1. A expansão comercial do século XVI
A grande depressão secular do século XIV e da metade do século XV começou a dar caminho para a recuperação econômica na segunda metade do século XV. O comércio terrestre do Mediterrâneo ao norte da Europa, interrompido pelas depredações do rei francês contra as feiras de Champagne, foi cada vez mais substituído pelo comércio marítimo na costa Atlântica. Embarcações agora atravessavam o Estreito de Gibraltar e subiam a costa, navegando cada vez mais para Antuérpia e fazendo daquela cidade o grande centro comercial do norte da Europa durante o século XVI. O comércio se afastou das restrições e da alta tributação da Bruges flamenga, e moveu-se e expandiu-se para o livre mercado da Antuérpia, onde negócios e trocas poderiam florescer livres de legislação obstrutiva, privilégios e altos impostos. Além disso, os navios do Atlântico seguiram para o sul e para o oeste, e as famosas explorações e descobertas do final do século XV mudaram a face da história mundial tornando os países Europeus potências mundiais e começaram a integrar a África e o Novo Mundo na economia Europeia. Espanha e Portugal, os principais exploradores dos novos continentes, tornaram-se os estados-nação e impérios dominantes do século XVI. Lentamente, mas com certeza, as cidades-estado italianas que estavam na vanguarda do avanço econômico e no auge da cultura da Renascença, começaram a ser deixadas para trás no avanço do poder econômico e político.
Junto com a expansão comercial veio a inflação, alimentada pelo imenso aumento do ouro e da prata trazidos para a Europa pelos espanhóis das minas recém-descobertas no hemisfério ocidental. Uma aproximada triplicação do estoque de espécie na Europa resultou em um século de inflação, com preços triplicando durante o século XVI. O novo dinheiro fluiu primeiro para o principal porto espanhol de Sevilha e, então, para o resto da Espanha e, finalmente, para outros países da Europa, e a geografia dos aumentos de preço seguiu de acordo.
Enquanto potências Atlânticas, a Inglaterra e a França cresceram em força junto com as outras nações atlânticas da Europa Ocidental. Elas foram muito auxiliadas ao fim da destrutiva Guerra dos Cem Anos entre as duas nações em 1453. As doutrinas do estado absoluto, anteriormente limitadas amplamente aos teóricos e governantes das cidades-estado italianas, agora se espalham para todos os estados-nações da Europa. O absolutismo eventualmente triunfou em toda a Europa no início do século XVII. A vitória foi alimentada, como veremos a seguir, pelo surgimento do protestantismo e um pouco mais tarde do secularismo, começando no século XVI.
2. Cardeal Caetano: O Tomista Liberal
A escolástica tardia foi o produto do século XVI, o século que deu início à Reforma Protestante e à Contra-Reforma Católica. Se o século XIII foi bem descrito como a idade de ouro da filosofia escolástica, então, o século XVI foi sua idade de prata, a era de um renascimento brilhante do pensamento escolástico antes que as sombras da noite finalmente o fechassem. Como vimos, os séculos XIV e XV assistiram ao surgimento do nominalismo e, pelo menos, ao enfraquecimento da ideia de uma lei natural racional, objetiva — incluindo uma ética da lei natural — descobrível pela razão do homem. O século XVI testemunhou um tomismo renascente, liderado por um dos maiores clérigos de sua época, Tommaso de Vio, o Cardeal Caetano (1468-1534).
Cardeal Caetano não foi o único preeminente filósofo e teólogo Tomista de seus dias; ele também era um italiano dominicano que se tornou superior geral da Ordem Dominicana em 1508. Um cardeal da Igreja, ele foi o defensor da fé favorito do papa nos debates com o grande fundador do protestantismo, Martinho Lutero. Em seu Commentaria sobre a Summa de Tomás de Aquino, Caetano, é claro, endossou a visão padrão escolástica de que o preço justo é o preço comum de mercado, refletindo a estimativa dos compradores, e sustentou que esse preço flutuará com as mudanças nas condições de demanda e de oferta. Ao tentar purgar a economia escolástica de qualquer traço da teoria Langensteiniana da “posição social”, no entanto, Caetano, foi além, ao criticar Tomás por denunciar o acúmulo de riqueza além do status próprio como sofrendo do pecado da avareza. Pelo contrário, declarou Caetano, é legítimo que pessoas altamente capazes ascendam na escala social de uma forma que corresponda com suas realizações. Esse sincero endosso da mobilidade ascendente em um livre mercado foi a tentativa mais ampla de livrar a escolástica de todos os vestígios do antigo desprezo pelo comércio e pelo ganho econômico.
Em seu abrangente tratado sobre câmbio internacional, De Cambiis (1499), o grande Caetano apresentou a defesa mais completa e mais ampla do mercado de câmbio exterior já redigida. Pondo de lado a indecisão vacilante de seu compatriota dominicano, Fra Santi Rucellai (1437-1497), ele mesmo um ex-banqueiro de câmbio e filho de um banqueiro, o cardeal foi firme e contundente. Uma vez que o papel do mercador fora há muito estabelecido como legítimo, o mesmo deveria acontecer com o do banqueiro de câmbio, que está simplesmente se envolvendo em um tipo de transação de mercadoria. Além disso, o comércio moderno não poderia funcionar sem o mercado de câmbio internacional e as cidades não poderiam existir sem o comércio. Daí, é necessário e correto que exista o mercado de câmbio. Como em outros mercados, o preço de mercado habitual é o preço justo.
No curso de sua defesa do mercado de câmbio em De Cambiis, Caetano procedeu a avançar o estado da arte na teoria monetária. Ele mostrou incisivamente que o dinheiro é uma mercadoria, particularmente quando se move de uma cidade para outra, e é, portanto, sujeito às leis de demanda e de oferta que regem os preços das mercadorias. Nesse ponto, Caetano fez um grande avanço na teoria monetária, na verdade, na teoria econômica em geral. Ele ressaltou que o valor do dinheiro depende não apenas das condições de oferta e de demanda existentes, mas também das expectativas presentes do estado futuro do mercado. As expectativas de guerras, fomes e de mudanças futuras na oferta de dinheiro, afetarão seu valor atual. Assim, o cardeal Caetano, um príncipe da Igreja do século XVI, pode ser considerado o fundador da teoria das expectativas na economia.
Além disso, Caetano distinguiu entre os dois tipos de “valor do dinheiro”: seu poder de compra em termos de bens, de modo que o ouro ou a prata são “igualados” com bens sendo vendidos e comprados; e o valor de uma moeda ou moeda corrente em termos de outras no mercado de câmbio internacional. Aqui, cada tipo de moeda tende a se mover para aquela região onde seu valor é maior, e a se afastar de onde quer que seu valor seja menor.
Na controversa questão da usura, embora Caetano não tenha sido tão radical quanto seu contemporâneo alemão Summenhart em praticamente erradicar a proibição da usura, ele se juntou a Summenhart na doutrina da intenção implícita, e foi ainda mais radical nas áreas onde Summenhart hesitou: lucrum cessans. A intenção implícita significava que, se alguém realmente acreditasse que seu contrato não era um empréstimo, então, não era usurário, embora pudesse ser um empréstimo na prática. É claro que isso abriu caminho para a eliminação prática da proibição da usura. Além disso, Caetano também se juntou a seus colegas liberais ao endossar o contrato de investimento garantido.
Mas a grande inovação do Cardeal Caetano sobre o fronte da usura foi sua vindicação do lucrum cessans. Empunhando a poderosa autoridade de ser o maior tomista desde o próprio Tomás de Aquino, Caetano ofereceu uma crítica ponto a ponto da rejeição de seu mestre a essa exceção à proibição da usura. Ele, então, reivindica, não todo o lucrum cessans, mas qualquer empréstimo aos homens de negócios. Assim, um emprestador pode cobrar juros sobre qualquer empréstimo como pagamento do lucro renunciado sobre outros investimentos, desde que o empréstimo seja a um homem de negócios. Essa divisão insustentável entre empréstimos a homens de negócios e consumidores foi feita pela primeira vez — como uma maneira de justificar todos os empréstimos comerciais. A justificativa era de que o dinheiro retinha seu alto valor de lucro-renunciado nas mãos dos negócios, mas não dos mutuários de empréstimos. Assim, pela primeira vez na era cristã, o Cardeal Caetano justificou o ramo de empréstimos de dinheiro, desde que fossem empréstimos para outros negócios. Antes dele, todos os escritores, até mesmo os mais liberais, até mesmo Conrad Summenhart, justificaram a cobrança de juros sobre lucrum cessans apenas para empréstimos ad hoc caritativos; agora o grande Caetano estava justificando o ramo de negócios de emprestar dinheiro a juros.
3. A Escola de Salamanca: a primeira geração
Se o recém florescente tomismo liberal começou com o cardeal Caetano na Itália, a tocha foi logo passada para um grupo de teólogos do século XVI que reviveram o tomismo e a escolástica e os mantiveram vivos por mais de um século: a Escola de Salamanca na Espanha.
Não é mais do que apropriado que a Espanha seja o centro do aprendizado escolástico no século XVI. Aquele século foi preeminentemente o século da Espanha. A Espanha, líder nas explorações e conquistas no Novo Mundo; a Espanha, a nação que trouxe os tesouros de ouro e prata através do Atlântico para a Europa: a Espanha, junto com a Itália e Portugal, a nação da Europa que permaneceu ressonantemente católica e se mostrou imune à disseminação do protestantismo.
O reconhecido fundador da Escola de Salamanca foi o grande teórico do direito e pioneiro da disciplina do direito internacional, Francisco de Vitoria (c. 1485-1546). Um basco criado em Burgos, no norte da Espanha, em uma família próspera, Vitória tornou-se dominicano e foi estudar e lecionar em Paris. Lá, em uma das ironias da história do pensamento, ele se tornou discípulo de um flandrense que fora aluno de um dos últimos Ockamistas, John Major. Esse homem, Pierre Crockaert (c. 1450-1514), tornou-se estudante e depois professor de teologia tarde na vida. Afastando-se de seu Grande professor, Crockaert abandonou o nominalismo e mudou para o tomismo, entrando na Ordem Dominicana e vindo a lecionar no Colégio Dominicano de Saint-Jacques em Paris. Depois de passar 17 anos absorvendo e ensinando Tomismo em Paris, Vitória voltou à Espanha para dar aulas de teologia em Valladolid, finalmente chegando a Salamanca — a então rainha das universidades espanholas — como professor titular de teologia em 1526.
Um professor e conferencista brilhante e altamente influente, Vitória definiu a estrutura da Escola de Salamanca para o resto do século. Embora ele não tenha publicado nenhum escrito, suas conferências chegaram até nós transcritas por seus alunos — como no caso de Aristóteles. Muito da glória da Universidade de Salamanca foi o resultado das reformas instituídas pelo próprio Vitória. Consequentemente, a universidade logo teve nada menos que 70 cadeiras de professores ocupadas pelos melhores estudiosos da época, providenciando instrução não apenas no currículo medieval tradicional, mas também em disciplinas inovadoras como as ciências da navegação e a língua caldéia.
As conferências de Vitória foram em grande parte comentários sobre a teoria moral de Tomás de Aquino. No decorrer das conferências, Vitória fundou a grande tradição escolástica espanhola de denunciar a conquista e, em particular, a escravização dos índios pelos espanhóis no Novo Mundo. Em uma época em que pensadores na França e na Itália pregavam o absolutismo secular e o poder do estado, Vitória e seus seguidores reviveram a ideia de que a lei natural é moralmente superior ao mero poder do estado.
Vitória não expôs muito sobre temas econômicos, mas estava interessado na moralidade comercial, e seus pontos de vista seguiam a tradição escolar dominante: o preço justo era o preço comum de mercado, ainda que se houvesse um preço legalmente fixado também seria considerado justo. Em suma, os editais de preços legais devem ser obedecidos. No entanto, para aqueles sem mercado comum — digamos, com apenas um ou dois vendedores — Vitória avançou além de seus antepassados. Em vez de ter o custo de produção determinado, Vitória, embora afirmasse que os custos poderiam muito bem ser considerados, voltou à velha e quase esquecida tradição do laissez-faire do direito romano da livre barganha individual como sendo o preço justo. Pois nessa situação, sustentou Vitória, o preço teria de ser acordado pelas próprias partes da troca. Vitória, entretanto, então, acrescentou uma curiosa distinção entre bens de luxo e não luxuosos. Os luxos poderiam ser vendidos por um “preço extravagante”, uma vez que o comprador paga o preço alto voluntariamente e por sua livre vontade. O porquê que esse “livre arbítrio” deveria desaparecer com os itens não luxuosos Vitória infelizmente não explica.
O aluno de Vitória e teólogo próximo mais eminente em Salamanca foi o Dominicano Domingo de Soto (1494-1560). Nascido em Segóvia, filho de pais prósperos, mas não ricos, De Soto estudou na Universidade de Alcalá, perto de Madrid, e depois foi para Paris, onde estudou com Vitória, e mais tarde tornou-se professor. Retornando à Espanha, De Soto tornou-se professor de metafísica em Alcalá e, em seguida, entrou para a Ordem Dominicana, juntando-se a seu mentor como professor de teologia em Salamanca em 1532. Embora tivesse uma personalidade tímida, De Soto esteve repetidamente envolvido na administração universitária, e foi várias vezes prior do colégio de Estabán na Universidade. O trabalho de De Soto em física também é excelente.
