1. Lutero, Calvino e absolutismo do estado
Vimos que a Contra-Reforma do século XVI teve de travar uma guerra intelectual de duas frentes em nome do escolasticismo e da lei natural: contra protestantes e cripto-protestantes, e também contra os secularistas apologistas de um estado absoluto. Estes dois últimos grupos aparentemente contrastantes estavam mais próximos do que terem apenas o mesmo inimigo. Em muitos aspectos, eram gêmeos e não simplesmente aliados fortuitos.
Apesar das suas muitas diferenças, Martinho Lutero (1483-1546), filho de um minerador alemão, e João Calvino (nascido Jean Cauvin, do qual Calvino é o nome latinizado) (1509-64), filho de um advogado francês e principal funcionário da cidade, cujas novas seitas religiosas existiram em paralelo e varreram o norte da Europa, concordaram em alguns fundamentos cruciais. Em particular, a sua filosofia social e teologia se assentavam na proposição básica de que o homem é totalmente depravado[depraved], mergulhado no pecado. Se assim for, o homem muito dificilmente poderia alcançar a salvação, mesmo que parcialmente através dos seus próprios esforços; portanto, a salvação vem, não do livre arbítrio inexistente do homem, mas como um dom arbitrário e ininteligível da graça imerecida concedida por Deus, um dom que Ele por Suas próprias razões distribui apenas a um eleito predestinado. Todos os não-eleitos estão danados [damned]. Além disso, como o homem é totalmente depravado e escravo de Satanás, a sua razão — à parte de seu senso de prazer — nunca pode ser confiada. Nem a razão nem os sentidos podem, de qualquer modo, ser confiados para formar uma ética social; isso só pode vir da vontade divina através da revelação Bíblica.
Até hoje, os calvinistas fundamentalistas são ensinados a resumir o seu credo na sigla TULIP, recordando talvez os jejuns holandeses do calvinismo:
T | – | Danação Total (Total damnation) | |
U | – | Eleição incondicional (Unconditional election) | |
L | – | Expiação limitada (Limited atonement) | |
I | – | Graça irresistível (Irresistible grace) | |
P | – | Perseverança dos santos (Perseverance of the saints) |
Em suma, o homem é totalmente danado [damned], a sua expiação só pode ser limitada e insuficiente; a única coisa que pode e faz incondicionalmente salvar um eleito entre os homens é a graça irresistível de Deus.
Se a razão não pode ser usada para estruturar uma ética, isso significa que Lutero e Calvino tiveram, essencialmente, de jogar fora a lei natural, e, ao fazê-lo, eles eliminaram os critérios básicos desenvolvidos ao longo dos séculos para criticar as ações despóticas do estado. De fato, Lutero e Calvino, confiando em passagens bíblicas isoladas e não em uma tradição filosófica integrada, opinaram que os poderes são ordenados por Deus, e que, portanto, os reis, por mais tirânicos que sejam, são divinamente nomeados e devem ser sempre obedecidos.
Essa doutrina, é claro, jogou a favor dos monarcas absolutos em ascensão e aos seus teorizadores. Sejam católicos ou protestantes, esses secularistas colocaram a sua religião no plano de fundo da vida; social e politicamente eles sustentavam, como veremos mais adiante, que o estado e o seu governante são absolutos, que o governante deve procurar preservar e expandir o seu poder, e que os seus ditames devem ser obedecidos. Foram, portanto, os primeiros jesuítas da Contra-Reforma que viram e analisaram a ligação crucial entre os líderes protestantes e secularistas amoralistas como Niccolo Machiavelli. Como escreve o Professor Skinner:
Os primeiros teóricos jesuítas reconheceram claramente o ponto pivô em que se pode dizer que as teorias políticas de Lutero e Maquiavel convergem: ambos estavam igualmente preocupados, pelas suas próprias razões bem diferentes, em rejeitar a ideia da lei da natureza como base moral apropriada para a vida política. É em consequência nas obras dos primeiros jesuítas que nos deparamos pela primeira vez com a associação familiar de Lutero e Maquiavel como os dois pais fundadores do impiedoso estado moderno.1
Além disso, Lutero teve de recorrer, para a difusão da sua religião, aos monarcas alemães e a outros monarcas europeus; a sua pregação de obediência total ao governante foi reforçada por essa preocupação prática. Ademais, os próprios príncipes seculares tinham um atraente motivo econômico para se tornarem protestantes: o confisco dos mosteiros muitas vezes ricos e de outros bens da Igreja. Subjacente a pelo menos parte dos motivos da monarquia e da nobreza dos novos estados protestantes estava o engodo da ganância e da ambição. Assim, quando Gustav Vasa, rei da Suécia, tornou-se luterano em 1524, transferiu imediatamente os dízimos da Igreja para os impostos que iam para a Coroa, e três anos mais tarde confiscou a totalidade da propriedade da Igreja Católica. Do mesmo modo, na Dinamarca, os reis recém-luteranos confiscaram as terras monásticas, e confiscaram as terras e os poderes temporais dos bispos católicos. Na Alemanha, Alberto de Hohenzollern acompanhou a sua conversão luterana confiscando as terras dos cavaleiros teutônicos católicos, enquanto Filipe de Hesse agarrou todas as terras monásticas do seu estado e fez grande parte das receitas irem para os seus próprios cofres pessoais.
Em adição à tomada de terras e de receitas, os monarcas em cada uma das terras tomaram o controle da própria Igreja, e converteram a Igreja Luterana em uma Igreja dirigida pelo estado, para os aplausos de Martinho Lutero e de seus discípulos, que defendiam a ideia de uma Igreja regida pelo estado. Na cidade de Genebra, João Calvino e seus discípulos impuseram durante algum tempo uma teocracia totalitária, mas esse estado dirigido pela Igreja provou ser uma aberração na linha principal do Calvinismo, que triunfou na Escócia, Holanda e na Suíça, e teve uma influência considerável na França e na Inglaterra.
Um exemplo notável de uma Igreja dirigida pelo estado como motivo para a Reforma foi o estabelecimento da Igreja Anglicana na Inglaterra. A deserção do catolicismo por Henrique VIII foi acompanhada pelo confisco dos mosteiros, e pela partilha dessas terras — quer por doação quer por venda a baixo custo — a grupos favorecidos de nobres e da gentry. Cerca de dois mil monges e freiras em toda a Inglaterra, bem como cerca de oito mil operários nos mosteiros, foram assim expropriados, em benefício de uma nova classe de grandes proprietários de terras, que estão sob a égide da Coroa e não são suscetíveis a permitir qualquer regressão a uma monarquia católica romana na Grã-Bretanha.
2. A economia de Lutero
Como um homem fundamentalmente oposto a sofisticações escolásticas posteriores, ou mesmo ao tipo de pensamento integral, sistemático do escolasticismo, como um homem que ansiava por aquilo que acreditava ser pureza agostiniana, não se pode esperar que Martinho Lutero tenha sido muito simpático com o comércio ou com as posteriores justificações escolásticas para a usura. E ele de fato não foi. Pensador confuso, contraditório e nada sistemático, na melhor das hipóteses, não surpreende que Lutero tenha sido ainda menos consistente em uma área de assuntos seculares — economia –, em que ele tinha pouco interesse.
Portanto, em uma questão crucial que aborreceu escolásticos por séculos: se a propriedade privada é natural ou convencional, i.e., meramente o produto da lei positiva, Lutero era caracteristicamente anti-intelectual. Ele não estava interessado nessas questões; portanto, essas eram triviais: “é vão mencionar estas coisas; não podem ser apreendidas pelo pensamento, […]”. Como comentou Dr. Gary North, “tanto mais para 1500 anos de debate”.2 Em suma, a avaliação de Richard Tawney sobre Lutero nesses assuntos talvez não seja um exagero;
Confrontado com as complexidades do comércio internacional e da organização financeira, ou com as sutilezas da análise econômica, ele [Lutero] é como um selvagem introduzido ao dínamo ou a uma máquina a vapor. Ficou assustado e nervoso demais até mesmo para ter curiosidade. Tentar explicar o mecanismo apenas o enerva; ele pode apenas repetir que tem um demônio aí, e que bons cristãos não vão se intrometer no mistério da iniquidade.3
O resto é confusão. Cumprir o mandamento proibindo o roubo significava que Lutero tinha de ser, pelo menos em algum sentido, um defensor dos direitos da propriedade privada. Mas para Lutero, “roubar” não significava apenas o que todos definem como roubo, mas também “tomar vantagem de outros nos mercados, armazéns, adegas de vinho e de cerveja, oficinas…”. Em outros escritos, às vezes até dentro dos mesmos escritos, Lutero era capaz de denunciar uma pessoa que “faz uso do mercado à própria vontade orgulhoso e desafiador, como se tivesse o direito de vender a preços altos como bem quer, e como se ninguém pudesse interferir”, enquanto também escrevia: “Qualquer um pode vender o que tem pelo maior preço que conseguir, desde que não engane ninguém”, e então definia tal enganação como simplesmente usar falsos pesos e falsas medidas.
Sobre o preço justo, Lutero tende à minoritária visão medieval de que o preço justo não é o preço de mercado, mas o custo da produção mais os custos e lucros do trabalho e o risco do mercador. Sobre a usura, em particular, Lutero tendia a se alinhar com a proibição drástica que a Igreja Católica tinha há muito deixado para trás. Ele proibiria o contrato de census, bem como o lucrum cessans; considerava o dinheiro estéril; não deveria haver aumento no preço pelo tempo em relação a pagamentos por bens em dinheiro vivo, etc. Toda a velha bobagem, que os escolásticos passaram séculos enterrando ou transformando, estava de volta e intacta. É certamente apropriado que, como vimos, um dos grandes oponentes teológicos de Lutero na Alemanha tenha sido aquele que antes era seu amigo, Johann Eck, um teólogo católico e amigo da grande família banqueira Fugger, que estava até mesmo à frente de seu tempo em argumentar totalmente em favor da usura.
Ainda assim, apesar de sua oposição à usura, Lutero advertiu ao jovem governante da Saxônia a não abolir os juros ou livrar os devedores de pagá-lo. O juro é, afinal, uma “praga comum que todos tomam para si mesmos. Devemos, portanto, aguentá-lo e manter os devedores nos juros.”
Algumas dessas contradições podem ser reconciliadas à luz da visão profundamente pessimista de Lutero acerca do homem e, portanto, das instituições humanas. No amaldiçoado mundo profano, ele acreditava, nós não podemos esperar que as pessoas ou as instituições ajam de acordo com o evangelho cristão. Portanto, em contraste à tentativa católica de aplicar princípios morais à vida social e política através da arte da casuística, Lutero tendia a privatizar a moralidade cristã e a deixar o mundo secular e seus governantes operarem de maneira pragmática e, na prática, irregulada.
3. A economia de Calvino e do calvinismo
As visões econômicas e sociais de João Calvino fazem um paralelo próximo com as de Lutero, e não há motivo para repeti-las aqui. Há apenas diferenças em duas áreas principais: suas opiniões sobre a usura, e sobre o conceito de “vocação”, apesar dessa última diferença ser mais marcante nos posteriores calvinistas puritanos do século XVII.
A maior contribuição de Calvino à questão da usura foi sua coragem em descartar a proibição de uma vez só. Esse filho de um importante oficial da cidade tinha apenas desdém pelo argumento aristotélico de que o dinheiro era estéril. Uma criança, ele dizia, sabe que o dinheiro só é estéril quando está escondido em algum lugar distante; mas quem em plena sanidade toma um empréstimo para deixar o dinheiro parado? Mercadores tomam empréstimos para fazer lucros em suas compras, e o dinheiro é então fértil. Quanto à Bíblia, a famosa injunção de Lucas só ordena generosidade aos pobres, enquanto a lei hebraica do Velho Testamento não está em vinculação na sociedade moderna. Para Calvino, portanto, a usura é perfeitamente lícita, desde que não seja cobrada em empréstimos aos pobres, que seriam lesados por tal pagamento. Também, qualquer máxima legal deve, é claro, ser obedecida. E finalmente, Calvino sustentava que ninguém deveria trabalhar como um emprestador profissional de dinheiro.
O resultado estranho foi que, sustentando sua doutrina explicitamente a favor da usura com aprovação, Calvino convergiu na prática com as concepções de escolásticos como Biel, Summenhart, Caetano e Eck. Calvino começou com uma defesa teórica extensa de tomar empréstimo com interesses e, então, a protegeu de ressalvas; os liberais escolásticos começaram com uma proibição da usura e então removeram as ressalvas. Mas enquanto na prática os dois grupos convergiram e os escolásticos, ao descobrir e ao elaborar exceções ao banimento da usura, foram teoreticamente mais sofisticados e férteis, a corajosa ruptura de Calvino com o banimento formal foi uma libertadora novidade no pensamento e na prática ocidentais. Também deslocou a responsabilidade da aplicação dos ensinamentos sobre a usura da Igreja e do estado para a consciência individual. Como Tawney formula, “A característica significante em sua [de Calvino] discussão do assunto é que ele assume o crédito como um incidente normal e inevitável na vida de uma sociedade.”4
Uma diferença mais sutil, mas que no longo prazo talvez tenha mais influência no desenvolvimento do pensamento econômico, foi o conceito de “vocação” de Calvino. Este novo conceito foi embrionário em Calvino e foi mais desenvolvido por calvinistas posteriores, especialmente os puritanos, no fim do século XVII. Historiadores econômicos mais antigos, como Max Weber, deram muito mais importância ao conceito calvinista de “vocação” enquanto opondo as concepções luterana e católica. Todos esses grupos religiosos enfatizaram o mérito de ser produtivo na ocupação ou no trabalho, a “vocação” de alguém na vida. Mas há, especialmente nos puritanos posteriores, a ideia de sucesso na vocação como um sinal visível de que se é um membro dos eleitos. Esforça-se para buscar o sucesso, é claro, não para provar que é um membro dos eleitos destinados a serem salvos, mas, assumindo que é um dos eleitos por causa de sua fé calvinista, para labutar para trabalhar e ter sucesso para a glória de Deus. Uma ênfase calvinista na postergação da gratificação terrena leva a uma ênfase particular para economizar. O trabalho ou a “indústria” e a poupança, quase por si mesmos, ou por Deus, foram muito mais enfatizados no calvinismo do que nas outras vertentes do cristianismo.5
O foco, então, tanto em países católicos quanto no pensamento escolástico, se tornou muito diferente daquele do calvinismo. O foco escolástico estava no consumo, no consumidor, como o objetivo do trabalho e da produção. O trabalho não era tanto um bem em si mesmo quanto era um meio para o consumo no mercado. O equilíbrio aristotélico, ou a média de ouro, foi considerado um requisito para a boa vida, uma vida em direção à felicidade dentro da natureza humana. E essa vida balanceada enfatizou o gozo do consumo, bem como o do lazer, em adição à importância do esforço produtivo. Em contraste, uma ênfase sombria sobre o trabalho e sobre a poupança passou a ser feita na cultura calvinista. Essa contra-ênfase no lazer, é claro, caiu bem com a iconoclastia que chegou em seu ápice no calvinismo — a condenação do prazer dos sentidos como uma forma de expressar devoção religiosa. Uma das manifestações desse conflito apareceu nos feriados religiosos, dos quais os países católicos se serviam em abundância. Para os puritanos, isso era idolatria; até mesmo o natal não deveria ser uma ocasião para o gozo dos sentidos.
