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O Socialismo e o Problema Sexual

Tempo de Leitura: 29 minutos

Por Ludwig von Mises

[Este artigo faz parte do livro “Socialismo: uma Análise Econômica e Sociológica”, o livro está disponível para download na página “Livros” deste mesmo site e disponível para compra aqui.]

A ordem social e a família

§.1 
Socialismo e o problema sexual

Propostas para transformar as relações entre os sexos por muito tempo andaram de mão dadas com os planos para a socialização dos meios de produção. O casamento desapareceria junto à propriedade privada, dando lugar a um arranjo mais harmônico com os fatos fundamentais do sexo. Quando o homem é libertado do jugo do trabalho econômico, o amor seria liberado de todos os impedimentos que o têm profanado. O socialismo promete não somente o bem-estar — riqueza para todos —, mas também felicidade universal no amor. Essa parte do seu projeto tem sido uma grande fonte de sua popularidade. É significante que nenhum outro livro socialista alemão tenha sido tão amplamente lido ou sido mais efetivo como propaganda que A Mulher e o Socialismo, de Bebel, que se dedicou acima de tudo à mensagem do amor livre.

Não é estranho que muitos sintam que o sistema de regulação das relações sociais sob o qual vivemos seja insatisfatório. Esse sistema exerce uma influência de longo alcance na divergência dessas energias sexuais, as quais estão na base de tantas atividades humanas, a partir de seus aspectos puramente sexuais para novos propósitos os quais o desenvolvimento cultural evoluiu. Enormes sacrifícios foram feitos para construir esse sistema e novos sacrifícios estão sempre sendo feitos. Há um processo pelo qual cada indivíduo precisa passar em sua própria vida se suas energias sexuais deixarem a forma difusa que elas têm na infância e tomarem sua forma final madura. Ele precisa desenvolver a força psíquica interna que impede o fluxo da energia sexual indiferenciada e, como uma represa, altera sua direção.

Assim, uma parte da energia com a qual a natureza dotou a moção do sexo [Geschlechtstrieb] é desviada dos usos sexuais para outros propósitos. Nem todos escapam ilesos do estresse e da luta dessa mudança. Muitos sucumbem, muitos se tornam neuróticos ou insanos. Até mesmo o homem que se mantém saudável e se torna um membro útil da sociedade é deixado com cicatrizes, que um acidente infortúnio possa reabrir.[1] E mesmo que o sexo se torne a fonte de sua maior felicidade, ele também será a fonte de sua mais profunda dor; seu falecimento dirá a ele que a idade chegou, que ele está condenado a ir ao mesmo caminho de todas as coisas passageiras e terrenas. Portanto, o sexo — que parece o tempo todo enganar o homem ao dar e negar, primeiro, fazendo-o feliz e, depois, mergulhando-o novamente na miséria — nunca o deixa afundar na inércia. Os desejos do homem que acorda e sonha se voltam ao sexo. Aqueles que buscam reformar a sociedade não podem ignorá-lo.

Isso era mais do que esperado, já que muitos deles eram neuróticos, sofrendo de um desenvolvimento infeliz da pulsão sexual. Fourier, por exemplo, sofria de uma psicose grave. A doença de um homem cuja vida sexual é da mais elevada desordem, é evidente em cada linha de seus escritos; é uma pena que ninguém se propôs a examinar sua história de vida pelo método psicanalítico. Que as loucas absurdidades de seus livros circularam tão amplamente e ganharam a mais alta recomendação é devido inteiramente ao fato deles descreverem com uma mórbida fantasia os prazeres eróticos aguardando a humanidade no paraíso do “falanstério”.

O Utopianismo apresenta todos os seus ideais de futuro como a reconstrução da era dourada que a humanidade perdeu por sua própria culpa. Do mesmo modo que pretende que está demandando para a vida sexual apenas um retorno a uma felicidade original. Os poetas da antiguidade não são menos eloquentes em seus louvores a tempos passados maravilhosos de amor livre do que quando falam das eras saturninas, quando a propriedade não existia[2]. O marxismo ecoa os velhos Utópicos.

O marxismo de fato busca combater o casamento assim como busca justificar a abolição da propriedade privada, ao tentar demonstrar sua origem na história; assim como ele buscava por motivos para abolir o Estado com o fato de que o Estado não existiu “desde a eternidade”, que sociedades viveram sem um vestígio de “Estado e poder estatal”.[3] Para o marxista, a pesquisa histórica é meramente um meio de agitação política. Seu uso é para equipá-lo com armas contra a odiosa ordem burguesa da sociedade. A principal objeção a esse método não é que ele promove teorias frívolas e insustentáveis sem examinar cuidadosamente o material histórico, mas que ele contrabandeia uma valoração desse material em uma exposição que finge ser científica. Era uma vez, ele diz, uma era dourada. Então veio uma que era pior, mas suportável. Finalmente, veio o capitalismo, e com ele todo o mal imaginável. Assim, o capitalismo já está condenado. A ele só pode ser dado um único mérito, que, graças ao excesso de suas abominações, o mundo amadureceu para ter sua salvação pelo socialismo.

§.2  
O homem e a mulher na era da violência

Pesquisas etnográficas e históricas recentes têm fornecido uma riqueza de material para se basear um julgamento sobre a história das relações sexuais, e a nova ciência da psicanálise colocou as fundações para uma teoria científica da vida sexual. Por enquanto, a sociologia não começou a entender a riqueza das ideias e dos materiais disponibilizados por essas fontes. Ela não tem sido capaz de reafirmar os problemas de tal forma que eles se ajustem às questões que devem ser seu primeiro estudo hoje em dia. O que ela diz sobre exogamia e endogamia, sobre promiscuidade, sem mencionar o matriarcado e o patriarcado, está bastante desatualizado com as teorias que temos o dever de conduzir. Na verdade, o conhecimento sociológico dos primórdios do casamento e da família é tão problemático que não se pode extrair dele uma interpretação para os problemas que aqui nos ocupam. É bastante seguro onde lida com as condições em tempos históricos, e em nenhum outro lugar.