Em 1545 o Imperador Carlos V honrou De Soto ao nomeá-lo seu representante no grande concílio de Trento, o poderoso concílio da Contra-Reforma Católica. Logo De Soto tornou-se confessor ao imperador, mas desistiu em poucos anos para retornar ao cargo de professor em Salamanca. A fama de De Soto se fundamenta em sua obra De justitia et jure, publicada em 1533 e baseado em conferências dadas originalmente em Salamanca em 1540-41. De justitia et jure foi reimpresso nada menos do que 27 vezes antes do final do século e foi lida e citado por juristas e moralistas até a metade do século XVIII.
Infelizmente, em economia De Soto foi um pensador reacionário, e atrasou alguns dos ganhos liberais dos escolásticos anteriores. Assim, embora De Soto admitisse que “o preço dos bens não é determinado por sua natureza, mas pela medida em que atendem às necessidades da humanidade”, essa análise de utilidade foi enfraquecida por vagas concessões ao “trabalho, problemas e risco” envolvidos em uma venda. Pior do que isso, De Soto não estava contente em conceder a propriedade do governo de fixar o preço dos bens e deixar assim. Em vez disso, ele declarou categoricamente que um preço fixo é sempre superior ao preço de mercado, e que, idealmente, todos os preços deveriam ser fixados pelo estado. E mesmo sem esse controle, os preços, para De Soto, deveriam ser fixados “pela opinião dos homens prudentes e justos” (sejam lá quem eles forem!), que nada têm a ver com quaisquer transações. Eles não devem ser determinados pelo livre acordo dos compradores e vendedores envolvidos. Assim, De Soto, mais do que qualquer pensador escolástico, clamou pelo estatismo em vez da determinação de preço do mercado.
Sobre o câmbio internacional, a influência de De Soto era confusa, indo tanto a favor quanto contra aquele mercado. Em seu favor, ele contribui talvez com a primeira explicação convincente dos movimentos das moedas e das taxas de trocas no mercado de câmbio internacional — o que seria chamado mais tarde de “teoria da paridade do poder de compra” de taxas de câmbio.
A economia do século XVI foi marcada por uma inflação que primeiro atingiu a Espanha em resposta às descobertas de ouro e de prata no Novo Mundo, e a consequente importação de espécie à Espanha. A inflação atingiu primeiro a Espanha e, então, se espalhou para o resto da Europa na medida em que os espanhóis gastavam a aumentada oferta de dinheiro. O resultado foi a primeira inflação secular em grande escala da história, com o preço na Europa dobrando na primeira metade do século XVI.
De Soto estava preocupado em explicar o curioso fato de que maior abundância de espécie na Espanha fez com que ela tivesse uma balança de pagamentos desfavorável, com o dinheiro saindo da Espanha para o resto da Europa. Como ele disse:
[…] quanto mais dinheiro há em Medina, mais desfavoráveis são os termos de trocas, e mais alto é o preço que precisa ser pago por quem deseja enviar dinheiro da Espanha para Flandres, já que a demanda por dinheiro é menor na Espanha do que em Flandres. E quanto mais escasso o dinheiro é em Medina, menos ele precisa pagar lá, porque mais pessoas querem dinheiro em Medina do que enviando a Flandres.
Em suma, mais dinheiro abundante em um lugar faz com que o dinheiro saia, e diminua a relação de taxa de câmbio com outras moedas correntes. Uma oferta de dinheiro significa que o dinheiro “é menos desejado” — uma forma primitiva de apontar para o aumento da oferta ao longo de uma dada curva de demanda decrescente por dinheiro, de modo que cada unidade ou moeda é menos valorada. Aqui está também uma análise rudimentar da paridade do poder de compra das taxas de trocas.
Mas, apesar desse avanço sutil ao analisar o funcionamento do mercado, De Soto retrocedeu na usura a tal ponto que defendeu a proibição do mercado de câmbio internacional como usurário. Na verdade, De Soto conseguiu influenciar o tribunal em 1552 para proibir todas as operações de trocas de moedas correntes internas em qualquer coisa que não fosse a paridade legal.
Como pode ser visto, De Soto exerceu uma influência reacionária na proibição da usura, e conseguiu bloquear qualquer aceitação geral das contribuições revolucionárias de Summenhart e de Caetano na questão da usura. Tentando reverter a maré, De Soto foi tão longe ao ponto de declarar padrão de contrato de investimento garantido ou segurado como pecaminoso e usurário, sobre a antiga e descreditada base medieval de que o risco e a donidade precisam nunca ser separados. Ele tentou reverter o lucrum cessans e, em geral, foi mais rigorosamente anti-usura do que quase qualquer um dos escolásticos medievais, insistindo anacronicamente que o dinheiro é estéril e não dá frutos e, portanto, não pode legalmente gerar juros.
Ironicamente, no entanto, embora ansioso para reverter a maré de liberalização da usura, o próprio De Soto contribuiu para o fim da proibição da usura a longo prazo. Lembramos que o papa Urbano III, em seu decretal Consuluit no final do século XII, repentinamente tirou da cartola uma citação esquecida de Lucas (6:35): “emprestai, sem daí esperar nada”, e usou esse vago conselho para a caridade como um bastão para proibir todos os juros dos empréstimos. Mais notavelmente, todos os escolásticos posteriores seguiram essa proibição divina duvidosa de adquirir juros; até mesmo o radical Summenhart concedeu a injunção divina contra os juros e simplesmente os reduziu a praticamente nada. Paradoxalmente, agora cabia ao conservador De Soto lançar a primeira pedra. A declaração de Lucas, ele declarou com desprezo, não tem relevância para o empréstimo a juros, e Cristo definitivamente não declarou que a usura era pecaminosa. Portanto, concluiu ele, se a usura não é contra a lei natural, ela é perfeitamente lícita. Teologicamente, não há problema com a usura.
4. A Escola de Salamanca: Azpilcueta e Medina
Felizmente, a influência reacionária e estatista de De Soto foi, pelo menos parcialmente, compensada por outro dos distintos estudantes de Vitória, Martin de Azpilcueta Navarrus (1493-1586). Famoso pela sua vida santa e por seu vasto conhecimento, o magro e narigudo dominicano Azpilcueta foi considerado como o mais eminente canonista de sua época. Depois de ensinar direito canônico em Cahors e Toulouse na França, Azpilcueta regressou para ocupar uma cadeira em Salamanca, onde as suas conferências maçantes apresentavam um novo método de ensino de direito civil, combinando-o com o direito canônico. Em 1538, Azpilcueta foi enviado pelo Imperador Carlos V para ser reitor da nova Universidade de Coimbra, em Portugal ao oeste. Lá ele desenvolveu os princípios do direito internacional originalmente estabelecidos pelo seu mestre, Vitoria. Azpilcueta passou os seus últimos anos em Roma, um conselheiro de confiança para três papas, morrendo com a idade avançada de 93 anos.
Azpilcueta usou a sua grande influência para fazer avançar mais o liberalismo econômico do que se havia avançado antes, entre os escolásticos ou em qualquer outro lugar. Ao contrário da admiração de De Soto pelo controle abrangente dos preços, Azpilcueta foi o primeiro pensador econômico a afirmar clara e corajosamente que a fixação de preços pelo governo era imprudente e pouco sensata. Quando os bens são abundantes, salientou sensatamente, não há necessidade de um controle máximo dos preços, e quando os bens são escassos, os controles fariam mais mal à comunidade do que bem.
Mas a notável contribuição de Azpilcueta para a economia foi a sua teoria de dinheiro, publicado no seu Comentario resolutoio de usuras (1556) como apêndice de um manual sobre teologia moral. O manual e os comentários no apêndice foram traduzidos para latim e para o italiano, e provaram ser influentes para escritores católicos durante muitos anos. Azpilcueta se baseou na análise do Cardeal Caetano para apresentar a primeira exposição clara e inequívoca da “teoria quantitativa da moeda”. Ou melhor, rompe firmemente com a tradição de que o dinheiro pode, em qualquer sentido, ser uma medida fixa do valor de outros bens. Ao contrário da ênfase mais antiga no câmbio internacional, ou dinheiro em termos de outros dinheiros, Azpilcueta identificou claramente o valor do dinheiro como sendo o seu poder de compra em termos de bens. Uma vez que Azpilcueta agarrou firmemente estes dois pontos, a “teoria quantitativa” seguiu diretamente. Pois então, tal como outros bens, o valor do dinheiro variou inversamente com a sua oferta, ou quantidade disponível. Como Azpilcueta disse-o: “toda a mercadoria se torna mais cara quando está em grande demanda e escassa oferta, e esse dinheiro, na medida em que pode ser vendido, e trocado, ou trocadas por qualquer outra forma de contrato, é mercadoria, e, portanto, também se torna mais caro quando está em grande demanda e escassa oferta”.
É de notar que essa esplêndida e concisa análise dos determinantes do poder de compra do dinheiro não comete o erro, que posteriormente foi cometido, de “teóricos quantitativos” ao enfatizar a quantidade ou a oferta de dinheiro, ignorando a demanda. Pelo contrário, foi aplicada a análise da demanda e da oferta corretamente para a esfera monetária.
O ouro e a prata inundaram a Espanha e depois o resto da Europa no século XVI, fazendo subirem os preços, primeiro na Espanha e depois nos outros países. Os preços duplicaram até meados do século. Os historiadores do pensamento econômico tiveram o primeiro teórico quantitativo, o primeiro pensador a atribuir o aumento de preços ao influxo de espécie, para ser o teórico político absolutista francês Jean Bodin. Mas a famosa Resposta aos Paradoxos de M. Malestroit (1568) de Bodin foi antecipada por 12 anos pela obra de Azpilcueta, e como o erudito Bodin provavelmente tinha lido o dominicano espanhol, a sua anunciada alegação de originalidade parece de um gosto excepcionalmente mau. E como a Espanha foi o primeiro destinatário do fluxo de espécies do Novo Mundo, não é certamente surpreendente que um espanhol seja a primeira pessoa a decifrar o novo fenômeno. Assim, escreveu Azpilcueta:
[…] sendo as outras coisas iguais, em países onde há uma grande escassez de dinheiro, todos os outros bens vendíveis, e mesmo as mãos e trabalhos dos homens, são dados por menos dinheiro do que onde ele é abundante. Assim, vemos por experiência que na França, onde o dinheiro é mais escasso do que na Espanha, o pão, o vinho, o tecido e o trabalho valem muito menos. E mesmo na Espanha, em tempos em que o dinheiro era mais escasso, os bens e o trabalho eram dados por muito menos do que após a descoberta das Índias, que inundaram o país de ouro e prata. A razão para isto é que o dinheiro vale mais onde e quando é escasso do que onde e quando é abundante.
Martin de Azpilcueta, nesse caso, influenciado pelo seu colega de Soto, também desenvolveu a teoria da paridade entre o poder de compra e a paridade das taxas de câmbio, e ao mesmo tempo que elaborou a “teoria quantitativa”, análise de oferta e demanda do valor do dinheiro. As duas, naturalmente, andam de mãos dadas.
Uma das contribuições mais importantes de Azpilcueta foi a de reavivar o conceito vital da preferência temporal, talvez sob a influência das obras do seu descobridor, São Bernardino de Siena. Azpilcueta salientou, mais claramente do que Bernardino, que um bem presente, como o dinheiro, valerá naturalmente mais no mercado do que bens futuros, ou seja, bens que agora afirmam dinheiro no futuro. Como disse Azpilcueta: “uma reivindicação sobre algo vale menos do que a coisa em si, e […] é evidente que o que não é utilizável durante um ano é menos valioso do que algo com a mesma qualidade que é utilizável de uma só vez”.
Mas se um bem futuro é naturalmente menos valioso do que um bem presente no mercado, então essa percepção precisa justificar automaticamente a “usura” como a cobrança de juros não sobre o “tempo”, mas sobre a troca de bens atuais (dinheiro) para uma futura reivindicação sobre esse dinheiro (um título de dívida). E, no entanto, essa dedução aparentemente simples (simples para nós que vimos depois) não foi feita por Azpilcueta Navarrus.
No mercado de câmbio internacional, Azpilcueta deu um impulso ao liberalismo econômico ao reavivar a linha de Caetano, e ao repudiar as fulminações estatistas do seu colega De Soto, que tinha acusado todas as operações de câmbio internacional de usurárias. Pois além de repetir os argumentos de Caetano, o dominicano espanhol e conselheiro de confiança de três papas injetou considerações práticas. Azpilcueta assinalou que “um número infinito de cristãos decentes” que são mercadores, aristocratas, viúvas, e até mesmo clérigos da Igreja investem habitualmente em câmbio internacional. Azpilcueta insistiu que ele se recusa a “amaldiçoar o mundo inteiro”, impondo normas demasiadamente rigorosas. Além disso, ele advertiu, abolir os mercados de câmbio internacional “seria mergulhar o reino na pobreza”, um passo que ele não estava claramente disposto a dar.
