Introdução
Nos últimos anos, a hermenêutica como um estilo de pensamento capturou a imaginação de mentes ousadas e causou impacto em várias disciplinas para as quais parece ter uma promessa de partidas emocionantes. A economia até agora não esteve entre elas. Isso é ainda mais notável porque na Alemanha, pelo menos antes da Primeira Guerra Mundial — nos anos em que a Methodenstreit estava se esgotando — os méritos do método de Verstehen, apoiados pela autoridade de Max Weber, foram amplamente discutidos.
Durante a década de 1920, quando não havia uma única escola dominante de teoria econômica no mundo, e correntes de pensamento que fluíam de diversas fontes (como austríaca, marshalliana e paretiana) cada uma tinha sua própria esfera de influência, vozes “interpretativas” (principalmente de origem weberiana) ainda eram audíveis em algumas ocasiões. No entanto, depois de 1930, economistas de todo o mundo seguiram Pareto ao adotar o método da mecânica clássica como o único método verdadeiramente “científico”. Nas décadas que se seguiram, este se tornou o estilo de pensamento dominante em quase todos os países. Em 1931, a Econometric Society foi fundada em meio a muito entusiasmo ingênuo. Um formalismo árido começou a permear a maioria das áreas da economia e a minar o vigor do pensamento analítico. Nesse meio, a ação racional passou a ser considerada como nada mais que a maximização de determinadas funções! Nas décadas seguintes, os economistas começaram a viver como se estivessem em uma cidadela própria. Abrir novas perspectivas para eles não será uma tarefa fácil. Para aqueles que cresceram isolados, nutridos pelos produtos da indústria de livros-texto sob a égide de seus escribas e tipógrafos, essas vistas podem se tornar uma experiência traumática. Portanto, temos motivos para realizar nossa tarefa com algum cuidado.
No que diz respeito ao escopo e à amplitude deste capítulo, diga-se de imediato que qualquer tentativa de minha parte de tratar o tema da hermenêutica como um “estilo de pensamento” em uma tela tão ampla quanto seu significado atual e promessa para as ciências sociais (quem dirá outras disciplinas) exigem, superariam em muito minha competência e conhecimento. No que se segue, terei, portanto, de me limitar ao significado da hermenêutica para a economia — em particular, para a renovação do pensamento econômico. Também proponho restringir ainda mais o escopo deste capítulo, limitando-o à economia austríaca, exceto na última seção.
Vinte anos atrás, no Festschrift para Alexander Mahr, professor de economia em Viena, tentei mostrar que temos que ver a principal contribuição dos austríacos para a “revolução subjetiva” da década de 1870 na “virada interpretativa” (embora eu não usei essas palavras) que conseguiram transmitir à evolução do pensamento econômico naquele período crítico (Lachmann 1977, pp. 45-64). Meu presente propósito é ir mais longe nessa linha de pensamento e explorar as possíveis consequências se uma “virada” semelhante fosse dada à evolução do pensamento contemporâneo por meio de ideias fundamentadas na economia austríaca. Se os austríacos modernos conseguissem substituir o atual paradigma neoclássico — uma encarnação do formalismo dissecado — por um corpo de pensamento mais adequado ao espírito da hermenêutica, o que exatamente eles poderiam esperar realizar? Embora principalmente interessados no que a economia austríaca possa ter a dizer sobre esses assuntos, veremos, mais adiante neste capítulo, que nesse contexto o trabalho de certos economistas não-austríacos como contribuição ao pensamento hermenêutico, mesmo que provavelmente desconheciam dele, não deve ser negligenciado.
Por que Hermenêutica?
Há, é claro, muitas razões pelas quais e aspectos em que o paradigma neoclássico dos livros-texto é inadequado. Seu nível de abstração é muito alto e, o que é pior, parece não haver maneira de reduzi-lo para que possamos nos aproximar da realidade gradualmente. As reclamações sobre o “andaime” que nunca é removido foram numerosas. O paradigma não lança luz sobre a vida cotidiana em um mundo industrial. O “mundo da vida” no qual todo o nosso conhecimento empírico das questões sociais está embutido não existe para ele.
