[Nota da Universidade Libertária]: este texto faz parte do capítulo 1 do livro “O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro – Uma Obra em Domínio Público“. Apesar de abordar pelo ponto de vista do direito positivista brasileiro, é muito interessante para mostrar a evolução da propriedade privada, conceito tão importante para os libertários.
Nem toda propriedade recai sobre um bem material. Por séculos, a terra significou o bem paradigmático sujeito à doutrina da propriedade, exatamente por representar o bem mais valioso. No entanto, nas últimas décadas, viu-se um verdadeiro processo de desmaterialização da propriedade. Ações e marcas – ambas sujeitas ao regime das propriedades de bens imateriais, ainda que distintos um do outro – podem valer quan- tias inimagináveis, frequentemente mais do que qualquer bem tangível[1].
De modo geral, a doutrina – tanto brasileira quanto estrangeira – se vale da nomenclatura “propriedade intelectual” sem qualquer questionamento mais profundo, sendo comum identificar em sua natureza um tipo de propriedade com características especiais[2], e dividindo-a classicamente em dois grandes grupos: os direitos autorais e conexos de um lado e a propriedade industrial de outro[3]. Apesar das possíveis críticas à denominação “propriedade intelectual”, vamos por ora adotá-la por conta de sua consagração[4]. Voltamos ao tema quando tratarmos especificamente de sua natureza jurídica. No direito positivo brasileiro, a propriedade intelectual é tratada no âmbito de diversas leis, sendo as duas mais relevantes a LDA, para a proteção dos direitos autorais e conexos, e a lei 9.279/96, para a proteção da propriedade industrial, conhecida, por isso mesmo, como Lei de Propriedade Industrial (doravante, “LPI”). E ainda que a propriedade intelectual seja considerada uma única disciplina autônoma, é importante observarmos que os bens intelectuais são protegidos por institutos jurídicos diferentes, com naturezas jurídicas, peculiaridades e justificações diversas[5].
De fato, desde o século XIX, variadas têm sido as teorias para tentar compreender melhor o instituto da propriedade intelectual, sendo que as inúmeras (e aparentemente infindáveis) discussões abrangem, entre outros temas de interesse, que bens se encontram protegidos sob a chamada propriedade intelectual e qual sua natureza jurídica. Tratar detalhadamente cada uma dessas controvérsias seria redundante diante de tantos excelentes trabalhos que já as esmiuçaram com o devido senso crítico[6] além de excessivo para este trabalho, por lhe fugir totalmente do limite e do propósito. Por isso, vamos nos ater apenas às questões essenciais para a compreensão do liame existente entre a essência da propriedade intelectual e a construção do domínio público.
Com essa diretriz como norte, indagamos: em que medida a propriedade intelectual se aproxima e, por outro lado, se afasta, das demais propriedades? É possível inserir de fato a propriedade intelectual ao lado das demais propriedades?
A discussão não é desprovida de consequências práticas. Afinal, a lei deve disciplinar os institutos a partir das categorias a que pertencem. Se a propriedade intelectual é de fato propriedade, então estará submetida a determinadas regras jurídicas. Se não, seu regramento será outro.
Neste item, cuidaremos da propriedade intelectual como um conjunto único de bens e buscaremos compreender em que medida ela se assemelha ou não às demais propriedades – especialmente a propriedade material.
É certo que entre a propriedade intelectual e os demais tipos de propriedade existem diversas interseções. Desde logo, podemos citar que toda propriedade confere ao seu titular um direito absoluto, exercido erga omnes, característica que também se verifica nos bens protegidos pela propriedade intelectual.
As faculdades conferidas ao proprietário abrangem os direitos de usar, gozar e dispor da coisa, além de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha[7]. São essas as mesmas faculdades conferidas ao titular dos direitos sobre qualquer dos bens protegidos pela propriedade intelectual, ainda que pela natureza da coisa seu exercício se dê de maneira peculiar[8]. O autor de uma música ou o titular de uma patente de invenção, por exemplo, poderão sempre se valer do bem intelectual como melhor julgarem (usando a coisa, bem como dela gozando ou dispondo), especialmente no que concerne a seu aproveitamento econômico.