Na maioria dos outros aspectos da questão da usura, porém, Azpilcueta Navarrus foi surpreendentemente conservador, e deu um grande passo para trás em relação à avançada posição de livre mercado de Conrad Summenhart. No census, ou contrato de anuidade, Azpilcueta Navarrus foi muito mais duro do que De Soto, que foi liberal nesse aspecto particular da “usura”. Em vez disso, Azpilcueta foi a principal influência na emissão pelo Papa Pio V, em 1569, da bula Cum onus, no qual todo census é declarado ilegal, exceto sobre um “bem fecundo, imóvel”, para o status do qual, evidentemente, o dinheiro não pode ser usado. O Papa tinha sido levado a emitir a bula pelo Cardeal São Carlos Borromeu, que como recém-nomeado arcebispo de Milão, professou encontrar usura em toda a parte naquela cidade pecadora. Borromeu era um dos líderes da Contra-Reforma Católica, e a sua incitação levou à Cum onus.
Mas era tarde demais; o contrato do census estava enraizado demais na prática europeia, e demasiados teólogos tinham adotado a abordagem liberal. A maioria dos teólogos católicos rejeitou essa nova tentativa e declarou simplesmente que os argumentos do papa eram questões de direito positivo e não de direito natural, e que, portanto, a bula papal tinha de ser aceita pelo governo ou ser a prática comum de um país em particular para que esse levasse a força da lei nesse país. Curiosamente, nem um único país na Europa aceitou a Cum onus: nem Espanha, nem França, nem Alemanha, nem o sul da Itália, nem mesmo a própria Roma!
O desprezo com que a Cum onus foi recebida em toda a Europa é revelado de forma impressionante no seu tratamento pela recém-fundada Ordem dos Jesuítas. A Sociedade de Jesus foi fundada em 1537 por um ex-oficial inválido do exército espanhol, Inácio de Loyola, nascido no País Basco. A sociedade em rápida expansão instalou-se numa disciplina rigorosa, de acordo com linhas conscientemente militares (O título original de Loyola para a sociedade era “A Companhia de Jesus”). Sob o voto de obediência absoluta ao papa e ao superior geral da ordem, os Jesuítas se tornaram as “tropas de choque” da Contra-Reforma Católica. Apesar de seu voto ao Papa, a congregação geral jesuíta de 1573, apenas quatro anos após a Cum onus, validou o contrato de census mutuamente resgatável. E, em 1581, a congregação jesuíta percorreu todo o caminho e validou todo o tipo de contrato de census. Quando alguns jesuítas alemães se tornaram resistentes a essa liberalidade, o superior geral da Ordem dos Jesuítas, Cláudio Acquaviva, em 1589, ordenou que a validade do contrato de census fosse mantida pelos jesuítas alemães, sem mais discordâncias. Lá se vai a proibição do census pelo papa.
No século seguinte, a lacuna do census foi amplamente utilizada para camuflar os juros dos contratos de empréstimo, particularmente na Alemanha. Como Noonan salienta, é certamente significativo que a palavra alemã para juros sobre um empréstimo seja zins, derivada do census latino.
A doutrina Summenhart-Caetano de intenção implícita — que se alguém não pretendesse que um contrato fosse um empréstimo, então era lícito — foi levada ainda mais longe pela notável Congregação Jesuíta de 1581. A congregação justificou praticamente qualquer contrato. Como Noonan conclui: “Na prática, significava que apenas os empréstimos a pessoas idosas ou doentes sem bens ou empréstimos com uma taxa de juros superior à que pode ser obtida num ‘contrato de investimento ou de census garantido’ deviam ser considerados como verdadeiros empréstimos usurários.”
Se Azpilcueta Navarrus era conservador na maioria dos aspectos da usura, contudo ele tornou-se o primeiro escritor a justificar os juros cobrados sobre lucrum cessans (lucros de investimento renunciados) para todos os empréstimos, não apenas para empréstimos ad hoc feitos por caridade (escritores anteriores) ou mesmo apenas para empréstimos a negócios (Caetano). Agora, qualquer abstenção de lucro poderia ser cobrada como juros, até mesmo por emprestadores profissionais de dinheiro. A única restrição que resta — uma restrição fraca na prática — é que o emprestador teria realmente utilizado o seu dinheiro para fazer o investimento renunciado.
Dessa primeira geração de escolásticos espanhóis tardios — aproximadamente aqueles que nasceram nos anos 1480 e 1490 — o escritor final digno de nota foi Juan de Medina (1490-1546). Medina, um franciscano, não ensinou teologia em Salamanca, mas sim no Collegium de Alcalá. A distinção de Medina vem de ser o primeiro escritor na história a desenvolver claramente o ponto de vista de que cobrar juros sobre um empréstimo é legítimo se for em compensação ao emprestador pelo risco de não pagamento. O raciocínio de Medina era impecável: expor a propriedade de alguém “ao risco de ser perdido, é vendível, e comprável a um preço, nem está entre aquelas coisas que devem ser feitas gratuitamente”. Além disso, Medina salientou, os teólogos admitem agora que alguém que garante o empréstimo de um devedor pode cobrar licitamente por esse serviço; mas nesse caso, se o mutuário não consegue encontrar um fiador, porque é que o emprestador não pode cobrar ao mutuário por assumir o risco de não-pagamento? A sua taxa não é semelhante à taxa do fiador?
O argumento era sólido, mas o choque para os escolásticos foi severo, não menos porque Medina enfraqueceu a sua justificação de risco ao proibir os juros de empréstimos sem risco e ao restringir a taxa aos casos em que o mutuário não conseguia encontrar um fiador. Domingo de Soto, horrorizado, salientou corretamente que admitir uma acusação por risco de não pagamento destruiria toda a proibição de usura, uma vez que poderia ser feita uma acusação por um empréstimo acima do capital. O geralmente mais liberal Azpilcueta deu a Medina uma margem de manobra ainda mais curta, objetando corretamente se insuficientemente, que cada teólogo, canonista e advogado natural discordava da inovação de Medina. E isso era suposto a ser o fim da questão.
A discussão de Medina sobre a teoria do valor, no entanto, não foi tão convincente. Ao discutir o preço justo de mercado, Medina lança uma miríade de fatores: custos, trabalho, indústria e risco para os fornecedores; necessidade ou utilidade para os compradores; e escassez ou abundância do bem. Claramente, não houve uma análise muito menos coerente da oferta do que nas mãos de São Bernardino de Sena. Por outro lado, enquanto a tradição escolástica sustentava que o preço legal teria de ter precedência sobre o preço de mercado, Medina citou dois casos em que o preço de mercado deveria ser seguido: onde o preço de mercado é mais baixo, e onde as autoridades foram lentas demais em ajustar o édito legal a um preço de mercado mais elevado.
5. A Escola de Salamanca: os anos intermediários
A instituição e a estrutura de pensamento da Escola de Salamanca foi estabelecida, então, na primeira metade do século XVI, por três grandes Dominicanos: Francisco de Vitoria, e os seus seguidores, Domingo de Soto e Martin de Azpilcueta Navarrus. Os dois últimos teólogos foram os fundadores do aspecto econômico da teologia sistemática e da filosofia da Escola de Salamanca.
A geração intermediária de salmantinos eram os homens nascidos nas primeiras décadas do século XVI, e escrevendo perto e depois de meados do século XVI. O mais velho desses membros da segunda geração foi o eminente Diego de Covarrubias y Leiva (1512-77), cujo belo e distinto retrato gracioso do grande pintor espanhol El Greco está agora pendurado no Museu Greco em Toledo. Reconhecido como o maior jurista desde Vitória, Covarrubias foi o estudante mais proeminente de Azpilcueta. Após dez anos como professor de direito canônico na Universidade de Salamanca, Covarrubias foi nomeado auditor do chanceler de Castela pelo imperador, após isso se tornou bispo de Ciudad Rodrigo e bispo de Segóvia. Em 1572, Covarrubias tornou-se presidente do conselho de Castela. Tal como tantos outros escolásticos da época, os escritos de Covarrubias abrangiam teologia, história, numismática, e outras disciplinas da ação humana, bem como sobre o direito.
A teoria do valor estava em declínio desde São Bernardino e Johannes Nider no século XV, e agora, um século depois, foi revivido por Covarrubias. No seu Variarum (1554), Covarrubias pôs a teoria do valor no caminho certo: o valor dos bens no mercado é determinado por utilidade, e pela escassez do produto. O valor dos bens, então, depende não de questões intrínsecas ao bem ou à sua produção, mas das estimativas dos consumidores. Assim Covarrubias: “O valor de um artigo não depende da sua natureza essencial, mas da estimativa dos homens, mesmo se essa estimativa for tola. Assim, nas Índias, o trigo é mais caro do que na Espanha porque os homens o estimam mais, embora a natureza do trigo seja a mesma em ambos os lugares”. Ao considerar o preço justo de um bem, Covarrubias acrescentou, precisamos considerar não o seu custo original, nem o seu custo em trabalho, mas apenas o seu valor comum no mercado. Os preços caem quando os compradores são poucos e os bens são abundantes, e vice-versa.
Deve-se notar, como será mencionado mais adiante, que Covarrubias, considerado um dos maiores especialistas em direito romano da sua época, exerceu influência considerável sobre o grande protestante holandês do século XVII o jurista Hugo Grócio. Os escritos econômicos de Covarrubias foram particularmente influentes na Itália, onde continuaram a ser citados através da obra do eminente Abbé Ferdinando Galiani, em 1750.
Outra contribuição importante para a teoria da utilidade foi dada por um menor contemporâneo de Covarrubias, Luis Saravia de la Calle Veroñese. Saravia foi um dos vários escritores influentes de manuais de teologia moral, que pegou os ensinamentos dos grandes teólogos e os resumiu para seus confessores e seus penitentes. Na sua Instrucción de mercades (Medina del Campo, 1554), Saravia atacou com todo o tipo de teorias do custo de produção ao insistir somente a utilidade e a demanda do mercado, interagindo com a escassez da oferta, determinam o preço comum do mercado e, por conseguinte, o preço justo. O ataque de Saravia contra as noções de custo de produção foi vigorosa e contundente:
[…] o preço justo surge da abundância ou da escassez de bens, mercadores, e dinheiro, como já foi dito, e não de custos, trabalho e risco. Se tivéssemos de considerar trabalho e risco a fim de avaliar o preço justo, nenhum mercador jamais sofreria perdas, nem entraria em questão a abundância ou escassez de bens e de dinheiro.
O trabalho de Saravia, para além de ser citado muitas vezes pelos escritores espanhóis posteriores, foi também influente na Itália, onde foi traduzido em 1561. O italiano A.M. Venusti tornou-se discípulo de Saravia e publicou um tratado semelhante.
O próximo importante economista salmantino foi o apaixonado dominicano Tomás de Mercado (d. 1585). Mercado foi o próximo manualista importante sobre teologia moral depois de Saravia: Tratos y contratos de mercaderes (Salamanca, 1569). Nascido em Sevilha, Mercado foi criado no México, onde entrou no Ordem Dominicana, da qual regressou a Salamanca e Sevilha. O manual de Mercado empenhou seu vasto conhecimento da prática de negócios que ele reuniu durante suas viagens, e foi escrito num estilo conciso e até sarcástico.
Mercado era um teórico monetário perspicaz, e por vezes confuso. Aplicando a análise de utilidade ao dinheiro, Mercado foi até ao limite de análise marginal, salientando que o poder de compra é o mais elevado onde o dinheiro é mais escasso e por isso altamente “estimado”. Em resumo, Mercado percebeu que a demanda de dinheiro é uma tabulação, caindo conforme a oferta de dinheiro aumenta, e que o valor, ou o poder de compra do dinheiro é determinado pela interação da sua oferta e de sua demanda. Assim, Mercado:
[…] o dinheiro é muito menos estimado nas Índias [onde é extraído] do que na Espanha […] Depois das Índias, o lugar onde o dinheiro é menos estimado é Sevilha, a cidade que reúne para si todas as coisas boas do Novo Mundo, e, depois de Sevilha, as outras partes de Espanha. O dinheiro é muito estimado em Flandres, Roma, Alemanha e Inglaterra. Esta estimativa e apreciação são provocadas, em primeiro lugar, pela abundância ou pela escassez desses metais; uma vez que são encontrados e extraídos na América, são lá mantidos com pouca estima.
Não é surpreendente que Mercado, ao contrário de De Soto, tenha-se oposto a ilegalização do câmbio de moeda nacional na Espanha. Por outro lado, ele foi suficientemente confuso, em contraste com a sua análise apurada do valor do dinheiro, para favorecer a ilegalização da exportação de metais. Mas não estaria a “estima” pelos metais restantes mais elevadas, e não seria o fluxo de metais para fora essa verificação e compensação?
Durante a década de 1570, um grupo de teólogos-economistas surgiu em Valência, fundamentando-se nos seus estudos em Salamanca. Os mais importantes foram Francisco Garcia que, no seu Tratado utilismo (Valência, 1583) expandiu e desenvolveu a teoria da utilidade subjetiva do valor. Num avanço notável nas discussões sobre utilidade, Garcia salientou que a utilidade ou valor de uma coisa pode variar porque: um bem pode ter muitos usos e servir para mais propósitos do que outro, pode servir um serviço mais importante, e/ou pode executar um determinado serviço mais eficientemente.
Em adição à utilidade que determina o valor e o preço, Garcia percebeu também sua abundância relativa ou escassez. E aqui, Garcia também passou bem à margem — embora não sobre ela — de descobrir o elemento final faltante na teoria da utilidade:
Por exemplo, temos dito que o pão é mais valioso do que a carne porque é mais necessária para a preservação da vida humana. Mas pode chegar um momento em que o pão é tão abundante e a carne tão escassa que o pão é mais barato do que a carne.