Mas o que para os austríacos é mais censurável é o estilo de pensamento neoclássico, emprestado da mecânica clássica, que nos faz tratar a mente humana como um mecanismo e seus enunciados como determinados por circunstâncias externas. Ação é aqui confundida com mera reação. Não há escolha de fins. Dado um “campo de preferência abrangente” para cada agente, o que há para escolher? O resultado de todos os atos de escolha é aqui predeterminado. Em resposta às mudanças nos preços de mercado, os homens realizam atos sem sentido de ginástica mental, deslizando para cima e para baixo em suas curvas de indiferença. Tudo isso está longe de uma ação significativa em nosso “mundo da vida”.
Na realidade, os homens fazem planos para alcançar seus propósitos e depois tentam realizá-los. Esses planos são baseados e orientados para meios disponíveis e fins livremente escolhidos. Eles podem colidir com os de outros ou podem se tornar inatingíveis por outras razões (e.g., que no curso da ação os atores tomam consciência de que os meios contados não estão mais disponíveis ou se mostram menos eficientes do que se esperava). Os planos podem, portanto, ter que ser revistos ou até mesmo abandonados. Mas aconteça o que acontecer, fenômenos econômicos observáveis — como preços ou quantidades produzidas ou trocadas — são os resultados da interação de nossos planos. A ação guiada por planos causa fenômenos econômicos. Poderíamos dizer que os fenômenos econômicos são as manifestações externas da ação guiada por planos.
A economia austríaca talvez seja considerada como dando expressão teórica às características da vida cotidiana no tipo de economia de mercado que acabamos de descrever. Em sua essência, pode-se dizer que a economia austríaca fornece uma teoria da ação voluntarista, não uma mecanicista. Os austríacos não podem deixar de rejeitar um esquema conceitual, como o neoclássico, para o qual o homem não é um portador de pensamento ativo, mas um mero feixe de “disposições” na forma de um “campo de preferência abrangente”. Os austríacos são, assim, compelidos a procurar esquemas conceituais informados por um estilo de pensamento totalmente diferente. Talvez a hermenêutica possa nos dar uma resposta. Neste contexto, os seguintes pontos chamam a nossa atenção.
A ação consiste em uma sequência de atos aos quais nossa mente atribui significado. Os elementos da ação são, portanto, enunciados de nossas mentes e devem ser tratados como tal. Ao estudar a ação e a interação em escala social, nossa tarefa é, portanto, interpretativa; estamos preocupados com o conteúdo de consciência dos agentes.
Esses fatos não têm contrapartida na natureza. Em nossa observação de fenômenos naturais nenhum significado é acessível a nós. Tudo o que podemos fazer é colocar nossas observações em uma certa ordem, uma ordem arbitrária. Em todos os casos em que nossas observações servem a um propósito prático, a ordem que lhes impomos dependerá deste último. Na ausência de um propósito prático, a ordem provavelmente estará de acordo com a direção de nosso interesse de pesquisa. Os fenômenos da ação humana, ao contrário, apresentam uma ordem intrínseca que não ousamos ignorar: aquela que os agentes humanos lhes atribuíram na elaboração e execução de seus planos. Como cientistas sociais, não temos o direito de substituir aqueles que estão implícitos na ação moldada pela vontade humana por nossos próprios projetos arbitrários — “projetos” aqui dando expressão ao seu significado intrínseco.
Planos, é claro, muitas vezes falham. Eles podem falhar por um grande número de razões, mas uma delas, já mencionada acima, é de particular interesse para nós: a colisão do plano de um agente com o de outros. Tal conflito de planos, longe de invalidar a importância dos planos para nossa compreensão das formas de interação, na verdade mostra como eles são importantes para ajudar a compreender os problemas que surgem aqui. Quem negaria que nosso entendimento do fato de que as mudanças na renda e no emprego podem ser devidas à falta de correspondência entre os planos de poupança e investimento aumentou nossa percepção dos problemas macroeconômicos?
Uma conclusão semelhante se aplica ao problema de rastrear as consequências não intencionadas da ação. Esta é, sem dúvida, uma das tarefas da teoria econômica, mas como poderíamos esperar realizá-la a menos que primeiro tenhamos dominado a teoria da ação intencionada? Temos que perceber que somente quando formos capazes de lidar com as ferramentas da lógica dos meios e fins — a base da teoria voluntarista da ação — com alguma destreza, podemos prosseguir com confiança para enfrentar as consequências não intencionadas da ação. Nenhum esquema mecanicista destinado a confundir ação com reação provavelmente nos ajudará aqui. O fato dos planos guiarem a ação e lhe conferirem sentido permite encontrar as causas dos conflitos de ação na incompatibilidade de planos constituídos por atos de mentes diversas. As consequências da ação, sejam elas intencionadas ou não, continuam sendo a preocupação do economista.
