Em tese a democracia é balizada pela decisão da maioria. Sendo assim, o ponto crucial é considerar quais as características gerais dessa maioria. Analisando a conduta humana, percebemos que existe uma atitude natural nos indivíduos em buscar as melhores condições para suas próprias vidas, e, uma vez conquistadas tais condições, o próximo passo é querer preservá-las. É óbvio que nem todos terão os mesmos resultados, pois somos expostos às vicissitudes da vida, enfrentamos situações inesperadas e buscamos constantemente um porto seguro para aliviar toda essa carga de medo e incerteza. Mas, ainda assim, as pessoas em geral se mostram dispostas a correr riscos. Aqui temos o primeiro estágio: pessoas se apegam ao próprio esforço e, com grande sacrifício, buscam uma vida melhor. Não há garantias, mas em troca há muita liberdade.
É notório que sociedades livres e empreendedoras geram um alto nível de riqueza e satisfação geral e com o tempo a mentalidade popular passa a considerar cada vez mais que é imperdoável perder tais condições. Bem, uma vez atingido um nível satisfatório de riqueza, o próximo passo é preservar aquilo que veio às duras penas. Mas como garantir a perpetuação do bem-estar geral? Como enfrentar e neutralizar os percalços e contratempos de nossa existência? Imaginemos uma sociedade com princípios liberais, isto é, cuja mentalidade geral se sustenta em valores como livre iniciativa, meritocracia, autonomia individual, livre mercado e respeito às tradições. A princípio, essa sociedade parece “vacinada” contra igualitarismos, assistencialismos e intervencionismos de toda sorte.
Entretanto, a partir do momento que se busca preservar e estabilizar o bem-estar social, assegurar os direitos naturais e o modo laissez-faire não parece mais suficiente. Quando se experimenta a riqueza, a pobreza passa a provocar cada vez mais escárnio e indignação. Toda e qualquer falha e insucesso individual passa a ser admitida como uma falha do próprio sistema e atacada com virulência desproporcional. Para suprir as “incertezas” e “inconveniências” de uma sociedade livre, muitos se sentem impelidos a perseguir um ambiente menos propenso a mudanças e aparentemente mais seguro. É natural que seja assim. O apego ao conforto conquistado é tão grande que a satisfação geral só pode ser atingida com mais e mais garantias e certezas de bem-estar.
Aqui começamos a observar os crescentes clamores pela interferência estatal. Quando esse tipo de abordagem se torna consenso e a maioria passa a acreditar que os governos não devem se limitar a somente observar os direitos naturais, expandindo sua esfera de atuação e responsabilidade para outros tipos de “direitos”, a tendência é que a população rogue cada vez mais por uma gama ainda maior de direitos a serem concedidos, criando uma bola de neve. Afinal, quem não quer ter mais direitos, não é mesmo?
A inevitável contrapartida é que um direito adquirido acaba se tornando um dever para outrem. Nesse sentido, se serviços como saúde, educação, segurança, justiça, transporte e outros são vendidos como “direitos”, então caberia ao estado o dever de garanti-los. Para atender a demanda popular, o nível de interferência estatal terá que aumentar, os impostos se tornam maiores para custear todas as exigências e logo vemos os cidadãos obrigados a sustentar o peso tributário de suas próprias escolhas.
Mas não só isso. Se as pessoas querem, por exemplo, educação como “um direito garantido pelo estado”, então irremediavelmente deverão abrir mão de certas decisões concernentes ao tema. Isso inclui o próprio debate sobre como funcionará todo o sistema educacional, quais matérias serão aplicadas, quem irá lecionar e definir aquilo que será ensinado e aquilo que será relegado ao esquecimento.
A mesma lógica se aplica a outros tipos de serviços. Transferir a responsabilidade para o estado significa deixa-lo decidir o que será produzido, como será produzido e quem receberá o bem. E isso é um prato cheio para engenheiros sociais, tecnocratas e todos aqueles que podem se beneficiar de alguma forma aparato estatal. E aqui chegamos no estágio inicial de formação dos grupos de interesses especiais.
Aparentemente a democracia continuará “funcionando”, afinal as instituições continuam lá e as pessoas continuam votando. Tudo parece correr bem e dentro de um sistema “democrático”.
Entretanto, essa estrutura democrática por si só não garante a democracia; pelo contrário, pode servir como acelerador do totalitarismo. Por exemplo: um político, valendo-se da estrutura estatal, sabe que pode ofertar serviços e isso certamente vira moeda de troca em época de eleição. Então, com o intuito de chegar ao poder, ele promete direcionar determinados serviços para um público específico (seus apoiadores). E isso tudo sendo vendido como um “direito” garantido.
Se o estado é responsável por um serviço, então as pessoas que estão no poder determinarão quem o recebe. Um político pode muito bem criar um projeto para que professores não paguem entrada em museus, teatros, cinemas ou shows. Seu álibi será que o projeto serve para valorizar os profissionais da educação. Certamente quem é professor não irá se opor a um projeto assim, pois essa é a lógica de maximização de utilidade. Mas será que a maioria concorda em pagar mais caro para custear a “entrada grátis” de um grupo específico? Sendo contra ou não, pouco importa. O instrumento coercitivo já decretou que será assim. Aqui chegamos no estágio em que a opinião da maioria começa a ser substituída pouco a pouco pela defesa de interesses especiais.
É um processo erosivo e, por ser demasiado lento, poucos notam. Basta se questionar quantos direitos especiais existem, quantas classes recebem tratamento diferenciado, quem possui regalias ou “gratuidades” só por trabalhar nessa ou naquela profissão e muito provavelmente a maioria sequer concorda. Privilégios são concedidos, proteções são criadas, garantias são dadas e a maioria passa a ser excluída. Militares e professores se aposentam mais cedo, enquanto a maioria trabalha para sustenta-los.
O mesmo acontece com estudantes. Por que eles merecem pagar menos em shows, cinemas e transporte? A desculpa, novamente, é fomentar a educação. Mas por que exatamente um jovem abastado que estuda em escola particular pode pagar tickets mais baratos e um trabalhador pobre de meia-idade tem que pagar tudo integralmente? E percebemos que essas medidas foram asseguradas mesmo com voto popular, normalidade e continuidade das “instituições democráticas”, tudo passando legalmente por Congresso e sancionado pelo Executivo.
No fim, observamos uma estrutura aparentemente democrática, mas verdadeiramente totalitária. Pessoas votam, existe a separação dos poderes, movimentos sociais, liberdade de expressão, mas o povo se encontra chafurdado em uma estrutura que impõe tudo de cima para baixo, excluindo a maioria, premiando amigos do rei e garantindo a manutenção do status quo. Eis o pior tipo de totalitarismo: aquele que ninguém percebe e a maioria pensa ser livre.
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