Como e Como não Dessocializar

Tempo de Leitura: 18 minutos

Por Murray Rothbard

[Retirado de Economic Controversies, seç. 3, cap. 23]

Todos na Europa Oriental e na União Soviética estão aparentemente ansiosos para dessocializar, instituir mercados livres e privatização. Os planos proliferam e inúmeros economistas ocidentais estão sendo consultados sobre como realizar essa tarefa assustadora. É geralmente reconhecido que os burocratas estão obstruindo o processo, mas a confusão é abundante entre os próprios defensores do livre mercado. As questões são pouco ajudadas pelo fato de que os economistas ocidentais, a quem o antigo bloco oriental busca sabedoria, não fizeram praticamente nada para estudar, muito menos resolver, esse problema durante os sessenta anos desde que Stalin estabeleceu o socialismo na União Soviética e meio século desde que os soviéticos o impuseram à Europa Oriental. Desde meados da década de 1930, quase todos os economistas ocidentais aceitaram a visão de que não há problema de cálculo sob o socialismo, e a maioria aceitou a noção subsequente de que a economia soviética foi bem-sucedida e cresceu, e em breve ultrapassaria a dos Estados Unidos.[1]

Como não Dessocializar

Podemos primeiros clarear a maneira sobre como dessocializar examinando vários caminhos que tem se tornado populares, e ainda assim decididamente não são a maneira de chegar a nosso objetivo presumidamente comum.

Como não fazer a dessocialização pode ser destacado pela história de um amigo meu, que me contou recentemente sobre um colega soviético em seu departamento, que veio aos Estados Unidos para estudar diligentemente o problema de como criar um mercado de futuros na URSS. Ele foi frustrado pelo fato de que ele não consegue descobrir quais leis ou decretos o estado soviético deveria estabelecer, de modo a replicar o mercado de futuros nos Estados Unidos. Em suma, ele não consegue encontrar uma maneira de planejar um mercado de futuros. Aqui, então, está um ponto crucial: você não pode planejar mercados. Por sua própria natureza, você só pode libertar as pessoas para que possam interagir e trocar e, assim, desenvolver os próprios mercados. Da mesma forma, vários dos países socialistas, vendo a importância dos mercados de capitais no Ocidente, vêm tentando desenvolver bolsas de valores, mas com pouco sucesso. Primeiro, novamente, porque os mercados de ações não podem ser planejados e, segundo, porque, como veremos mais adiante, você não pode ter mercados de títulos de capital se ainda não houver praticamente nenhum proprietário privado de capital.

Não Implemente Gradualmente

É, novamente, geralmente aceito que os mercados livres devem ser alcançados rapidamente, e que sua introdução lenta e gradual apenas atrasará a meta indefinidamente. É bem sabido que a gigantesca burocracia socialista só aproveitará esse atraso para obstruir completamente a meta. Mas há outras razões importantes para a velocidade. Um, porque o livre mercado é uma teia ou rede interconectada; ela é composta de inúmeras partes que se entrelaçam intrinsecamente por meio de uma rede de produtores e empreendedores trocando títulos de propriedade, motivados pela busca de lucros e prevenção de perdas, e calculando por meio de um sistema de preços livre. Retardar, liberar apenas algumas áreas de cada vez, apenas imporá distorções contínuas que paralisarão o funcionamento do mercado e o desacreditarão aos olhos de um público já temeroso e desconfiado. Mas há também outro ponto vital: o fato de que você não pode planejar os mercados aplica-se também ao planejamento de sua implementação gradual. Por mais que possam se iludir de outra forma, os governos e seus conselheiros econômicos não estão na posição de sábios atletas olímpicos acima da arena econômica, planejando cuidadosamente instalar o mercado passo a passo, decidindo o que fazer primeiro, o que depois, etc. Os economistas e os burocratas não são melhores no planejamento de implementações graduais do que em ditar qualquer outro aspecto do mercado. Para alcançar a liberdade genuína, o papel do governo e de seus conselheiros deve se limitar a libertar seus súditos, tão rápido e completamente quanto for necessário para destravar seus grilhões. Depois disso, o papel próprio do governo e de seus conselheiros é sair e ficar fora do caminho dos súditos.