O governo ilimitado do macho caracteriza as relações familiares onde o princípio da violência domina. A agressividade masculina, que é implícita na própria natureza das relações sexuais, é levada ao extremo. O homem confisca as posses da mulher e mantém esse objeto sexual no mesmo sentido em que ele faz com os outros bens do mundo exterior. Aqui, a mulher vira completamente um objeto. Ela é comprada e roubada; ela é dada, negociada, encomendada; em suma, ela é como uma escrava no lar. Durante a vida, o homem é seu juiz; quando ele morre, ela é enterrada em seu túmulo juntamente com suas outras posses.[4] Com quase absoluta unanimidade, as antigas raízes legais de quase toda nação mostram que isso já foi um arranjo lícito. Historiadores geralmente tentam, especialmente quando lidam com a história de suas próprias nações, suavizar as dolorosas marcas que essas condições deixam na mente moderna. Eles apontam que essa prática era mais leve que a letra da lei, que a severidade da lei não ofuscava as relações entre o casal. No restante, eles fogem o mais rápido possível do assunto que não parece encaixar muito bem em seu sistema, largando algumas observações sobre o antigo rigor da moral e da pureza da vida familiar.[5] Mas, essas tentativas de justificação, as quais o ponto de vista nacionalista e a predileção do passado os seduz, são distorcidas. O conceito dado pelas velhas leis e livros de direito sobre as relações entre o homem e a mulher não é uma especulação teórica de sonhadores de outro mundo. É uma imagem direta da vida e reproduz exatamente o que homens, e também as mulheres, acreditavam do casamento e das relações sexuais entre os sexos. Que a mulher romana que ficou sobre a “manus” de seu marido ou sobre a guarda de seu clã, ou a antiga mulher germânica que permanecia sujeita a “munt” sua vida toda, achavam que essa relação era natural e justa, que elas não se revoltaram contra ela por dentro, ou realizaram qualquer tentativa para se livrar desse jugo — isso não prova que um grande abismo se desenvolveu entre a lei e a prática. Isso somente mostra que a instituição servia aos sentimentos da mulher; e isso não é de se surpreender. As visões legais e morais prevalecentes de um tempo não são sustentadas somente por aqueles que se beneficiam delas, mas também por aqueles que parecem sofrer delas. Sua dominação é expressa nesse fato — que as pessoas das quais eles demandam sacrifícios também os aceitam. Sob o princípio da violência, a mulher é servil ao homem. Nesse caso, ela também vê seu destino. Ela compartilha a atitude a qual o Novo Testamento deu sua mais concisa expressão:

Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher, por causa do homem.[6]

O princípio da violência reconhece somente o homem. Somente ele possui poder, consequentemente, só ele tem direitos. A mulher é meramente um objeto sexual. Nenhuma mulher existe sem um senhor, seja ele um pai ou tutor, marido ou empregador. Até mesmo as prostitutas não são livres; elas pertencem ao dono do bordel. Os hóspedes fazem seus contratos, não com elas, mas com ele. A mulher errante é liberada, e cada um pode utilizá-la ao seu bel-prazer. O direito de escolher um homem por ela mesma não pertence à mulher. A ela é dado um marido e ele a toma. Que ela o ame é seu dever, talvez também sua virtude; o sentimento irá aguçar o prazer que o homem obtém do casamento. Mas a opinião da mulher não é consultada. O homem tem o direito de a repudiar ou se divorciar. Ela não tem tais direitos.

Portanto, na era da violência, a crença na senhoria do homem triunfa sobre todas as outras tendências evolutivas de direitos iguais entre os sexos. A lenda preserva alguns traços de um tempo quando a mulher gozava de uma maior liberdade sexual — o personagem de Brunilda, por exemplo —, mas eles não são mais entendidos. Mas o domínio do homem é tão elevado que entrou em conflito com a natureza das relações sexuais e, por puras razões sexuais, o homem deve, por seu próprio interesse, eventualmente enfraquecer seu domínio.

Pois é contra a natureza que o homem deva tratar a mulher como um objeto sem vontade. O ato sexual é uma permuta, e a mera demonstração de sofrimento da mulher diminui o prazer do homem. Para satisfazer-se, o homem deve despertar a resposta dela. O vitorioso que arrastou a escrava para seu leito matrimonial, o comprador que obteve a filha do pai dela, deve cortejar por aquilo que a violação da mulher resistente não pode dar. O homem que, externamente, parece o mestre absoluto dessa mulher não é tão poderoso em sua casa como ele pensa; ele deve conceder uma parte de sua governança para a mulher, mesmo que ele vergonhosamente esconda esse fato do mundo.

A isso é somado um segundo fator. O ato sexual gradativamente se torna um esforço psíquico extraordinário que tem sucesso somente com a assistência de um estímulo especial. Isso se dá em uma proporção cada vez maior quando o indivíduo é compelido pelo princípio da violência, que torna todas as mulheres em posses, e, portanto, torna mais difícil a relação sexual, de conter seus impulsos e controlar seus apetites naturais. O ato sexual agora requer uma atitude psíquica especial ao objeto sexual. Isso é, amor, desconhecido ao homem primitivo e ao homem de violência, que usa toda a oportunidade de possuir, sem nenhuma seletividade. Essa característica do amor, a supervalorização do objeto, não pode existir quando a mulher ocupa a posição de desprezo ocupada sob o princípio da violência. Pois sob esse sistema, ela é meramente uma escrava, mas é da natureza do amor concebê-la como uma rainha.

Desse contraste surge o primeiro grande conflito na relação entre os sexos, o qual podemos perceber sob a completa luz da história. Casamento e amor se tornam contraditórios. As formas em que esses contrastes aparecem variam, mas em essência permanecem os mesmos. O amor adentrou os sentimentos e pensamentos dos homens e das mulheres, e se tornou cada vez mais o ponto central da vida psíquica, dando significado e encanto à existência. Mas, primeiramente, não teve nada a ver com o casamento e as relações entre marido e mulher. Isto inevitavelmente leva a graves conflitos, conflitos os quais nos são, de fato, revelados na poesia épica e lírica da era do cavalheirismo. Esses conflitos nos são familiares porque eles foram imortalizados em imperecíveis obras de arte e porque eles ainda são tratados por epígonos e por aquelas artes que pegam seus temas de tais condições primitivas pela forma na qual são persistentes no tempo presente. Mas nós, pessoas modernas, não podemos compreender a essência do conflito. Nós não podemos entender o que é prevenir uma solução que iria satisfazer ambas as partes, porque os amantes devem permanecer separados e amarrados àqueles que eles não amam. Onde o amor encontra o amor, onde o homem e a mulher não desejam nada além de poderem permanecer para sempre devotos uns para o outro, lá, de acordo com nossa visão do assunto, tudo deve ser bastante simples. O tipo de poesia que lida somente com esse tipo de situação: que pode, sob as circunstâncias do cotidiano presente, no mínimo trazer João e Maria para os braços um do outro, um desfecho que é, sem dúvida, calculado para o deleite dos leitores de romances, mas que não produz nenhum conflito trágico.