Finalmente, temos que lembrar que nossa mente nunca está “em repouso”. Nossos pensamentos são, pelo menos para muitos propósitos, mais bem vistos como partículas de um fluxo interminável, o fluxo da consciência. Nosso conhecimento consiste em pensamentos e, portanto, dificilmente pode ser considerado um estoque, exceto em um ponto do tempo. O tempo não pode passar sem que o estado do conhecimento mude. “A economia, preocupada com os pensamentos e apenas secundariamente com as coisas, os objetos desses pensamentos, precisa ser tão inconstante quanto o próprio pensamento” (Shackle 1972, p. 246). É tarefa das ciências sociais tornar inteligíveis para nós os acontecimentos neste reino inconstante.
A resposta à pergunta “por que hermenêutica?” deve ser encontrada, então, em nossa necessidade de esquemas conceituais mais adequados à liberdade de nossas vontades e às exigências de uma teoria voluntarista da ação do que qualquer coisa que tenhamos atualmente. A hermenêutica pode nos ajudar nesse esforço?
O Que é Hermenêutica?
A hermenêutica conota o estilo de pensamento da erudição clássica. Foi inicialmente na exegese erudita de textos que surgiram os problemas que levaram à evolução de vários métodos de interpretação cujos méritos relativos devem ser avaliados pelos critérios de acesso ao significado intrínseco.
Sempre que lemos um texto, queremos apreender seu significado, e é necessário um esforço de interpretação. Onde nosso texto é de natureza narrativa, devemos entender como as várias partes da história que nos são contadas se relacionam umas com as outras, a fim de apreender seu pleno significado. Onde é de caráter exortativo, precisamos ter certeza de que entendemos o que somos exortados a fazer ou omitir. Quando contém uma prescrição religiosa ou legal, temos que nos certificar de que entendemos precisamente a que tipo de casos ela se aplica. Em todos esses casos, temos que interpretar o texto para penetrar em seu significado.
Durante séculos, muito antes do surgimento da ciência moderna, os estudiosos aplicaram esses métodos, seja estudando a Bíblia ou os Pandectas, lendo Políbio ou Tácito, ou traduzindo Averróis ou Avicena do árabe. A deles era uma atividade hermenêutica.
À medida que lemos um texto, página por página, não apenas captamos o significado de frases e passagens, mas, ao fazê-lo, gradualmente formamos em nossa mente uma noção do que o autor quer nos dizer em sua obra. O sentido do texto como um todo emerge aos nossos olhos a partir da rede de sentidos constituída por passagens únicas. Quando nos deparamos com uma passagem difícil de entender, devemos tentar interpretá-la à luz do “significado maior” que derivamos de nossa leitura do texto como um todo.
Em tudo isso estamos aplicando um princípio de coerência limitada, a coerência de todos os enunciados da mesma mente. Do nosso conhecimento geral da vida e das letras, sentimos que temos o direito de presumir que um autor não vai querer se contradizer. Uma “passagem difícil” deve ser interpretada de forma coerente com o que consideramos ser “o espírito do todo”. Em casos embaraçosos, onde isso for impossível, talvez tenhamos que revisar nossa interpretação do “significado principal” do texto. Ou podemos concluir que o autor “mudou de ideia” antes de escrever a passagem em análise — que nosso texto não é a manifestação de “uma mente de cada vez”, mas que reflete, quase como um espelho, a mudança do mente do autor ao longo do tempo. Como um texto volumoso pode ser obra de muitos anos, a existência de tal possibilidade não é surpreendente.
Em todos esses casos, nossa interpretação é uma aplicação da razão crítica. A hermenêutica está em conformidade com as máximas do racionalismo crítico. Nossa interpretação de um texto é, em princípio, sempre “falsificável”.
Como passamos das letras para a vida, dos textos antigos para as transações comerciais modernas? O que os textos e os fenômenos de ação têm em comum é que ambos são enunciados da mente humana, que têm que existir como pensamentos antes de se manifestarem como fenômenos observáveis. Um texto precisa ser pensado antes de ser escrito, uma transação comercial antes de ser registrada.