Houve considerável disputa sobre a “tese de Weber”, proposta pelo historiador econômico e sociólogo alemão do começo do século XX, Max Weber, que atribuiu o surgimento do capitalismo e da revolução industrial ao conceito tardio de vocação no calvinismo e o resultante “espírito capitalista”. Apesar de todos os seus frutíferos insights, a tese de Weber deve ser rejeitada em muitos níveis. Primeiro, o capitalismo moderno, em qualquer sentido significativo, começa não com a revolução industrial dos séculos XVIII e XIX, mas, como vimos, na idade média e particularmente nas cidades-estado italianas. Exemplos de racionalidade capitalista, como método de partida-dobrada e variadas técnicas financeiras, também começam nessas cidades-estado italianas. Todas eram católicas. De fato, é no livro de contabilidade de Florentina de 1253 que a clássica fórmula pró-capitalista é encontrada pela primeira vez: “em nome de Deus e do lucro”. Nenhuma cidade foi maior centro comercial e financeiro do que a Antuérpia no século XVI, um centro católico. Homem nenhum se destacou tanto como financiador e banqueiro quanto Jacob Fugger, um bom católico do sul da Alemanha. Não apenas isso: Fugger trabalhou por toda a sua vida, se recusou a se aposentar, e anunciou que “ele faria dinheiro por quanto tempo pudesse”. Um excelente exemplo da “ética protestante” de Weber vindo de um grande católico! E nós vimos como os teólogos escolásticos se esforçaram para entender e receber o mercado e as forças mercadológicas.
Por outro lado, enquanto é verdade que as áreas calvinistas na Inglaterra, na França, na Holanda e nas colônias da América do Norte prosperaram, a Escócia solidamente calvinista permaneceu uma área atrasada e subdesenvolvida, e permanece assim até mesmo nos dias de hoje.6
Mas mesmo se o foco na vocação e no trabalho não trouxe a revolução industrial, isso poderia muito bem ter-nos levado a outra diferença marcante entre os países católicos e os calvinistas — uma diferença crucial no desenvolvimento do pensamento econômico. A especulação brilhante do professor Emil Kauder sobre este assunto irá informar sobre o restante desta obra. Diz Klauder:
Calvino e seus discípulos colocaram o trabalho no centro de sua teologia social […] Todo o trabalho nesta sociedade é investido com a aprovação divina. Qualquer filósofo ou economista social, se exposto ao calvinismo, será tentado a dar ao trabalho uma posição de destaque em seu próprio tratado social ou econômico, e não há melhor forma de destacar o trabalho do que combinar trabalho com teoria do valor, [que é] tradicionalmente a própria base de um sistema econômico. Então valor se torna valor de trabalho, que não é meramente um instrumento científico para a mensuração dos preços de troca, mas também o laço espiritual combinando a Vontade Divina com a vida econômica do cotidiano.7
Em sua exaltação ao trabalho, os calvinistas se concentraram na diligência sistemática e contínua, em uma trajetória estabelecida do trabalho. Assim, o inglês, puritano fervoroso, Samuel Hieron, opinou que “Aquele que não tem negócios honestos pelos quais ser ordinariamente empregado, que não tem trajetória estabelecida para a qual se dirigir, não pode agradar a Deus”. Particularmente influente foi o acadêmico da Universidade de Cambridge do começo do século XVII, o Reverendo William Perkins, que fez muito pela tradução da teologia calvinista para a língua inglesa cotidiana. Perkins denunciou quatro grupos de homens que “não tinham nenhuma vocação particular pela qual se guiar”: os pedintes e vagabundos; os monges e frades; homens que “gastam seus dias comendo e bebendo”; e os serviçais, que alegadamente gastam seu tempo aguardando. Todos estes seriam perigosos, porque são desocupados e indisciplinados. Particularmente perigosos seriam os vadios, que “evitam qualquer autoridade”. Ademais, acreditava Perkins, a “multidão preguiçosa estava sempre propensa […] a popularizar opiniões, sempre mais pronta para jogar do que para trabalhar; seus membros não chegariam ao paraíso”.8
Em contraste com a glorificação do trabalho calvinista, a tradição aristotélico-tomista era bastante diferente:
Ao invés do trabalho, a busca moderada por prazer e felicidade forma o centro das ações econômicas, de acordo com a filosofia aristotélica e tomista. Um certo hedonismo equilibrado é uma parte integrada da teoria aristotélica da boa vida. Se o prazer, de maneira moderada, é o propósito da economia, então, seguindo o conceito aristotélico de causa final, todos os princípios da economia, incluindo a valoração, precisam ser derivados deste objetivo. Neste padrão de pensamento aristotélico e tomista, a valoração tem a função de mostrar quanto prazer pode ser derivado de bens econômicos.9
Daí, a Grã-Bretanha, fortemente influenciada pelo pensamento e pela cultura calvinista e por sua glorificação do mero exercimento do trabalho, veio a desenvolver uma teoria do valor-trabalho, enquanto a França e a Itália, ainda influenciadas pelos conceitos aristotélicos e tomistas, continuaram com a ênfase escolástica no consumidor e em sua valoração subjetiva como a fonte do valor econômico. Embora não haja uma maneira de provar esta hipótese conclusivamente, o insight de Kauder tem grande valor para a explicação do desenvolvimento comparativo do pensamento econômico na Grã-Bretanha e nos países católicos da Europa depois do século XVI.
4. Calvinistas sobre a usura
Talvez por ter sido considerado o maior jurista francês de meados do século XVI, o mérito das contribuições de Charles du Moulin (nome latinizado: Carolus Molinaeus) (1500-66) foi bastante inflado, em seu tempo e em tempos posteriores. Um católico que posteriormente converteu-se ao calvinismo e foi então forçado a deixar a Alemanha, Du Moulin não tinha nada além de desdém pelo escolasticismo, o qual ele atacava veementemente em sua obra amplamente publicada, Tratado dos Contratos e da Usura (Paris, 1546). Enquanto Molineaus oficialmente denunciava a proibição da usura, suas visões eram, na actualidade, pouco diferentes daquelas dos escolásticos contemporâneos e, aliás, de Calvino. Enquanto claramente denunciando a visão de que o dinheiro é estéril e demonstrando que é tão produtivo quanto os bens que pode comprar, ele sustenta sua defesa da usura suficientemente para que suas visões sejam levemente diferentes de muitas outras. Ele sustenta que a cobrança de juros em um empréstimo é por si mesma injusta, mas engenhosamente sustenta que um emprestador cobra pela utilidade do dinheiro, e não pelo próprio dinheiro. Mas Molineaus ataca as “usuras cruéis” permitidas pelo lucrum cessans, e sustenta com Calvino que juros não podem ser cobrados por empréstimos aos pobres. (Pode-se perguntar, se uma tal regra fosse imposta, quem neste mundo emprestaria para os pobres, e estariam os pobres em melhor situação por serem privados de todo crédito?).
De fato, parece que a maior contribuição de Molineaus foi denegrir injustamente o nome do coitado do Conrad Summenhart, uma cruel injustiça que durou por quatro séculos. Em um ato obviamente motivado pela malícia contra o escolasticismo, Molineaus distorceu os ótimos argumentos de Summenhart contra a proibição da usura de modo a fazer o teólogo alemão parecer um defensor da proibição da usura particularmente estúpido. Ele tomou os argumentos iniciais de Summenhart a favor da proibição, que Summenhart tinha formulado para em seguida refutar, e disse que eram os argumentos de Summenhart, e então plagiou a crítica desses argumentos sem o devido crédito. Como resultado dessa perfídia desprezível, como aponta o Professor Noonan, já que “somente os escritos de Du Moulin se tornaram famosos, Conrad [Summenhart] apareceu para a posteridade somente conforme as caricaturas de Du Moulin”, i.e., “como um estranhamente estúpido e particularmente obstinado defensor da proibição da usura.”10
A honra de aplicar o golpe de misericórdia à proibição da usura pertence ao classicista e calvinista holandês do século XVII, Claude Saumaise (nome latinizado: Claudius Salmasius) (1588-1653). Em diversas obras publicadas em Layden, começando com De usuris liber em 1630 e continuando até 1645, Salmasius finalizou este vergonhoso monte de erros grotescos do passado. Seu forte não era tanto em criar novos argumentos teóricos em comparação com finalmente decidir ser consistente. Em suma, Salmasius incisivamente pontuou que o empréstimo era um negócio como qualquer outro, e, como qualquer negócio, poderia cobrar um preço de mercado. Ele, no entanto, fez o importante ponto teórico de que, como em qualquer outra parte do mercado, se o número de usurários multiplica, o preço do dinheiro ou dos juros será diminuído pela competição. Então, se alguém não gosta das altas taxas de interesse, quanto mais emprestadores, melhor!
Salmasius também teve a coragem de pontuar que não havia argumentos válidos contra a usura, seja por lei natural ou divina. Os judeus só proibiram a usura contra outros judeus, e este foi um ato político e tribal, e não uma expressão de uma teoria moral sobre uma transação econômica. Sobre Jesus — não ensinou nada sobre a política civil ou sobre transações econômicas. Isso faz sobrar somente a lei eclesiástica contra a usura feita pelo papa, e por que um calvinista deveria obedecer ao papa? Salmasius também tomou algumas pancadas merecidas sobre as evasões permeando as diversas justificações escolásticas, ou “títulos extrínsecos”, justificando os juros. Sejamos realistas, Salmasius afirmou: o que os canonistas e escolásticos “tiraram com uma mão, restauraram com a outra”. O census é, na realidade, usura, câmbio internacional é usura, lucrum cessans é, na realidade usura. Todos usura, e deixem que eles todos sejam lícitos. Ademais, a usura é sempre taxada como compensação para algo, em essência pela falta de uso do dinheiro e pelo risco de perda em um empréstimo.
Salmasius também teve a coragem de assumir a questão mais difícil: empréstimo profissional de dinheiro aos pobres, e como justificar isso. Vender o uso do dinheiro é um negócio como qualquer outro. Se é lícito fazer dinheiro com coisas compradas com o dinheiro, por que não com o próprio dinheiro? Como Noonan parafraseia Salmasius, “O vendedor de pão não é obrigado a perguntar se vende para um homem rico ou para um homem pobre. Por que deveria o emprestador ter de fazer uma distinção?” E: “não há fraude ou roubo em cobrar o maior preço de mercado por outros bens; por que seria errado para o emprestador cobrar as usuras mais pesadas que ele pode coletar?”11
Salmasius também analisou empiricamente a questão dos usurários públicos em Amsterdã (o grande centro comercial e financeiro do século XVII, tomando o lugar que a Antuérpia havia ocupado no século passado), mostrando que a costumeira taxa de 16 por cento em pequenos financiamentos aos pobres é contabilizada tendo em vista: os custos dos usurários emprestando seu próprio dinheiro, de manter algum dinheiro parado, de alugar uma casa grande, de absolver algumas perdas sobre empréstimos, de pagar taxas de licenciamento, de contratar empregados e de pagar um leiloeiro. Tirando todas essas despesas, a taxa líquida de juros média dos emprestadores é de apenas 8 por cento, quase não o suficiente para mantê-los nos negócios.
Na conclusão de que a usura é um negócio como qualquer outro, Salmasius, em seu típico estilo espirituoso e brilhante, declarou: “eu preferiria ser chamado de usurário do que ser um alfaiate”. Nossos exemplos de seu estilo já demonstram a adequação da conclusão do grande economista austríaco Böhm-Bawerk sobre Salmasius: que suas obras
São escritos extremamente efetivos, verdadeiras gemas de polêmica brilhante. Os materiais para estes trabalhos, devemos confessar, foram em grande parte fornecidos por seus predecessores […] Mas a maneira feliz pela qual Salmasius emprega estes materiais, e as muitas arremetidas enérgicas com que ele os enriquece, colocam sua polêmica, muito acima de qualquer coisa que tenha sido feita anteriormente.12
Como resultado, os ensaios de Salmasius tiveram grande influência em toda a Holanda e no resto da Europa. Como Böhm-Bawerk declarou, as visões de Salmasius sobre a usura foram o ponto alto da teoria dos juros, para assim permanecer por mais de 100 anos.
5. Zelotes comunistas: os anabatistas
Por vezes Martinho Lutero precisa ter sentido que tinha perdido o controle da situação, tendo realmente aberto as portas do Inferno. Pouco depois de Lutero ter lançado a Reforma, várias seitas anabatistas apareceram e espalharam-se por toda a Alemanha. Os anabatistas acreditavam na predestinação dos eleitos, mas também acreditavam, ao contrário de Lutero, que sabiam infalivelmente quem eram os eleitos: i.e., eles mesmos. O sinal dessa eleição estava num processo de conversão emocional e místico, o de ser “nascido de novo”, batizado no Espírito Santo. Tal batismo deve ser feito entre os adultos e não entre as crianças; mais precisamente, significa que apenas os eleitos devem ser membros de seitas que obedecem às regras e credos multiformes da Igreja. A ideia da seita, em contraste com o Catolicismo, Luteranismo ou Calvinismo, não era uma adesão abrangente da Igreja à sociedade. A seita deveria ser distintamente separada, apenas para os eleitos.
Dado esse credo, havia dois caminhos que o Anabatismo podia e poderia seguir. A maioria dos Anabatistas, como os Menonitas ou Amish, tornaram-se praticamente anarquistas. Tentaram separar-se tanto quanto possível de um estado e de uma sociedade necessariamente pecadora, e envolveram-se numa resistência não violenta aos decretos do estado
A outra via, tomada por outra ala de Anabatistas, era tentar tomar o poder no estado e moldar a maioria por coação extrema: em suma, ultra-teocracia. Como o Monsenhor Knox incisivamente assinala, mesmo quando Calvino estabeleceu uma teocracia em Genebra, teve de empalidecer ao lado de uma que poderia ser estabelecida por um profeta desfrutando de uma revelação contínua, nova e mística. Como Knox salienta, em seu estilo cintilante habitual:
[…] na Genebra de Calvino […] e nas colónias puritanas da América, a ala esquerda da Reforma assinalou a sua ascendência, impondo o rigor da sua moral com todos os mecanismos de disciplina disponíveis; por excomunhão, ou, se isso falhar, por punição secular. Sob tal disciplina, o pecado tornou-se um crime, a ser punido pelos eleitos com uma intolerável presunção […]
Chamei a essa atitude rigorista de uma pálida sombra do princípio teocrático, porque uma teocracia de sangue puro exige a presença de um líder ou de líderes divinamente inspirados, a quem o governo pertence por direito de iluminação mística. Os grandes Reformadores não eram, há que insistir, homens desse calibre; eram eruditos, homens da nova doutrina […]13
E assim, uma das diferenças cruciais entre os Anabatistas e os reformadores mais conservadores foi que os primeiros reivindicavam para si mesmos uma revelação mística contínua, forçando homens como Lutero e Calvino a recorrerem apenas a Bíblia como a primeira e a última revelação.