Finalmente, apontamos como um terceiro ponto de contato entre a propriedade intelectual e as demais propriedades o fato de o direito incidir sobre um bem determinado[9]. Ocorre que o bem protegido pela propriedade intelectual é imaterial, intangível, impalpável, e daí começam a decorrer as principais divergências quando se compara a propriedade intelectual às demais propriedades.
De fato, é justamente a imaterialidade que leva a apontar a primeira das principais diferenças entre a proteção conferidas aos bens que compõem a propriedade intelectual dos demais bens[10]. Os bens intelectuais são não-rivais, o que não ocorre com os outros bens. Significa dizer, de modo simplificado, que um bem protegido nos termos da propriedade intelectual pode ser usado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, com fins diversos, o que é impossível quando qualquer outro bem (material, tangível) é considerado[11].
Imagine-se, por exemplo, o uso de um texto ou de uma música. Diversas pessoas, em localidades diferentes, podem usar a mesma obra (trata-se aqui da concepção intelectual e não do suporte onde ela se insere, ou seja, o texto e não o livro; a música, não o CD) ao mesmo tempo, já que o uso por uma pessoa não rivaliza com o uso da mesma obra pelas demais.
Por outro lado, o uso de um bem material – um automóvel, por exemplo – não se dá nas mesmas condições. Como é óbvio, duas pessoas não podem usar o mesmo carro, ao mesmo tempo, com finalidades diversas.
Essa não-rivalidade no uso dos bens protegidos pela propriedade intelectual acarreta o que se convencionou chamar de “falha de mercado”. Como afirma James Boyle, “quando as coisas são fáceis de serem copiadas e difíceis de excluir terceiros, nós estamos diante de um potencial colapso do mercado”[12].
A escassez dos bens materiais garante que apenas parte da sociedade (aqueles que têm interesse em determinado bem e podem por ele pagar) terão acesso a suas reproduções controladas e que, em virtude desse controle, mantêm em regra um valor de mercado mais ou menos constante.
Os bens protegidos pela propriedade intelectual têm como característica o fato de poderem (em termos práticos) ser copiados. Se pensarmos no momento atual, então, percebemos quão facilmente são feitas cópias (muitas vezes perfeitas) de obras protegidas por direito autoral, por marcas ou por patentes. Por isso, o mercado, isoladamente, não seria capaz de regular o preço dos bens intelectuais disponíveis. Assim que uma obra intelectual fosse lançada no mercado, seria razoavelmente fácil obter uma cópia não autorizada, o que teoricamente poderia reverter em prejuízo ao titular do direito.
No dizer de Denis Borges Barbosa, “se um agente do mercado investe num desenvolvimento de uma certa tecnologia, e esta, por suas características, importa em alto custo de desenvolvimento e facilidade de cópia, o mercado é insuficiente para garantir que se mantenha um fluxo de investimento”[13]. Como consequência, “a apropriação pelo concorrente de uma nova solução técnica permite que este reduza as margens de retorno do primeiro investidor. Quem não investe aufere, assim, maior prêmio do que aquele que realiza os gastos com o desenvolvimento da tecnologia”[14].
Daí a necessidade de o Estado intervir para suprir a “falha de marcado” por meio da criação de leis de proteção à propriedade intelectual[15].
No entanto, o simples fato de os bens protegidos por propriedade intelectual serem imateriais não é critério suficiente, por si só, para constituir uma categoria autônoma e independente das demais propriedades. Afinal, há outros direitos imateriais que não se enquadram entre os bens protegidos pela propriedade intelectual. Como exemplo, podemos citar as quotas das sociedades de responsabilidade limitada e as ações das so- ciedades anônimas. Nestes casos, tratam-se de bens também intangíveis, mas que não se encontram sujeitos à falha de mercado a que anteriormente nos referimos[16].