Se, sem o conhecimento da literatura da era do cavalheirismo, e baseando nosso julgamento meramente na informação de outras fontes sobre as relações entre os sexos, nós tentássemos imaginar o conflito psíquico do galanteio cavalheiresco, nós iríamos provavelmente imaginar uma situação na qual o homem é dividido entre duas mulheres: uma sendo sua esposa, para quem estão destinados seus filhos e a outra senhora, a quem pertence seu coração. Ou nós devemos delinear a posição de uma esposa negligenciada por seu marido, que vive com outra. Ainda assim, nada estaria tão afastado de uma era dominada pelo princípio da violência. Os gregos, que dividiam seu tempo entre as cortesãs e a pederastia, de forma alguma sentiam que sua relação com a esposa era um fardo psíquico, e ela também não via no amor dado à cortesã nenhuma usurpação de seus direitos. Nem mesmo o trovador que se dedicava integralmente à dama de seu coração, nem a sua esposa que o esperava pacientemente em casa, sofriam sob o conflito entre amor e casamento. Tanto Ulrich von Liechtenstein quanto sua boa esposa estavam de acordo com o “minnedienst” cavalheiresco da forma que ele devia ser. Na verdade, o conflito entre o amor cavalheiresco era de uma natureza completamente diferente. Quando a esposa concedia os maiores favores a outro, os direitos do marido eram ofendidos. Por mais ávido que ele se dispusesse a ganhar os favores de outras mulheres, ele não tolerava a interferência sobre seus direitos de propriedade, ninguém iria possuir sua mulher. Esse é um conflito baseado nos princípios da violência. O marido é ofendido, não porque o amor de sua esposa é direcionado para longe dele, mas porque o corpo dela, que o pertence, iria pertencer a outros. Onde, com muita frequência na antiguidade e no oriente, o amor do homem não buscava a esposa de outros, mas as prostitutas, as escravas e os garotinhos, todos permanecendo fora da sociedade, um conflito não poderia surgir. O amor força o conflito somente com o ciúme do homem. Somente o homem, como dono de sua esposa, pode reivindicar a sua posse completa. A esposa não tem o mesmo direito sobre seu marido. No julgamento essencialmente diferente concedido ao adultério do homem e ao adultério da mulher, e a diferente maneira pela qual o marido e a esposa consideram o adultério, nós podemos ver hoje a reminiscência desse código, que é de outra forma incompreensível para nós.

Sob tais circunstâncias, enquanto o princípio da violência governar, o impulso do amor tem sua oportunidade de desenvolvimento negada. Banido do singelo lar, ele busca todas as espécies de locais ocultos, onde ele assume formas queer. A libertinagem cresce de forma desenfreada, perversões dos instintos naturais se tornam cada vez mais comuns. As condições são propícias para a propagação de doenças venéreas. Se a sífilis é natural da Europa ou se foi introduzida após o descobrimento da América, é um ponto questionável. Qualquer que seja a verdade, nós sabemos que ela começou a devastar a Europa como uma epidemia aproximadamente no início do século XVI. Com a miséria que ela trouxe, o galanteio do romantismo cavalheiresco chegou ao fim.

§.3
Casamento sob a influência da ideia do contrato

Hoje em dia, somente uma opinião é expressa sobre a influência que o “econômico” exerceu sobre as relações sexuais; que ela tem sido completamente negativa. A pureza natural original das relações sexuais, de acordo com essa visão, foi maculada pela interferência dos fatores econômicos. Em nenhum campo da vida humana o progresso da cultura e o aumento da riqueza teve um efeito tão pernicioso. O homem e a mulher pré-histórica uniram-se pelo mais puro amor; na era pré-capitalista, o casamento e a vida familiar eram simples e naturais, mas o capitalismo trouxe, de um lado, casamentos por dinheiro e mariages de convenances, e prostituição e excessos sexuais de outro. Pesquisas históricas e etnográficas mais recentes demonstraram a falácia desse argumento, e nos deram outra visão da vida sexual nos tempos primitivos e das raças primitivas. A literatura moderna revelou o quão longe das realidades da vida rural estava nossa concepção, mesmo até pouco tempo, da moral simples do camponês. Mas, os velhos preconceitos estavam enraizados demais para serem seriamente abalados por isso. Além disso, a literatura socialista, com a assistência de retórica peculiarmente impressionante, buscou popularizar essa lenda, conferindo a ela um novo pathos. Assim, hoje, poucas pessoas não acreditam que a visão moderna do casamento como um contrato seja um insulto ao espírito essencial da união sexual, e que foi o capitalismo que destruiu a pureza da vida familiar.

Para o cientista, é difícil saber qual método de tratamento assumir perante tais problemas que são fundados em sentimentos, e não no discernimento dos fatos.

O que é bom, nobre, moral e virtuoso, o cientista como tal não é capaz de julgar. Mas ele deve pelo menos corrigir a visão aceita em um ponto importante. O ideal das relações sexuais do nosso tempo é completamente diferente daquela dos tempos primitivos, e nenhuma outra época chegou mais perto de obter esse ideal que a nossa. As relações sexuais dos bons velhos tempos parecem totalmente insatisfatórias quando mensuradas por este, nosso, ideal; portanto, esse ideal deve ter surgido exatamente dessa evolução que é condenada pela teoria atual como sendo responsável pelo fato de que nós falhamos em atingir completamente o nosso ideal. Portanto, é claro que a doutrina predominante não representa os fatos; que, na verdade, ela inverte os fatos e é completamente inválida numa tentativa de entender o problema.