Garcia passou a detalhar outros determinantes de valor incluindo o número de compradores e vendedores; e a ânsia de comprar e vender (ou seja, intensidade de demanda na compra ou na retenção de um produto): “se os vendedores estão ansiosos por venderem seus bens, e compradores estão sendo muito procurados e importunados”. Ele então passou a integrar a teoria monetária na teoria do valor, outro determinante dos preços sendo “se o dinheiro é escasso ou abundante”.
Na teoria monetária, Garcia continuou e desenvolveu a linha Azpilcueta-Covarrubias-Mercado. Nas Índias, onde o ouro e a prata são abundantes, espécie não é “tão estimada” como na Espanha, onde há menos ouro e prata. De modo semelhante, assinalou em sua discussão abrangente que, quando o dinheiro é abundante em qualquer dado país, a sua estima ou valor será baixo, enquanto que, quando o dinheiro é escasso, é muito mais valorizado. Em outras palavras, como salientou Garcia, essas diferenças nos graus de estima, ou demanda, podem ocorrer no local ou ao longo do tempo.
Essa análise comparativa das alterações no valor do dinheiro ao longo do tempo ou lugar foi um importante avanço na teoria monetária. Mas não apenas isso; Garcia, pela primeira vez, apoiou a sua análise “macro” sobre uma visão “micro”: que um homem rico, um homem com uma abundante oferta pessoal de dinheiro, tenderá a valorar cada unidade monetária menos do que quando ele era pobre, ou do que outro homem pobre. Aqui Garcia compreendeu realmente, embora de forma esquemática, o conceito de diminuição da utilidade marginal do dinheiro. O marginalismo, pelo menos nessa área, foi de fato alcançado, em vez de simplesmente tangenciado.
Finalmente, Garcia chegou à teoria da utilidade mais integrada do valor de dinheiro até à data: o valor do dinheiro no mercado é determinado pela oferta de dinheiro disponível, a intensidade da demanda de dinheiro e a segurança do dinheiro em si (chamado por economistas posteriores de “qualidade” do dinheiro nas mentes das pessoas no mercado).
6. Os Salmantinos tardios
A Escola de Salamanca, iniciada por Francisco Vitoria na década de 1520, alcançou seu florescimento final no fim do século XVI. Uma das principais luzes naquela época foi o dominicano Domingo Bañez de Mondragón (1527-1604), professor de teologia da Universidade de Salamanca, e amigo e confessor da famosa mística Santa Teresa de Ávila. Bañez era conhecido pela grande controvérsia com seu eminente colega jesuíta Luís de Molina, sobre a questão crucial do determinismo versus livre arbítrio. Bañez assumiu a posição dominicana, que se inclinou para a posição “calvinista” — determinista de que a salvação é unicamente um produto da graça de Deus, ordenada desde o início dos tempos pelas próprias razões inescrutáveis de Deus. Molina defendeu a visão jesuíta, que defendia o livre arbítrio de cada indivíduo para buscar a salvação. Nessa última visão, a livre escolha do indivíduo é necessária para efetuar a graça de Deus que lá está para ele aceitar. O historiador resume a visão de Molina sobre o livre arbítrio com estas palavras inspiradoras: “A liberdade é nossa, tão indiscutivelmente nossa, que, com a ajuda dos dons de Deus, ela permanece em nosso poder para evitar todos os pecados mortais e alcançar a vida eterna. A liberdade pertence aos filhos de Deus”.1
Em uma sistemática discussão sobre dinheiro, seu valor e câmbio internacional, Bañez (em De Justitia et Jure, 1594),* forneceu uma discussão convincente sobre a teoria da paridade de poder-de-compra no câmbio, uma teoria que deu forma à principal linha escolástica desde De Soto e Azpilcueta.
O último notável pensador em economia salmantino foi o grande teólogo Luís de Molina (1535-1601). A ascendência de Molina no pensamento escolástico espanhol foi uma personificação adequada da passagem da tocha da lei natural e teológica dos Dominicanos para a agressiva nova Ordem Jesuíta. Ao final do século XVI a influência da Ordem permeava toda a Espanha.
Embora um salmantino por completo, Molina apenas estudou brevemente e nunca realmente ensinou na Universidade. Nascido em Cuenca de família nobre, Molina foi brevemente para Salamanca e depois para a Universidade de Alcalá. Entrando na nova Ordem Jesuíta, Molina foi enviado para a Universidade de Coimbra em Portugal, visto que a Ordem Jesuíta ainda não estava plenamente organizada em Castela. Molina ficaria 29 anos como aluno e professor em Portugal. Após Coimbra, o habitualmente malvestido Molina lecionou teologia e lei civil por 20 anos na Universidade de Évora. Aposentado, e de volta Cuenca, o instruído e mundano Molina publicou sua massiva Magnum Opus de seis volumes, De Justitia et Jure. Os primeiros três volumes foram publicados em 1593, 1597 e 1600, e os outros volumes postumamente.
Luís de Molina era um sólido liberal econômico e providenciou uma compreensiva análise, à moda de Salamanca, de oferta, demanda e sua determinação dos preços. O preço justo, é claro, é o preço comum de mercado. Uma importante adição que Molina fez aos seus antecessores foi apontar que os bens fornecidos no varejo, em menores quantidades, irão ser vendidos a preços maiores por unidade do que a venda a granel antes que os bens chegassem ao varejista. Esse argumento também serviu como uma justificativa adicional para varejistas muito explorados.
Mas Molina em economia era primariamente um teórico monetário. Nisso, ele endossou e levou adiante a teoria da paridade de poder-de-compra nas taxas de câmbio e a análise salmantina sobre o valor do dinheiro, mesmo explicitamente endossando a obra de seu oponente teológico, Domingo Bañez. A análise de Molina da determinação do valor do dinheiro e suas alterações tinha sido a mais sutil até o momento, fazendo uso explícito de sentenças “todas as outras coisas sendo iguais (ceteris paribus)” e desenvolvendo a análise dos fatores determinantes da demanda por dinheiro.
Assim, sobre as causas das mudanças de preços e particularmente da inflação espanhola no século XVI, Molina escreveu:
Assim como uma abundância de bens faz com que os preços caiam (a quantidade de dinheiro e o número de mercadores sendo iguais), também uma abundância de dinheiro os faz subir (a quantidade de bens e o número de mercadores sendo iguais). A razão é que o dinheiro por si se torna menos valioso para fins de compra e bens de comparação. Assim, vemos que na Espanha o poder de compra do dinheiro é muito baixo, em vista da abundância em relação a 80 anos antes. Uma coisa que podia ser comprada por dois ducados naquela época, vale hoje em dia cinco, seis ou ainda mais. Salários aumentaram na mesma proporção, assim como dotes, o preço das propriedades, a renda dos benefícios e outras coisas.
Depois de passar pela análise padrão da escolástica espanhola sobre como a abundância do dinheiro causava a queda de seu valor, primeiro e principalmente no novo mundo, então em Sevilha e na Espanha, Molina destacou a importância da demanda por dinheiro: “Onde a demanda por dinheiro for maior, seja para comprar ou para transportar mercadorias, conduzir outros negócios, travar guerras, manter a corte real, ou por quaisquer outras razões, lá terá seu valor mais elevado”.
Não é surpreendente que o liberal econômico Molina atacou fortemente qualquer fixação governamental das taxas de câmbio. O valor de uma moeda corrente em termos de outra está sempre mudando em resposta às forças de oferta e de demanda, e portanto, é certo e justo que as taxas de câmbio flutuem de acordo. Molina então pontuou que taxas de câmbio fixadas criariam uma escassez de dinheiro. Ele, no entanto, não entrou em detalhes.
Molina também atacou a maioria dos controles governamentais de preços, particularmente as imposições de tetos de preço às mercadorias agrícolas.
Sobre a usura, Molina, embora não fosse tão longe quanto a radical aceitação dos juros por Conrad Summenhart um século antes, deu importantes passos em alargar os limites aceitos da cobrança de juros. Colocou seu imenso prestígio atrás da inteiramente nova defesa de Juan de Medina da cobrança do pagamento para a tomada de risco do emprestador. Na verdade, ele ampliou os limites permitidos por Medina para o uso da defesa de riscos. Não só isso: Molina ampliou muito o escopo do lucrum cessans, e solidamente estabeleceu esse título permissível para juros como um amplo princípio permeando a economia de mercado. Uma das poucas restrições restantes era a intenção: O empréstimo não é permitido se o emprestador não tiver a intenção de investir os fundos emprestados.
Luís de Molina também desempenhou um papel importante em reviver direitos naturais ativos e a teoria do direito à propriedade privada, que havia caído em declínio desde o início do século XVI. Humanistas e protestantes, como nós veremos a seguir, fizeram pouco uso do conceito de direitos naturais, enquanto Vitoria e os Dominicanos escorregaram em uma visão de direitos determinista, passiva ou atenuada. Apenas a Universidade de Louvain, na Bélgica, passou a servir como um centro de pensamento de livre arbítrio, em conjunto com a ideia de direitos naturais absolutos da pessoa e da propriedade. O teólogo de Louvain, Johannes Driedo, enfatizou a livridade do arbítrio (em De Concordia, 1537) e dos direitos naturais ativos (De Libertate Christiana, 1548).
Por volta de 1580, a nova Ordem Jesuíta começou a lançar sua ofensiva contra os Dominicanos, que eles suspeitavam de Cripto-Calvinismo* — uma suspeita não aliviada pelo fato de que muitos dominicanos se converteram ao Calvinismo durante o século XVI. No decorrer da defesa do livre arbítrio contra Bañez e os Dominicanos, Molina também se voltou para os direitos naturais ativos, visão que foi por muito tempo continuada a ser apoiada apenas em Louvain. Atacando a teoria de reivindicação passiva de direitos, Molina estabeleceu a distinção muito claramente:
Quando dizemos […] que alguém tem o ius a algo, não queremos dizer que algo é devido a este, mas que este tem faculdade disto, cuja contravenção o causaria danos. Dessa forma, dizemos que alguém tem o ius de usar suas próprias coisas, tal como consumir sua própria comida — ou seja, se for impedido, dano e injustiça lhe serão causados. Do mesmo modo que um pobre tem o ius de pedir esmolas, um comerciante tem o ius de vender suas mercadorias, etc.
Note que o astuto Molina não disse que o pobre tinha o direito de a ele ser dado esmolas. Para Molina, como para todos teóricos dos direitos ativos de propriedade, um “direito” não era uma reivindicação da propriedade de alguém, mas sim, pelo contrário, um direito explícito de se usar a sua propriedade sem a reivindicação de outra pessoa sendo imposta sobre isso.
Foi conquista de Molina a ligação da teoria ativa dos direitos naturais com seu comprometimento libertário com a livridade e com o livre arbítrio de cada indivíduo, ambos teológica e filosoficamente. O professor Tuck resumiu essa ligação com estas comoventes palavras: A teoria de Molina “era uma que envolvia a imagem de um homem como um ser livre e independente, tomando suas próprias decisões e sendo atado a elas, em questões relacionados com o bem estar do seu corpo físico e espiritual.”2
A escola de Salamanca havia começado com o distinto jurista, De Vitória, e por isso foi adequado que o último grande salmantino devesse ser outro jurista renomado, e talvez o mais ilustre pensador na história da Ordem Jesuíta — Francisco Suarez (1548-1617). O último dos grandes tomistas, este célebre teólogo nasceu em Granada em uma antiga família nobre. Entrando na Universidade de Salamanca, Suarez candidatou-se à Ordem Jesuíta em 1564 e foi o único candidato, entre 50 candidatos naquele ano, a ser rejeitado — tão mentalmente e fisicamente abaixo do padrão! Admitido finalmente em uma posição inferior, Suarez dificilmente pôde continuar seus estudos e foi conhecido — ironicamente como foi São Tomás de Aquino antes dele — como “boi mudo”. Logo, no entanto, o humilde e honesto Suarez se tornou o aluno estrela, e não demorou muito para que seus professores de teologia estivessem pedindo conselhos seus.
Em 1571, Suarez tornou-se professor de filosofia em Segovia, então lecionou teologia em Avila e Valladolid. Suarez logo alcançou a famosa cátedra de teologia no Colégio Jesuíta em Roma. De lá, devido a problemas de saúde, Suarez retornou à Espanha, lecionando em Alcalá, onde foi praticamente ignorado, e então em Salamanca, onde, como em Alcalá, perdeu disputas acadêmicas para rivais inferiores. Em 1593, o imperador insistiu que Suarez aceitasse a principal cátedra de teologia em Coimbra, onde, em 1612, publicou sua obra-prima, De Legibus ac de Deo Legislatore.