O primeiro líder da ala ultra-teocrata dos Anabatistas foi Thomas Müntzer (c.1489-1525). Nascido no conforto em Stolberg na Turíngia, Müntzer estudou nas Universidades de Leipzig e de Frankfurt, e tornou-se altamente instruído nas Escrituras, nos clássicos, na teologia, e nos escritos dos místicos alemães. Tornando-se um seguidor tão logo que Lutero lançou a Reforma em 1520, Müntzer foi recomendado por Lutero para o pastorado na cidade de Zwickau. Zwickau estava perto da fronteira da Boêmia, e ali o incansável Müntzer foi convertido pelo tecelão e adepto Niklas Storch, que tinha estado na Boémia, à antiga doutrina Taborita que tinha florescido na Boémia um século antes. Esta doutrina consistia essencialmente numa revelação mística contínua e na necessidade dos eleitos de tomar o poder e impor uma sociedade de comunismo teocrático pela força brutal das armas. Além disso, o casamento devia ser proibido e cada homem devia poder ter toda e qualquer mulher à sua vontade.
A ala passiva dos anabatistas eram anarco-comunistas voluntários, que desejavam viver pacificamente por si mesmos; mas Müntzer adotou a visão de sangue e coerção de Storch. Desertando muito rapidamente do luteranismo, Müntzer sentiu-se o profeta vindouro, e os seus ensinamentos começaram agora a enfatizar uma guerra de sangue e exterminação a ser travada pelos eleitos contra os pecadores. Müntzer afirmou que o “Cristo vivo” tinha entrado permanentemente na sua própria alma; dotado assim de uma percepção perfeita da vontade divina, Müntzer afirmava estar excepcionalmente qualificado para cumprir a missão divina. Até falou de si mesmo como “tornando-se Deus”. Abandonando o mundo da aprendizagem, Müntzer estava agora pronto para a ação.
Em 1521, apenas um ano após a sua chegada, a Câmara Municipal de Zwickau assustou-se com estes delírios cada vez mais populares e ordenou a expulsão de Müntzer da cidade. Em protesto, um grande número da população, em particular os tecelões, liderados por Niklas Storch, se revoltaram, mas a revolta foi interrompida. A essa altura, Müntzer apressou seu caminho para Praga em busca por Taboritas remanescentes na capital da Boêmia. Falando em metáforas camponesas, ele declarou que a época da colheita está aqui, “por isso o próprio Deus contratou-me para a sua colheita. Afiei a minha foice, pois os meus pensamentos estão mais fortemente fixados na verdade, e os meus lábios, mãos, pele, cabelo, alma, corpo, vida amaldiçoam os incrédulos”. Müntzer, contudo, não encontrou nenhum Taborita remanescente; não ajudou à popularidade do profeta ele não saber tcheco e ter de pregar com a ajuda de um intérprete. E assim ele foi devidamente expulso de Praga.
Depois de vaguear pela Alemanha central na pobreza durante vários anos, chamando a si mesmo de “o mensageiro de Cristo”, Müntzer em 1523 ganhou uma posição ministerial na pequena cidade de Allstedt, na Turíngia. Lá estabeleceu uma ampla reputação como pregador, empregando o vernáculo, e começou a atrair uma grande quantidade de seguidores mineradores sem instrução, com os quais ele formou uma organização revolucionária chamada “A Liga dos Eleitos”.
Um ponto de inflexão na carreira tempestuosa de Müntzer veio um ano depois, quando o Duque João, príncipe da Saxónia e luterano, ouvindo rumores alarmantes sobre ele, foi à pequena Allstedt e pediu a Müntzer que lhe pregasse um sermão. Esta era a oportunidade de Müntzer, e ele a agarrou. Ele foi direto: apelou aos príncipes saxões para que fizessem a sua escolha e tomassem a sua posição, quer como servos de Deus, quer do Diabo. Para que os príncipes saxões tomem a sua posição junto de Deus, então eles “têm de se deitar com a espada”. “Não os deixe viver mais”, aconselhou o nosso profeta, “os malfeitores que nos afastam de Deus. Pois um homem sem Deus não tem o direito de viver, se ele impedir os que estão com Deus”. A definição da Müntzer de “sem Deus”, claro, era bastante inclusiva. “A espada é necessária para exterminar” padres, monges e governantes sem Deus. Mas, Müntzer avisou, se os príncipes da Saxônia falharem nessa tarefa, se vacilarem, “a espada ser-lhes-á retirada […] Se resistirem, que sejam abatidos sem piedade […]”. Müntzer regressou então à sua analogia favorita da época da colheita: “Na época de colheita, é preciso arrancar as ervas daninhas da vinha de Deus […] Pois os ímpios não têm o direito de viver, salvo o que os Eleitos escolhem para lhes permitir […]”. Desse modo, o milênio, o reino milenar de Deus na terra, seria inaugurado. Mas um requisito essencial é necessário para que os príncipes realizem essa tarefa com sucesso; eles devem ter na manga um profeta (adivinhem quem!) para inspirar e orientar os seus esforços.
Estranhamente para uma época em que nenhuma Primeira Emenda restringia os governantes de lidar com heresia, o Duque João parecia não se importar com o ultimato frenético de Müntzer. Mesmo depois de Müntzer ter procedido à pregação de um sermão proclamando o derrube iminente de todos os tiranos e o início do reino messiânico, o duque nada fez. Finalmente, sob a insistência de Lutero de que Müntzer estava se tornando perigoso, o Duque João disse ao profeta para se abster de qualquer pregação provocadora até que o seu caso fosse decidido pelo seu irmão, o eleitor.
Essa reação suave dos príncipes saxões, porém, foi suficiente para colocar Thomas Müntzer na sua estrada revolucionária final. Os príncipes tinham provado não serem dignos de confiança; a massa dos pobres estava agora fazendo a revolução. Os pobres eram os eleitos, e estabeleceriam uma regra de comunismo igualitário obrigatório, um mundo onde todas as coisas seriam propriedade comum de todos, onde todos seriam iguais em tudo e cada pessoa receberia de acordo com as suas necessidades. Mas ainda não. Pois mesmo os pobres devem primeiro ser quebrados dos desejos mundanos e dos prazeres frívolos, e devem reconhecer a liderança de um novo “servo de Deus” que “tem de se destacar no espírito de Elias […] e pôr as coisas em movimento”. (Mais uma vez, adivinhem quem!).
Vendo a Saxônia como inóspita, Müntzer subiu a muralha da cidade de Allstedt e se mudou em 1524 para a cidade de Muhlhausen, na Turíngia. Perito na pesca em águas agitadas, Müntzer encontrou uma casa amigável em Muhlhausen, que se encontrava num estado de agitação política há mais de um ano. Pregando o extermínio iminente dos ímpios, Müntzer desfilou pela cidade liderando um bando armado, carregando à sua frente um crucifixo vermelho e uma espada sem ponta. Expulso de Muhlhausen após uma revolta dos seus aliados ter sido reprimida, Müntzer foi para Nuremberga, que por sua vez o expulsou depois de ter publicado alguns panfletos revolucionários. Depois de vaguear pelo sudoeste da Alemanha, Müntzer foi convidado a regressar a Muhlhausen em fevereiro de 1525, onde um grupo revolucionário tinha tomado posse.
Thomas Müntzer e os seus aliados procederam à imposição de um regime comunista sobre a cidade de Muhlhausen. Os mosteiros foram apreendidos, e toda propriedade foi decretada como sendo comum, e a consequência, como reparou um observador contemporâneo, foi que “ele afetou tanto o povo que ninguém quis trabalhar”. O resultado foi que a teoria do comunismo e do amor rapidamente se tornou na prática um álibi para o roubo sistêmico:
[…] quando alguém precisava de comida ou roupa ele teria de ir a um homem rico e exigir em nome de Cristo, pois Cristo tinha mandado que todos partilhassem com os necessitados. E o que não era dado gratuitamente era tomado à força. Muitos agiram assim. […] Thomas [Müntzer] instituiu essa roubalheira e a multiplicou todos os dias.14
A essa altura, a grande Guerra dos Camponeses irrompeu em toda a Alemanha, uma rebelião lançada pelos camponeses em favor da sua autonomia local e em oposição ao novo governo absolutista dos príncipes alemães, que era centralizador e com impostos elevados. Por toda a Alemanha, os príncipes esmagaram os camponeses pouco armados com grande brutalidade, massacrando cerca de 100.000 camponeses no processo. Na Turíngia, o exército dos príncipes confrontou os camponeses em 15 de Maio com uma grande quantidade de artilharia e 2.000 cavalarias, luxos negados aos camponeses. O landegrave de Hessen, comandante do exército dos príncipes, ofereceu anistia aos camponeses se estes entregassem Müntzer e os seus seguidores imediatamente. Os camponeses ficaram fortemente tentados, mas Müntzer, segurando no alto a sua espada sem ponta, fez o seu último discurso flamejante, declarando que Deus lhe tinha prometido pessoalmente a vitória; que ele iria apanhar todas as bolas de canhão inimigas nas mangas de seu manto; que Deus iria proteger a todos. Logo no momento estratégico do discurso de Müntzer, um arco-íris apareceu nos céus, e Müntzer tinha anteriormente adaptado o arco-íris como o símbolo do seu movimento. Para os camponeses crédulos e confusos, isso parecia um verdadeiro sinal do Céu. Infelizmente, o sinal não funcionou, e o exército dos príncipes esmagou os camponeses, matando 5000 enquanto perdia apenas meia dúzia de homens. O próprio Müntzer fugiu e escondeu-se, mas foi capturado alguns dias depois, torturado em confissão, e depois executado.
Thomas Müntzer e os seus sinais podem ter sido derrotados, e o seu corpo pode ter apodrecido na sepultura, mas a sua alma continuou a marchar. Não só o seu espírito foi mantido vivo por seguidores no seu próprio tempo, mas também por historiadores marxistas desde Engels até aos dias de hoje, que viram neste místico iludido um epítome da revolução social e da luta de classes, e um precursor das profecias quilíasticas do “estágio comunista” do supostamente inevitável futuro marxista.
A causa Muntzeriana foi logo retomada por um antigo discípulo, o encadernador Hans Hut. Hut afirmou ser um profeta enviado por Deus para anunciar que no domingo de Pentecostes, 1528, Cristo voltaria à terra e daria o poder de fazer justiça a Hut e aos seus seguidores de santos rebatizados. Os santos “pegariam então em espadas de dois gumes” e provocariam a vingança de Deus sobre padres, pastores, reis e nobres. Hut e os seus seguidores iriam então “estabelecer a regra de Hans Hut na terra”, com Muhlhausen como a capital favorecida. Cristo iria então estabelecer um milênio marcado pelo comunismo e pelo amor livre. Hut foi capturado em 1527 (antes de Jesus ter tido a oportunidade de regressar), preso em Augsburg, e morto ao tentar fugir. Durante um ou dois anos, seguidores huttianos continuaram a surgir, em Augsburg, Nuremberga, e Esslingen, no sul da Alemanha, ameaçando estabelecer o seu Reino de Deus comunista pela força das armas. Mas em 1530 foram esmagados e reprimidos pelas autoridades alarmadas. O anabatismo do tipo muntzeriano deveria agora deslocar-se para o noroeste da Alemanha.
6. O comunismo totalitário em Münster
O noroeste da Alemanha nessa época foi pontilhado por vários pequenos estados eclesiásticos, cada um dirigido por um príncipe-bispo. O estado era dirigido por clérigos aristocráticos, que elegeram um dos seus como bispo. Geralmente, esses bispos eram senhores seculares que não foram ordenados. Ao fazer um acordo sobre os impostos, a capital de cada um desses estados tinha geralmente conquistado para si um grau de autonomia. O clero, que constituía a elite governante do estado, isentava-se de impostos enquanto impunha impostos muito pesados ao resto da população. Em geral, as cidades-capitais passaram a ser dirigidas pela sua própria elite de poder, uma oligarquia de guildas, que utilizou o poder do governo para cartelizar as suas várias profissões e ocupações.
O maior desses estados eclesiásticos do noroeste da Alemanha era o bispado de Münster, e a sua capital a cidade de Münster, uma cidade com cerca de 10.000 habitantes, era dirigida pelas guildas da cidade. As guildas de Münster eram particularmente exercitadas pela competição econômica dos monges, que não eram obrigados a obedecer a restrições e regulamentos de guilda.
Durante a Guerra dos Camponeses, as capitais de vários desses estados, incluindo Münster, aproveitaram a oportunidade para se revoltarem, e o bispo de Münster foi forçado a fazer numerosas concessões. Com o esmagamento da rebelião, porém, o bispo tomou de volta as concessões, e restabeleceu o antigo regime. Em 1532, entretanto, as guildas, apoiadas pelo povo, conseguiram retaliar e tomar a cidade, forçando logo o bispo a reconhecer Münster oficialmente como uma cidade luterana.
Ela não estava destinada a permanecer assim por muito tempo, todavia. De todos os lugares do noroeste, hordas de entusiastas anabatistas entupiram Münster, em busca do início da Nova Jerusalém. Do norte da Holanda vieram centenas de melquioritas, seguidores do visionário itinerante Melchior Hoffmann. Hoffmann, um aprendiz de peleiro inculto da Suábia, no sul da Alemanha, tinha vagueado durante anos pela Europa pregando a iminência da Segunda Vinda, que tinha concluído das suas pesquisas que ocorreriam em 1533, o décimo quinto centenário da morte de Jesus. O melquiorismo tinha florescido no norte dos Países Baixos, e muitos adeptos derramaram-se agora em Münster, convertendo rapidamente as classes mais pobres da cidade.
Enquanto isso, a causa anabatista em Münster tomou uma injeção de ânimo, quando o eloquente e o popular jovem ministro Bernt Rothmann, um filho altamente educado de um ferreiro da cidade, converteu-se ao anabatismo. Originalmente um padre católico, Rothmann tornou-se amigo de Lutero e cabeça do movimento luterano em Münster. Convertido ao Anabatismo, Rothmann emprestou a sua eloquente pregação à causa do comunismo tal como ele supostamente existiu na Igreja cristã primitiva, mantendo tudo em comum, sem o Meu e o Teu, e dando a cada um de acordo com a sua “necessidade”. Em resposta à reputação de Rothmann, milhares de pessoas afluíram a Münster, centenas de pobres, os sem raízes, aqueles desesperadamente em dívidas, e “pessoas que, tendo corrido com a fortuna de seus pais, não ganhavam nada com a sua própria industriosidade …”. As pessoas, em geral, que eram atraídas pela ideia de “pilhar e roubar o clero e os burgueses mais ricos”. Os horrorizados burgueses tentaram expulsar Rothmann e os pregadores anabatistas, mas não adiantou.