Onde o princípio da violência domina, a poligamia é universal. Cada homem tem tantas esposas quanto consegue defender. Esposas são uma forma de propriedade, sendo sempre melhor ter mais do que menos. O homem se empenha em possuir mais esposas, assim como ele se empenha em possuir mais escravos ou vacas; sua atitude moral é a mesma, na verdade, para escravos, vacas e esposas. Ele demanda fidelidade de sua esposa; somente ele pode dispor do trabalho e do corpo dela, enquanto ele permanece livre de quaisquer laços. A fidelidade do homem implica em monogamia.[7] Um senhor mais poderoso tem o direito de também desposar as esposas de seus subordinados.[8] A amplamente discutida Jus Primae Noctis era um reflexo dessas condições, em que o desenvolvimento final era a relação sexual entre sogro e nora nas “famílias conjuntas” dos Eslavos do Sul.

Reformistas morais não aboliram a poligamia, nem a Igreja a combateu inicialmente. Por séculos, o Cristianismo não levantou objeções à poligamia dos reis bárbaros. Carlos Magno mantinha muitas concubinas.[9] Por sua natureza, a poligamia nunca foi uma instituição do homem pobre; somente os abastados e os aristocratas podiam dela desfrutar.[10] Mas, os últimos se tornaram cada vez mais complexos na medida em que as mulheres entraram no casamento como herdeiras e donas, eram providas com os mais ricos dotes, e a elas eram dados maiores direitos ao disporem dos dotes. Dessa forma, a monogamia foi gradualmente compelida pela esposa que trazia ao seu marido riqueza e por seus parentes — uma direta manifestação da maneira em que o pensamento capitalista e o cálculo penetraram na família. A fim de proteger legalmente a propriedade das esposas e dos seus filhos, uma linha afiada é desenhada entre a conexão legítima e ilegítima e a sucessão. A relação do marido com a esposa é reconhecida como um contrato.[11]

A ideia do contrato adentra a Lei Matrimonial, ela quebra a regra do masculino, e torna a esposa em uma parceira com direitos iguais. De um relacionamento unilateral baseado na força, o casamento se torna um acordo mútuo; a serva se torna a esposa com direitos a demandar do homem tudo aquilo que ele tem direito a demandar dela. Passo a passo, ela ganha a posição no lar que ela detém hoje. Hoje em dia, a posição da mulher difere da posição do homem somente na peculiaridade das formas de ganharem seu sustento. Os privilégios remanescentes do homem têm pouca importância. Eles são privilégios de honra. A esposa, por exemplo, ainda carrega o nome do marido.

Essa evolução do casamento se deu pelo caminho da lei relacionada à propriedade das pessoas casadas. A posição da mulher no casamento melhorou com o recuo do princípio da violência, e com o avanço da ideia do contrato em outros campos da Lei de Propriedade, ela necessariamente transformou as relações entre os casais. A esposa foi libertada do poder do seu marido pela primeira vez quando ela obteve direitos sobre a riqueza que ela trazia ao casamento e que ela adquiria durante o casamento, e quando o que seu marido costumava dar a ela foi transformado em abonos obrigatórios por lei.

Portanto, o casamento da forma que conhecemos veio a existir inteiramente como resultado da ideia contratual penetrando nesse âmbito da vida. Todos os nossos estimados ideais de casamento cresceram dessa ideia. Que o casamento une um homem e uma mulher, que ele pode somente ser aderido com o consentimento de ambas as partes, que ele impõe um dever de fidelidade mútua, que as violações dos votos matrimoniais pelo homem devem ser julgadas da mesma forma que as da mulher, que os direitos do marido e da esposa são essencialmente os mesmos — esses princípios se desenvolvem a partir da atitude contratual do problema da vida matrimonial. Ninguém pode alegar que seus ancestrais pensavam o casamento da mesma forma que pensamos hoje. A ciência não pode julgar se a moralidade já foi mais severa. Nós podemos somente estabelecer que nossas visões do que o casamento deve ser são diferentes das visões das gerações passadas, e que o antigo ideal de casamento parece imoral aos nossos olhos.

Quando os panegiristas da boa e velha moralidade execram a instituição do divórcio e da separação, eles provavelmente estão certos ao afirmar que tais coisas não existiam anteriormente. O direito de se livrar de sua esposa que o homem uma vez possuiu de forma alguma se assemelha à moderna lei do divórcio. Nada ilustra mais claramente a grande mudança de atitude que o contraste entre essas duas instituições. E quando a Igreja toma para si a liderança na luta contra o divórcio, é bom lembrar que a existência do ideal moderno do matrimônio monogâmico — de marido e esposa com direitos iguais — na defesa do que a Igreja deseja intervir, é o resultado do desenvolvimento capitalista, e não eclesiástico.

§.4
Os problemas da vida de casado

No casamento contratual moderno, que ocorre no desejo do marido e da mulher, o casamento e o amor são unidos. O casamento parece moralmente justificado apenas quando se dá por amor; sem amor entre os noivos, ele parece impróprio. Nós achamos estranhos esses casamentos reais que são arranjados com antecedência, e em que, como na maioria dos pensamentos e das ações das Casas governantes, a era da violência ecoa. O fato que elas acham necessário apresentar esses casamentos ao público como casamentos por amor mostra que até mesmo as famílias reais não têm sido capazes de escapar do ideal de casamento burguês.

Os conflitos da vida matrimonial moderna surgem, em primeiro lugar, da duração necessariamente limitada da paixão em um contrato para a vida toda. “Die Leidenschaft flieht, die Liebe muss bleiben” (A paixão voa, o amor deve ficar), diz Schiller, o poeta da vida matrimonial burguesa. Na maioria dos casamentos abençoados por filhos, o amor do casal desaparece lenta e imperceptivelmente; no seu lugar se desenvolve uma afeição amigável, que, de tempos em tempos, é interrompida por uma breve oscilação do velho amor; viver junto se torna habitual, e nas crianças, em cujo desenvolvimento eles revivem sua juventude, os pais encontram um consolo para a renúncia que eles foram forçados a fazer com a depravação da idade sobre suas forças.