Francisco Suarez nunca conquistou seu mérito em vida. O estilo quieto e tranquilo de suas aulas o fez perder influência acadêmica para rivais chamativos, embora inferiores. Talvez a maior indignidade colocada sobre ele seja que, em 1597, com 49 anos, este brilhante e erudito jurista e teólogo, talvez a maior mente na história da Ordem Jesuíta, foi forçado a deixar a Universidade de Coimbra por um ano para obter um doutorado em teologia em Évora. Ph.D-isses no século XVI!3
Enquanto Suarez contribuiu pouco em questões estritamente econômicas, ele acrescentou muito ao peso da redescoberta de Louvain-Molina da visão dos direitos naturais ativos da propriedade privada, e ele reforçou o grande impacto da teoria do livre arbítrio molinista. Em adição, Suarez teve uma visão muito mais restrita do justo poder do rei do que Molina e seus antecessores. Para Suarez o poder do governante não é em nenhum sentido uma instituição divinamente criada, uma vez que o poder político pela lei natural e divina recai sobre as pessoas como um todo. A comunidade como um todo confere poder político ao rei ou outros conjuntos de governantes; e enquanto Suarez acreditava que a lei natural requer alguma forma de estado, o poder soberano de qualquer estado particular “precisa ser necessariamente concedido a ele com o consentimento da comunidade”.
A teoria de Suarez, é claro, tinha radicais implicações, é verdade. Afinal, se as pessoas ou a comunidade conferem poder estatal ao rei ou a um conjunto de governantes, não poderiam eles então rechaçá-lo? Aqui, Suarez se atrapalhou; ele certamente não estava preparado para ir em frente a uma verdadeiramente radical posição revolucionária. Não, ele declarou inconsistentemente, que uma vez que o poder soberano houvesse sido conferido pelo povo ao rei, ele é seu para sempre; o povo não pode tomá-lo de volta. Mas então Suarez transita mais uma vez, adotando a tradicional visão da doutrina tomista do direito do povo de resistir aos tiranos. Se um rei cair em tirania, então o povo deve levantar-se e resistir, e até mesmo assassinar o rei. Mas Suarez, como seus antecessores, cercou este poderoso direito ao “tiranicídio” com um emaranhado de restrições. Em particular, a tirania precisa ser manifestada, e uma pessoa privada não pode se levantar por si mesma e assassinar o rei. O ato deve de alguma forma ser mandatado pelo povo ou comunidade agindo como um todo.
7. O extremista erudito: Juan de Mariana
Um dos últimos escolásticos espanhóis foi um Jesuíta, mas não um Salmantino. Ele foi o “extremista” contemporâneo de Molina e Suarez, Juan de Mariana (1536-1624). Mariana nasceu perto de Toledo, de pais pobres e humildes. Entrou na grande Universidade de Alcalá em 1553, brilhou como estudante, e um ano mais tarde foi recebido na nova Sociedade de Jesus. Depois de completar os seus estudos em Alcalá, Mariana foi para o Colégio Jesuíta de Roma em 1561 para ensinar filosofia e teologia, e depois de quatro anos mudou-se para a Sicília para estabelecer o programa de teologia no Colégio Jesuíta de lá. Em 1569, Mariana mudou-se para ensinar teologia na grande Universidade de Paris, com uma idade notavelmente jovem de 33 anos. Após quatro anos, a doença obrigou-o a aposentar-se para viver em Toledo; a doença, porém, muitas vezes não significa necessariamente uma vida curta, e Mariana viveu até à então fenomenalmente madura idade de 88 anos.
Felizmente, a “aposentadoria” de Mariana foi ativa, e a sua grande aprendizagem e erudição atraiu numerosas pessoas, desde cidadãos privados a autoridades estatais e eclesiásticas, para pedir os seus conselhos e orientação. Ele foi capaz de publicar dois grandes e influentes livros. Um foi uma história da Espanha, escrita primeiro em latim e depois em Espanhol, que teve muitos volumes e muitas edições em ambas as línguas. A versão Latina foi finalmente publicada em 11 volumes, e a Espanhola em 30. A edição espanhola tem sido considerada há muito tempo um dos clássicos do estilo espanhol, e teve muitas edições até meados do século XIX.
A outra notável obra de Mariana, De Rege (Da Realeza), foi publicada em 1599, escrita por sugestão do Rei Filipe II da Espanha e dedicada ao seu sucessor Filipe III. Mas a monarquia não se saiu bem nas mãos do contundente Mariana. Adversário fervoroso da maré crescente do absolutismo na Europa, e da doutrina do rei Jaime I de Inglaterra de que os reis governam absolutamente por direito divino, Mariana converteu a doutrina escolástica da tirania de um conceito abstrato a uma arma com a qual se pode ferir os verdadeiros monarcas do passado. Ele denunciou governantes tão antigos como Ciro o Grande, Alexandre o Grande, e Júlio César como tiranos, que adquiriram o seu poder por injustiça e roubo. Os escolásticos anteriores, incluindo Suárez, acreditavam que o povo poderia ratificar tal usurpação injusta com o seu consentimento após o fato, e assim faz seu governo ser legítimo. Mas Mariana não foi tão rápido em conceder o consentimento do povo. Ao contrário de outros escolásticos, que colocaram a “donidade” do poder no rei, ele enfatizou que o povo tem o direito de reivindicar o seu poder político sempre que o rei abusar dele. De fato, Mariana sustentou que, ao transferir o seu poder político original de um estado de natureza para o rei, o povo necessariamente reservou direitos importantes para si mesmos; em adição ao direito de reivindicar a soberania, eles retinham poderes vitais, tais como a tributação, direito de vetar leis e o direito de determinar a sucessão se o rei não tivesse herdeiro. Já deveria estar claro que foi Mariana, em vez de Suárez, que poderia ser chamado de o precursor da teoria do consentimento popular de John Locke e da teoria de superioridade contínua do povo em relação ao governo. Além disso, Mariana também antecipou Locke ao declarar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos a fim de preservar os seus direitos de propriedade privada. Mariana também foi muito além de Suárez ao postular um estado de natureza, uma sociedade, anterior à instituição do governo.
Mas a característica mais fascinante do “extremismo” da teoria política de Mariana foi a sua inovação criativa na teoria escolástica do tiranicídio. Que um tirano poderia ser justamente morto pelo povo há muito era a doutrina padrão; mas Mariana a ampliou grandemente de duas formas significativas. Primeiro, ele expandiu a definição de tirania: um tirano era qualquer governante que violasse as leis da religião, que impusesse impostos sem o consentimento do povo, ou que impedisse uma reunião de um parlamento democrático. Todos os outros escolásticos, em contraste, haviam acomodado o poder exclusivo de tributar no governante. Ainda mais espetacularmente, para Mariana, qualquer cidadão pode assassinar com justiça um tirano e pode fazê-lo por qualquer meio necessário. O assassinato não exigia qualquer tipo de decisão coletiva por parte de todo o povo. Com certeza, Mariana não pensava que um indivíduo deveria envolver-se em assassinato levianamente. Primeiro, deveria tentar reunir o povo para tomar essa decisão crucial. Mas se isso for impossível, ele deveria ao menos consultar alguns “homens solenes e eruditos”, a menos que o clamor do povo contra o tirano se manifeste tão fortemente que a consulta se torne desnecessária.
Além disso, Mariana acrescentou — em frases que antecipam a justificativa de Locke e da Declaração da Independência do direito à rebelião — que não precisamos de nos preocupar com a ordem pública ser fortemente perturbada por demasiadas pessoas que se dedicam à prática do tiranicídio. Porque se trata de uma empreitada perigosa, Mariana ressaltou sensatamente, e muito poucos estão dispostos a arriscar as suas vidas dessa maneira. Pelo contrário, a maioria dos tiranos não teve uma morte violenta, e os tiranicidas foram quase sempre saudados pela população como heróis. Em contraste com as objeções comuns ao tiranicídio, concluiu, seria salutar para os governantes temer o povo, e perceber que um lapso na tirania poderia levar o povo a chamá-los à prestação de contas pelos seus crimes.
Mariana deu-nos uma descrição eloquente do típico tirano na sua obra mortal:
Apreende a propriedade de indivíduos e esbanja-a, impelido como está pelos vícios inescrupulosos da luxúria, avareza, crueldade e fraude […] Os tiranos, de fato, tentam ferir e arruinar a todos, mas dirigem o seu ataque especialmente contra homens ricos e íntegros em todo o reino. Eles consideram o bem mais suspeito do que o mal; e a virtude que lhes falta é para eles a mais formidável […] Expulsam os melhores homens da comunidade, com base no princípio de que tudo o que é exaltado no reino deve ser abatido […] Esgotam todo o resto para que não se possam unir exigindo-lhes diariamente novos tributos, suscitando disputas entre os cidadãos, e engajando de guerra em guerra. Constroem enormes obras às custas e com o sofrimento dos cidadãos. Daí nasceram as pirâmides do Egito […] O tirano teme necessariamente que aqueles que aterroriza e mantém como escravos tentem derrubá-lo […] Assim, proíbe os cidadãos de se agruparem, de se reunirem em assembleias, e de discutirem a comunidade, tirando-lhes por métodos de polícia secreta a oportunidade de falar livremente e ouvir livremente, para que nem sequer lhes seja permitido queixar-se livremente. […]
Este “homem solene e erudito”, Juan de Mariana, não deixou dúvidas sobre o que pensava do mais recente tiranicídio famoso: o do rei francês Henrique III. Em 1588, Henrique III tinha sido preparado para nomear como seu sucessor Henrique de Navarra, um Calvinista que governaria uma nação fervorosamente católica. Perante uma rebelião dos nobres Católicos, chefiada pelo duque de Guise, e apoiada pelos devotos cidadãos Católicos de Paris, Henrique III chamou o duque e o seu irmão cardeal para uma negociação de paz em seu acampamento, e depois mandou assassinar os dois. No ano seguinte, a ponto de conquistar a cidade de Paris, Henrique III foi assassinado, por sua vez, por um jovem frade dominicano e membro da Liga Católica, Jacques Clement. Para Mariana, desse modo, “o sangue foi expiado com sangue” e o duque de Guise foi “vingado com sangue real”. “Assim pereceu Clemente”, concluiu Mariana, “um eterno ornamento da França”. O assassinato tinha sido igualmente saudado pelo Papa Sisto V, e pelos fervorosos pregadores Católicos de Paris.
As autoridades francesas estavam compreensivelmente nervosas acerca das teorias de Mariana e sobre seu livro De Rege. Finalmente, em 1610, Henrique IV (antigo Henrique de Navarra, que tinha-se convertido do Calvinismo à fé Católica para se tornar rei da França), foi assassinado pelo resistente católico Ravaillac, que desprezava o centrismo religioso e o absolutismo estatal imposto pelo rei. A essa altura, a França irrompeu numa orgia de indignação contra Mariana, e o parlamento de Paris tinha queimado publicamente o De Rege por seu carrasco. Antes de executar Ravaillac, o assassino foi interrogado atentamente sobre se a leitura de Mariana o havia levado a assassinar, mas negou ter ouvido falar dele. Enquanto o rei da Espanha se recusava a atender aos apelos franceses para suprimir essa obra subversiva, o superior geral da Ordem dos Jesuítas emitiu um decreto à sua sociedade, proibindo-os de ensinar que é lícito matar tiranos. No entanto, essa concessão não impediu uma campanha de difamação bem sucedida na França contra a Ordem dos Jesuítas, bem como a sua perda de influência política e teológica.
Juan de Mariana possuía uma das personalidades mais fascinantes da história do pensamento político e econômico. Honesto, corajoso e destemido, Mariana esteve em maus lençóis durante quase toda a sua longa vida, até mesmo por seus escritos econômicos. Voltando a sua atenção à teoria e a prática monetárias, Mariana, no seu breve tratado De Monetae Mutatione (Da Alteração do Dinheiro, 1609) denunciou o seu soberano, Filipe III, por roubar o povo e aleijar o comércio por meio da depreciação da cunhagem de cobre. Salientou que essa depreciação também contribuiu para a inflação crônica dos preços espanhóis, ao aumentar a quantidade de dinheiro no país. Filipe tinha extinguido a sua dívida pública ao desvalorizar suas moedas de cobre em dois terços, triplicando assim a oferta de dinheiro em cobre.
Mariana observou que a depreciação e a manipulação do valor de mercado do dinheiro por parte do governo só poderiam causar graves problemas econômicos:
Só um tolo tentaria separar esses valores de modo que o preço legal fosse diferente do natural. Tolo não, perverso é o governante que ordena que uma coisa que o povo comum valora, digamos, a cinco deve ser vendida por dez. Os homens são guiados nessa questão por uma estimativa comum baseada em considerações sobre a qualidade das coisas, e sobre a sua abundância ou escassez. Seria inútil para um Príncipe procurar minar estes princípios do comércio. É melhor deixá-los intactos em vez de atacá-los à força em detrimento do público.
Mariana começa o De Monetae com uma encantadora e franca apologia para escrever o livro que faz lembrar o grande economista sueco Knut Wicksell mais de dois séculos e meio depois: ele sabe que as suas críticas ao rei cortejaram uma grande impopularidade, mas toda a gente está agora murmurando sob as dificuldades resultantes da depreciação, e ainda assim ninguém teve a coragem de criticar publicamente a ação do rei. Portanto, a justiça exige que pelo menos um homem — Mariana — se desloque para expressar publicamente a queixa comum. Quando uma combinação de medo e suborno conspira para silenciar críticos, deve haver pelo menos um homem no país que conheça a verdade e tenha a coragem de apontá-la a um e a todos.