Um grande passo foi dado, e o campo de aplicação do método hermenêutico consideravelmente aumentado, quando gradualmente emergiu do trabalho dos historiadores (já de historiadores gregos e romanos) que esses escritores não apenas forneceram uma crônica de eventos, mas tentaram explicar esses eventos como ação humana em termos de fins e meios, que assim tentaram interpretar a ação. Esta foi uma visão importante da erudição clássica.
Da historiografia às ciências sociais teóricas está apenas um pequeno passo, que produzem tipos ideais de eventos recorrentes e, assim, fornecem aos historiadores as ferramentas analíticas de que precisam. E aqui chegamos ao ponto em que somos capazes de vislumbrar como pode ser o papel da economia como disciplina hermenêutica e o tipo de “virada interpretativa” que esperamos dar a ela.
A maioria dos fenômenos econômicos é observável, mas nossas observações precisam de uma interpretação de seu contexto para que possam fazer sentido e acrescentar ao nosso conhecimento. Apenas enunciados significativos de uma mente se prestam à interpretação. Além disso, toda ação humana ocorre dentro de um contexto de “intersubjetividade”; nosso mundo cotidiano comum (o “mundo da vida” schutziano) no qual os significados que atribuímos aos nossos próprios atos e aos dos outros geralmente não são questionados e são tidos como certos.
Nosso conhecimento empírico dos fenômenos econômicos obtidos por observação deve, em qualquer caso, ser interpretado como embutido nesse contexto. A elucidação de seu significado não pode significar aqui que o economista, como observador externo, tenha o direito de atribuir a eles qualquer significado que se adapte ao seu propósito cognitivo. Deve significar a elucidação do sentido que lhes é atribuído por diversos agentes em cena de observação nesse contexto de significados intersubjetivos.
A interpretação hermenêutica dos fenômenos econômicos, portanto, deve ocorrer dentro de um horizonte de significados estabelecidos, com um tal horizonte para cada sociedade. Nossos fenômenos observados devem ser colocados dentro de uma ordem restrita por essa estrutura.
Instituições e a Escola Austríaca
Todos concordam que a modelagem de instituições pela economia neoclássica é muito escassa.
(Hahn 1975, p. 363)
Depois do que foi dito nas seções anteriores deste capítulo, não é difícil ver que um tratamento mais satisfatório das instituições em economia, ou pelo menos um que possa satisfazer as demandas dos economistas austríacos, exigirá a infusão de uma quantidade considerável de dose do espírito hermenêutico. As instituições prescrevem certas formas de conduta e desencorajam outras. É claro que aquelas pessoas que se comportam em conformidade com elas devem atribuir-lhes algum significado. Tal significado deve ser elucidado para observadores externos.
Ou podemos dizer que uma instituição é uma rede de relações significativas constantemente renováveis entre pessoas e grupos de pessoas que podem não atribuir o mesmo significado ao mesmo conjunto de relações. A tarefa do estudante de instituições é extrair tais significados de suas observações e interpretá-los para seu público.
Dificilmente é possível acusar a economia ortodoxa de hoje de negligenciar as instituições — no sentido de que estas nunca são mencionadas, ou pelo menos subentendidas, em seus escritos. Mercados e firmas, afinal, são instituições. Por mais alto que seja o nível de abstração que os “agentes” possam se envolver em transações de câmbio, a exigibilidade dos contratos e a proteção da propriedade estão implícitas. E onde estaria a economia monetária sem as instituições financeiras?
O que impressiona o estudante de hermenêutica quando aborda nosso assunto não é o fato das instituições serem ignoradas na economia ortodoxa moderna, mas o fato de que, como os fenômenos naturais, elas são tratadas como condições externas dadas da ação humana — cuja origem não pode ser investigada e cuja existência continuada é dada como certa. E ninguém faz perguntas sobre seu significado. De fato, poucos economistas hoje possuem um vocabulário que lhes permita fazer tais perguntas.
Enfrentamos assim uma situação em que, embora as instituições não sejam de forma alguma ignoradas, a maioria dos economistas não sabe o que fazer com elas. Eles brincam com elas como crianças brincando com moedas antigas sobre cujo valor e história nada sabem. As instituições pertencem ao domínio da cultura, não ao da natureza. Elas estão imersas na história. Embora possamos observar suas operações, nossas observações não podem nos revelar qual significado seus objetos têm para aqueles que estão enredados nelas, um significado que varia de grupo para grupo e ao longo do tempo. É impossível elucidar tal significado até percebermos que o modo de existência das instituições corresponde e varia com o modo de orientação daqueles que delas participam. Tal modo de orientação é um elemento da cultura, uma teia de pensamento — aberto à interpretação, mas não mensurável. A maioria de nossos contemporâneos têm que ignorar esse fato. Claramente, devido à sua falta de familiaridade com questões de cultura, a maioria deles é hermeneuticamente deficiente. Este é o verdadeiro problema ao qual o pequeno eufemismo do professor Hahn, citado acima, dá uma expressão bastante inadequada. Como devemos superá-lo?
