado. Assim, pergunta Escoto, e a proposição “Deus deve ser adorado em algum momento ou outro”? Mesmo essa verdade não é evidente em si mesma ou analítica. O melhor que se poe fazer é “Deus não deve ser odiado”. Esta é evidente em si mesma e analítica, visto que, por definição, Deus é o ente que mais merece amor e nada n’Ele merece ódio. Mas, obviamente, isto é muito mais fraco do que qualquer mandamento sobre se devemos ou não adorar a Deus.
Assim, quando Escoto completa sua análise, a nós é deixado nada da lei natural em sentido estrito, com exceção de proposições negativas: Deus não deve ser odiado, nenhum outro deus deve ser adorado, nenhuma irreverência deve ser feita a Deus. Todos os outros mandamentos no Decálogo pertencem a lei natural num sentido muito mais fraco. Há proposições que não são per se notae ex terminis e não seguem de tais proposições, mas não “altamente consonantes” com tais proposições. Agora, o ponto importante para Escoto é esse: visto que estas proposições são contingentes, elas estão totalmente sujeitas aos critérios de Deus. Qualquer verdade contingente, independente do que se trate, depende da vontade de Deus.
De acordo com Escoto, é óbvio que Deus conhece todas as proposições contingentes. Deus consegue atribuir os valores de verdade a estas proposições. Por exemplo, “unicórnios existem” é uma proposição contingente. O mesmo para proposições morais contingentes. Tome qualquer proposição e chame-a de L, e chame a proposição oposta a L de não-L, tanto L e não-L são proposições contingentes. Deus pode fazer cada uma delas ser verdade, mas Ele não pode fazer com que ambas sejam verdade, visto que elas são contraditórias. Suponhamos que Deus deseje L. L agora é parte da lei moral. Como explicamos o porquê de Deus ter escolhido L e vez de não-L? Escoto diz que não podemos. A vontade de Deus no que diz respeito a proposições contingentes é ilimitadamente livre. Então, enquanto pode haver alguma razão pela qual Deus escolheu as leis que escolheu, não há uma razão totalmente adequada, nenhuma explicação total. Se houvesse uma explicação total além da vontade de Deus em si, estas proposições não seriam contingentes no final das contas. Elas seriam necessárias. Assim, no final das contas há simplesmente o fato de que Deus escolheu apenas uma lei em vez da outra.
Escoto pretende que esta afirmação seja exatamente paralela da maneira que pensamos sobre os seres contingentes. Por que existem elefantes mas não unicórnios? Como todos concordariam, foi porque Deus quis que houvesse elefantes, mas não unicórnios. Mas por que Ele quis isso? Ele apenas quis. Isso é parte do que queremos dizer quando dizemos que Deus é livre ao criar. Não há coisa alguma restringindo ou O forçando a criar uma coisa em vez de outra. O mesmo é verdade para a lei moral. Por que há a obrigação em se honrar os pais mas não os primos? Porque Deus quis que houvesse a obrigação de se honrar os pais, e Ele não quis que houvesse tal obrigação em relação aos primos. Ele poderia ter querido ambas estas obrigações, e Ele poderia também ter querido nenhuma destas. O que explica a maneira que ele de fato quis? Nada que não seja puramente o fato de que Ele quis que fosse dessa maneira.
(Para recentes críticas a esta interpretação extremamente voluntarista das considerações de Escoto em relação a lei moral, confira Borland e Hillman 2017 e Ward 2019).
5.2 A vontade, a liberdade e a moralidade
Escoto, de forma bem consciente, postula sua noção de liberdade como uma alternativa a noção de Tomás de Aquino. De acordo com Tomás, a liberdade vem simplesmente porque a vontade é um apetite intelectual em vez de um mero apetite sensível. O apetite intelectual é direcionado a objetos como apresentados pelo intelecto e o apetite sensível é direcionado aos objetos enquanto apresentados pelos sentidos. O apetite sensível não é livre porque os sentidos providenciam apenas os particulares como sendo os objetos aos quais apetece. Mas o apetite intelectual é livre porque o intelecto lida com universais, não particulares. Visto que os universais, por definição, incluem vários particulares, o apetite intelectual terá uma série de objetos. Considere a bondade como um exemplo. A vontade não é direcionada a essa ou aquela coisa boa, mas a bondade em geral. Visto que o universal bondade contém uma multiplicidade de coisas particulares, o apetite intelectual possui muitas opções diferentes.
Mas Escoto insiste que o mero apetite intelectual não é suficiente para garantir a liberdade no sentido necessário para a moralidade. A diferença básica desce até esse ponto. Quando São Tomás argumenta que o apetite intelectual tem diferentes opções, ele parece pensar nisso durante um período de tempo. Nesse momento, o intelecto apresenta x como bom, então desejarei x; mas posteriormente o intelecto apresenta y como bom, então desejarei y. Mas Escoto pensa que sua liberdade enquanto envolve múltiplas opções no próprio momento no qual eu desejarei x, eu também poderei desejar y. Os argumentos de São Tomás não mostram que o apetite intelectual é livre em sentido estrito. No que diz respeito a Escoto, São Tomás não abriu alas para uma liberdade genuína.