A segunda distinção importante entre a propriedade intelectual e as demais propriedades é que estas tendem à perpetuidade, enquanto que aquela tende a se extinguir com o tempo. A propriedade exercida sobre um imóvel ou sobre joias – ou ainda sobre bens sem qualquer valor comercial, mas de inestimável valor afetivo – podem (e frequentemente assim acontece) ser transmitidos de uma geração a outra, indefinidamente, pelo tempo que existir o bem material. O mesmo não acontece com os bens protegidos pela propriedade intelectual[17].
Direitos autorais, por exemplo, extinguem-se em regra 70 anos após o falecimento do autor. Já as patentes duram por 20 anos contados da data do depósito. Desenhos industriais podem vigorar pelo prazo máximo de 25 anos; programas de computador, por no máximo 50. Até mesmo as marcas podem deixar de gozar de proteção dependendo das circunstâncias. Assim é que, de modo geral, os bens intelectuais escapam aos limites da perpetuidade da propriedade. Ainda que o bem material onde a obra intelectual se encontra fixada continue a existir décadas depois de sua concepção e ainda que seu titular aufira grandes vantagens com a exploração econômica da obra, chegado o momento final do prazo de proteção legal, a obra intelectual ingressará em domínio público.
Daí se infere uma terceira distinção entre a propriedade intelectual e as demais propriedades. Todas as coisas corpóreas pertencem (ou podem pertencer) a alguém. Todo objeto de propriedade pode pertencer a um particular ou ao Estado; pode pertencer a uma ou a mais pessoas. A coisa sem dono – res nullius – pode vir a pertencer a alguém. O mesmo se dá com a coisa abandonada – res derelicta. No entando, decorrido o prazo de proteção conferido aos bens intelectuais, eles entram em domínio público e então não podem mais ser apropriados por quem quer que seja, nem pelo particular nem pelo Estado, ainda que a este incumba a sua defesa. A obra em domínio público não é – nem pode ser – propriedade de ninguém.
Por isso é que se pode afirmar que, quanto a todos os bens objeto de propriedade, existe uma potencialidade em sua apropriação, caso já não sejam de propriedade de alguém. Mas o mesmo não se dá com os bens intelectuais. Estes têm, em regra, o destino certo do domínio público. Pelo menos quanto aos direitos autorais (que são o objeto central desta tese), podemos afirmar sem erro que o domínio público é a regra, o fim a que se destinam de maneira inevitável, sendo a exclusividade que o autor (ou titular do direito) detém uma circunstância temporária.
Uma quarta distinção reside na transmissão de direitos. Todo bem objeto de propriedade pode ser transmitido, por seu titular, a terceiro. Ocorre que quando essa operação se dá com bens físicos (um automóvel, uma casa, um livro ou um animal), a transmissão do direito de propriedade põe fim a qualquer relação jurídica havida entre o proprietário anterior e o terceiro adquirente. Uma vez transferida a propriedade de determinado bem por meio de contrato de compra e venda, o vendedor fica, em regra, completamente desvinculado do bem objeto do contrato.
O mesmo não se pode dizer quanto à cessão[18] de determinados bens protegidos pela propriedade intelectual. Embora a regra não valha para todos os bens intelectuais indistintamente, em alguns casos – como nos direitos autorais –, o autor da obra gozará da prerrogativa de ter sempre seu nome vinculado à obra, mesmo após o decurso do prazo de proteção. Há, portanto, um vínculo indissolúvel entre autor e obra, independentemente da transmissão de sua titularidade.
Essa distinção, apontada eventualmente pela doutrina, não é entretanto isenta de críticas. Afinal, pelo menos no aspecto patrimonial, que alegadamente se reveste da natureza dos direitos reais, a transmissão se faz de modo absoluto. A propriedade se transmite e encerram-se os laços entre autor o obra. O vínculo remanescente decorre dos direitos morais, que não têm, certamente, natureza patrimonial.
Por isso, é possível afirmar que, ao menos no que diz respeito aos direitos autorais, existe um vínculo perene entre o titular originário e o o objeto da cessão, e que esse vínculo não encontra paralelo na propriedade de bens materiais. Não seria portanto uma distinção intrínseca aos aspectos patrimoniais do direito, mas sim relativa aos direitos morais que à obra estão vinculados.