As instituições econômicas estão situadas em uma área na qual os domínios da economia e da sociologia se sobrepõem. Termos de cooperação são, portanto, necessários. Escusado será dizer que estes serão mais fáceis de encontrar quanto mais próximos forem os níveis de abstração em que as instituições são discutidas nas duas disciplinas. Talvez seja útil examinar alguns dos problemas que surgem aqui de uma perspectiva histórica.
Os austríacos deram sua contribuição a esse campo desde muito cedo, quando na maior parte da Europa a sociologia como disciplina acadêmica ainda não existia. Em 1883, no Untersuchungen, Menger introduziu a distinção entre instituições “orgânicas” e “pragmáticas” — entre aquelas que são produtos de processos sociais espontâneos e aquelas que são produtos “da vontade social”. O dinheiro é um exemplo do primeiro, as normas legais são do último tipo.
Demorou mais de meio século para que Alfred Schutz ganhasse fama como (quase) o primeiro sociólogo da escola austríaca e um pensador hermenêutico de primeira linha. Ludwig von Mises, apesar de todo seu apriorismo declarado, pertencia à mesma tradição. O professor Don Lavoie, em sua contribuição ao Lachmann-Festschrift (“Euclidianismo versus Hermenêutica: Uma reinterpretação do Apriorismo Misesiano”), argumentou de maneira convincente que devemos considerá-lo um pensador “interpretativo”. Se von Mises, que estava inclinado a atribuir “interpretação” apenas à historiografia, teria gostado da denominação é outra questão.
Hoje está quase esquecido, mas temos motivos para lembrar, que Max Weber, o grande protagonista do método hermenêutico nas ciências sociais, deparou-se com nosso problema nos primeiros anos do século — os anos em que o Methodenstreit estava se esgotando gradualmente. Ele concluiu que, para lidar com instituições, o que era necessário era uma nova disciplina — ‘sociologia econômica’ — que complementaria, em vez de suplantar, a teoria econômica como então existia. Ao planejar (como editor depois de 1908) o que seria uma enciclopédia alemã de ciências sociais, a Grundriss der Sozialökonomik, Weber decidiu que ele próprio escreveria um volume, Economia e Sociedade, dedicado à nova disciplina, enquanto economistas proeminentes — como Wieser, Schumpeter e outros — escreveriam os volumes sobre as várias partes da economia propriamente dita.
Escusado será dizer que a situação que encontramos hoje em relação às instituições econômicas é totalmente diferente daquela que Weber enfrentou em seu tempo. Para ele, teoria econômica significava economia austríaca — que então desfrutava de sua “década de ouro”, a década anterior a 1914. Essa era a teoria econômica a ser complementada por seu próprio trabalho. Parecia razoável esperar uma cooperação entre economistas e sociólogos em um nível de discurso aproximadamente comum.
Onde se encontra hoje um nível tão comum? Enquanto a teoria econômica é conduzida em um nível de abstração no qual enunciados significativos perdem seu significado, a ação parece fluir de disposições (inatas?) e fenômenos culturais são feitos para parecerem como se fossem fenômenos da natureza, pode haver pouca esperança de trazer instituições para a economia. O que precisamos é descer a um nível mais baixo de abstração em que o esforço hermenêutico é possível e vale a pena. A sociologia econômica como mero suplemento da teoria neoclássica não serve hoje.
As instituições reduzem a incerteza ao circunscrever o campo de ação de diferentes grupos de agentes, compradores e vendedores, credores e devedores, empregadores e empregados. Entendemos como eles funcionam apreendendo o significado da orientação desses grupos em relação a eles. Para nós, a orientação é um conceito hermenêutico fundamental. A orientação, é claro, muda no tempo, mas não pode ser considerada como uma “função” de qualquer outra coisa. Ela não se encaixa em um mundo de agentes “maximizadores de funções”.