Em 1533, Melchior Hoffmann, certo de que a Segunda Vinda aconteceria a qualquer dia, regressou a Estrasburgo, onde tinha tido grande sucesso, chamando a si mesmo de Profeta Elias. Foi prontamente aplaudido na prisão, e lá permaneceu até à sua morte uma década depois.
Hoffmann, por todas as semelhanças com os outros, era um homem pacífico que aconselhava a não-violência aos seus seguidores; afinal de contas, se Jesus estava prestes a regressar, por que se comprometer contra os descrentes? A prisão de Hoffmann e, claro, o fato de 1533 ter iniciado e acabado sem uma Segunda Vinda, descreditaram Melchior, e, assim, seus seguidores Münster voltaram-se para os muito mais violentos profetas pós-milenaristas, que acreditavam que eles teriam de estabelecer o Reino pelo fogo e pela espada.
O novo líder dos Anabatistas coercivos era um padeiro holandês de Haarlem, um tal de Jan Matthys (Matthyszoon). Revivendo o espírito de Thomas Müntzer, Matthys enviou missionários ou “apóstolos” de Haarlem para rebatizar todos os que pudessem, e para nomear “bispos” com o poder de batizar. Quando os novos apóstolos chegaram a Münster, no início de 1534, foram recebidos, como nós podemos esperar, com enorme entusiasmo. Apanhados no frenesi, até Rothmann foi rebatizado mais uma vez, seguido por muitas ex-freiras e por uma grande parte da população. Dentro de uma semana, os apóstolos tinham rebatizado 1400 pessoas.
Outro apóstolo logo chegou, um jovem de 25 anos que tinha sido convertido e batizado por Matthys apenas alguns meses antes. Este era Jan Bockelson (Bockelszoon, Beukelsz), que em breve se tornaria conhecido em alto e bom som como Johann de Leyden. Embora bonito e eloquente, Bockelson era uma alma perturbada, tendo sido nascido o filho ilegítimo do prefeito de um vilarejo holandês de uma mulher serva da Vestfália. Bockelson começou a vida como alfaiate aprendiz, casou com uma viúva rica, mas depois foi à falência quando se pôs como mercador autônomo.
Em fevereiro de 1534, Bockelson ganhou o apoio do rico mercador de tecidos Bernt Knipperdollinck, o poderoso líder das guildas de Münster, e sagazmente casou com a filha de Knipperdollinck. Em 8 de Fevereiro, genro e sogro correram loucamente juntos pelas ruas, chamando todos para o arrependimento. Após muito frenesi, contorções em massa no chão, e visão de miragens apocalípticas, os Anabatistas levantaram-se e tomaram a Câmara Municipal, ganhando reconhecimento legal para seu movimento.
Em resposta a essa revolta bem-sucedida, muitos ricos luteranos deixaram a cidade, e os anabatistas, sentindo-se exuberantes, enviaram mensageiros para as áreas aos arredores, convocando todos a virem a Münster. O resto do mundo, proclamaram eles, seria destruído em um mês ou dois; apenas Münster seria salva, para se tornar a Nova Jerusalém. Milhares de pessoas chegaram de mais longe que Flandres e Frísia, no norte dos Países Baixos. Como resultado, os Anabatistas rapidamente conquistaram uma maioria no conselho da cidade, e esse sucesso foi seguido, três dias depois, em 24 de fevereiro, por uma orgia de pilhagem de livros, estátuas e pinturas das igrejas e por toda a cidade. Logo chegou Jan Matthys ele mesmo, um homem alto e gordo com uma longa barba negra. Matthys, ajudado por Bockelson, tornou-se de forma rápida virtualmente o ditador da cidade. Os coercivos anabatistas tinham finalmente tomado uma cidade. O Grande Experimento Comunista podia agora começar.
O primeiro poderoso plano dessa rígida teocracia foi, é claro, purgar a Nova Jerusalém dos impuros e dos ímpios, como um prelúdio para o seu extermínio final em todo o mundo. Matthys apelou, portanto, à execução de todos os católicos e luteranos restantes, mas prevaleceu a cabeça mais fria de Knipperdollinck, visto que ele avisou Matthys de que o massacre de todos os outros cristãos, que não eles mesmos, poderia causar a irritação do resto do mundo, e todos eles poderiam vir e esmagar a Nova Jerusalém em seu berço. Decidiu-se, portanto, pela próxima melhor opção, e em 27 de fevereiro, católicos e luteranos foram expulsos da cidade, no meio de uma horrenda tempestade de neve. Num feito prefigurando o Camboja comunista, todos os não-anabatistas, incluindo idosos, inválidos, bebés e mulheres grávidas, foram expulsos para a tempestade de neve, e todos foram forçados a deixar para trás todo o seu dinheiro, propriedade, comida e vestuário. Os luteranos e católicos restantes foram compulsivamente rebatizados, e todos os que recusaram essa ministração foram condenados à morte.
A expulsão de todos os luteranos e católicos foi suficiente para o bispo, que iniciou um longo cerco militar da cidade no dia seguinte, em 28 de fevereiro. Com cada pessoa convocada para o trabalho de cerco, Jan Matthys lançou a sua revolução social totalitária comunista.
O primeiro passo foi confiscar a propriedade dos expulsos. Todos os seus bens mundanos foram colocados em depósitos centrais, e os pobres foram encorajados a pegar “de acordo com as suas necessidades”, as “necessidades” a serem interpretadas por sete nomeados “diáconos” escolhidos por Matthys. Quando um ferreiro protestou contra essas medidas impostas por estrangeiros holandeses, Matthys prendeu o corajoso ferreiro. Convocando toda a população da cidade, Matthys esfaqueou, atirou e matou pessoalmente o ferreiro “sem Deus”, bem como jogou na prisão vários cidadãos eminentes que tinham protestado contra o seu tratamento. A multidão foi advertida para lucrar com essa execução pública, e obedientemente cantaram um hino em honra à matança.
Uma parte chave do reinado de terror do anabatista em Münster foi agora revelada. Sem dúvida, assim como no caso dos comunistas cambojanos quatro séculos e meio mais tarde, a nova elite governante percebeu que a abolição da propriedade privada e do dinheiro reduziria a população a uma total dependência escravista sobre os homens de poder. E, assim, Matthys, Rothmann e outros lançaram uma campanha de propaganda de que não era cristão possuir dinheiro em privado; que todo o dinheiro deveria ser mantido em “comum”, o que, na prática, significava que absolutamente qualquer dinheiro precisava ser entregue a Matthys e à seu seleto grupo governante. Vários anabatistas que guardavam ou escondiam o seu dinheiro foram presos e depois aterrorizados a rastejar até Matthys de joelhos, implorando perdão e suplicando-lhe que intercedesse junto de Deus em seu nome. Matthys então graciosamente “perdoou” os pecadores.
Após dois meses de pressão severa e implacável, uma combinação de propaganda sobre o cristianismo de abolir o dinheiro privado, e ameaças e terror contra aqueles que falharam a se render, a donidade privada do dinheiro foi efetivamente abolida em Münster. O governo expropriou todo o dinheiro e o utilizou para comprar ou alugar bens do mundo exterior. Os salários foram doados em espécie pelo único empregador que restava: o teocrático estado anabatista.
Os alimentos foram confiscados de casas particulares, e racionados de acordo com a vontade dos diáconos do governo. Além disso, para acomodar os imigrantes, todas as casas privadas foram efetivamente comunizadas, com todos sendo autorizados a acomodar-se em qualquer lugar; era agora ilegal fechar, quanto mais trancar, as portas. Foram criados refeitórios comunais, onde as pessoas comiam juntas para leituras do Antigo Testamento.
Esse comunismo compulsório e reino de terror foi levado a cabo em nome do “amor” comunitário e cristão. Toda essa comunização foi considerada como os primeiros passos gigantes rumo ao comunismo total igualitário, onde, como Rothmann colocou, “todas as coisas eram para ser em comum, não era para haver propriedade privada e ninguém era para fazer mais qualquer trabalho, mas simplesmente confiar em Deus”. A parte sem trabalho, é claro, de alguma forma nunca chegou.
Um panfleto enviado em outubro de 1534 a outras comunidades anabatistas saudou a nova ordem do amor cristão através do terror:
Pois não só colocamos todos os nossos pertences numa reserva comum sob os cuidados dos diáconos, e vivemos dela de acordo com as nossas necessidades; louvamos a Deus através de Cristo com um só coração e mente e estamos ansiosos para ajudarmos uns aos outros com todo tipo de serviço.
E, de acordo, tudo que serviu aos propósitos do egoísmo e da propriedade privada, tais como comprar e vender, trabalhar por dinheiro, tomar juros e praticar a usura […] ou comer e beber o suor dos pobres […] e de fato tudo o que ofende o amor — todas tais coisas são abolidas entre nós pelo poder do amor e da comunidade.
Com elevada consistência, os Anabatistas de Münster não fizeram pretenções de preservar a livridade intelectual enquanto comunizavam toda a propriedade material. Pois os Anabatistas gabavam-se da sua falta de educação, e afirmavam que seriam os iletrados e a plebe que seriam os eleitos do mundo. A máfia anabatista teve particular prazer em queimar todos os livros e manuscritos na biblioteca da catedral, e finalmente, em meados de março de 1534, Matthys proibiu todos os livros exceto o Bom Livro — a Bíblia. Para simbolizar uma ruptura total com o passado pecaminoso, todos os livros privados e públicos foram atirados em uma grande fogueira comunal. Tudo isso garantiu, naturalmente, que a única teologia ou interpretação das escrituras abertas aos Münsteritas era a de Matthys e dos outros pregadores anabatistas.
No final de março, porém, a avolumada húbris de Matthys o colocou pra baixo. Convencido na época da Páscoa de que Deus tinha ordenado a ele e a alguns fiéis para erguer o cerco do bispo e libertar a cidade, Matthys e alguns outros saíram a correr para fora dos portões rumo ao exército sitiante, e foram literalmente cortados em pedaços. Em uma época em que a ideia de total liberdade religiosa era virtualmente desconhecida, pode-se imaginar que quaisquer anabatistas a quem os cristãos mais ortodoxos pudessem pôr suas mãos não ganhariam uma recompensa muito generosa.
A morte de Matthys deixou Münster nas mãos do jovem Bockelson. E, se Matthys castigou o povo de Münster com chicotes, Bockelson castigá-los-ia com escorpiões. Bockelson perdeu pouco tempo em luto por seu mentor. Ele pregou aos fiéis: “Deus dar-vos-á outro Profeta que será mais poderoso”. Como é que este jovem entusiasta poderia ir além de seu mestre? No início de maio, Bockelson chamou a atenção da cidade ao correr nu pelas ruas num frenesi, caindo depois num êxtase silencioso de três dias. Quando se levantou novamente, anunciou a toda a população uma nova dispensação que Deus lhe tinha revelado. Com Deus a sua disposição, Bockelson aboliu os antigos gabinetes de conselho e burgomestres da cidade em funcionamento, e instaurou um novo conselho governante de 12 anciãos, sendo ele próprio, claro, o mais velho dos anciãos. Aos anciões foi agora dada total autoridade sobre a vida e a morte, sobre a propriedade e o espírito, de cada habitante de Münster. Um rigoroso sistema de trabalho forçado foi imposto, com todos os artesãos não recrutados para os militares agora funcionários públicos, trabalhando para a comunidade sem qualquer recompensa monetária. Isso significava, naturalmente, que as guildas estavam agora abolidas.
O totalitarismo em Münster estava agora completo. A morte era agora a punição por virtualmente todos os atos independentes, bons ou maus. A pena capital foi decretada para os atos criminosos de: homicídio, roubo, mentira, avareza, e querelas*(!). Também a morte foi decretada para todo o tipo de insubordinação concebível: os jovens contra os seus pais, as esposas contra os seus maridos e, obviamente, qualquer pessoa contra os representantes escolhidos por Deus na terra, o governo totalitário de Münster. Bernt Knipperdollinck foi nomeado como alto executor para fazer cumprir os decretos.
O único aspecto da vida que antes permanecia intocado era o sexo, e isso agora ficou sob o martelo do despotismo total de Bockelson. A única relação sexual permitida era num casamento entre dois anabatistas. O sexo sob qualquer outra forma, incluindo o casamento com um dos “sem Deus”, era um crime capital. Mas logo Bockelson foi além desse credo bastante antiquado, e decidiu estabelecer a poligamia compulsória em Münster. Uma vez que muitos dos expulsos tinham deixado as suas mulheres e filhas para trás, Münster tinha agora três vezes mais mulheres casáveis do que homens, de modo que a poligamia se tinha tornado tecnicamente praticável. Bockelson converteu os outros pregadores bastante assustados, citando a poligamia entre os patriarcas de Israel, bem como ameaçando de morte os dissidentes.
A poligamia compulsória foi um pouco exagerada para muitos dos Münsteritas, que lançaram uma rebelião em protesto. A rebelião, porém, foi rapidamente esmagada e a maioria dos rebeldes foram condenados a morte. A execução foi também o destino de quaisquer outros dissidentes. E assim, em agosto de 1534, a poligamia foi coercitivamente estabelecida em Münster. Como seria de esperar, o jovem Bockelson instantaneamente gostou do novo regime, e em pouco tempo teve um harém de 15 esposas, incluindo Divara, a bela e jovem viúva de Jan Matthys. O resto da população masculina também começou a aderir ao novo decreto como patos na água. Muitas das mulheres não levaram tão gentilmente a nova distribuição, e assim os anciões aprovaram uma lei que ordenava o casamento compulsório para todas as mulheres abaixo (e presumivelmente também acima) de uma certa idade, o que geralmente significava ser uma terceira ou quarta esposa obrigatória.
Além disso, uma vez que o casamento entre os sem Deus não só era inválido como também ilegal, as esposas dos expulsos tornaram-se agora um alvo fácil, e foram forçadas a “casar” com bons anabatistas. A recusa em cumprir a nova lei foi punida, claro, com a morte, e várias mulheres foram efetivamente executadas como resultado. Aquelas “velhas” esposas que se ressentiram com a entrada das novas esposas no seu lar também foram suprimidas, e a querela delas foi transformada num crime vital. Muitas mulheres foram executadas por querelas.
Mas o longo braço do estado só pôde chegar até aqui e, no seu primeiro revés interno, Bockelson e os seus homens tiveram de se render, e permitir o divórcio. De fato, a cerimônia do casamento foi agora totalmente proibida, e o divórcio tornou-se muito fácil. Como resultado, Münster caiu agora sob um regime de amor livre obrigatório. E assim, no espaço de apenas alguns meses, um puritanismo rígido tinha sido transmutado num regime de promiscuidade obrigatória.
Entretanto, Bockelson provou ser um excelente organizador de uma cidade sitiada. O trabalho obrigatório, militar e civil, foi rigorosamente imposto. O exército do bispo consistia em mercenários mal pagos e irregulares, e Bockelson conseguiu induzir muitos deles à deserção, oferecendo-lhes pagamento regular (pagar por dinheiro, ou seja, em contraste com o comunismo interno rígido de Bockelson sem dinheiro). Ex-mercenários bêbados foram, no entanto, fuzilados imediatamente. Quando o bispo disparou panfletos para a cidade oferecendo uma anistia geral em troca de rendição, Bockelson fez da leitura desses panfletos um crime punível com — é claro — a morte.