Como é possível ver, são muitas as diferenças entre a propriedade intelectual e os demais tipos de propriedade. Daí a pergunta: até onde é possível nos afastarmos de um determinado instituto jurídico sem descaracterizá-lo? Será que diante de tantas diferenças, é de propriedade que estamos tratando quando analisamos os bens intelectuais?
Tais indagações não têm resposta fácil. Assim como não é possível submeter todos os tipos de propriedade à mesma disciplina jurídica, entendemos que não dá para tratar também a propriedade intelectual como algo composto de diversos bens sobre os quais incidem sempre e infalivelmente as mesmas regras. É bem verdade que cada um dos bens que compõem a propriedade intelectual contém suas características próprias e as regras que regulam uns não necessariamente regulam os demais.
Nesse sentido, Pugliatti afirma que “[n]as relações materiais se modelam os institutos da propriedade e da posse, consideradas nas suas relações mútuas, ou como institutos autônomos. Se se prescinde desta relação, e se deve necessariamente prescindir quando se supõe a imaterialidade do objeto, não se pode mais falar de propriedade, a não ser por via de analogias e generalizações indevidas”[19]. E acrescenta: “a propriedade dos bens imateriais constitui uma generalização verbal com a qual se designam diversas formas específicas de tutela que têm como base interesses particulares. Se trata, portanto, de direitos de vários conteúdos, relativos aos interesses que apresentam apenas analogias genéricas, e não se enquadram em um esquema único”[20].
De fato, direitos autorais, marcas e patentes, para ficarmos apenas com as categorias mais relevantes, têm características diversas, sobre eles recaem regras diversas e são tratados de modo distinto pela legislação, apesar de estarem todos abrangidos pela grande classe da propriedade intelectual. Haveria de fato uma unidade estrutural jurídica a abranger todos esses direitos?
Para compreendermos melhor a natureza jurídica da propriedade intelectual e de cada um dos bens que a compõem, bem como as consequências de tal classificação, é indispensável uma análise aprofundada de referidos institutos.
Referências
[1] Segundo ranking da BrandZ, a marca Google valia, em abril de 2010, cerca de US$ 114 bilhões. Disponível em http://idgnow.uol.com.br/mercado/2010/04/29/ranking-aponta-google-como-marca-mais-valiosa-do-mundo/. Acesso em 10 de janeiro de 2011.
[2] Ver, entre outros, HAMMES, Bruno Jorge. O Direito de Propriedade Intelectual. 3ª edição. Porto Alegre: Ed. Unisinos, 2002 e FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Cit.. Para análise pro- funda das diversas correntes que discutem a origem, a abrangência e a natureza da propriedade intelectual, ver CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial – Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1952.
[3] “A propriedade industrial se constitui em um dos ramos da propriedade intelectual, cujo outro ramo é o direito au- toral dirigido à propriedade literária e artística”. Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira (obra coletiva). Comentários à Lei de Propriedade Industrial e Correlatos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; p.29. Neste tópico, tratamos da propriedade intelectual como um conjunto único. Para a análise dos diversos bens que a compõem, remetemos o leitor ao próximo item.
[4] João da Gama Cerqueira comenta a discussão a respeito da nomenclatura a ser adotada: “[a]o conjunto dêsses direitos resultantes das concepções da inteligência e do trabalho intelectual, encarados principalmente sob o aspecto do proveito material que dêles pode resultar, costuma-se dar a denominação genérica de propriedade intelectual, ou as denominações equivalentes – direito de autor, direito autoral, propriedade imaterial e, ainda, direitos intelectuais, como os chamou Picard, e direitos imateriais ou direito sôbre bens imateriais, segundo Kohler. Deve-se, porém, preferir a denominação propriedade imaterial, que está mais de acôrdo com o objeto dos direitos a que se aplica”. CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial – Vol. I. Cit.; p. 69.