Mariana prossegue então para demonstrar que a desvalorização é um imposto oculto muito pesado sobre a propriedade privada dos seus súditos, e que, conforme o progresso de sua teoria política, nenhum rei tem o direito de cobrar impostos sem o consentimento do povo. Uma vez que o poder político teve origem no povo, o rei não tem direitos sobre a propriedade privada dos seus súditos, nem poderá apropriar-se da sua riqueza pelos seus caprichos e por suas vontades. Mariana observa a bula papal Coena Domini, que tinha decretado a excomunhão de qualquer governante que impusesse novos impostos. Mariana justifica que qualquer rei que pratique depreciação deve incorrer na mesma punição, tal como qualquer monopólio legal imposto pelo estado sem o consentimento do povo. Sob tais monopólios, o próprio estado, ou o seu beneficiado, pode vender um produto ao público a um preço superior ao seu valor de mercado, e isso certamente nada mais é do que um imposto.4
Mariana também expôs uma história de depreciação de seus efeitos infelizes; e assinalou que os governos devem manter todos os padrões de peso e medida, e não apenas de dinheiro, e que o seu histórico de adulteração desses padrões é muito vergonhoso. Castela, por exemplo, tinha alterado as suas medidas de azeite e vinho, a fim de cobrar um imposto oculto, o que levou a uma grande confusão e agitação popular.
O livro de Mariana atacando a depreciação da moeda pelo rei levou o monarca a arrastar o erudito idoso (73 anos) para a prisão, acusando-o do alto crime de lèse-majesté. Os juízes condenaram Mariana por esse crime contra o rei, mas o papa recusou-se a puni-lo, e Mariana foi finalmente libertado da prisão após quatro meses, na condição de censurar as passagens ofensivas em sua obra, e de ser mais cuidadoso no futuro.
O Rei Filipe e os seus lacaios, contudo, não deixaram o destino do livro a uma eventual mudança de opinião por parte de Mariana. Em vez disso, o rei ordenou aos seus funcionários que comprassem todos os exemplares publicados de De Monetae Mutatione a que pudessem obter e que os destruíssem. Não só isso; após a morte de Mariana, a Inquisição Espanhola expurgou as cópias restantes, apagou muitas frases e manchou páginas inteiras com tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas no Index Espanhol, e essas, por sua vez, foram expurgadas durante o século XVII. Como resultado dessa selvagem campanha de censura, a existência do texto em Latim deste importante opúsculo/livreto permaneceu desconhecida durante 250 anos, e só foi redescoberta porque o texto espanhol foi incorporado numa coleção do século XIX de ensaios clássicos espanhóis. Assim, poucos exemplares completos do livreto sobrevivem, dos quais o único nos estados Unidos se encontra na Biblioteca Pública de Boston.
O venerável Mariana não estava aparentemente em problemas suficientes; depois de ter sido preso pelo rei, as autoridades apreenderam as suas notas e papéis, e encontraram aí um manuscrito atacando os poderes governantes existentes na Sociedade de Jesus. Um individualista sem medo de pensar por si próprio, Mariana fez claramente pouco caso do ideal Jesuíta da sociedade como um corpo militar rigidamente disciplinado. Nesse livreto, Discurso de las Enfermedades de la Compañía, Molina afrouxou a Ordem dos Jesuítas por todos lados, a sua administração e a sua formação de noviços, e julgou os seus superiores na Ordem dos Jesuítas incapazes de governar. Acima de tudo, Mariana criticou a hierarquia do tipo militar; o superior geral, concluiu, tem demasiado poder, e os provinciais e outros jesuítas pouquíssimos. Os jesuítas, afirmou, deveriam pelo menos ter uma voz na seleção dos seus superiores hierárquicos.
Quando o superior geral jesuíta, Cláudio Acquaviva, descobriu que cópias da obra de Mariana estavam a circular numa espécie de samizdat clandestino tanto dentro como fora da ordem, ele ordenou à Mariana que pedisse desculpa pelo escândalo. O combativo e escrupuloso Mariana, porém, recusou-se a fazê-lo, e Acquaviva não pressionou a questão. Assim que Mariana morreu, a legião de inimigos da Ordem dos Jesuítas publicou o Discurso simultaneamente em Francês, Latim e Italiano. Como no caso de todas as organizações burocráticas, os Jesuítas da época e posteriores estavam mais preocupados com o escândalo e em não lavar roupa suja em público do que em promover a liberdade de investigação, autocrítica ou correção de quaisquer males que a Mariana pudesse ter descoberto.
A Ordem dos Jesuítas nunca expulsou o seu eminente membro e nem ele jamais saiu. Mesmo assim, ele foi considerado durante toda a sua vida como um arruaceiro e não estava disposto a curvar-se às ordens ou à pressão dos colegas. O Padre Antonio Astrain, na sua história da Ordem dos Jesuítas, observa que “acima de tudo devemos ter em mente que o seu caráter [de Mariana] era muito rude e não mortificado”.5 Pessoalmente, de forma semelhante aos santos Franciscanos italianos São Bernardino e Santo Antonino do século XV, Mariana era ascético e austero. Nunca frequentou o teatro e considerou que os padres e monges nunca deveriam degradar o seu caráter sagrado, ouvindo os atores. Também denunciou o popular esporte espanhol de tourada, que também não foi calculado para aumentar a sua popularidade. Sombriamente, Mariana salientava frequentemente que a vida era curta, precária, e cheia de vexações. No entanto, apesar de sua austeridade, o Padre Juan de Mariana possuía uma inteligência cintilante, quase Menckenesca. Assim, sua única linha sobre o casamento: “Alguém disse astutamente que o primeiro e o último dia de casamento são desejáveis, mas que o resto é terrível.”
Mas provavelmente a sua observação mais espirituosa dizia respeito à luta de touros. O seu ataque a esse esporte deparou-se com a objeção de que alguns teólogos tinham defendido a validade da luta de touros. Denunciando os teólogos que atenuaram os crimes inventando explicações para agradar às massas, Mariana proferiu uma frase antecipando de perto uma observação favorita de Ludwig von Mises sobre os economistas, mais de três séculos e meio depois: “não há nada de absolutamente absurdo que não seja defendido por algum teólogo.”
8. Os últimos Salmantinos: Lessius e de Lugo
Um dos últimos grandes Salmantinos era um jesuíta, mas não um espanhol. Leonardus Lessius (1554-1623) era flamengo, nascido em Brecht, perto da grande cidade de Antuérpia. Durante o século XVI, Antuérpia se tornou o notável centro comercial e financeiro do norte da Europa, um foco de comércio do Mediterrâneo. Os pais de Lessius originalmente planejaram que ele se tornasse um mercador, mas entrou na Universidade de Louvain e foi recebido na Ordem dos Jesuítas em 1572. Ele ensinou filosofia por seis anos no colégio inglês em Douai, na França, e depois foi para Roma por dois anos para estudar com Francisco Suarez. Foi em Roma que Lessius se tornou um Salmantino em espírito, e a partir daí fez amizade com Luís de Molina. Retornando a Flandres, Lessius assumiu uma cadeira de filosofia e teologia na Universidade de Louvain. Em teologia, Lessius assumiu a grande causa molinista do livre arbítrio contra uma ala pró-determinista de teólogos em Louvain. Lá ele confrontou o cripto-calvinista Dr. Miguel Baio, chanceler da Universidade de Louvain, que adotou o conceito de predestinação e salvação dos eleitos. Lessius também defendeu a visão suareziana de que o poder político original era conferido por Deus ao povo e, portanto, ele atacou a crescente adesão ao direito divino dos reis, especialmente conforme apresentado pelo rei Jaime I da Inglaterra.
A obra mais importante de Lessius foi De Justitia et Jure (1605), o mesmo título que as obras de Molina e de Bañez. O livro foi extremamente influente, sendo publicado em quase 40 edições separadas em Antuérpia, Louvain, Lyon, Paris e Veneza. Não foi apenas enciclopédico o conhecimento de Lessius sobre seus predecessores, mas ele era conhecido por seu conhecimento e análise de práticas comerciais contemporâneas, contratos e por suas aplicações de princípios morais para tais práticas. Lessius foi consultado com frequência sobre esses assuntos por líderes de estado e da Igreja.
Na teoria do preço, Lessius, como seus antepassados escolásticos, defendeu o justo preço a ser determinado pela estimativa comum de mercado. Legalmente o preço fixo também pode ser o preço justo, mas em contraste com muitos de seus companheiros escolásticos, para os quais o preço legal tinha precedência, Lessius apontou vários casos em que o preço de mercado teria de ser escolhido em vez de o preço legal. Seguindo Juan de Medina, estes foram: primeiro, quando o preço de mercado é mais baixo; e em segundo, quando, “na mudança de circunstâncias de aumento ou diminuição da oferta e fatores semelhantes, as autoridades forem notavelmente negligentes na mudança do preço legal…”. Ainda mais forte, mesmo um “indivíduo privado” pode solicitar um preço acima do teto legal quando as autoridades estão “mal informadas sobre as circunstâncias comerciais”, o que é provável, é claro, acontecer na maior parte do tempo.
Atacando a teoria do preço do custo-de-produção, Lessius aponta a demanda de mercado como o determinante do preço, independentemente das despesas do mercador:
Mas se as despesas dos mercadores forem maiores, essa é sua má sorte, e o preço comum não pode ser aumentado por esse motivo, assim como não precisa ser diminuído mesmo que ele não tivesse despesas. Essa é a situação do mercador; assim como ele pode ter lucro se tiver pequenas despesas, então pode ter prejuízo se suas despesas forem muito grandes ou extraordinárias.
Leonardus Lessius teve uma visão de como todos os mercados econômicos são inter-relacionados, e ele analisou e defendeu, por sua vez, o funcionamento do câmbio, especulação, e o valor do dinheiro e dos preços. Em particular, Lessius engajou na análise mais sofisticada já alcançada do funcionamento de salários e mercado de trabalho. Como outros escolásticos, ele viu que os salários eram regidos pelos mesmos princípios de oferta e demanda e, portanto, pelos mesmos cânones de justiça, como qualquer preço. Ao perguntar qual é o “mínimo salário justificável” para qualquer ocupação, Lessius declarou que a existência de outras pessoas dispostas a realizar o trabalho com qualquer salário mostra que é não muito baixo. Em suma, se existe uma oferta para mão-de-obra com esse salário, como pode ser injusto?
Lessius também descobriu e estabeleceu o conceito de renda psíquica como parte de um salário em dinheiro. Um trabalhador pode ser pago em benefício psíquico, bem como em dinheiro: “se o trabalho traz consigo status social e prestígios, o pagamento pode ser baixo porque o status e as vantagens associadas são, por assim dizer, uma parte do salário”. Lessius também defendeu a visão de que os trabalhadores são contratados pelo empregador por causa dos benefícios obtidos por este último, e esses benefícios serão mensurados pela produtividade do trabalhador. Aqui estão certamente os rudimentos da teoria marginal da produtividade da demanda por trabalho e, portanto, dos salários, que foi estabelecida pelos austríacos e por outros economistas neoclássicos no final do século dezenove. Na verdade, as análises sofisticadas de Lessius sobre salários e sobre o mercado de trabalho foram perdidas para a economia dominante até que elas fossem independentemente redescobertas no final do século XIX.
Lessius também destacou a importância do empreendedorismo na determinação da renda. Essa qualidade de “indústria” empreendedorial, de combinar de forma eficiente empregos, é rara, e, portanto, o empreendedor capaz pode adquirir uma renda muito maior do que seus companheiros. Lessius também fornece uma análise sofisticada do dinheiro, demonstrando que o valor do dinheiro depende de sua oferta e de sua demanda. Dinheiro mais abundante o tornará menos valioso para a compra de bens ou moeda estrangeira, e uma maior demanda por dinheiro fará com que o valor da moeda suba: “Por exemplo, se grandes príncipes estão em necessidade urgente de dinheiro para a guerra ou para outros fins públicos, ou se uma grande quantidade de bens vier para o mercado; então sempre que o dinheiro é urgentemente necessário para questões de grande importância, será mais altamente estimado em termos de bens.”
Em sua aplicação do princípio moral à prática comercial, Lessius teve um libertador efeito sobre o comércio. Isso era particularmente verdadeiro para a usura, onde Lessius, embora continuasse formalmente a proibição tradicional, foi na verdade uma força altamente influente em sua destruição contínua. Lessius forneceu até agora a mais abrangente defesa do contrato de investimento garantido, e ele tratou benignamente, até mesmo altas taxas de retorno sobre o capital. Ele também removeu todas as restrições restantes ao lucrum cessans. Primeiro, ele ampliou a doutrina para aplicar, não apenas para empréstimos específicos que de outra forma teriam sido investidos, mas para quaisquer fundos, uma vez que são ativos líquidos que sempre poderiam ter sido investidos. Desse modo a gama de fundos pode, como um todo, ser considerada custo de oportunidade de investimento perdido e, portanto, juros podem ser cobrados sobre um empréstimo nessa medida.
Como Lessius afirma:
Embora nenhum empréstimo particular, considerado separadamente, seja a causa, todos, no entanto, considerados coletivamente, são a causa de todo o lucrum cessans: pois, a fim de emprestar indiscriminadamente para quem passa, você renuncia de fazer negócios e você sofrerá a perda do lucro que daí adviria. Portanto, uma vez que todos coletivamente são a causa, o fardo da compensação por esse lucro pode ser distribuído em empréstimos individuais, de acordo com a proporção de cada um.