Alguns problemas cruciais surgem aqui que dizem respeito à relação entre a instituição individual e a ordem institucional como um todo. Em um mundo de mudanças, ao que parece, cada instituição deve ser flexível, mas sua ordem deve ser permanente. A “Lei e Ordem” deve ser mantida para que a economia de mercado funcione. Como isso é possível? Como pode o todo persistir se nenhuma de suas partes é permanente?
Podemos olhar para a ordem institucional como um comerciante olha para seu inventário — isto é, como consistindo inteiramente de partes intercambiáveis. No inventário, no entanto, cada peça, em virtude de seu valor, é um substituto para todas as outras peças. Mas todas as instituições são substitutas umas das outras? Não há complementaridade entre elas? Na medida em que há, há limites para a total flexibilidade.
Ou devemos conceber tal complementaridade em termos de uma distinção entre instituições fundamentais e imutáveis e outras mutáveis e flexíveis? Em caso afirmativo, essa distinção pode ser uma questão de grau e não de categoria?
Ao enfrentar essas intrigantes questões, devíamos entender melhor que tipo de problemas elas são: problemas relativos ao significado e à orientação. Em algum momento pode se tornar desejável, como Weber pretendia originalmente, confiar a tarefa de lidar com esses e outros problemas semelhantes a uma força-tarefa de sociólogos econômicos. Nem é preciso dizer, talvez, que seu esforço terá mais probabilidade de florescer se puderem contar com um público amplo e solidário de outros cientistas sociais — entre eles muitos, esperamos, da disciplina irmã da economia.
Aliados Hermenêuticos dos Austríacos
A simplicidade unificadora final é o objetivo ou o sonho da ciência natural em um sentido que não é permitido para o estudo dos assuntos humanos. Pois as disciplinas que contemplam a conduta humana, a política, a história e as instituições, ou a arte em todas as suas formas, estão direta e essencialmente preocupadas com as próprias manifestações, a multiplicidade, a riqueza e as variantes particulares detalhadas e fatos individuais dessas facetas da humanidade, ao invés de descartá-las como resultados contingentes de algum princípio original, geral e essencial que é o propósito real da ciência identificar. A ciência da Natureza e a ciência do Homem estão, em certo sentido, de costas uma para a outra, uma olhando para dentro, para a Origem, e a outra para fora, para a Manifestação.
(Shackle 1972, p. 29)
Nesta conjuntura, deve ser um dos objetivos dos economistas da escola austríaca dar à sua disciplina uma “virada interpretativa” e infundir uma dose considerável do espírito da hermenêutica no corpo, atualmente um tanto enfraquecido, do pensamento econômico. Sem dúvida, será uma tarefa árdua. Os austríacos, felizmente, não precisam arcar com tudo sozinhos, mas podem pedir ajuda a alguns aliados.
O pensamento hermenêutico fluiu no passado, e ainda está fluindo hoje, de uma variedade de fontes. Mesmo dentro da órbita estreita da teoria econômica, como praticada atualmente, traços de sua influência ainda podem ser encontrados hoje. Nas primeiras décadas deste século, conforme descrito acima, muitas vezes teve uma influência notável. O que importa mais para nosso presente propósito é que houve, neste século (fora das fileiras austríacas), três proeminentes pensadores econômicos cuja obra podemos legitimamente afirmar ter sido pelo menos fortemente afetada pela influência hermenêutica, embora nem todos eles podem ter estado cientes disso: Knight, Keynes e Shackle.
Knight, pelo menos, estava bem ciente disso. Ele conhecia bem o trabalho de Weber, e a influência deste último é claramente discernível na maioria de seus escritos metodológicos. Em seu famoso artigo (1940), “What is truth in economics?”, originalmente uma resenha do primeiro livro de T.W. Hutchison (publicado em 1938), Knight disse o seguinte:
Todo o assunto da conduta — interesses e motivação — constitui um domínio de realidade diferente do mundo externo, e esse fato confere a seus problemas uma ordem de sutileza e complexidade diferente daquelas das ciências da natureza (inconsciente).
O primeiro fato a ser registrado é que esse reino da realidade existe ou “está lá”. Este fato não pode ser provado, argumentado ou “testado”. Se alguém negar que os homens tenham interesse ou que “nós” temos uma quantidade considerável de conhecimento válido sobre eles, a economia e todos os seus trabalhos serão simplesmente para tal pessoa o que o mundo da cor é para o cego. Mas ainda haveria uma diferença: um homem que é fisicamente, visualmente cego ainda pode ser classificado de inteligência normal e em seu juízo perfeito.