[5] BARBOSA, Cláudio R. Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009; p. 40. Tanto assim é que Cláudio R. Barbosa, ao comentar a obra de Gama Cerqueira, afirma que este autor, “[p]ragmático, afirmava que a proprie- dade intelectual seria um conglomerado de institutos reunidos segundo critério estritamente prático. Classificados por sua intangibilidade, não houve a preocupação de identificar princípios únicos que permitissem a unificação científica e conceitual dos mesmos, o que pode ser explicado pelo reduzido desenvolvimento industrial nacional e pela limitada penetração e comercialização dos ‘produtos culturais’ na sociedade brasileira, pois os bens protegidos pelo direito autoral, salvo algumas exceções, não eram vistos como ‘produtos comerciais’”. BARBOSA, Cláudio R. Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009; p. 41.
[6] Ver, entre outros, CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial – Vol. I. Cit., e pelo menos no que diz respeito aos direitos autorais, CHAVES, Antônio. Direito de Autor – Princípios Fundamentais. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1987.
[7] 48 CCB, art. 1.228.
[8] Assim, “dispor” da obra imaterial terá uma conotação peculiar, que não poderá ser confundida com a possibilidade de se “dispor” de um automóvel ou de um terreno. Da mesma forma devemos entender, por exemplo, o direito de “reaver” a coisa de quem injustamente a possua, que somente fará sentido se observadas as características das obras intelectuais.
[9] Segundo José de Oliveira Ascensão, “[o] direito real tem por objeto uma coisa; o direito de crédito tem por objeto uma prestação. Mas enquanto o direito real recai sobre a coisa, o direito de crédito é um direito à prestação, como entidade abstrata, mas que toda a estrutura do crédito visa efetivamente a assegurar. Pois também o direito de autor tem por objeto a obra, mas não é correto dizer que recai sobre esta, a não ser como imagem; não é o que corresponde ao regime jurídico”. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral, 2ª ed. Rio de Janeiro:Renovar, 1997; p. 609. A construção do civilista português faz sentido uma vez que o Código Civil de Portugal prevê, em seu artigo 1302, que “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste código”. Em nosso sistema jurídico, entretanto, a propriedade pode ser exercida sobre coisa (que teria um significado atrelado a bens corpóreos) ou sobre bens em sentido estrito, conforme prega Caio Mário da Silva Pereira, ao analisar o que considera “bem”: “Bem é tudo que nos agrada: o dinheiro é um bem, como o é a casa, a herança de um parente, a faculdade de exigir uma prestação; bem é ainda a alegria de viver o espetáculo de um pôr-do-sol, um trecho musical; bem é o nome do indivíduo, sua qualidade de filho, o direito à sua integridade física e moral. Se todos são bens, nem todos são bens jurídicos. (…) Em sentido estrito, porém, o objeto da relação jurídica, o bem jurídico, pode e deve, por sua vez, suportar uma distinção, que separa os bens propriamente ditos das coisas. Os bens, especificamen- te considerados, distinguem-se das coisas, em razão da materialidade destas: as coisas são materiais, ou concretas, enquanto que se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome bens, em sentido estrito” (grifos no original). PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol. I. 22ª ed. Atualização: Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008; pp. 400-401.
[10] As diferenças indicadas têm como base o direito autoral, embora possam, em alguns casos, ser aplicadas a outros ramos da propriedade intelectual. Como veremos adiante, os bens sujeitos ao regime da propriedade intelectual gozam de características distintas entre si, o que acaba por ter como consequência efeitos jurídicos diversos.