No final de agosto de 1534, os exércitos do bispo estavam em desordem e o cerco foi temporariamente levantado. Jan Bockelson aproveitou essa oportunidade para carregar a sua revolução comunista “igualitária” a um passo além: ele tinha nomeado a si mesmo rei e Messias dos Últimos Dias.
Proclamar a si mesmo rei poderia ter parecido brega e talvez até ilegítimo. E assim Bockelson teve Dusentschur, que era ourives de uma cidade próxima e autoproclamado profeta, para fazer o trabalho por ele. No início de setembro, Dusentschur anunciou a um e a todos uma nova revelação: Jan Bockelson seria rei de todo o mundo, herdeiro do rei Davi, para manter esse trono até que o Deus mesmo reivindicasse de volta o seu Reino. Não surpreendentemente, Bockelson confirmou que ele mesmo tinha tido a mesma revelação. Dusentschur apresentou então uma espada de justiça a Bockelson, ungiu-o, e proclamou-o rei do mundo. Bockelson, claro, era momentaneamente modesto; prostrava-se e pedia orientação a Deus. Mas ele certificou-se de obter essa orientação rapidamente. E descobriu, mirabile dictu, que Dusentschur estava certo. Bockelson proclamou à multidão que Deus lhe tinha agora dado “poder sobre todas as nações da terra”; qualquer um que se atrevesse a resistir à vontade de Deus “seria sentenciado à morte sem demora pela espada.”
E assim, apesar de alguns protestos fracassados, Jan Bockelson foi declarado rei do mundo e Messias, e os pregadores anabatistas de Münster explicaram ao seu aflito rebanho que Bockelson era de fato o Messias tal como predito no Antigo Testamento. Bockelson era o governante legítimo de todo o mundo, tanto temporal como espiritual.
Acontece frequentemente com “igualitários” que um buraco, uma válvula de escape especial da uniformidade sem graça da vida, é criado — para eles mesmos. E assim foi com o Rei Bockelson. Era importante, afinal, enfatizar de todas as formas a importância do advento do Messias. E assim, Bockelson vestiu as melhores roupas, metais e joias; ele nomeou cortesãos e guarda-costas, que também apareciam em esplêndida elegância. A esposa principal do Rei Bockelson, Divara, foi proclamada rainha do mundo, e ela também estava vestida com esplêndida elegância e tinha um conjunto de cortesãos e seguidores. Essa luxuosa corte de cerca de duzentas pessoas foi alojada em belas mansões requisitadas para a ocasião. Um trono coberto com um pano de ouro foi colocado na praça pública, e o rei Bockelson manteria ali a corte, usando uma coroa e carregando um cetro. Um guarda-costas real protegia toda a procissão. Todos os fiéis ajudantes de Bockelson foram devidamente recompensados com elevado estatuto e elegância: Knipperdollinck era o ministro chefe, e Rothmann orador real.
Se o comunismo é a sociedade perfeita, alguém deve ser capaz de desfrutar dos seus frutos; e quem melhor senão o Messias e os seus cortesãos? Embora bens privados em dinheiro tivessem sido abolidos, o ouro e a prata confiscados eram agora cunhados em moedas ornamentais para a glória do novo rei. Todos os cavalos foram confiscados para constituir o esquadrão armado do rei. Também, nomes em Münster foram transformadas; todas as ruas foram renomeadas; os domingos e as festas foram abolidos; e todas as crianças recém-nascidas foram nomeadas pessoalmente pelo rei em de acordo com um padrão especial.
Em uma sociedade de escravos esfomeados como a comunista Münster, nem todos os cidadãos poderiam viver no luxo desfrutado pelo rei e por sua corte; de fato, a nova classe governante estava agora impondo uma oligarquia de classe rígida raramente vista antes. De modo que o rei e os seus nobres pudessem viver em alto luxo e rigorosa austeridade era imposta a todos os outros em Münster. A população súdita já tinha sido roubada de suas casas e de grande parte de sua comida; agora todo luxo supérfluo entre as massas foi criminalizado. O vestuário e a roupa de cama eram severamente racionados, e todos os “excedentes” entregues ao Rei Bockelson sob pena de morte. Todas as casas foram revistadas minuciosamente e 83 vagões carregados com “excedentes” de roupa recolhidos.
Não é surpreendente que as massas iludidas de Münster tenham começado a se queixar por serem obrigadas a viver numa pobreza miserável, enquanto o rei e os seus cortesãos viviam em extremo luxo com os frutos de seus pertences confiscados. E assim Bockelson teve de lhes jogar alguma propaganda para explicar o novo sistema. A explicação foi a seguinte: Bockelson podia viver em pompa e luxo porque já estava completamente morto para o mundo e para a carne. Como ele estava morto para o mundo, num sentido profundo, o seu luxo não contava. Ao estilo de todo guru que alguma vez viveu no luxo entre os seus seguidores crédulos, ele explicou que para ele os objetos materiais não tinham qualquer valor. Como tal “lógica” pôde alguma vez enganar qualquer um vai além do entendimento. Mais importante, Bockelson garantiu aos seus súditos que ele e a sua corte eram apenas a guarda avançada da nova ordem; em breve, eles também estariam vivendo no mesmo luxo milenar. Sob a sua nova ordem, o povo de Münster seguiria adiante, armado com a vontade de Deus, e conquistaria o mundo inteiro, exterminando os injustos, depois do qual Jesus voltaria e todos eles viveriam no luxo e na perfeição. O comunismo igualitário, com grande luxo para todos, seria então alcançado.
Uma maior dissidência significava, claro, maior terror, e o reinado do “amor” do Rei Bockelson intensificou a sua intimidação e chacina. Assim que proclamou a monarquia, o profeta Dusentschur anunciou uma nova revelação divina: todos os que persistiram em discordar ou em desobedecer ao Rei Bockelson seriam mortos, e a sua própria memória apagada. Eles seriam extirpados para sempre. Algumas das principais vítimas a serem executadas foram mulheres: mulheres que foram mortas por terem negado aos seus maridos os seus direitos conjugais, por insultar um pregador, ou por ousar praticar a bigamia — a poligamia, claro, sendo apenas um privilégio masculino.
Apesar da sua pregação contínua sobre a marcha adiante para a conquista do mundo, o Rei Bockelson não foi suficientemente louco para tentar essa proeza, especialmente porque o exército do bispo estava novamente sitiando a cidade. Em vez disso, ele usou astutamente grande parte do ouro e da prata expropriados para enviar apóstolos e panfletos às áreas circundantes da Europa, tentando despertar as massas para a revolução anabatista. A propaganda teve um efeito considerável, e sérios aumentos de massa ocorreram em toda a Holanda e noroeste da Alemanha durante o mês de janeiro de 1535. Mil anabatistas armados reunidos sob a liderança de alguém que se intitulava Cristo, filho de Deus; e sérias rebeliões anabatistas ocorreram na Frísia Ocidental, na cidade de Minden, e até mesmo na grande cidade de Amsterdam, onde os rebeldes conseguiram capturar a câmara municipal. Todas essas revoltas foram eventualmente suprimidas, com a considerável ajuda de delações às várias autoridades dos nomes dos rebeldes e das localizações de seus depósitos de munições.
Os príncipes do noroeste da Europa, a essa altura, já não suportavam mais, e todos os estados do Sacro Império Romano Germânico concordaram em fornecer tropas para esmagar o regime monstruoso e infernal em Münster. Pela primeira vez, em janeiro de 1535, Münster foi totalmente e com sucesso bloqueada e cortada do mundo exterior. O estabilishment passou então a submeter a população de Münster a morrer de fome. A escassez de alimento surgiu imediatamente, e a crise então encontrou o vigor característico: todos os alimentos restantes foram confiscados, e todos cavalos mortos, em benefício da alimentação do rei, da sua corte real e de seus guardas armados. Em todos os momentos o rei e a sua corte comeram e beberam bem, enquanto a fome e a devastação assolaram toda a cidade de Münster, e as massas comiam literalmente tudo, até mesmo o incomestível, no que eles podiam pôr suas mãos.
O Rei Bockelson manteve o seu governo através de propaganda contínua e promessas às massas famintas. Deus salvá-las-ia definitivamente até a Páscoa, ou então ele teria tido ele mesmo queimado na praça pública. Quando a Páscoa chegou e partiu, Bockelson explicou com astúcia que tinha significado apenas a salvação “espiritual”. Ele prometeu que Deus mudaria as pedras de paralelepípedos para pão, e claro que isso também não aconteceu. Finalmente, Bockelson, há muito fascinado com o teatro, ordenou aos seus súditos esfomeados que engajassem em três dias de dança e atletismo. Realizaram-se espetáculos dramáticos, bem como uma Missa Negra. A fome, no entanto, estava agora permeando tudo.
O povo pobre e infeliz de Münster estava agora totalmente condenado. O bispo continuou a jogar panfletos para a cidade prometendo uma anistia geral se o povo se revoltasse e depusesse o Rei Bockelson e a sua corte e os entregasse. Para se precaver contra tal ameaça, Bockelson reforçou ainda mais o seu reinado de terror. No início de maio, dividiu a cidade em 12 seções, e colocou um “duque” sobre cada uma delas com uma força armada de 24 homens. Os duques eram estrangeiros como ele; como imigrantes holandeses, era provável que fossem leais a Bockelson. Cada duque foi estritamente proibido de deixar a sua seção, e o os duques, por sua vez, proibiram qualquer reunião, mesmo de algumas pessoas. Não foi permitido sair da cidade, e qualquer um que fosse pego conspirando para sair, ajudando qualquer outra pessoa que saísse, ou que criticasse o rei, era instantaneamente decapitado, geralmente pelo próprio Rei Bockelson. Em meados de junho, tais atos estavam a ocorrer diariamente, com o corpo frequentemente esquartejado e pregado como um aviso para as massas.
Bockelson teria, sem dúvida, deixado toda a população morrer de fome em vez de se render; mas dois fugitivos traíram pontos fracos na defesa da cidade, e na noite de 24 de junho de 1535, o pesadelo da Nova Jerusalém chegou finalmente a um sangrento fim. As últimas várias centenas de combatentes anabatistas se renderam em busca de uma anistia, mas foram prontamente massacrados e a Rainha Divara foi decapitada. E quanto ao ex-rei Bockelson, ele foi conduzido por uma corrente no mês de janeiro seguinte, juntamente com Knipperdollinck, e foram publicamente torturados até à morte, os seus corpos suspensos em jaulas do topo de uma torre de uma igreja.
O antigo estabilishment de Münster foi devidamente restaurado e a cidade se tornou católica de novo. As estrelas estavam de novo nos seus cursos, e os acontecimentos de 1534-35 levaram, compreensivelmente, a uma desonfiança permanente do misticismo e dos movimentos de entusiastas em toda a Europa protestante.
7. As raízes do comunismo messiânico
O comunismo anabatista não desabrochou do nada com o advento da Reforma. Suas raízes podem ser traçadas de volta à extraordinária influência do místico italiano do século XII, Joaquim de Fiore (1145-1202). Joaquim era um abade e ermitão na Calábria, sul da Itália. Foi Joaquim quem propôs a ideia de que, escondido na Bíblia, para aqueles que tinham a perspicácia para ver, estavam profecias que previam o futuro da história mundial. Concentrando no obscuro Livro das Revelações, Joaquim decretou que a história estava destinada a se mover através de três eras sucessivas, cada uma delas governada por um dos membros da Santíssima Trinidade. A primeira era, a era do Antigo Testamento, foi a era do Pai ou da Lei, a era do medo e da servidão; a segunda era, a era do Filho, foi a era do Novo Testamento, a era da fé e da submissão. Os místicos geralmente pensam trinitariamente; e Joaquim foi movido a anunciar a vinda da terceira e final era, a era do Espírito Santo, a era da alegria perfeita, do amor e da livridade, e também o fim da história humana. Seria a era do fim da propriedade, porque todo mundo viveria na pobreza voluntária; e todos facilmente poderiam fazê-lo, pois não haveria trabalho, visto que as pessoas seriam totalmente libertadas de seus corpos físicos. Possuindo apenas corpos espirituais, não haveria necessidade de comer comida ou de fazer qualquer outra coisa. O mundo seria, na paráfrase de Norman Cohn: “um enorme mosteiro, no qual todos os homens seriam monges contemplativos, continuadamente absortos em um êxtase místico até o dia do Juízo Final”. A visão de Joaquim já ressoava com a posterior dialética marxista dos três estágios alegadamente inevitáveis da história: o comunismo primitivo, a sociedade de classes e, finalmente, o reino da livridade perfeita, o comunismo total, o colapso da divisão de trabalho e o fim da história humana.
E com tantos quiliastas, Joaquim tinha certeza da data do advento da era final e que, tipicamente, ela estava chegando em breve — em sua visão, em algum momento da primeira metade do próximo século: o século XIII.
As bizarreries joaquitas rapidamente exerceram enorme influência, particularmente na Itália, na Alemanha e na ala rigorista da Nova Ordem Franciscana.
Um novo ingrediente nesse caldeirão de bruxa foi adicionado um pouco depois por um erudito professor de teologia na grande Universidade de Paris no final do século XII. Outrora um grande favorito da Corte Real francesa, as estranhas doutrinas de Amalrico foram condenadas pelo Papa e, após uma retratação pública forçada, Amalrico morreu pouco depois, em 1206 ou 1207. Suas doutrinas foram, então, adotadas por um pequeno e secreto grupo de discípulos clericais eruditos, os amalricanos, a maioria dos quais foram estudantes de teologia em Paris. Centrados na importante cidade comercial dos fabricantes de tecidos, Troyes, em Champagne, os missionários amalricanos influenciaram várias pessoas e distribuíram populares obras de teologia em vernáculo. Seu líder foi o sacerdote Guilherme Aurifex, que era ou um ourives ou um alquimista que tentava transformar metais básicos em ouro. Sujeitos a espionagem por parte do bispo de Paris, os 14 amalricanos foram todos cercados e foram ou presos perpetuamente ou foram queimados na estaca, a depender de se eles se arrependeram ou não suas heresias. Muitos deles se recusaram a se retratar.
Os amalricanos, como Joaquim, propuseram as três eras da história humana, mas adicionaram mais lenha na fogueira; cada era aparentemente desfrutou de sua própria encarnação. Para o Antigo Testamento, foi Abraão e talvez alguns outros patriarcas; para o Novo Testamento, a encarnação, é claro, era Jesus; e agora, para o alvorecer da era do Espírito Santo, a encarnação agora emergiria entre os seres humanos. Como era de se esperar, os amalricanos se consideravam a nova encarnação; em outras palavras, eles se proclamaram como deuses vivos, a personificação do Espírito Santo. Não que eles fossem permanecer para sempre a elite divina entre os homens; pelo contrário, eles eram destinados a guiar a humanidade para sua encarnação universal.