Segundo, quanto à maneira de nosso conhecer ou a fonte do conhecimento; é óbvio que enquanto nosso conhecimento (observação “correta”) do comportamento físico humano e das mudanças correlatas nos objetos físicos da natureza não humana desempenha um papel necessário em nosso conhecimento dos interesses dos homens, a fonte principal, muito mais importante do que em nosso conhecimento da realidade física, é o mesmo processo geral de intercomunicação nas relações sociais — e especialmente naquela relação “causal”, que não tem nenhuma relação direta importante com qualquer “problema”, seja de conhecimento ou de ação — que se descobriu desempenhar um papel papel importante em nosso conhecer do mundo físico.
(Knight 1940, pp. 27-8)
No caso de Keynes, a qualidade hermenêutica de seu pensamento não é tão fácil de documentar quanto a de Knight. Keynes era um pensador de um estilo totalmente diferente, um pragmatista que, na maioria das vezes, se interessava muito pouco pela metodologia das ciências sociais. As duas passagens que citamos para atestar a qualidade hermenêutica de seu pensamento são ambas extraídas de cartas dirigidas a discípulos.
No verão de 1935, antes da publicação do livro de Keynes, General Theory, Robert Bryce, um estudante canadense de Keynes, discursou no seminário do professor Hayek na London School of Economics sobre as ideias fundamentais do próximo livro. Ele parece ter relatado a Keynes que nesta sessão do seminário a maior parte da discussão girou em torno da definição de renda a ser usada no livro. Evidentemente exasperado com este relatório, Keynes disse em sua resposta a Bryce:
É, penso eu, mais uma ilustração da escolástica pavorosa em que as mentes de tantos economistas chegaram, que lhes permite abandonar completamente suas intuições. No entanto, ao escrever economia não se está escrevendo uma prova matemática ou um documento legal. Está se tentando despertar e apelar para as intuições do leitor; e se ele chegou a um estado em que não tem nenhuma, fica-se impotente.
(Keynes 1979, pp. 150-1)
Notamos que o que Keynes aqui chama de “intuições do leitor” é precisamente o que, na linguagem da fenomenologia, seria descrito como nossa “consciência do mundo da vida”, e que o que ele quer dizer é exatamente o que Knight expressou no trecho citado. A falta de um vocabulário comum é um dos obstáculos à difusão do pensamento hermenêutico entre os economistas.
Em julho de 1938, em um carta para Harrod, Keynes escreveu:
Eu também quero enfatizar fortemente o ponto sobre a economia ser uma ciência moral. Mencionei antes que trata da introspecção e dos valores. Eu poderia ter acrescentado que trata de motivos, expectativas, incertezas psicológicas. É preciso estar constantemente em guarda contra tratar o material como constante e homogêneo.
É como se a queda da maçã no chão dependesse dos motivos da maçã, se valeu a pena cair no chão, se o chão queria que a maçã caísse e em cálculos equivocados por parte da maçã sobre quão longe estava do centro da terra.
(Keynes 1973, p. 300)
Essa passagem marca Keynes como um subjetivista e um expoente do estilo hermenêutico de pensamento.
Poucos podem duvidar de que, na segunda metade do século XX, Shackle, como pensador hermenêutico, tenha sido o grande portador do esclarecimento no sombrio reino da economia. A passagem citada no início desta seção oferece um exemplo do calibre de seu pensamento. Por mais difícil que seja resumir sua conquista, a reflexão a seguir fornece pelo menos uma dica do que devemos a ele.
A falha fundamental da metodologia neoclássica está na confusão de ação com reação. O homem em ação é visto como um feixe de disposições e não como um portador de pensamento. Que diferença faz se observarmos em vez de ignorar essas distinções? Na ação refletimos sobre meios e fins, tentando encaixar os primeiros aos segundos, fazer planos e executá-los. Como nossos fins estão no futuro incognoscível (embora não inimaginável), temos que exercitar nossa imaginação refletindo sobre eles, e tal exercício é incompatível com a mera “resposta ao estímulo” ou mesmo a “decodificação de sinais”.