Mas isso significava que Leonardus Lessius não justificava apenas os empresários ou investidores que planejam investir seu dinheiro, mas também qualquer pessoa com fundos líquidos, incluindo emprestadores profissionais de dinheiro. Pela primeira vez entre os escolásticos, todos os empréstimos de homens de negócios eram agora justificados. Com Leonardus Lessius, então, a última das barreiras aos juros ou usura foi quebrada, e apenas a casca vazia da proibição formal permaneceu.
Lessius acrescenta que o emprestador pode cobrar juros, mesmo que uma reserva do dinheiro seja mantida fora por precaução, e mesmo que esse medo seja irracional. Observe que para Lessius, o ponto importante era a realidade dos temores subjetivos do emprestador, não se os temores eram objetivamente corretos.
Além disso, Lessius assume a hipótese do argumento do risco, de Medina-Molina, a favor juros, sobre o qual eles tendiam a se proteger na prática, e o amplia muito. Todos os empréstimos, ele aponta, trazem riscos de não pagamento: “um direito pessoal está quase sempre associado a algumas dificuldades e perigos”. Numa análise cuidadosa do risco dos emprestadores, Lessius apontou que um risco maior, e uma cobrança maior iria ser incorrida ao emprestar a alguém desconhecido do emprestador, ou cujo crédito é duvidoso.
Mas isso não é tudo. Pois Leonardus Lessius contribuiu com sua própria, nova e poderosa arma contra a proibição da usura: um novo “título” ou justificativa para os juros. A nova justificativa — prefigurada apenas pelo negligenciado Summenhart — foi a carentia pecuniae: a cobrança por falta de dinheiro. Lessius apontou muito convincentemente que o credor sofre com a falta de seu dinheiro, a falta de sua liquidez, durante o prazo do empréstimo e, portanto, ele tem o direito de cobrar juros por esta perda econômica. Em suma, Lessius viu de forma perceptível que todos derivam utilidade da liquidez, da posse de dinheiro, e que ser privado dessa utilidade é uma falta para a qual o emprestador pode e irá exigir compensação. Lessius afirmou que podem, e surgem, situações inesperadas que poderiam ser enfrentadas com muito mais eficácia se o dinheiro de alguém estivesse em sua posse e não ausente por um período de tempo. O tempo, em suma, pode e deve ser cobrado, por esse motivo, “pois nunca se pode ser entendido que mercadores não valorizam uma concessão de longo prazo mais do que uma de curto prazo”. E aqueles que são privados de seu dinheiro “valorizam mais a falta de seu dinheiro por cinco meses do que a falta dele por quatro, e a falta dele por quatro mais do que por três, e isso ocorre em parte porque lhes falta a oportunidade de ganhos com esse dinheiro, em parte porque seu capital está mais em risco…”
Além disso, Lessius aponta que letras de câmbio, ou direitos de dinheiro futuro, estão sempre com um desconto em relação ao dinheiro. Esse desconto é de taxa de interesse, é claro. Lessius explica: “Esta é uma questão de experiência comum na qual o dinheiro fornece os meios para uma infinidade de coisas que esses direitos não fornecem. Portanto, eles podem ser comprados por um preço menor”. Lessius também nota que mercadores e cambistas determinam diariamente o “preço da falta de dinheiro” na Bolsa de Antuérpia, por cerca de 10 por cento em média; e o câmbio internacional, de valor inestimável para a economia, pereceria se tais preços não pudessem ser cobrados.
Assim, para Lessius, o preço da falta de dinheiro é estabelecido em mercados de empréstimos. Mas na medida em que existe um mercado de empréstimos, não há necessidade de justificar o empréstimo de cada mercador com base em seu custo de oportunidade particular ou privação de fundos. Esse preço, que se torna o preço justo, é definido no mercado de empréstimos. Como Lessius afirma:
Além disso, qualquer mercador parece capaz de exigir esse preço […] mesmo que não haja nenhum ganho seu que pare por causa de seu empréstimo. Este é o preço justo pela privação de dinheiro entre os mercadores; pelo preço justo de um artigo ou obrigação em qualquer comunidade está aquilo que é colocado sobre ele por essa comunidade de boa fé em prol do bem comum em todas as circunstâncias. […] Portanto, mesmo que através da privação de dinheiro por um ano não haja ganho meu que pare e nenhum risco de capital, já que tal preço por causas justas foi colocado sobre essa privação, posso exigi-lo como os demais.
Com a carentia pecuniae, portanto, Leonardus Lessius entregou o golpe final para esmagar a proibição da usura, embora, infelizmente, ainda retenha a proibição num sentido formal. Não é de admirar que o professor Noonan, o grande estudioso dos escolásticos sobre a usura, considera Lessius como o “teólogo cujas opiniões sobre a usura marcam mais decididamente a chegada de uma nova era. Mais do qualquer antecessor, ele provavelmente se sentiria completamente à vontade no mundo financeiro moderno.”6
O último Salmantino foi o cardeal jesuíta Juan de Lugo (1583-1660). De Lugo leva os Salmantinos ao século XVII, o século do declínio do poder espanhol na Europa. Depois de estudar teologia e direito em Salamanca, De Lugo foi à Roma para lecionar no grande Colégio Jesuíta. Após ensinar teologia em Roma por 22 anos, De Lugo foi nomeado cardeal e tornou-se membro de várias comissões influentes da Igreja em Roma. Um teórico erudito e polímata, De Lugo foi considerado o maior teólogo moral desde Tomás de Aquino. Autor de um livro sobre psicologia e outro sobre física, a obra-prima de De Lugo na área do direito e da economia foi De Justitia et Jure, publicado em 1642. Essa obra teve numerosas edições durante os séculos XVII e XVIII, sua última edição tendo aparecido em 1893.
Em sua teoria de valor, esta obra culminante da Escola de Salamanca exibiu uma explicação de utilidade subjetiva sutil e avançada. Os preços de bens, afirmou De Lugo, flutuam “em razão de sua utilidade em relação a necessidade humana, e então por conta da estimativa; pois joias são muito menos úteis do que o milho em casa, mas seu preço é muito mais alto”. Aqui De Lugo, mais uma vez, chega muito perto da explicação do valor pela utilidade marginal, do fim do século XIX, e de resolver o paradoxo do valor. O milho tem maior valor de uso do que joias, mas tem um preço menor. A resposta para esse paradoxo é que as estimativas subjetivas ou valorações diferem do valor de uso objetivo e, por sua vez, são afetadas pela relativa escassez de oferta. Novamente, apenas o conceito marginal é necessário para completar a explicação.
Subjetividade, continua De Lugo, significa que a “estimatição” ou valoração será conduzida por homens tanto “imprudentes” quanto por homens “prudentes” (sem suposições de “racionalidade” ou de “homem econômico” aqui!). Em suma, o preço justo é o preço de mercado determinado pela demanda e pela valoração do consumidor; e, se os consumidores são tolos ou julgam de maneira diferente de nós, então que seja. O preço de mercado é um preço justo da mesma forma.
Em sua discussão sobre as atividades dos mercadores, De Lugo contribui ao anterior conceito de custo de oportunidade das despesas mercantis. Pois um mercador apenas irá continuar a fornecer um produto se o preço cobrir suas despesas e a taxa de lucro que ele poderia ganhar em outras atividades.
Em sua teoria monetária, o Cardeal de Lugo segue seus confrades: o valor ou o poder de compra do dinheiro é determinado pela qualidade do conteúdo metálico das moedas, a oferta e a demanda por dinheiro. De Lugo também estabeleceu a ideia de que o dinheiro se move da área de valor inferior para uma de maior valor.
Sobre a usura, De Lugo forneceu um leque de ideias. Por um lado, ele recua das claras implicações de Lessius e outros de que a proibição da usura deveria tornar-se uma casca oca. Por esse motivo, ele recusa a aceitar a boa vontade de Lessius de ter a cobrança, feita pelo emprestador, por falta de dinheiro durante o período do empréstimo. Por outro lado, de Lugo amplia ainda mais as poderosas armas “pró-usura” do risco e do lucrum cessans. Ele amplia o conceito de risco ao incluir explicitamente todos os empréstimos; pois, como ele coloca com notável franqueza: “Onde hoje se encontra uma dívida tão colocada em segurança que em segurança ela é igual a dinheiro pronto?”. Mas isso, é claro, justifica a cobrança de juros sobre cada empréstimo. De Lugo também amplia o lucrum cessans ainda mais, pois permite o emprestador a incluir não apenas o provável lucro renunciado de um empréstimo, mas também a expectativa de lucro remoto renunciado. Além disso, o emprestador, ao cobrar juros, pode calcular o lucro que ele teria feito ao re-investir o lucro perdido em um empréstimo. Em suma, De Lugo afirma categoricamente que lucrum cessans é “o título geral para purgar a usura.”
9. A queda do escolasticismo
A Espanha do século XVI foi muito bem chamada de Verão Indiano* do escolasticismo. Depois disso, seu declínio, não apenas na Espanha mas por toda a Europa, foi rápido. Parte da razão foi um teimoso apego à forma da proibição da usura. Uma proibição que teve pouco sentido, seja por lei natural ou divina, e que adentrou no pensamento cristão um tanto mais tarde, foi apregoada e fortificada por um frenesi irracional quase perpétuo. O enfraquecimento sistemático das proibições da usura por algumas das mentes mais brilhantes na cristandade teve o efeito benéfico de sancionar a cobrança de juros, mas isso sob o custo a longo prazo do descrédito do próprio método escolástico. Ao bater no casco de banir a usura como um pecado mortal, enquanto que ao mesmo tempo encontraram maneiras de crescente sofisticação de se permitir com que mercadores e emprestadores profissionais de dinheiro possam desviar da proibição, os escolásticos se puseram vulneráveis a acusações injustas de subterfúgio e de hipocrisia.
O golpe mortal no escolasticismo veio de dois campos contrastantes, mas aliados. Um deles foi o crescente grupo de protestantes de fora e de cripto-calvinistas de dentro da Igreja, que a denunciaram por causa de sua suposta decadência e frouxidão moral. O protestantismo, no final das contas, era em grande parte um esforço para se livrar das sofisticadas armadilhas e da refinada doutrina da Igreja, e voltar à alegada simplicidade e pureza moral do início do Cristianismo. O próprio emblema dessa hostilidade foi a Ordem dos Jesuítas, a devotada ponta de lança da Contra-Reforma, a ordem que assumiu dos vacilantes dominicanos a tocha do tomismo e da escolástica.
O segundo campo dos inimigos do escolasticismo foi também o grupo crescente dos secularistas e racionalistas, homens que poderiam ser católicos ou protestantes em suas vidas privadas mas que queriam, em primeiro lugar, se livrar de tais excrescências sobre a vida moderna, como a aplicação política de princípios religiosos ou a proibição da usura. Consequentemente, os cripto-calvinistas atacaram os Jesuítas por afrouxarem a proibição da usura, enquanto os secularistas os atacaram por mantê-la.
Nenhum dos lados da oposição estava impressionado com o brilhantismo dos argumentos escolásticos para justificar a usura, nem com todo o empreendimento jesuíta e escolástico da “casuística”: isto é, de aplicar princípios morais, ambos naturais e divinos, a problemas concretos da vida cotidiana. Pode-se pensar que a tarefa da casuística deveria ser considerada importante e até mesmo nobre; se princípios morais gerais existem, porque não deveriam eles ser aplicados na vida cotidiana? Mas ambos os conjuntos de oponentes rapidamente tiveram sucesso em fazer da própria palavra “casuística” um termo manchado: para os primeiros, um método de se desviar de preceitos morais estritos; para os outros, um método de impor dogmas reacionários atrasados sobre o mundo.
Por que, apesar do grande trabalho de Summenhart e de outros, a Igreja Católica persistiu em manter a proibição formal da usura por dois séculos depois disso? Provavelmente pela mesma razão que a Igreja sempre tendeu a sustentar firmemente que nunca muda suas doutrinas enquanto continua fazendo isso. A mudança de conteúdo dentro de uma estrutura formal imutável tem sido característica, não apenas da Igreja Católica, mas de qualquer instituição burocrática de longa duração, seja a Igreja ou as interpretações constitucionais da Suprema Corte dos estados Unidos.
A dupla aliança contra a escolástica dentro e fora da Igreja Católica fez um corte muito mais profundo do que a querela sobre a usura. Na raiz do catolicismo enquanto religião está que Deus pode ser abordado ou apreendido por meio de todas as faculdades do homem, não simplesmente pela fé, mas pela razão e pelos sentidos. O protestantismo, e especialmente o calvinismo, severamente colocou Deus fora das faculdades do homem, considerando, por exemplo, as personificações sensatas do amor do homem por Deus na pintura ou a escultura como uma idolatria blasfema a ser destruída a fim de limpar o caminho para a única comunicação adequada com Deus: a pura fé na revelação. A ênfase tomista na razão como meio de apreender a lei natural de Deus e até mesmo aspectos da lei divina foi insultada por uma única ênfase protestante na fé na vontade arbitrária de Deus. Embora alguns protestantes adotassem teorias da lei natural, o impulso protestante básico era a oposição a qualquer tentativa de lei natural de derivar a ética ou a filosofia política do uso da razão do homem. Para os protestantes, o homem era inerentemente pecaminoso e corrupto demais para sua razão ou para seus sentidos serem qualquer coisa além de uma personificação da corrupção; apenas a fé pura nos mandamentos revelados e arbitrários de Deus era permissível como uma base para a ética humana. Mas isso significava que, para os protestantes, havia muito pouca base de lei natural para criticar as ações do estado. O calvinismo e até mesmo o luteranismo forneceram pouca ou nenhuma defesa contra o estado absolutista que floresceu em toda a Europa durante o século XVI e triunfou no século XVII.