As aglomerações de grupos por todo o norte da Europa no século XIV, conhecido como os Irmãos do Livre Espírito adicionaram outro importante ingrediente no caldeirão: a dialética da “reabsorção em Deus”, derivada do filósofo platônico do século III, Plotino. Plotino tinha os seus próprios três estágios: a unidade original com Deus, o estágio de degradação e de separação ou a alienação de Deus na história humana e o “retorno” ou “reabsorção” final, quando todos os seres humanos estivessem submergidos dentro do Uno a história seria terminada.
Os Irmãos do Livre Espírito acrescentaram uma nova virada elitista: enquanto a reabsorção de todo homem precisa esperar o fim da história, e os “brutos de espírito” precisam, entretanto, encontrar suas mortes individuais, havia uma gloriosa minoria, os “sutis de espírito”, que podiam e de fato se tornaram reabsortos e, portanto, deuses vivos durante seu tempo de vida. Essa minoria, é claro, foram os Irmãos mesmos que, em virtude de anos de treinamento, autotortura e visões, tornaram-se deuses perfeitos, mais perfeitos e mais divinos que o próprio Cristo. Uma vez que esse estágio de união mística fosse alcançado, ademais, ele seria permanente e eterno. Esses novos deuses frequentemente se proclamaram maiores que o próprio Deus.
Assim, um grupo feminino do Livre Espírito em Schweidnitz proclamou ser capaz de dominar a Santíssima Trinidade de tal forma que elas poderiam “conduzi-la como em uma sela”; e uma dessas mulheres declarou que “quando Deus criou todas as coisas, eu criei todas as coisas com ele […] eu sou mais que Deus”. O próprio homem, portanto, ou pelo menos uma minoria privilegiada de homens, poderiam elevar-se ao status divino pelos seus próprios esforços muito antes de seus semelhantes.
Serem deuses viventes na Terra lhes trouxe muitas coisas boas no despertar disso. Em primeiro lugar, isso os levou diretamente a uma forma extrema de heresia antinomiana: se as pessoas são deuses, então é impossível elas pecarem. Qualquer coisa que eles fizessem é necessariamente moral e perfeita. Isso significa que qualquer ato comumente considerado um pecado, indo de adultério até assassinato, torna-se perfeitamente legítimo quando feito pelos deuses viventes. De fato, os Irmãos do Livre Espírito, como quaisquer outros antinomianos, foram tentados a demonstrar e a exibir sua libertação do pecado ao realizarem todos os modos de pecados imagináveis.
Mas havia também um problema: entre os cultistas do Livre Espírito, apenas uma minoria dos principais adeptos eram “deuses vivos”; para os cultistas recrutas, lutando para se tornarem deuses, havia apenas um pecado que eles jamais poderiam cometer: a desobediência ao seu mestre. Cada discípulo estava vinculado a um determinado deus vivo por um juramento de absoluta obediência. Tomemos por exemplo Nicolas de Basel, o principal guru dos Irmãos do Livre Espírito, cujo culto estendia-se à maioria da extensão do Rio Reno. Proclamando ser o próximo Cristo, Nicolas estava convicto que o único caminho para a salvação de todo mundo era fazer um ato de absoluta e total submissão ao próprio Nicolas. Em troca dessa total lealdade, Nicolas garantiria a seus seguidores a livridade de todos os pecados.
Quanto ao resto da humanidade fora dos cultos, eles simplesmente eram seres irredimíveis e incapazes da regeneração, que existiam apenas para serem usados e explorados pelos eleitos. Essa atitude de governança total foi de mãos dadas com a doutrina social de vários cultos dos Irmãos do Livre Espírito adotados no Século XIV: um ataque comunístico à instituição da propriedade privada. Em essência, entretanto, esse comunismo filosófico foi um disfarce porcamente camuflado para os seus — dos Irmãos do Livre Espírito — autoproclamados direitos de cometer roubo à vontade. Os adeptos aos Irmãos do Livre Espírito, em suma, consideraram todas as propriedades dos não-eleitos como suas por direito. Como resumiu o bispo de Estrasburgo em 1317: “Eles acreditavam que todas as coisas são comuns, por isso concluem que o roubo é lícito para eles”. Ou como o adepto dos Irmãos do Livre Espírito de Erfurt, Johann Hartmann, expôs: “O verdadeiro homem livre é rei e lorde de todas as criaturas. Todas as coisas pertencem a ele, e ele tem o direito de usá-las a seu bel prazer. Se todo mundo tentar impedi-lo, o homem livre pode o matar e pegar seus pertences”. Como um dos ditados favoritos dos Irmãos do Livre Espírito diz: “O que quer que os olhos vejam e desejem, deixe que a mão segure.”
O ingrediente final para o ensopado comunista revolucionário Müntzer-Münster veio com os taboritas radicais do início do século XV. Todos os taboritas constituíam a ala radical do movimento hussita, um movimento revolucionário pré-protestante que misturou conflitos de religião (anticatólico), de nacionalidade (tchecos vs a classe alta e o alto clero alemão), e de classe (artesãos cartelizados em guildas tentando tirar poderes políticos dos patrícios).
O novo ingrediente adicionado pela ala extremista dos taboritas foi o dever de exterminar. Pois os Últimos Dias estão chegando, e os eleitos necessitam sair e erradicar o pecado exterminando todos os pecadores, o que significa — no mínimo — todos os não-taboritas. Pois todos os pecadores são inimigos de Cristo, e “maldito seja o homem que impede sua espada de derramar o sangue dos inimigos de Cristo. Todo crente deve lavar suas mãos com esse sangue”. Tendo essa mentalidade, os taboritas radicais não iriam parar na destruição intelectual. Ao saquear Igrejas e mosteiros, os taboritas tiveram um deleite especial em destruir bibliotecas e em queimar livros. Pois “todos os pertences precisam ser tirados dos inimigos de Deus e queimados ou, de outro modo, destruídos”. Além disso, os eleitos não precisam de livros. Quando o Reino de Deus chegar na Terra, não haveria mais a “necessidade de ensinar uns aos outros. Não haveria a necessidade de livros ou de escrituras, e toda a sabedoria humana pereceria”. E todas as pessoas também, suspeita-se.
Além do mais, ao elaborar um novo tema de um “retorno” a uma idade de ouro perdida, os ultra-taboritas propuseram retornar à suposta inicial condição tcheca de comunismo: uma sociedade com nenhuma propriedade privada. Para atingir essa sociedade sem classes, as cidades em particular, esses centros de luxúria e de avareza, e especialmente os mercadores e os donos de terra, precisam ser exterminados. Depois de os eleitos terem estabelecido seu Reino de Deus comunista na Boêmia por meio da violência revolucionária, suas tarefas seriam, então, forjar e impor tal comunismo no resto do mundo.
Em adição à propriedade material, os corpos dos fiéis teriam de ser comunizados também. Os ultras taboritas eram nada mais que ilógicos. Suas orações ensinavam: “Tudo será comum, incluindo esposas; haverá filhos e filhas de Deus livres e não haverá casamento como uma união de dois — marido e esposa.”
A revolução hussita irrompeu em 1419, e naquele mesmo ano, os taboritas se juntaram na cidade de Usti, na região norte de Boêmia perto da fronteira alemã. Eles renomearam Usti, Tabor, i.e., Monte das Oliveiras, onde Jesus havia predito sua Segunda Volta, tinha ascendido ao Céu e onde se esperava que Ele reapareceria. Os Taboritas engajaram-se em um experimento comunista em Tabor, tudo pertencendo a todos, e dedicados à proposição de que “quem quer que tenha propriedade privada comete um pecado mortal”. Fiéis a suas doutrinas, todas as mulheres eram de todos, enquanto que se marido e esposa fossem vistos juntos, eles eram espancados até a morte ou, de outro modo, executados. Infortuniamente, porém caracteristicamente, os taboritas estavam tão presos a seus direitos ilimitados para consumir do estoque comum que eles se sentiam isentos das necessidades de trabalhar. O estoque comum logo desapareceu, e depois o quê? Depois, é claro, os taboritas radicais alegaram que suas necessidades lhes davam o direito de reivindicar a propriedade dos não eleitos, e eles procederam a roubar os outros a seus bels prazeres. Como lamentou um sínodo dos taboritas moderados, “muitas comunidades nunca pensam em ganhar a vida com o trabalho de suas mãos, mas estão apenas dispostas a viver da propriedade de outras pessoas e se comprometem com campanhas injustas com o único propósito de roubar”. E o campesinato taborita, que não aderiu às comunas, descobriu que o regime radical estava reimpondo as obrigações e vínculos feudais apenas seis meses depois de elas terem sido abolidas.
Desacreditados entre si, seus aliados mais moderados, e seus próprios camponeses, o regime comunista dos radicais em Usti/Tabor logo colapsou. A tocha dos místicos comunistas frenéticos logo foi pega, porém, por uma seita conhecida como Adamitas Boêmios. Como os Irmãos do Livre Espírito do século anterior, os adamitas se consideravam deuses vivos, superiores a Cristo, visto que Cristo havia morrido enquanto que eles ainda viviam. (Lógica impecável, embora um pouco míope.) No entanto, em uma contradição curiosa, o fundador dos adamitas, o ex-padre Peter Kanisch, já havia sido capturado e queimado pelo comandante militar hussita, John Zizka. Os adamitas apelidaram o morto de Jesus Kanisch, e então escolheram como seu líder um camponês e quem chamaram de Adão-Moisés.
Para os adamitas, não apenas eram todos os bens estritamente pertencidos em comum, mas o casamento também era considerado um pecado hediondo. Em suma, a promiscuidade era compulsória, visto que a castidade era indigna para entrar no reino messiânico. Qualquer homem poderia escolher qualquer mulher à vontade, e essa vontade teria de ser obedecida. Os adamitas também andavam nus na maior parte do tempo, imitando o estado original de Adão e Eva. Por outro lado, a promiscuidade era ao mesmo tempo compulsória e restrita, porque o sexo só poderia acontecer com a permissão do líder Adão-Moisés.
Assim como os outros taboritas radicais, os adamitas consideravam suas missões como sagradas, o extermínio de todos os não crentes no mundo, empunhando a espada até que o sangue inundasse o mundo até a altura das rédeas de um cavalo. Eles eram a foice de Deus, enviados para cortar e erradicar os injustos.
Os adamitas se refugiaram das forças de Zizka em uma ilha no Rio Nezarka, na qual eles partiam, mesmo em pequeno número, para ataques comandados para tentar o seu melhor, e para cumprir a dupla promessa de comunismo compulsório e de extermínio dos não-eleitos. À noite, eles navegavam adiante para raides, que chamavam de “guerra santa”, para roubar tudo o que pudessem e depois exterminavam suas vítimas. Fiéis a suas crenças, eles assassinaram todos os homens, mulheres e crianças que puderam descobrir.
Finalmente, Zizka mandou uma força de 400 soldados treinados que sitiaram a ilha dos adamitas, e finalmente, em outubro de 1421, sobrepujou a comuna e massacrou cada uma das pessoas. Mais um infernal reino de Deus na Terra foi deposto pela espada.
O exército taborita foi derrotado pelos moderados hussitas na batalha de Lipan, em 1434, e daí em diante, o taborismo decaiu e se tornou pouco popular. Mas ele continuou a emergir aqui e ali, não apenas entre os tchecos, mas na Bavária e em outras terras alemãs perto da fronteira da Boêmia. O palco estava pronto para o fenômeno Müntzer-Münster do próximo século.
8. Católicos não-escolásticos
Afastando-se dos protestantes e dos extremistas anabatistas, havia alguns católicos durante o século XVI que não eram escolásticos e que não participaram das lutas da Reforma, mas contribuíram significativamente para o desenvolvimento do pensamento econômico.
Um deles foi um gênio universal cuja nova maneira de ver o mundo foi carimbada na história mundial: o polonês Nicolau Copérnico (1473-1543). Copérnico nasceu em Thorn (Torun), parte da Prússia Real, então um estado súdito do Reino da Polônia. Ele veio de uma família abastada e até distinta, seu pai sendo um mercador atacadista e o seu tio e mentor, o bispo de Ermeland. Copérnico provou ser um estudante e teórico inveterado em muitas áreas: estudando matemática na Universidade da Cracóvia, tornando-se um pintor habilidoso, estudado direito canônico e astronomia na famosa Universidade de Bolonha. Ao tornar-se um clérigo, Copérnico foi nomeado cônego da catedral de Frauenburg aos 24 anos, mas depois partiu para dar aulas em Roma e estudar em vários campos. Ele então obteve o diploma de doutor em direito canônico na Universidade de Ferrara em 1503 e o diploma de médico na Universidade de Pádua dois anos depois. Ele se tornou médico de seu tio, o bispo, e mais tarde serviu em tempo integral como cônego da catedral.
Enquanto isso, como uma distração no curso de sua vida agitada, esse notável teórico elaborou o novo sistema de astronomia no qual a Terra e outros planetas giravam em torno do Sol, em vez do contrário.
Copérnico voltou sua atenção para os assuntos monetários quando o rei Sigismundo I da Polônia lhe pediu que apresentasse propostas para a reforma da moeda corrente emaranhada da região. Desde a década de 1460, a Polônia prussiana, onde Copérnico vivia, era a casa de três moedas correntes diferentes: a da Prússia Real, a do próprio Reino da Polônia e a da Prússia da Ordem Teutônica. Nenhum dos governos mantinha um único padrão de peso. A Ordem Teutônica, em particular, continuou depreciando e circulando a moeda mais barata. Copérnico terminou sua dissertação em 1517 e foi entregue à Assembleia Real da Prússia em 1522 e publicado quatro anos depois.
As propostas de Copérnico não foram adotadas, mas o livreto resultante, Monetae cudendae ratio (1526) fez importantes contribuições para o pensamento monetário. Em primeiro lugar, Copérnico reforçou a exposição da “Lei de Gresham” primeiramente estipulada por Nicolas de Oresme um século e meio antes. Tal como Oresme, ele começou com o insight de que o dinheiro é uma medida do valor comum de mercado. Ele então continuou para mostrar que, se seu valor for fixado pelo estado, o dinheiro fixado artificialmente num preço mais baixo tenderá a expulsar o mais caro. Portanto, Copérnico declarou que é impossível que a boa moeda valorizada e que a moeda de base e depreciada circulem juntas; que toda boa moeda é acumulada, derretida ou exportada; e a moeda depreciada permanece sozinha em circulação. Ele também apontou que, em teoria, o governo poderia continuar ajustando os valores legais de dois dinheiros de acordo com a flutuação dos valores de mercado, mas que, na prática, o governo consideraria essa tarefa complexa demais.