Mas, não é assim para todos. Há muitas maneiras pelas quais o homem pode se reconciliar com a transitoriedade da peregrinação terrena. Para o fiel, a religião traz consolo e coragem; ela o permite se ver como um fio no tecido da vida eterna, atribui a ele um lugar no imperecível plano de um criador, e o coloca além do tempo e do espaço, velhice e morte, elevado nas pastagens celestiais. Outros encontram satisfação na filosofia. Eles se recusam a acreditar em uma providência beneficente, uma ideia que entra em conflito com a experiência; eles desprezam a fácil consolação derivada de uma estrutura arbitrária de fantasias, de um esquema imaginário estruturado para criar a ilusão de uma ordem no mundo diferente da ordem que eles são forçados a reconhecer ao seu entorno. Mas, a grande massa dos homens toma outro caminho. Lenta e apaticamente eles sucumbem à vida cotidiana; eles nunca pensam além do momento, mas se tornam escravos do hábito e das paixões. Entre esses, porém, há um quarto grupo, que consiste em homens que não sabem onde ou como encontrar a paz. Tais pessoas não conseguem mais acreditar, porque elas já comeram da árvore do conhecimento; elas não podem mais sufocar seus corações rebeldes em apatia; eles são inquietos e desequilibrados demais para fazerem os ajustes filosóficos às realidades. A qualquer custo eles querem obter e manter a felicidade. Com todas suas forças eles forçam as barras que aprisionam seus instintos. Eles não se sujeitam. Eles querem o impossível, buscando felicidade não no esforço, mas na satisfação; não na batalha, mas na vitória.

Tais naturezas não conseguem tolerar o casamento quando o fogo do primeiro amor começa a se extinguir. Elas fazem as maiores demandas sobre o amor em si e supervalorizam o objeto sexual. Portanto estão condenadas, pelo menos por razões psicológicas, a experimentar mais cedo que as pessoas mais moderadas, a frustração da vida íntima do casamento. E essa frustração pode facilmente se tornar repulsa. O amor se torna em ódio, a vida com o antes amado ou amada se torna em tormento. Ele não pode se contentar, ele não está disposto a moderar as ilusões com as quais ele entrou em um casamento por amor, que não aprende a transferir para seus filhos, de forma sublime, aqueles desejos que o casamento não pode mais satisfazer — esse homem não foi feito para o casamento. Ele fugirá das amarras com novos projetos de felicidade no amor, de novo e de novo repetindo a velha experiência.

Mas, tudo isso não tem nada a ver com condições sociais. Esses casamentos não são destruídos porque o casal vive na ordem capitalista da sociedade e porque os meios de produção são privados. A doença germina não por fora, mas por dentro; ela cresce da disposição natural das partes afetadas. É falacioso argumentar que porque tais conflitos não existiam numa sociedade pré-capitalista, o matrimônio deve ter então provido o que é deficiente nesses casamentos doentios. A verdade é que amor e casamento eram separados, e as pessoas não esperavam que o casamento fornecesse a eles uma felicidade límpida e duradoura. Apenas quando a ideia do contrato e do consentimento foram estabelecidos no casamento que o casal passa a demandar que sua união deva satisfazer o desejo permanentemente. A felicidade do amor está na disputa dos favores da amada, e na satisfação do anseio de permanecer unido a ela. Nós não precisamos discutir se tal felicidade pode durar quando a satisfação fisiológica é negada. Mas, nós sabemos com certeza que uma vez que o desejo é satisfeito, ele esfria mais cedo ou mais tarde, e que as tentativas de tornar permanente as horas fugitivas do romance seriam em vão. Nós não podemos culpar o casamento por ser incapaz de transformar nossa vida terrena em uma infinita série de momentos extáticos, totalmente radiantes com os prazeres do amor. Nós estaríamos igualmente errados ao culpar o ambiente social.

Os conflitos que as condições sociais causam na vida matrimonial são de menor importância. Seria errado assumir que os casamentos sem amor concretizados pelo dote da esposa ou pela riqueza do marido, ou que casamentos desgraçados por fatores econômicos são, de qualquer forma, tão importantes como um aspecto máximo da questão quanto a frequência com que a literatura sobre eles sugere. Há sempre uma saída fácil se as pessoas procurarem somente por ela.

Como uma instituição social, o casamento é um ajuste do indivíduo à ordem social pelo qual um certo campo de atividade, com todas suas tarefas e procedimentos, é designado a ele. Naturezas excepcionais, cujas habilidades os elevam além da média, não conseguem suportar a coerção que tal ajuste ao modo de vida das massas deve envolver. O homem que sente dentro de si a ânsia de inventar e alcançar coisas grandiosas, que está preparado para sacrificar sua vida para não fracassar em sua missão, não irá sufocar sua ânsia pelo bem de uma esposa ou de filhos. Na vida de um gênio, por mais amorosa que a mulher seja, a mulher e tudo mais relacionado a ela ocupam um espaço pequeno. Nós não falaremos aqui dos grandes homens em que o sexo foi completamente sublimado e direcionado para outros canais -Kant, por exemplo -ou aqueles cujo espírito ardente, insaciável na busca do amor, não puderam aquiescer com as inevitáveis frustrações da vida conjugal e apressaram-se com uma ânsia incansável de uma paixão para outra. Até mesmo o homem genial cuja vida conjugal parece tomar um curso normal, cuja atitude perante o sexo não difere dos demais, não pode, no longo prazo, sentir-se vinculado ao casamento sem violar a si mesmo. O gênio não se permite ser impedido por qualquer consideração pelo conforto de seus companheiros, até mesmo os mais próximos. Os laços do casamento se tornam vínculos intoleráveis, os quais o gênio tenta se livrar ou no mínimo afrouxar para que possa se mover livremente. O casal deve caminhar lado a lado pelas trivialidades da humanidade. Aquele que deseja trilhar seu próprio caminho deve se libertar disso. É realmente raro que haja a felicidade de encontrar uma mulher disposta e capaz de o seguir no seu caminho solitário. Tudo isso foi reconhecido há muito tempo. As massas o tinham aceitado tão completamente que aquele que traísse sua esposa só se sentia capaz de justificar sua ação nesses termos. Mas o gênio é raro, e a instituição social não se torna impossível meramente porque um ou dois homens excepcionais são incapazes de se ajustarem a ela. Nenhum perigo ameaça o casamento nesse aspecto.