Sempre soubemos, é claro, que nossos planos poderiam falhar e nossos objetivos se mostrarem inatingíveis. A Shackle devemos a percepção mais penetrante de que qualquer ação que começamos agora pode ter qualquer uma de um grande número de possíveis resultados que, se ocorressem, poderiam afetar as condições de nossa própria ação futura, nossos próprios meios futuros, deixando assim apenas pouco espaço para a constância dos parâmetros.
Aos nomes destes três proeminentes pensadores não-austríacos devemos, com justiça, acrescentar o de Sir John Hicks que, durante as duas últimas décadas, muitas vezes nos recordou que os acontecimentos econômicos ocorrem “no tempo” e que os homens em ação não conhece o futuro.
Não se pode negar que há 50 anos o jovem John Richard Hicks se mostrou inspirado no estilo de pensamento da mecânica clássica e, com notável sucesso, adotou o paradigma paretiano do qual ainda hoje sofremos. Em 1936, na conferência da Econometric Society em Oxford, ele presidiu a abertura daquela exposição de arte islâmica que lhe trouxe fama instantânea.
Mas tudo isso aconteceu há muito tempo. O maduro Sir John Hicks, nosso contemporâneo, há muito renunciou às suas crenças iniciais e desmentiu sua filiação ao paradigma paretiano. Ele agora defende a autonomia metodológica da economia. “A economia, portanto, se está no limite das ciências (como vimos), também está no limite da história; voltado para os dois lados, está em uma posição-chave” (Hicks 1979, p. 4). Ele também agora se aproxima de Mises ao lembrar aos econometristas que:
Só que a economia está no tempo, de uma forma que as ciências naturais não estão. Todos os dados econômicos são datados, de modo que a evidência indutiva nunca pode fazer mais do que estabelecer uma relação que parece se manter dentro do período a que os dados se referem.
(Hicks 1979, p. 38)
O que é para ser feito? Embora algumas conclusões a serem tiradas do argumento apresentado pareçam óbvias, outras são menos facilmente discerníveis no momento.
Os austríacos devem se juntar aos não-austríacos em um esforço para coordenar as partes hermeneuticamente relevantes de suas respectivas tradições, uma tarefa que exige perspicácia histórica na seleção de partes apropriadas dessas tradições, bem como alguma destreza no manuseio de ideias. Em suma, a situação exige as habilidades típicas de um “corretor de ideias” que tem talento para encaixar ideias cognatas de várias origens. Os austríacos e seus aliados hermenêuticos também devem tentar estabelecer algum relacionamento com outros cientistas sociais e filósofos interessados em explorar temas semelhantes. A necessidade de uma “sociologia econômica” no estudo das instituições é um exemplo óbvio. Outra é a necessidade de chegar a um novo acordo entre a economia e a história à luz do que aprendemos recentemente com Hicks (a economia está “de frente para os dois lados, está em uma posição-chave”) e do que é, de qualquer forma, um corolário do ensinamento de Shackle.
Além do horizonte constituído por essas tarefas imediatas, surgem outros problemas, mais formidáveis, que terão de ser enfrentados no futuro.
O “processo de mercado” é um item importante na agenda do programa de pesquisa austríaco. O mercado, desnecessário dizer, oferece um exemplo particularmente fascinante de uma área de intersubjetividade na qual um grande número de homens interage uns com os outros na busca de suas necessidades e interesses variados. Exige tratamento por um método inspirado no estilo hermenêutico, método que desafia o espírito do formalismo ortodoxo. No que diz respeito à formação de preços (por exemplo, uma característica marcante do processo de mercado), os diferentes significados atribuídos a ela por diferentes grupos de participantes (em particular, formadores e tomadores de preços) chamam nossa atenção.
Em algum momento no futuro, o conceito de “plano” — uma noção hermenêutica fundamental, como vimos — terá que ser introduzido na teoria do consumo. Se as firmas fazem e executam planos, por que não as famílias?
O reino da economia não pode permanecer para sempre fechado aos raios do esclarecimento hermenêutico.
Referências
Hahn, F.H. (1975) ‘Revival of political economy: the wrong issues and the wrong argument’, Economic Record, Sept., p. 363.
Hicks, J.R. (1979) Causality in Economics, Oxford: Blackwell.
Hutchison, T.W. (1938) The Significance and Basic Postulates of Economic Theory,
London: Macmillan
Keynes, J.M. (1973, 1979) Collected Writings, vols. xiv (1973) e XXIX (1979).
Knight, F.H. (1940) ‘What is truth in economics?’, Journal of Political Economy 48
(February): 27–8
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