Aqui é onde Escoto traz sua famosa doutrina das duas afeções da vontade (confira especialmente Ordinatio 2, d. 6, q. 2; 3, d.17, q. un.; e 3, d. 26, q. un.) As afeções são inclinações fundamentais da vontade: o affectio commodi, ou a afecção pelo vantajoso, e o affectio iustitiae, ou a afecção pela justiça. Escoto identifica o affecto commodi com o apetite intelectual. Note o quão importante isso é. Para São Tomás, o apetite intelectual é o mesmo que a vontade, de modo que, para Escoto, o apetite intelectual é apenas parte do que a vontade é. O apetite intelectual é apenas uma das duas inclinações fundamentais da vontade. Por que Escoto faz esta mudança crucial? Pela razão que nós já discutimos. Ele não vê como que o apetite intelectual poderia ser genuinamente livre. Agora, ele não pode negar que a vontade envolve o apetite intelectual. O apetite intelectual é direcionado a felicidade, e certamente a felicidade tem algum papel para desempenhar em nossa psicologia moral. Mas a vontade tem de possuir algo a mais que o apetite intelectual se ela é livre. Esse algo a mais é o affectio iustitiae. Mas não se pode entender totalmente o que é o affectio iustitiae até compararmos as visões de Escoto e São Tomás mais adiante.
Para Tomás, as normas da moralidade são definidas em termos de sua relação com a felicidade humana. Temos uma inclinação natural em direção ao nosso bem, que é a felicidade, e é esse bem que determina o conteúdo da moralidade. Tal como Aristóteles, São Tomás sustenta uma teoria ética eudemonística: o fim da vida moral é a felicidade. É por isso que São Tomás pode entender a vontade enquanto sendo o apetite intelectual pela felicidade. Todas as nossas escolhas vão em direção ao bem humano (ou, ao menos, vai em direção ao bem humano com o concebemos). As escolhas são boas — e, certamente, totalmente inteligíveis — apenas quando elas são ordenadas ao fim último, que é a felicidade. Assim, São Tomás define a vontade simplesmente como a capacidade de escolher de acordo com uma concepção do bem humano — em outras palavras, como apetite intelectual.
Quando Escoto rejeita a ideia de que a vontade é meramente o apetite intelectual, ele está dizendo que há algo fundamentalmente errado com a ética eudemonística. A moralidade não está ligada ao florescimento humano no final das contas. Por isso a convicção fundamental de Escoto de que a moralidade é impossível sem uma liberdade libertária, e visto que ele não vê uma liberdade libertária na teoria eudemonística da ética, a noção tomista deve ser rejeitada. E, do mesmo modo que a concepção da vontade de São Tomás foi moldada para caber em sua concepção eudemonística da moralidade, a concepção de Escoto da vontade é moldada para caber em sua concepção anti-eudemonística de moralidade. Não é meramente que ele pensa que não possa haver liberdade genuína no mero apetite intelectual. É também que ele rejeita a ideia de que normas morais são intimamente ligadas com a natureza humana e a felicidade humana. O fato de que Deus cria os seres humanos com um certo tipo de natureza não requer que Deus mande ou proíba as ações que Ele em fato mandou ou proibiu. As ações que Ele manda não são necessárias para nossa felicidade, e as ações que Ele proíbe não são incompatíveis com nossa felicidade. Agora, se a vontade fosse meramente o apetite intelectual — isto é, se a vontade fosse direcionada apenas a felicidade — ele não poderia escolher de acordo com a lei moral, visto que a lei moral em si não é determinada por nenhuma consideração sobre a felicidade humana. Então Escoto lega as considerações sobre a felicidade ao affectio commodi e atribui o que quer que seja propriamente moral à outra afecção, o affectio iustitiae.
Bibliografia
Fontes primárias em Latim
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- Opera Omnia. (“The Vatican edition”) Civitas Vaticana: Typis Polyglottis Vaticanis, 1950–2013. The Ordinatio (vol. I–XIV) e Lectura (vol. XVI–21).
- Opera Philosophica. St. Bonaventure, NY: The Franciscan Institute, 1997–2006. As questões-comentários sobre a Porphyry’s Isagoge e as Categorias de Arist[oteles (vol. I), sobre o Peri hermeneias e Sophistical Refutations [Refutações Sofísticas, junto com o Theoremata (vol. II), as Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis (vols. III–IV), e as Quaetiones super Secundum et Tertium de Anima (vol. V).
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- Duns Scotus online. Links para textos em latim online, incluindo a reimpressão Vivès da edição Wadding, mantida por Sydney Penner.
- The Franciscan Archive: John Duns Scotus. Oferece textos em latim, traduções, artigos acadêmicos e outros recursos.
- A Treatise on God as First Principle, A tradução de Allan B. Wolter do De primo principio.
- International Scotistic Commission, inclui informações sobre o status de edições críticas, próximos eventos, estudos online e conferências.
- John Duns Scotus: Readings in Ethics. Oferece traduções de alguns dos escritos éticos de Scotus, junto com comentários na edição do Vaticano.
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