Os ataques lançados contra ele pelo Feminismo no século XIX pareceram muito mais sérios. Suas porta-vozes alegavam que o casamento forçava a mulher a sacrificar sua personalidade. Ele deu ao homem espaço suficiente para desenvolver suas habilidades, mas à mulher foi negada toda sua liberdade. Isso foi imputado à imutável natureza do casamento, que atrela marido e mulher juntos e, portanto, rebaixa a mulher mais fraca à condição de serva do homem. Nenhuma reforma pode alterar isso; somente a abolição da instituição como um todo pode remediar esse mal. As mulheres devem lutar para se libertarem desse jugo, não só para que sejam livres para satisfazer seus desejos sexuais, mas para que possam desenvolver sua individualidade. Relações mais frouxas que deram liberdade a ambas as partes devem substituir o casamento.

A ala radical do Feminismo, que mantém firme esse ponto de vista, ignora o fato que a expansão dos poderes e habilidades femininas é inibida não pelo casamento, não por estar presa ao homem, aos filhos, e à casa, mas pela forma mais absorvente em que a função sexual afeta o corpo feminino. A gravidez e o cuidado das crianças sugam os melhores anos da vida da mulher, os anos em que o homem pode utilizar suas energias para grandes realizações. Pode-se acreditar que a distribuição desigual do fardo da reprodução é uma injustiça da natureza, ou que é indigno da mulher ser mãe e babá, mas acreditar nisso não altera o fato. Pode ser que a mulher seja capaz de escolher renunciar ao mais profundo prazer feminino, o prazer da maternidade, ou o desenvolvimento mais masculino de sua personalidade em ação e empenho. Pode ser que ela não tenha tal escolha. Pode ser que, ao suprimir seu anseio pela maternidade, ela cause um dano que reaja através de todas as outras funções do seu ser. Mas qualquer que seja a verdade sobre isso, o fato permanece que, quando ela vira uma mãe, dentro ou fora do casamento, ela é impedida de liderar sua vida tão livremente e independentemente como um homem. Mulheres extremamente talentosas podem alcançar grandes coisas apesar da maternidade; mas como as funções do sexo afetam primeiramente as mulheres, a genialidade e as grandes conquistas foram negadas a elas.

Enquanto o Feminismo busca ajustar a posição legal da mulher à posição dos homens, enquanto ela busca oferecer a ela liberdade legal e econômica para se desenvolver e agir de acordo com suas inclinações, desejos e circunstâncias econômicas, então não é nada mais que um ramo do grande movimento liberal, que advoga pela evolução livre e pacífica. Quando, indo além disso, ele ataca as instituições da vida social sob a impressão que irá, portanto, ser capaz de remover as barreiras naturais, é um filho espiritual do Socialismo. Por ser uma característica do Socialismo descobrir nas instituições sociais a origem de fatos inalteráveis da natureza, e de se empenhar, ao reformar essas instituições, a reformar a natureza.

§.5
Amor livre

O amor livre é a solução socialista radical para os problemas sexuais. A sociedade socialista abole a dependência econômica da mulher, que resulta do fato que a mulher é dependente da renda do marido. Homens e mulheres têm os mesmos direitos econômicos e os mesmos deveres, na extensão que a maternidade não demande alguma consideração especial para a mulher. Os fundos públicos fornecem a manutenção e educação das crianças. Portanto, as relações entre os sexos não são mais influenciadas pelas condições sociais e econômicas. O acasalamento deixa de fundar a forma mais simples de união social, o casamento e a família. A família desaparece e a sociedade é confrontada somente com indivíduos separados. Afogar-se no amor se torna completamente livre. Homens e mulheres se unem e se separam de acordo com a exigência de seus desejos. O socialismo não deseja criar nada novo em tudo isso, mas “iria apenas recriar em um nível mais elevado de cultura e sob novas formas sociais o que era universalmente válido em um nível cultural mais primitivo, e antes da propriedade privada ter dominado a sociedade.”[12]

Os argumentos, às vezes untuosos e às vezes venenosos, que são apresentados por teólogos e outros professores morais, são inteiramente inadequados como resposta a esse plano. E a maioria dos escritores que se ocuparam com os problemas das relações sexuais têm sido dominados pelas ideias monásticas e ascéticas dos teólogos morais. Para eles, a pulsão sexual é o puro mal, a sensualidade é pecado, a volúpia é um dom diabólico, e até mesmo o pensamento em tais coisas é imoral. Se sustentamos ou não essa condenação da pulsão sexual, depende inteiramente de nossa inclinação e escala de valores. O empenho moralista de atacar ou defender de um ponto de vista científico é perda de tempo. Os limites do método científico são mal compreendidos quando a ele é atribuído o papel de juiz e avaliador; a natureza do método científico é mal compreendida quando se espera influenciar a ação, não meramente ao demonstrar a efetividades dos meios para fins, mas por determinar o valor relativo dos próprios fins. O cientista lidando com problemas éticos deve, contudo, salientar que não podemos começar por rejeitar a pulsão sexual com um mal em si, e então dar, sob certas condições, nossa aprovação moral na tolerância da atividade sexual. A máxima condenando o prazer sensual na relação sexual, que, contudo, declara que o obediente cumprimento do debitum conjugale com o propósito de gerar sucessores seja moral, brota de um sofismo miserável. O casal age com sensualidade; nenhuma criança foi alguma vez gerada e concebida em consideração à necessidade do Estado de recrutas e pagadores de impostos. Para ser bastante lógico, um sistema ético que rotula o ato de procriação como vergonhoso teria que demandar uma abstinência completa e incondicional. Se nós não desejamos ver a vida ser extinta, nós não devemos chamar a fonte de onde ela é renovada de fossa do vício. Nada intoxicou mais a moral da sociedade moderna que esse sistema ético que por não condenar nem aprovar logicamente, ofusca a distinção entre o bem e o mal e dá ao vício um encanto brilhante. Isso é, mais do que tudo, o culpado pelo fato que o homem moderno hesita sem rumo em questões de moralidade sexual, e não é nem mesmo capaz de propriamente apreciar os grandes problemas das relações entre os sexos.

É claro que o sexo é menos importante na vida do homem do que da mulher. A satisfação traz a ele descanso e paz mental. Mas, para a mulher, o fardo da maternidade começa aqui. O destino dela é completamente circunscrito pelo sexo; na vida do homem, ele é apenas acidental. Por mais fervorosamente e inteiramente que ele ame, por mais que ele se sacrifique pelo bem da mulher, ele sempre permanece acima do sexual. Até mesmo as mulheres estão finalmente cheias do homem que está totalmente absorto no sexo. Mas, a mulher precisa exaurir-se como amante e como mulher a serviço da pulsão sexual. Os homens podem até achar difícil, a despeito de todas as suas preocupações de sua profissão, preservar sua liberdade interior e desenvolver sua individualidade, mas não será sua vida sexual que mais o irá distrair. Para a mulher, o sexo é o maior obstáculo.