No curso de sua discussão, Copérnico também se tornou a primeira pessoa a estabelecer claramente a “teoria quantitativa da moeda”, a teoria de que os preços variam diretamente com a oferta de dinheiro na sociedade. Ele o fez 30 anos antes de Azpilcueta Navarrus e sem o estímulo de um influxo inflacionário de espécie do Novo Mundo para estimular seu pensamento sobre o assunto. Copérnico ainda era um teórico par excellence. A corrente causal começou com a depreciação, que aumenta a quantidade da oferta de dinheiro, que, por sua vez, aumenta os preços. A oferta de dinheiro, ele apontou, é o maior determinante dos preços. “Nós, em nossa lentidão”, ele sustentou, “não nos damos conta de que a carestia de tudo é o resultado do barateamento do dinheiro. Pois os preços aumentam e diminuem de acordo com a condição do dinheiro”. “Uma quantidade excessiva de moeda”, opinou ele, “deve ser evitada.”
Outro católico não-escolástico que contribui para o pensamento econômico no século XVI foi uma personalidade italiana fascinante chamada Gian Francesco Lottini da Volterra (1512-1572), que começou a ênfase italiana sobre a análise do valor e da utilidade. Em um sentido, Lottini era um arquetípico “homem da renascença”: erudito acadêmico aristotélico; secretário de Cosimo I, de Médici, Duque de Florença; político inescrupuloso; e líder de uma quadrilha de assassinos venezianos. Ao fim de sua vida em 1572, Lottini publicou seu Avvedimenti civili, na tradição italiana (veja mais no capítulo 6) de escrever um manual de conselhos a príncipes. O Avvedimenti foi a obra de um estadista ancião dedicado a Francesco, o Grão-duque Médici da Toscana.
Lottini investigou a demanda do consumidor e apontou que a valoração dos consumidores estava enraizada no prazer que eles podem obter dos vários bens. Em uma nova ênfase hedonista, ele apontou que o prazer vem da satisfação das necessidades do homem. Enquanto aconselhando o uso de moderação (um tema aristotélico) regulada pela razão ao satisfazer desejos, Lottini lamentou que os desejos e demandas de algumas pessoas parecem ser infinitos: “Conheci muitos cujas demandas não podiam ser satisfeitas”. Como no caso de diversos predecessores, Lottini viu o fato da preferência-temporal: pessoas valoram bens presentes mais do que bens futuros, i.e., mais que as expectativas presentes de obter esses bens no futuro. Infelizmente, Lottini deu ao perfeitamente razoável e inelutável fato da natureza uma virada moralista: de alguma forma isso foi uma superestimação imprópria dos bens presentes e uma subestimação de bens futuros. Essa crítica moralista injustificada iria atormentar o pensamento econômico no futuro. Como Lottini fraseou: “[…] o presente, que está diante de nossos olhos e pode, por assim dizer, ser agarrado com nossas mãos, tem forçado, na maioria das vezes, até mesmo sábios a prestar mais atenção à satisfação mais próxima do que a esperar pelo futuro distante”. As razões para esse fato universal da preferência-temporal são que as pessoas prestam mais atenção às coisas que podem perceber com seus sentidos do que às coisas que podem aprender pela razão, e que “apenas poucas pessoas seguem teimosamente um projeto arriscado e duradouro para seu fim”. Na primeira razão, Lottini faz um argumento circular: o problema não é de sentidos versus razão, mas algo evidente para os sentidos agora versus o que apenas é esperado ser evidente em algum momento no futuro. Sua segunda razão é mais acertada: a ênfase na “longa duração” toca no problema crucial da duração do tempo-de-espera e a palavra “arriscado” põe outro fato crítico em jogo: o grau de risco em que o objeto nunca se tornará evidente para os sentidos de forma alguma.
A obra de Lottini teve várias edições logo após a sua morte, e uma cópia foi encontrada pertencendo ao grande poeta inglês e teólogo John Donne (1573-1631), cujas notas revelam a influência aristotélica sobre Donne.
O sucessor de Lottini foi Bernardo Davanzati (1529-1606), um mercador florentino, classicista erudito e renomado tradutor de Tácito, e um historiador arqui-católico da Reforma na Inglaterra. Aos 17 anos, o jovem Davanzati se tornou membro da Academia Florentina. Em duas obras, escritas no vívido estilo italiano, em 1582 e especialmente em sua Lezione delle Moneta (1588), Davanzati aplicou o estilo escolástico de análise da utilidade à teoria do dinheiro. Assim, Davanzati abordou e resolveu — com exceção do elemento marginal — o paradoxo do valor, comparando a demanda e a escassez. Davanzati também acompanhou Buridan no desenvolvimento do que mais tarde seria a excelente análise de Carl Menger, pai da Escola Austríaca no final do século XIX, sobre a origem do dinheiro. Os homens, escreveu Davanzati, precisam de muitas coisas para a manutenção da vida; mas os climas e as habilidades das pessoas diferem, daí surge uma divisão do trabalho na sociedade. Todos os bens são, portanto, produzidos, distribuídos e desfrutados por meio de troca. O escambo logo foi considerado inconveniente e, assim, surgiram locais para troca, como feiras e mercados. Depois disso, as pessoas concordaram — mas aqui Davanzati foi nebuloso sobre como esse “acordo” aconteceu — em usar uma certa mercadoria como dinheiro, i.e., como um meio para todas as trocas. Primeiro, ouro e prata foram usados em pedaços; em seguida, foram pesados e, então, estampados para mostrar o peso e o grau de pureza na forma de moedas. Infelizmente, em seu esboço histórico posterior da teoria do dinheiro, Menger foi indelicado o suficiente para descartar Davanzati bruscamente como simplesmente alguém que “traça a origem do dinheiro até a autoridade do estado.”15
9. Huguenotes radicais
Calvino começou sua própria Reforma depois de Lutero, mas ela rapidamente se espalhou pela Europa ocidental, triunfando não apenas na Suíça, mas, mais importante, nos Países Baixos holandeses, o principal centro comercial e financeiro da Europa no século XVII e quase chegando a dominar a Grã-Bretanha e a França. Na Grã-Bretanha, a Escócia foi conquistada pelo calvinismo na forma da Igreja Presbiteriana e o puritanismo calvinista influenciou fortemente a Igreja Anglicana e quase conquistou a Inglaterra no meio do século XVII. A França foi devastada por guerras político-religiosas durante as últimas quatro décadas do século XVI, e os calvinistas, conhecidos como huguenotes, não estavam longe de triunfar ali. Embora não tenham convertido mais do que 5% da população, os huguenotes eram extremamente influentes na nobreza e em bolsões no norte e no sudoeste da França.
João Calvino, tanto quanto Lutero, pregou a doutrina da obediência absoluta e a não resistência ao governo devidamente constituído, independentemente do quão mau esse governo possa ser. Mas os seguidores em apuros de Calvino, desfrutando de aspirações contra governantes não calvinistas, desenvolveram justificações para resistência a governantes malignos. Estas foram estabelecidas pela primeira vez na década de 1550 pelos “exilados marianos” ingleses na Suíça e na Alemanha durante o reinado da última monarca católica da Inglaterra, a Rainha Maria. Essa tradição radical, incluindo o direito do povo ao tiranicídio, foi continuada pelos huguenotes nas décadas posteriores.
Estimulados pelo horror do massacre do dia de São Bartolomeu em 1572, os huguenotes prontamente desenvolveram teorias libertárias de resistência radical contra a tirania da Coroa. Alguns dos escritos mais notáveis são Francogallia do jurista François Hotman (1524-90), escrito no final da década de 1560, mas primeiramente publicado em 1573; o anônimo Discursos Políticos (1574); e a obra culminante, no final da década de 1570, por Philippe Du Plessis Mornay (1549-1623), o Defesa da Liberdade contra Tiranos (Vindiciae Contra Tyrannos) (1579). Defendendo o tiranicídio em particular estava o Discursos Políticos, que atacou amargamente os “assim chamados teólogos e pregadores” que afirmaram que ninguém pode nunca legalmente matar um tirano “sem uma revelação especial de Deus”. Os outros escritores huguenotes, no entanto, foram muito mais cautelosos nessa delicada questão.
Ademais, três décadas antes do radical escolástico espanhol Juan de Mariana, os huguenotes desenvolveram antecipadamente uma teoria pré-lockeana de soberania popular. Em particular, Hotman advertiu que a transferência do direito de governar do povo para o rei não pode de forma alguma ser permanente ou irrevogável. Pelo contrário, o povo e seus corpos representativos têm o direito de contínua vigilância do rei, assim como de tomar seu poder a qualquer momento. Não apenas isso, mas supõe-se que os estados gerais tenham o poder contínuo de governar no dia a dia. Hotman ganhou aceitação geral dos huguenotes desse novo credo ao disfarçá-lo em termos da doutrina política original e bastante contrastante de João Calvino.
Mas o argumento de Hotman para o governo popular original era estritamente histórico, e os contra-ataques dos escritores realistas (royalists) logo crivaram o relato histórico com distorções grosseiras. Era necessário para os huguenotes abandonar o conselho calvinista original de total obediência civil e construir uma teoria de lei natural da soberania original do povo, precedendo a transferência consensual para o governo real. Em suma, os huguenotes tiveram de redescobrir e reapropriar a tradição escolástica de seus odiados oponentes católicos. Portanto, em contraste com o estilo de pregação e a ênfase na vontade divina dos exilados marianos, Mornay e outros huguenotes escreveram em um estilo lógico e escolástico e explicitamente se referiam a Tomás de Aquino e aos sistematizadores da lei romana.
Resumindo, como o Professor Skinner escreve, não havia “teoria calvinista da revolução” no século XVI. Paradoxalmente, os calvinistas franceses foram os pioneiros no desenvolvimento de uma teoria revolucionária do governo popular, fundamentando-se na tradição da lei natural de seus adversários católicos.16
Além do mais, escolásticos ockammistas em Paris, e.g., Jean Gerson no começo do século XV e o inglês John Major no começo do século XVI, foram pioneiros especificamente no conceito de soberania que sempre é inerente ao povo e que eles podem, portanto, tomá-lo de volta do rei a qualquer momento.
Um dos efeitos perniciosos sobre o academicismo da ética protestante (actualmente, calvinista) de Max Weber como criadora do capitalismo já foi visto: a negligência da ascensão actual do capitalismo na Itália católica, bem como em Antuérpia e no sul da Alemanha. Outra falácia weberiana associada é a ideia popular do calvinismo como “moderno” e revolucionário, como criador do pensamento político radical e democrático. Mas vimos que o pensamento político calvinista e protestante era originalmente estatista e absolutista. O calvinismo apenas se tornou revolucionário e antitirânico sob a pressão de regimes católicos opostos, o que levou os calvinistas de volta aos motifs da lei natural e da soberania popular no pensamento escolástico católico.
Uma vertente importante da soberania popular foi elaborada por Theodore Beza (1519-1605), o principal discípulo de Calvino e seu sucessor em Genebra. O grande Beza, influenciado por Hotman, publicou O Direito dos Magistrados em 1574. Beza insistiu que a lei natural revelava que o povo logicamente e temporalmente precedia seus governantes, de modo que o poder político se originava no corpo do povo. É “evidente em si mesmo”, declarou Beza, que “os povos não vêm dos governantes” e não são criados por eles. Consequentemente, o povo originalmente decidiu transferir poderes de governo para os governantes. Um influente e radical panfleto huguenote, O Despertador (Le Reveille Matin) (1574) repetiu o argumento de Beza. (O Despertador foi provavelmente escrito pelo eminente jurista francês, Hugues Doneau). O homem não poderia naturalmente estar em sujeição, apontou O Despertador, pois “assembleias e grupos de homens existiram em todo lugar antes da criação de reis”, e “até mesmo hoje é possível encontrar um povo sem um magistrado, mas nunca um magistrado sem um povo”. Se o homem não é para ser naturalmente livre, mas naturalmente escravizado, então devemos concluir absurdamente que “o povo deve ter sido criado pelos seus magistrados” quando é óbvio o contrário, que “magistrados sempre são criados pelo povo.”
Como de costume, Philippe du Plessis Mornay resumiu a posição com clareza incisiva. “Ninguém”, observou ele, “é um rei por natureza”, e, além disso, e com particular atenção, “um rei não pode governar sem um povo, enquanto um povo pode se governar sem um rei”. Consequentemente, é evidente que o povo precisa ter precedido a existência de reis ou de leis positivadas e, então, posteriormente, submeteram-se ao seu domínio. Consequentemente, a condição natural do homem precisa ser a *livridade, precisamos possuir a liberdade como um direito natural, um direito que nunca pode ser removido justificadamente. Como Mornay coloca, somos todos “livres por natureza, nascidos para odiar a servidão e desejosos de comandar em vez de ceder à obediência”. Além disso, continuando essa análise proto-lockeana, o povo precisa ter de se submeter ao governo para promover seu bem-estar.
Seguindo John Major, Mornay deixou claro de que o tipo de bem-estar que o povo propunha ao estabelecer um governo era o de proteger seus direitos naturais individuais. Tanto para Mornay quanto para Major, [ter] um “direito” sobre algo [significava] ser livre para dispor dele e para descartá-lo, i.e., um direito ao objeto enquanto propriedade. O povo retém esses direitos quando estabelecem políticas, as quais criaram voluntariamente para garantir maior segurança para suas propriedades. Esses direitos de propriedade incluem o direito natural de todos sobre suas próprias pessoas e suas liberdades. Os governos deveriam manter esses direitos, mas frequentemente se tornam os principais transgressores. Mornay foi cuidadoso ao apontar que o povo, ao estabelecer governos, não pode alienar sua soberania. Em vez disso, eles sempre “permanecem na posição de donos” de sua soberania, que eles meramente delegam ao governante. O povo “todo”, portanto, continua a ser “maior do que o rei e está acima dele.”
Por outro lado, Mornay e os outros huguenotes foram constrangidos a moderar seu radicalismo revolucionário. Primeiro, eles deixaram claro, de uma maneira totalmente inconsistente com sua visão, que todo o povo retém sua soberania, que o “povo” não é realmente o povo como um todo, mas seus “representantes” nos magistrados e nos estados gerais. O povo necessariamente “deu sua espada” a essas instituições e, portanto, “quando falamos do povo coletivamente, nós queremos dizer aqueles que receberam autoridade do povo, isto é, os magistrados abaixo do rei […] [e] a assembleia dos estados”. Além disso, na prática, esses alegados representantes mantêm em suas mãos o cumprimento das promessas do rei, uma vez que o poder de imposição é propriedade “das autoridades que detêm o poder do povo nelas.”
Ademais, de acordo com os huguenotes, o direito soberano está apenas no povo como um todo e não em nenhum indivíduo, de modo que o tiranicídio por um súdito nunca é permitido. O povo como um todo está acima do rei, mas o rei está acima de qualquer indivíduo. Mais concretamente, uma vez que a soberania repousa nas instituições de assembleias ou de magistrados devidamente constituídos, apenas essas instituições que incorporam o poder soberano do povo podem propriamente resistir à tirania do rei.