[11] Ao apontar a distinção entre a propriedade sobre bens materiais e a alegada propriedade sobre bens imateriais, Pugliatti alerta: “[a] lei pode estabelecer o direito exclusivo de alguém a um dado nome: este direito significa nada mais nada menos do que a faculdade de o titular de proibir a qualquer outro que use aquele nome; no entanto, não é impossível que outros o portem, mesmo sem retirá-lo dele; aliás, é impossível que o retire, dele, o que é exatamente o inverso do que acontece com as propriedades físicas, onde a usurpação total da coisa não pode ocorrer senão mediante a expropriação do proprietário: é uma lei física da matéria, que exige não apenas uma regra da lei antiga como a que duorum in solidum dominium vel possessio esse non potest”. Tradução livre do autor. No original, lê-se que “[l]a legge può ben sancire il diritto esclusivo di alcuno ad un dato nome: questo diritto significa nè più nè meno che la facoltà del titolare di proibire a chiunque altro di portare quel nome; in linea di fatto però non è impossibile che altri lo porti, pur non togliendolo a lui; anzi è impossibilie che altri glielo tolga; il che è proprio il rovescio di quello che avvine per la proprietà corporale, dove l’usurpazione totale della cosa non può avvenire che mediante spossessamento del proprietario; è una legge fisica della materia, che ciò imponem e non soltanto una regola del vecchio Diritto come quella che duorum in solidum dominium vel possessio esse non potest”. PUGLIATTI, Salvatore. La Proprietà e le Proprietà. Cit.; pp. 249-250.
[12] BOYLE, James. The Public Domain. New Haven: Yale University Press, 2008; p. 4. Tradução livre do autor. No original, lê-se que: “(…) wherever things are cheap to copy and hard to exclude others from, we have a potential collapse of the market”.
[13] BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: ed. Lumen Juris, 2003; p. 72.
[14] BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Cit.; p. 72.
[15] “Assim é que a intervenção é necessária – restringindo as forças livres da concorrência – e criando restrições legais a tais forças. Pois que a criação da propriedade intelectual é – completa e exclusivamente – uma elaboração da lei, que não resulta de qualquer direito imanente, anterior a tal legislação” (grifo do autor). BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Cit.; p. 88.
[16] Afinal, mesmo sendo bens imateriais, são bens rivais – o exercício dos direitos decorrentes de sua titularidade por parte de um sócio impede o exercício dos direitos por outro sócio. Nesse aspecto, as ações, assim como as quotas das sociedades de responsabilidade limitada, se assemelham mais aos bens materiais do que àqueles sujeitos ao regime da propriedade intelectual. José Edwaldo Tavares Borba afirma quanto à natureza das ações: “[a] ação é uma unidade do capital da empresa, dando ao seu titular o direito de participar da sociedade, como acionista. É, portanto, um título de participação. Título no sentido amplo, com cártula ou sem cártula: quem é titular de uma ação tem uma unidade do capital, um título de participação na sociedade”. Por isso é que “[a] posição do acionista perante a sociedade não é a de um credor – ainda que se considere o vocábulo credor no seu sentido mais amplo. A posição é a de um participante, com direitos e deveres. O título de crédito não impõe deveres, mas só direitos e, em certos casos, algum ônus”. BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário, 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 207-210.
[17] Esta distinção também se presta a afastar os bens sujeitos à propriedade intelectual dos demais bens imateriais, como ações e quotas, que subsistem enquanto subsistir a sociedade empresária a que estão relacionados. A marca, entretanto, pode ser uma exceção quando comparada aos demais bens de propriedade intelectual.
[18] Diz-se que a propriedade dos bens materiais se transfere pela tradição ou pelo registro, dependendo do tipo de bem. Já a titularidade dos bens imateriais se transfere por meio da celebração de contrato de cessão.
[19] Tradução livre do autor. No original, lê-se que: “[s]ulla relazione materiale si modellano gli istituti della proprietà e del possesso, considerati nei loro rapporti reciproci, o come istituti autonomi. Se si presinde da codesta relazione, e se ne deve necessariamente prescindere quando si ipotizza l’immaterialità dell’oggetto, non si può più parlare di proprietà se non per via di traslati e di indebite generalizzazioni”. PUGLIATTI, Salvatore. La Proprietà e le Proprietà. Cit.; p. 250.
[20] Tradução livre do autor. No original, lê-se que: “proprietà dei beni immateriali costituisce uma generalizzazione ver-bale colla quale si designano diverse forme specifiche di tutela che hanno come basi particolari interessi. Si trata, perciò, di diritti di vario contenuto, relativi ad interessi che presentano soltanto generiche analogie, e non si inquadrano in uno schema unico”. PUGLIATTI, Salvatore. La Proprietà e le Proprietà. Cit.; p. 251.