Portanto, o significado da questão feminista é essencialmente a luta da mulher por personalidade. Mas essa questão afeta o homem tanto quanto a mulher, pois somente na cooperação os sexos podem alcançar o maior grau de cultura individual. O homem que está sempre sendo arrastado pela mulher para as esferas mais baixas da servidão psíquica não pode se desenvolver livremente no longo prazo. Preservar a liberdade da vida interior para a mulher, esse é o real problema feminino; ele é parte do problema cultural da humanidade.

Foi o fracasso para resolver esse problema que destruiu o Oriente. Lá, a mulher é um objeto de desejo, uma procriadora e cuidadora. Todo movimento progressista que começou com o desenvolvimento da personalidade foi prematuramente frustrado pelas mulheres, que arrastaram os homens novamente para o miasma do harém. Hoje, nada separa o Oriente e o Ocidente de forma mais decisiva do que a posição da mulher e a atitude perante a mulher. As pessoas geralmente sustentam que a sabedoria dos orientais compreendeu as questões últimas da existência mais profundamente que toda a filosofia europeia. De toda forma, o fato de que eles nunca foram capazes de se libertarem nos assuntos sexuais selou o destino de sua cultura.

Foi no meio-termo entre o Oriente e o Ocidente que a cultura única dos gregos se desenvolveu. Mas a antiguidade também falhou em elevar a mulher ao mesmo nível que colocou o homem. A cultura grega excluía a mulher casada. A esposa permanecia nos seus aposentos, separada do mundo, sendo nada mais que a mãe dos herdeiros do marido e responsável pela sua casa. Seu amor era somente pela hetera. Eventualmente, até mesmo com ela ele não estava mais satisfeito, e voltava-se para o amor homossexual. Platão via o amor por garotos transfigurado pela união espiritual dos amantes e pela contente renúncia à beleza da alma e do corpo. Para ele, o amor pela mulher era mera satisfação libidinosa grosseira.

Para o homem ocidental, a mulher é uma companheira, para o oriental, ela é uma concubina. A mulher europeia nem sempre ocupou a posição que ocupa hoje. Ela a ganhou no curso da evolução do princípio de violência para o princípio do contrato. E agora homens e mulheres são iguais perante a lei. As pequenas diferenças que ainda persistem na lei privada não são de significância prática. Se, por exemplo, a lei obriga a esposa a obedecer ao marido, não é particularmente importante; enquanto o casamento sobreviver, uma das partes terá que seguir a outra e, caso o marido ou a mulher seja mais forte, certamente não é uma questão que os parágrafos do código legal possam decidir. Também não é de grande significância que os direitos políticos da mulher sejam restringidos, que às mulheres sejam negados o direito do voto e de terem cargos públicos. Pois, ao garantir o voto à mulher, a força política proporcional dos partidos políticos é pouco alterada; as mulheres desses partidos que devem sofrer pelas mudanças esperadas (em todo o caso, não muito importantes) devem, por interesse próprio, tornarem-se oponentes do sufrágio feminino em vez de apoiadoras. O direito de ocupar cargos públicos é negado à mulher mais pelas peculiaridades de seu caráter sexual do que pelas limitações dos seus direitos. Sem subestimar o valor da luta feminista de entender os direitos civis femininos, pode-se seguramente tentar afirmar que nem as mulheres e nem a comunidade estão profundamente prejudicados pelas afrontas à posição jurídica das mulheres que ainda permanece na legislação dos países civilizados.

O equívoco ao qual o princípio de igualdade perante a lei é exposto no campo das relações sociais gerais é encontrado no campo especial das relações entre esses sexos. Assim como o movimento pseudodemocrático se empenha por decreto a apagar desigualdades naturais e socialmente condicionadas, assim como quer tornar os fortes iguais aos fracos, os talentosos iguais aos sem talento, e os saudáveis iguais aos doentes, a ala radical do movimento feminino busca tornar as mulheres iguais aos homens.[13] Apesar de elas não poderem ir tão longe ao ponto de passar metade do fardo da maternidade para os homens, elas ainda gostariam de abolir o casamento e a vida familiar para que mulheres possam ao menos ter toda a liberdade que pareça compatível com ter filhos. Desoneradas do marido e dos filhos, as mulheres podem se mover livremente, agir livremente, e viver para ela mesma e para o desenvolvimento de sua personalidade.

Mas, a diferença entre caráter sexual e destino sexual não pode ser decretada mais do que quaisquer outras desigualdades da humanidade. Não é o casamento que mantém a mulher internamente presa, mas o fato que o caráter sexual dela demanda renunciar ao homem e que o seu amor ao marido e filhos consome suas melhores energias. Não há lei humana que impede a mulher que busca por felicidade numa carreira de renunciar o amor e o casamento. Mas, aquelas que não renunciam a eles são deixadas com força insuficiente para controlar a vida como um homem pode. É o fato que o sexo possui toda sua personalidade, e não os fatos do casamento ou da família, o que acorrenta as mulheres. Ao “abolir” o casamento, pode ser que a mulher não seja mais livre e mais feliz; o conteúdo essencial da sua vida seria tomado, e nada seria colocado no lugar.

A luta feminina de preservar sua personalidade no casamento é parte da sua luta por integridade pessoal, que caracteriza a sociedade racionalista da ordem econômica baseada na propriedade privada dos meios de produção. Não é exclusivamente do interesse da mulher que ela deva ter sucesso em sua luta; contrastar os interesses dos homens e das mulheres, da forma extrema que as feministas tentam fazer, é extremamente tolo. Toda a humanidade sofre se a mulher falha em desenvolver seu ego e é incapaz de se unir ao homem como companheiros e camaradas livres e iguais.