Em poucos anos, a rebelião dos holandeses contra o domínio espanhol atingiu o clímax em 1580-81. Um panfleto calvinista anônimo, Um Verdadeiro Alerta, apareceu em Antuérpia em 1581 afirmando que “Deus criou os homens livres” e que o único poder sobre os homens é tudo o que eles mesmos concederam. Se o rei quebra as condições de seu governo, então os representantes do povo têm o direito e o dever de depô-lo e “retomar seus direitos originais”. O líder da rebelião holandesa, Guilherme, o Taciturno, Príncipe de Orange, adotou a mesma visão nesses mesmos anos, ambos em sua própria Apologia apresentada à assembleia representativa no final de 1580 e no oficial Édito da Assembleia Representativa emitido no mês de julho seguinte. (Deve ser notado que a Apologia foi em grande parte escrita por Mornay e por outros conselheiros huguenotes). O Édito declarou que o rei da Espanha havia “perdido sua soberania” e que os Países Baixos Unidos foram finalmente obrigados, “em conformidade com a lei da natureza”, a exercer seu direito inquestionável de resistir à tirania e “buscar tais meios” conforme necessário para garantir seus “direitos, privilégios e liberdades”.
10. George Buchanan: calvinista radical
O mais fascinante e também o mais radical dos teóricos calvinistas do final do século XVI não foi um huguenote francês, mas um escocês que passou a maior parte do tempo na França. George Buchanan (1506-82) foi um ilustre historiador e poeta humanista, que ensinou latim no College de Guyenne em Bordeaux. Buchanan foi educado em filosofia escolástica na Universidade St Andrews em meados da década de 1520, onde estudou com o grande John Major. Um dos primeiros convertidos ao calvinismo, Buchanan tornou-se amigo de Beza e de Mornay, e serviu como membro da assembleia geral da Igreja da Escócia.
Pensadores calvinistas britânicos da década de 1550, refugiados do domínio católico de Rainha Maria, havia elaborado no exílio uma justificativa para rebelião contra a tirania em termos religiosos contra a idolatria. Restava reafirmar a teoria revolucionária em termos seculares, de direito natural, em vez de em conceitos estritamente religiosos de piedade e de heresia. Essa façanha foi realizada pelo escocês George Buchanan, em meio a uma luta da maioria calvinista da Escócia contra sua rainha católica. Uma revolução em 1650 conquistou o parlamento escocês para o calvinismo em um país agora esmagadoramente calvinista, e sete anos depois, os calvinistas depuseram a rainha católica, Mary Stuart.
No decorrer dessa luta, Buchanan, em 1567, começou a traçar sua grande obra, O Direito do Reino na Escócia, a qual ele publicou em 1579. Parte dos argumentos de Buchanan apareceram em discursos proferidos pelo novo Regentes escocês, o Earl de Moray em 1568, e então nas discussões entre os governos escocês e inglês três anos depois.
Buchanan começou, como os huguenotes, com o estado de natureza e com um contrato social do povo com seus governantes, um contrato no qual eles mantiveram sua soberania e seus direitos. Mas havia duas diferenças principais. Em primeiro lugar, Beza e Mornay haviam falado de dois desses contratos: um contrato social político, e uma aliança religiosa para agir como um povo devoto. Com Buchanan, a aliança religiosa cai totalmente, e ficamos apenas com o contrato político. Alguns historiadores interpretam o radicalismo de Buchanan como um passo para a secularização da política em uma “ciência política” independente. Mais precisamente, Buchanan emancipou a teoria política dos fundadores protestantes das preocupações diretamente divinas ou teológicas, e a reconduziu a seus fundamentos em direito natural e em direitos humanos.
Mais radicalmente, Buchanan varreu toda a bagagem huguenote inconsistente que virtualmente alienava a soberania do povo por intermédio de “representantes”. Ao contrário, para Buchanan, o povo consente com o contrato com o governante, e mantém seus direitos soberanos, sem mencionar as assembleias de intermédio. Mas isso traz implicações muito mais revolucionárias sobre direitos naturais e sobre a soberania popular. Pois então, quando um rei se torna tirânico e viola sua tarefa de salvaguardar os direitos individuais, isso significa “que todo o corpo do povo, e mesmo os cidadãos individuais, podem se dizer ter autoridade para resistir e para matar um governante legítimo em defesa de seus direitos”. Assim, mais de duas décadas antes do jesuíta espanhol De Mariana, George Buchanan havia chegado, pela primeira vez, a uma verdadeira teoria individualista dos direitos naturais e da soberania, e, portanto, a uma justificação para atos individuais de tiranicídio. Assim, no que o professor Skinner chama de “uma visão altamente individualista e até anárquica de resistência política”, Buchanan enfatizou que:
“Uma vez que as pessoas, como um corpo, criam o governo, é […] possível que a qualquer momento ‘as pessoas se livrem de qualquer império que possam ter imposto a si mesmas, a razão é que ‘tudo o que é feito por um determinado poder pode ser desfeito por um poder semelhante’. Além disso, Buchanan acrescenta que, uma vez que cada indivíduo precisa ser figurado enquanto concordando com a formação da comunidade para sua própria segurança e benefício maior, segue-se que o direito de matar ou de remover um tirano deve ser constituído em todos momentos ‘não apenas com todo o corpo do povo’, mas ‘até mesmo com cada cidadão individual’. Então ele apoia de bom grado a conclusão quase anárquica que mesmo quando, como frequentemente acontece, alguém ‘entre os mais baixos e o pior dos homens’ decide ‘vingar o orgulho e a insolência de um tirano’ simplesmente assumindo o direito de matá-lo, tais ações são frequentemente ‘julgadas como tendo sido feitas corretamente, […]’.”17
Vimos que o jesuíta espanhol, Juan de Mariana, desenvolveu uma similar teoria da soberania popular lockeana e do tiranicídio individual duas décadas depois. Como escolástico, ele também estabelecia um contrato de lei natural e não prescrevia uma aliança religiosa na base de sua teoria. Skinner habilmente conclui que
O jesuíta Mariana pode, portanto, dar as mãos ao protestante Buchanan em afirmar uma teoria da soberania popular que, embora escolástica em suas origens e calvinista em seu desenvolvimento posterior, era em essência independente de qualquer credo religioso e, portanto, estava disponível para ser usado por todos os partidos nas futuras lutas constitucionais do século XVII.18
Mais típico, no entanto, da vertente dominante do calvinismo radical emergente do século XVI foi o distinto jurista holandês, Johannes Althusius (1557-1638). Sua magnum opus foi o tratado de 1603, Políticas Metodicamente Estabelecidas. Althusius se baseou e foi semelhante a Mornay e aos teóricos huguenotes. Com eles, ele manteve a soberania popular pré-lockeana com delegação revogável ao rei, e também mediou essa soberania por meio de assembleias representativas e por associações. Além disso, a justificativa do tiranicídio individual desaparece. No entanto, uma inovação de Buchanan foi mantida no tratado massivo de Althusius: o abandono de qualquer aliança religiosa. Na verdade, Althusius é mais explícito, atacando teólogos por infundir em seus escritos políticos “ensinamentos sobre a piedade e caridade cristãs”, e por falhar em perceber que essas questões são “impróprias e estranhas à doutrina política.”
11. Membros da liga e os politiques
Embora os monarcômacos huguenotes tenham sido muito mais extensivamente estudados do que suas contrapartes católicas do final do século XVI, os últimos são um grupo interessante e negligenciado. Após a ascensão do rei Henrique III em 1574, começou a ficar claro que os huguenotes não estavam mais em perigo de aniquilação, e que, pelo contrário, parecia que Henrique era mole com protestantes. Essa suavidade se tornou um problema agudo para os católicos da França em 1584, quando a morte do herdeiro do torno, o Duque de Alenón, trouxe para a primeira linha de sucessão Henrique de Navarra, um comprometido calvinista. Essa ameaça fez surgir a Liga Católica, especialmente em Paris, até então o coração do catolicismo francês. A liga, liderada por toda França pelo Duque de Guise, rebelou-se contra Henrique e o expulsou de Paris. Como vimos, o traiçoeiro assassinato cometido por Henrique a Guise e a seu irmão cardeal durante uma negociação de paz levou a um poderoso ato de tiranicídio, no qual o jovem padre dominicano, Jacques Clement, em 1 de agosto de 1589, vingou os Guises assassinando Henrique III.
Paris sob a Liga Católica era dirigida por um conselho de 16, apoiado pelas classes médias, profissionais e homens de negócios, e apoiado fervorosamente por virtualmente todos os sacerdotes e padres da cidade. O mais radical pensador da Liga, que floresceu durante as décadas de 1580 e 1590, foi um importante advogado, François LeBreton, que, em seu Protesto ao Terceiro estado (1586), atacou amargamente o rei como um hipócrita, defendeu uma república francesa e pediu a revolução e a guerra civil para alcança-la. LeBreton foi prontamente executado pelo Parlement, o principal órgão judicial da França.
A rebelião da Liga Católica, que culminou na revolta de Paris e em outras partes da França, não foram motivadas apenas pela preocupação com a possível imposição de uma fé huguenote minoritária aos franceses católicos. As queixas da liga eram tanto políticas e econômicas quanto religiosas. Henrique III, o último rei Valois, impôs a seu país uma enorme quantidade de pilhagem, uma carga tributária muito alta e grandes quantidades de despesas, gabinetes e subsídios. Impostos enormes foram cobrados principalmente da cidade de Paris.
Mas o ato do padre Clement, embora heróico, acabou por ser contra-produtivo. Pois o primeiro Bourbon, Henrique de Navarra, assumiu o trono como Henrique IV. Percebendo que ele dificilmente poderia permanecer um huguenote e ainda governar a França, Henrique, após quatro anos de guerra, convertido ao catolicismo, supostamente explicando, em uma frase provavelmente apócrifa, que “Paris merece uma missa”. Henrique havia vencido. Com o advento do novo rei de Bourbon veio o governo dos centristas ou dos católicos “moderados”, os politiques — “os políticos”.
Se se pode chamar Henrique IV e os politiques de “moderados” depende-se da perspectiva. Como secularistas e homens de fé fraca, é verdade que os polítiques não estavam interessados em massacrar os huguenotes e estavam ansiosos para acabar com o conflito religioso o mais rápido possível. Henrique o fez em seu decreto de tolerância, o Édito de Nantes em 1598. Nesse sentido, os politiques eram “o meio termo” entre os dois extremos religiosos: os huguenotes e os membros da Liga Católica. E essa é a luz que a maioria dos historiadores lançou sobre eles. Mas em outro sentido importante, os politiques não eram “moderados” no final das contas. Pois eles eram verdadeiramente radicais no desejo de dar todo o poder ao estado absoluto e à sua encarnação no rei da França. Triunfante em ambos os “extremos”, Henrique IV e os polítiques passaram violentamente por cima dos únicos dois grupos que pediram resistência contra a tirania real.
A vitória de Henrique também significou o fim da resistência francesa ao absolutismo real. O domínio despótico descontrolado dos Bourbons agora seria o destino da França por dois séculos, até que foi trazido a um fim violento pela Revolução Francesa. Isso foi um preço alto, de fato, a pagar pela concórdia religiosa, especialmente uma vez que Luís XIV, “O Rei Sol”, a personificação do despotismo real francês, revogou o Édito de Nantes em 1685 e, assim, expulsou muitos huguenotes da França. No longo prazo, a “paz” religiosa da “moderação” absolutista acabou sendo a paz da sepultura para muitos huguenotes.
1 Quentin Skinner, The Foundations of Modern Political Thought: vol. II, The Age of Reformation (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), p. 143. Em particular, duas obras do fim do século XVI lançaram essa crítica: o jesuíta italiano Antonio Possevino (1534-1611), A Judgment on the Writings of Jean Bodin, Philippe Mornay and Niccolo Machiavelli (Lyons, 1594); e o jesuíta espanhol Pedro de Ribadeneyra (1527-1611), Religion and the Virtues of the Christian Prince against Machiavelli (Madrid, 1595, trad. e ed. por George A. Moore, Maryland, 1949).
2 Gary North, “The Economic Thought of Luther and Calvin”, The Journal of Christian Reconstruction, II (verão, 1975), p. 77.
3 Richard H. Tawney, Religion and the Rise of Capitalism (1927, Nova York: New American Library, 1954), p. 80.
4 Ibid., p. 95.
5 Em contraste aos católicos, para Lutero, e provavelmente para Calvino (que, entretanto, era ambivalente sobre o assunto), os puritanos eram “pós-milenaristas”, i.e., eles acreditavam que os seres humanos teriam de estabelecer o Reino de Deus na Terra por mil anos antes que Cristo retornasse. Os outros eram ou “pré-milenaristas” (Cristo retornaria à Terra e então estabelecer mil anos de Reino de Deus na terra) ou, como os católicos, amilenaristas (Cristo retornaria e então o mundo acabaria). O pós-milenarismo, é claro, tendeu a induzir em seus fiéis a ânsia e até mesmo a pressa em prosseguir com seu próprio estabelecimento do reino de Deus na terra, de modo que Jesus poderia eventualmente retornar.
6 O fato de que apenas o calvinismo tardio desenvolveu essa versão da vocação indica que Weber pode ter sua teoria causal revertida: que o crescimento do capitalismo pode ter levado a um calvinismo mais complacente, e não o contrário. A abordagem de Weber se sustenta melhor na análise dessas sociedades, como a China, onde as atitudes religiosas parecem ter aleijado o desenvolvimento econômico capitalista. Assim, veja a análise da religião e do desenvolvimento econômico na China e no Japão pelo weberiano Norman Jacobs, The Origin of Modern Capitalism and Eastern Asia (Hong Kong: Hong Kong University Press, 1958).
7 Emil Kauder, A History of Marginal Utility Theory (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1965), p.5.
8 Michael Walzer, The Revolution of the Saints: A Study in the Origins of Radical Politics (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1965), p. 216; veja também pp. 206-26.
9 Kauder, op. cit., nota 7, p. 9.
10 John T. Noonan, Jr, The Scholastic Analysis of Usury (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1957), p. 344 n.
11 Ibid., p. 371.
12 Eugen von Böhm-Bawerk, Capital and Interest, vol. I: History and Critique of Interest Theories (1921, South Holland, Ill.: Libertarian Press, 1959), p. 24.
13 Ronald A. Knox, Enthusiasm: A Chapter in the History of Religion (1950, Nova York: Oxford University Press, 1961), p. 133.
14 Citado em Igor Shafarevich, The Socialist Phenomenon (Nova york: Harper & Row, 1980), p. 57.
*Querela é o termo mais formal para discussão, disputa argumentativa. No inglês, querrel.
15 Carl Menger, Principles of Economics (Nova York: New York University Press, 1981), pp. 317-18.
16 Skinner, op. cit., nota 1, p. 321.
*Contraditoriamente com a doutrina defendida no prefácio, o uso aqui nos parece equivaler livridade a acepção de direito e a liberdade com a acepção do livre arbítrio. As razões para tal ainda são desconhecidas, mas estima-se que tenha sido o caso que tenha se tratado de um descuido de edição. Em virtude disso, mantemos a tradução como acreditamos ser mais coerente com suas visões e distinções prévias, como defendido no prefácio. Exclusivamente nesse caso, o termo freedom foi traduzido como liberdade e liberty como livridade.
17 Ibid., pp. 343-4.
18 Ibid., p. 347.