Não Reprima o Mercado Negro.

Um caminho para a liberdade que o ex-presidente Gorbachev adotou foi reprimir os vilões do mercado negro. Podemos concluir que a mentalidade do bloco oriental tem um longo caminho a percorrer para compreender a liberdade, exceto que existem poucos ocidentais que também entendem esse problema. Pois os comerciantes do mercado negro não são vilões; se às vezes parecem e agem como vilões, é apenas porque suas atividades empreendedoriais foram consideradas ilegais. O “mercado negro” é simplesmente o mercado, o mercado que os soviéticos reivindicam procurar, mas que se tornou “negro” precisamente porque foi declarado ilegal. É o mercado aleijado e distorcido, mas é lá, nesta área “negra” desprezada, que os soviéticos encontrarão o mercado com mais facilidade. Em vez de reprimi-los, então, os governos devem, imediatamente, libertar o mercado negro.

Não Confisque o Dinheiro das Pessoas

A União Soviética sofre com o problema da “excedente de rublos”, ou seja, muitos rublos perseguindo poucos bens. É geralmente admitido que o “excedente” é o resultado de uma fixação abrangente de preços, pela qual o governo fixou preços muito abaixo dos níveis de liquidação do mercado. Ao longo dos anos, o governo soviético imprimiu rapidamente dinheiro novo para financiar seus gastos, e este aumento da oferta monetária, juntamente com a oferta cada vez menor de bens, resultante do colapso do planejamento socialista, criou agravada escassez e um excesso de oferta de dinheiro sobre os bens disponíveis.

É geralmente reconhecido que a escassez será aliviada e o excedente eliminado, se os preços forem liberados para se movimentar. Mas o governo teme a ira de consumidores insatisfeitos. Talvez, mas dificilmente é uma solução fazer o que Gorbachev fez, ou seja, seguir o caminho pouco inspirado do presidente brasileiro de “livre mercado”, Collor de Mello, que na primavera de 1990, na tentativa de reverter a hiperinflação, congelou arbitrariamente 80% de todas as contas bancárias. Gorbachev se saiu melhor, tornando repentinamente inúteis todas as notas de rublo grandes, permitindo que apenas um pequeno número fosse trocado por domínios menores. Isso não é maneira de eliminar um excedente; na melhor das hipóteses, a cura é muito pior do que a doença. Em primeiro lugar, neste suposto ataque contra os comerciantes do mercado negro, foram as poupanlas do soviético médio que foram destruídas, já que os comerciantes do mercado negro foram astutos o suficiente para já terem se movido para metais preciosos e moeda estrangeira. Mas ainda mais importante: com esta ação, o governo desfere o segundo golpe de corpo de um soco duplo no cidadão médio e na economia. O primeiro golpe foi o governo inflacionar a oferta de dinheiro de modo a se envolver em seus gastos usuais e dispendiosos. Então, depois que o dinheiro foi gasto e os preços subiram –  de maneira aberta ou reprimida – então o governo, em sua sabedoria, começa a exclamar os horrores da inflação, culpa os comerciantes do mercado negro, consumidores gananciosos, os ricos ou o que quer que seja, e prossegue para o segundo golpe monstruoso de confiscar o dinheiro muito depois de ele ter vindo à donidade privada. Chamemos ou não esse processo de “livre mercado”, ele continua sendo confiscatório, injusto, estatista e um duplo conjunto de impostos e encargos implícitos sobre a economia.

Não Aumente os Impostos

Infelizmente, algumas dessas “lições’ que muitos leste-europeus têm absorvido dos economistas ocidentais é a alegada necessidade de aumentar acentuadamente impostos e os tornar progressivos. Os impostos são parasitários e estatistas; eles paralisam energias, poupanças e produção. Impostos invadem e agridem contra os direitos de propriedade privada. Quanto mais altos os impostos, mais a economia se torna socialista; quanto menor eles são, mais perto a economia se aproxima da verdadeira liberdade e da genuína privatização, significa um sistema de completos direitos de propriedade privada. A tentativa de Mazowiecki para alcançar a privatização e livres mercados na Polônia foi muito dificultada pela imposição de impostos muito mais altos e progressivos.