Tomar de uma mulher seus filhos e colocá-los em uma instituição é tomar parte de sua vida; e as crianças são privadas das mais vastas influências quando são arrancadas do seio da família. Só recentemente Freud, com sua perspicácia genial, demonstrou quão profundas são as marcas que o lar deixa na criança. Dos pais, a criança aprende a amar, e então vem a possuir as forças que o possibilitam crescer e se tornar um ser. Examinar o quão longe as demandas radicais do Feminismo foram criadas por homens e mulheres cujo caráter sexual não foi desenvolvido normalmente seria ir além dos limites programados dessas exposições. A instituição educacional segregada gera homossexualidade e neurose. Não é coincidência que a proposta de tratar homens e mulheres de forma radicalmente igual, a regulação das relações sexuais pelo Estado, a colocação de crianças em creches públicas desde o nascimento e a garantia de que filhos e pais permaneçam desconhecidos um para o outro tenham se originado em Platão; ele via somente a satisfação de um desejo físico nas relações entre os sexos.

A evolução que levou do princípio de violência para o princípio contratual baseou essas relações na livre escolha no amor. A mulher pode se negar a qualquer um, ela pode demandar fidelidade e constância do marido com que ela se relaciona. Apenas dessa forma a fundação é construída para o desenvolvimento da individualidade da mulher. Ao retornar ao princípio da violência com uma negligência consciente da ideia contratual, o socialismo, apesar de buscar uma distribuição igualitária dos ganhos, acaba demandando promiscuidade da vida sexual.

§.6
Prostituição

O manifesto comunista declara que o “complemento” da “família burguesa” é a prostituição. “Com o desaparecimento do capital”, a prostituição também desapareceria.[14] Um capítulo no livro de Bebel sobre mulheres é intitulado “Prostituição, uma instituição social necessária do mundo burguês”. Aqui está simplificada a teoria que a prostituição é tão necessária para a sociedade burguesa quanto “polícia, exército, igreja, empreendedores, etc.”[15] Desde seu aparecimento, a visão que a prostituição é um produto do capitalismo tem ganhado muita visibilidade. E, além disso, pregadores reclamam que a boa e velha moral decaiu, e acusam a cultura moderna de ter propiciado uma vida libertina, convencidos de que todos os erros sexuais representam um sintoma da decadência peculiar de nossa era. Em resposta a isso, é suficiente apontar que a prostituição é uma instituição extremamente antiga, desconhecida a quase ninguém que já tenha existido.[16] É remanescente da antiga moral, não um sintoma de declínio de uma cultura elevada. A influência mais poderosa contra ela hoje — a exigência pela abstinência do homem fora do casamento — é um dos princípios envolvidos nos direitos morais igualitários para homens e mulheres, e, portanto, um ideal da era capitalista. A era do princípio da violência demanda pureza sexual apenas da noiva, não do noivo. Todos esses fatores que favorecem a prostituição hoje não têm nada a ver com a propriedade privada e o capitalismo. O militarismo, o qual afasta jovens homens do casamento mais do que eles gostariam, é tudo menos um produto do liberalismo, amante da paz. O fato que os governantes e os funcionários públicos só possam casar quando eles são ricos, pois, caso contrário, não conseguiriam manter as aparências, é, como todos os fetiches de casta, um vestígio do pensamento pré-capitalista. O capitalismo não reconhece castas ou costumes de casta; sob o capitalismo, todos vivem de acordo com sua própria renda. Algumas mulheres se prostituem porque querem homens, outras porque querem comida. Para muitas, é por ambos. Pode-se admitir, sem maiores discussões, que em uma sociedade em que as rendas fossem igualitárias, a tentação à prostituição cessaria completamente, ou se tornar irrisória. Mas, seria inútil especular se em uma sociedade sem desigualdades de renda não poderiam surgir outras fontes sociais de prostituição. Mesmo assim, não se pode meramente assumir que a moralidade sexual numa sociedade socialista seria mais satisfatória que em uma sociedade capitalista. É no estudo das relações entre a vida sexual e propriedade, mais que em qualquer outro campo de conhecimento social, que nossas ideias devem ser clarificadas e remodeladas. O tratamento contemporâneo deste problema é minado por preconceitos de todos os tipos. Mas, os olhos com os quais observamos a questão não devem ser aqueles do sonhador vislumbrando um paraíso perdido, que vê o futuro numa chama de luz escarlate, e condena tudo que ocorre à nossa volta.

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[1]              Freud, Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, 2nd Edition, Leipzig und Wien 1910, p. 38 et seq.

[2]              Poehlmann, Geschichte der sozialen Frage um des Sozialismus in der antiken Welt, Vol. II, p. 576.

[3]              Engels, Der Ursprung der Familie, des Privateigentums um des Staates, p. 182.

[4]              Westermarck, Geschichte der menschlichen Ehe, translated by Katscher und Grazer, 2nd Edition, Berlim 1902, p. 122; Weinhold, Die deutschen Frauen in dem Mittelalter, 3rd Edition, Viena 1897, Vol. II, p. 9 et seq.

[5]              B. Weinhold, op. cit., Vol. II, p. 7 et seq.

[6]              1 Coríntios 11:9.

[7]              Weinhold, Die deutschen Frauen in dem Mittelalter, 1st edition, Viena, 1851, p. 292 et seq.

[8]              Westermarck, Geschichte der menschlichen Ehe, p. 74 et seq.; Weinhold, Die deutschen Frauen in dem Mittelalter, 3rd Edition, Viena 1897, Vol. 1, p. 273.

[9]                Schröder, Lehrbuch der deutschen Rechtsgeschichte, 3rd Edition, Leipzig 1898, pp. 70, no; Weinhold, op. cit., Vol. II, p. 12 et seq.

[10]             Tácitus, Germania, c. 17.

[11]             Marianne Weber, Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung, Tübingen 1907, p. 53 et seq.; 217 et seq.

[12]             Bebel Die Frau und der Sozialismus, 16th Edition, Stuttgart 1892, p. 343.

[13]             Examinar o quão longe as demandas radicais do Feminismo foram criadas por homens e mulheres cujo caráter sexual não foi desenvolvido normalmente seria ir além dos limites programados dessas exposições.

[14]             Marx e Engels, Das Kommunistiche Manifest, 7th German Edition, Berlim 1906, p. 35.

[15]             Bebel, Die Frau und der Sozialismus, p. 141, et seq.

[16]             Marianne Weber, Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwickhung, p. 6 et seq.

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