Se o protestantismo abriu o caminho para o estado absoluto, os secularistas dos séculos XVI e XVII o abraçaram. Desprovidos das críticas do estado à lei natural, os novos secularistas, como o francês Jean Bodin, abraçaram a lei positiva do estado como o único critério possível para a política. Assim como os protestantes anti-escolásticos exaltaram a vontade arbitrária de Deus como o fundamento da ética, os novos secularistas elevaram a vontade arbitrária do estado ao status de “soberano” incontestável e absoluto.
No nível mais profundo da questão de como sabemos o que sabemos, ou “epistemologia”, o tomismo e o escolasticismo sofreram com os ataques contrastantes, mas aliados, dos defensores da “razão” e do “empirismo”. No pensamento tomista, a razão e o empirismo não estão separados, mas aliados e entrelaçados. A verdade é construída pela razão sobre uma base sólida na realidade empiricamente conhecida. O racional e o empírico foram integrados em um todo coerente. Mas na primeira parte do século XVII, dois filósofos contrastantes elaboraram entre eles a divisão fatal do racional e do empírico que continua a atormentar o método científico até os dias atuais. São eles o inglês Francis Bacon (1561-1626) e o francês René Descartes (1596-1650). Descartes era o defensor de uma “razão” matemática dissecada e absolutamente certa, divorciada da realidade empírica, enquanto Bacon era o defensor de peneirar infinitamente e quase sem pensar os dados empíricos. Tanto o distinto advogado inglês que se tornou o Lord Chancellor (Lord Verulam), Visconde do Reino e juiz corrupto, quanto o tímido e errante aristocrata francês, concordam em um ponto crucial e destrutivo: separar a razão e o pensamento dos dados empíricos. Consequentemente, de Bacon surgiu a tradição “empirista” inglesa, imprudentemente imersa em dados incoerentes, e de Descartes a tradição puramente dedutiva e às vezes matemática do “racionalismo” continental. Tudo isso, é claro, foi um ataque à lei natural, que há muito integrava o racional e o empírico.
Como corolário, e misturado com, essa mudança básica e sistemática no pensamento europeu no período “proto-moderno” (o século XVI e especialmente o século XVII) foi uma mudança radical no locus da atividade intelectual longe das universidades. Os teólogos e filósofos que escreveram e pensaram sobre economia, direito e outras disciplinas da ação humana durante os períodos medieval e renascentista eram professores universitários. Paris, Bolonha, Oxford, Salamanca, Roma e muitas outras universidades foram o meio e a arena para a produção intelectual e o combate durante esses séculos. E mesmo as universidades protestantes no início do período moderno continuaram a ser centros de ensino da lei natural.
Mas os principais teóricos e escritores dos séculos XVII e XVIII quase nenhum deles eram professores. Eles eram panfletários, homens de negócios, aristocratas errantes como Descartes, funcionários públicos menores como John Locke, religiosos como o bispo George Berkeley. Essa mudança de foco foi muito facilitada pela invenção da imprensa, que tornou a publicação de livros e escritos muito menos onerosa e criou um mercado muito mais amplo para a produção intelectual. A impressão foi inventada em meados do século XV e, no início do século XVI, tornou-se possível, pela primeira vez, ganhar a vida como escritor independente, vendendo seus livros para um mercado comercial.
Essa mudança de professores universitários para cidadãos leigos privados significou, pelo menos para aquela época, um afastamento dos modos tradicionais de aprendizagem e pensamento em direção a um espectro mais diversificado de visões individuais idiossincráticas. Em certo sentido, essa aceleração da diversidade foi acompanhada por um dos impactos mais importantes da Reforma Protestante no pensamento social e religioso. Pois, a longo prazo, muito mais importante do que disputas teológicas como o livre-arbítrio versus a predestinação e sobre o significado da comunhão foi a destruição da unidade da cristandade. Lutero e mesmo Calvino não tinham intenção de fragmentar a cristandade; pelo contrário, cada um se propôs a reformar uma Igreja Cristã unificada. Mas as consequências de sua revolução foram abrir a caixa de Pandora. Enquanto atritos e heresias haviam sido eliminados ou acomodados dentro da Igreja, agora o Cristianismo se dividiu em literalmente centenas de seitas diferentes, algumas bastante bizarras, cada uma propondo diferentes teologias, éticas e prescrições para a vida social.
Embora as diversas correntes de pensamento social decorrentes dessa ruptura com o cristianismo incluíssem racionalistas e grupos individualistas, como os Levellers, bem como absolutistas, o valor da diversidade resultante deve ser compensado pela infeliz dissolução do escolasticismo e do tomismo do pensamento ocidental.
A ruptura da unidade do pensamento europeu foi intensificada pela mudança, durante esses séculos, da literatura escrita do latim para o vernáculo em cada país. Durante a Idade Média, todos os intelectuais, juristas e teólogos da Europa escreviam em latim, embora, é claro, a língua falada em cada país fosse o vernáculo. Isso significava que, para estudiosos e intelectuais, havia apenas uma língua e, em certo sentido, um país, de modo que ingleses, franceses, alemães etc., podiam facilmente ler e ser influenciados pelos livros e artigos uns dos outros. A Europa era verdadeiramente uma comunidade intelectual.
Na Idade Média, apenas autores italianos escreveram, de vez em quando, em italiano e também em latim. Mas a Reforma Protestante deu um impulso tremendo para o abandono do latim, uma vez que os protestantes sentiram que era vital para as massas cristãs ler e estudar a Bíblia em uma linguagem que pudessem entender. A famosa tradução da Bíblia para o alemão por Martinho Lutero, no século XVI, inspirou uma rápida mudança na escrita na língua nacional. Como resultado, desde os séculos XVI e XVII, o pensamento econômico, social e religioso começou a ser isolado em cada língua nacional. Posteriormente, as influências contínuas do pensamento econômico escolástico limitaram-se aos escritores dos países católicos.
10. Tiros de despedida: a tempestade sobre os jesuítas
Enquanto a inspiração para escolásticos criativos e destacados se desenvolvia, o século XVII viu a influência da escolástica continuar na Espanha e se espalhar para outros países. O grande defensor e divulgador da Escola de Salamanca foi, naturalmente, a Ordem dos Jesuítas. Na Espanha e em outros lugares, os jesuítas produziram um grande número de manuais de teologia moral para uso de confessores, nos quais discutiam, entre outros assuntos, a aplicação de princípios teológicos e morais à ética dos negócios. A instância mais importante foi a do piedoso padre Antonio de Escobar y Mendoza (1589-1669) Theologiae Moralis (1652). Essa obra extremamente popular foi reimpressa em 37 edições em um breve período de tempo, e também foi traduzida e publicada na França, Bélgica, Alemanha e Itália. A obra de Escobar foi basicamente uma reafirmação de duas dúzias de livros anteriores sobre teologia moral, principalmente de escritores espanhóis como Molina, Suarez e De Lugo. Ele repetiu a ênfase salmantina sobre a estimativa comum, sobre a escassez e a oferta de dinheiro como determinantes do preço de mercado.
A Escola de Salamanca foi particularmente influente na Itália. Lá, o filósofo e jurista genovês Sigismondo Scaccia (c.1568-1618) publicou o Tractatus de Commerciis et Cambiis em 1618, que foi reimpresso com frequência na Itália, França e Alemanha até meados do século XVIII. O Tractatus de Scaccia repetiu as teorias de preço e de câmbio dos Salmantinos, incluindo de Covarrubias, Azpilcueta e Lessius.
Outros neo-Salamantinos proeminentes na Itália foram o cardeal jesuíta Giambattista de Luca (1613-83), que publicou seu Theatrum Veritatis et Justitiae em vários volumes em Roma na década de 1670; Martino Bonacina (c.1585-1631); e Antonino Diana (1585-1663).
Na França, no entanto, o influente manual de Escobar enfrentou uma tempestade de abusos por sua sofisticada atitude permissiva em relação à usura. O abuso foi liderado por um influente grupo cripto-calvinista dentro da Igreja Católica francesa que levantou uma discussão furiosa sobre a alegada frouxidão moral da Ordem dos Jesuítas.
O ataque aos jesuítas e à sua devoção à razão e à livridade da vontade tinha começado na Bélgica e foi acelerado no final do século XVI pelo Dr. Miguel Baio, reitor da grande Universidade de Louvain. Baio e o baioanismo lançaram uma furiosa guerra interna em Louvain contra Leonardus Lessius e os jesuítas na faculdade. O chanceler Baio conseguiu converter a maior parte da faculdade de Louvain ao seu credo, que adotou o credo calvinista da predestinação de um eleito. Na França, os absolutistas pró-realistas [em inglês: royalists] iniciaram uma amarga campanha contra a Ordem dos Jesuítas, que ligaram à Liga Católica e ao assassinato do centrista e pró-calvinista Henrys. Em particular, o advogado Antoine Arnauld, defendendo ao máximo o absolutismo real, pediu a expulsão dos jesuítas da França, furiosamente declarando que eles eram os piores inimigos da “sagrada doutrina do Direito Divino dos Reis”. Arnauld foi originalmente contratado para pressionar o caso contra os jesuítas pela Universidade de Paris e sua faculdade teológica de Sorbonne, que também havia sido varrida pela maré cripto-calvinista.
No início do século XVII, dois discípulos de Miguel Baio, antigos estudantes dos jesuítas, assumiram o comando de sua causa. O mais importante foi Cornelius Jansênio, fundador do movimento neo-calvinista jansenista, que se tornou extremamente poderoso na França. Jansênio, como muitos teólogos abertamente protestantes, exigiu voltar à pureza moral de Santo Agostinho e das doutrinas cristãs dos séculos IV e V. Se Jansênio era o teórico do movimento, seu amigo, o Abade Saint-Cyran, era um brilhante tático e organizador. Com a ajuda de Mère Angelique, superior das freiras de Port-Royal, Saint-Cyran ganhou o controle dessas freiras influentes. Mère Angelique era filha de Antoine Arnauld e, de fato, uma dúzia de freiras de Port-Royal eram membros da poderosa família Arnauld.
Uma das freiras de Port-Royal era irmã do brilhante jovem filósofo, matemático e estilista francês Blaise Pascal, e o jovem Pascal assumiu a causa jansenista com um ataque espirituoso e violento aos jesuítas, especialmente a Escobar, por sua alegada falha moral em ser brando com a usura. Pascal chegou a cunhar um novo termo popular, escobarderie, com o qual denunciou a importante disciplina da casuística como sendo uma sofisticação evasiva. Outra vítima da caneta envenenada de Pascal foi o austero jesuíta francês Etienne Bauny. Em seu Somme des Pechez (1639), Bauny estendeu o enfraquecimento da proibição da usura ao ir tão longe a ponto de justificar encargos de juros mais altos do que a taxa máxima permitida pelo decreto real pois, afinal, “os devedores os aceitaram de boa vontade”. Além disso, o voluntarismo incisivo de Bauny defendeu o contrato de usura por outro motivo incisivo: uma vez que é lícito para um emprestador esperar que um tomador de empréstimo lhe dê um presente gratuito, também deveria ser lícito para o emprestador e o tomador de empréstimo fazer um pacto definitivo antecipadamente. Como fazer um contrato para algo pode ser mau, se esperar pelo resultado é permitido? Uma vez permitidas tais justificativas por escolha voluntária, então, é claro, todos os ataques à usura e às outras atividades de livre mercado devem ser descartadas.
Embora os jansenistas tenham acabado sendo condenados pelo papa, a revolta grosseira de Pascal contra os jesuítas teve um efeito considerável em ajudar a encerrar o reinado do pensamento escolástico, pelo menos na França.
[1] Frank Bartholomew Costello, S.J., The Political Philosophy of Luis de Molina, S.J. (Spokane: Gonzaga University Press, 1974), p. 231.
*Nota do tradutor: Cremos que o livro aqui falado é mais conhecido como Decisiones de Jure et Justitia (1594), não confundir com a famosa obra de seu rival jesuíta, Luís de Molina, De Justitia et Jure.
*O prefixo cripto se refere aqui ao termo Cripta que faz menção a escondido, oculto. O termo criptografia surge mais tarde se inspirando nessa ideia.
[2] Richard Tuck, Natural Rights Theories (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), p. 54.
[3] O grande Molina também teve dificuldades por não ter o doutorado em teologia, que finalmente lhe foi conferido pela Ordem dos Jesuítas com considerável relutância.
[4] A forma de depreciação por Filipe, como salientou Mariana, era a de ou duplicar o valor nominal do cobre recunhado enquanto mantém o mesmo peso, de modo que o valor aumentado passasse como lucro para o tesouro real; ou manter o valor nominal das moedas de prata/cobre, retirar a prata e reduzir o peso do cobre, o que acrescentou ao tesouro um lucro de dois terços.
[5] Citado por John Laures, S. J., The Political Economy of Juan de Mariana (Nova York: Fordham University Press, 1928), p. 18.
[6] John T. Noonan, Jr, The Scholastic Analysis of Usury (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1957), p. 222.
*Nota do tradutor: “Verão Indiano” é uma expressão que indica um período do ano de clima quente, fervoroso. Mas que precede um período de frio e geada intensas.