Como parte da mudança em direção à liberdade e à dessocialização, então, impostos devem ser drasticamente reduzidos, não aumentados.

Empresas Governamentais Sendo Donas Uma das Outras Não é Privatização

Devo ao Dr. Yuri Maltsev a informação de que o tão elogiado plano de Shatalin para a União Soviética, que supostamente traria a privatização e o livre mercado em 500 dias, realmente não era privatização. Aparentemente, existem empresas governamentais em cada indústria, em vez de serem realmente privatizadas – isto é, possuídas por indivíduos privados – seriam de propriedade (ou 80% de propriedade) de outras empresas na mesma indústria. Isso significaria que as gigantescas empresas monopolistas estatais continuariam a ser empresas monopolistas estatais e seriam oligarquias que se autoperpetuam, em vez de serem verdadeiramente de propriedade privada. Privatização deve significar propriedade privada.[2]

Como Dessocializar

O ponto que se segue da dessocialização deve necessariamente ser escrito ou lido sequencialmente, mas eles não precisam ser realizados dessa maneira: todos os pontos seguintes podem, e devem, ser instituídos imediatamente e de uma vez.

Legalize o Mercado Negro

Os dois primeiros princípios estão implícitos na parte anterior deste artigo. Um é legalizar o mercado negro, ou seja, tornar todos os mercados livres e legais. Isso significa que a propriedade privada de todos aqueles envolvidos em tais mercados deve, junto com todos os outros, ser protegida contra a depredação do governo, protegida como um direito de donidade. Significa também que todos os bens e serviços até então ilegais devem agora ser legais, sejam eles legais no Ocidente ou não, e que todas as transações devem ser realizadas livremente, ou seja, que os preços devem ser fixados voluntariamente pelas partes que trocam. Assim, todo controle de preços do governo deve ser abolido imediatamente. Se esses preços genuínos para transações reais forem mais altos do que os pseudo-“preços” estabelecidos pelo governo para transações inexistentes, que assim seja. A reclamação do consumidor deve ser simplesmente ignorada; quaisquer consumidores que ainda prefiram o regime anterior de preços fixos para bens inexistentes estarão, é claro, livres para boicotar os novos preços e tentar encontrar fontes de fornecimento mais baratas em outros lugares. Meu palpite, no entanto, é que os consumidores se ajustarão em breve a essas mudanças pontuais, especialmente porque uma abundância sem precedentes de bens de consumo se espalhará rapidamente pelos mercados.

Por “legalizar”, a propósito, quero dizer simplesmente abolir um status anterior de fora-da-lei; Não proponho me envolver em exercícios semânticos tentando distinguir entre “legalizar” e “descriminalizar”.

Reduzir Drasticamente Todos os Impostos

Outra implicação de nossa análise prévia é que a taxação deve ser cortada drasticamente. Existe, na literatura da taxação, longas discussões sobre que tipos de impostos devem ser impostos, e quem deve pagá-los e porquê, e não o suficiente sobre o montante ou a quantidade de impostos a serem cobrados. Se a taxa de imposto é baixa o suficiente, então a forma ou princípios da distribuição fiscal realmente faz muito pouca diferença. Para ser mais claro, se todas as taxas de impostos forem mantidas abaixo de um por cento, então realmente não importa muito economicamente se os impostos incidem sobre receitas, vendas, excises, propriedade ou ganhos de capital. É importante, em vez disso, focar em quanto do produto social deve ser desviado para a boca improdutiva do governo, e manter essa carga ultramínima.

Embora a forma de tributação não importasse economicamente, ainda importaria politicamente. Um imposto de renda, por exemplo, por menor que seja, ainda manteria um sistema opressor de polícia secreta pronta e disposta a investigar a renda e os gastos de todos e, portanto, toda a sua vida. Opinião dos economistas ao contrário, não há imposto ou sistema de impostos que possa ser neutro para o mercado.[3] Qualquer tributação que possa existir após a dessocialização deve, no entanto, ser o mais neutra possível. Isso significaria, além de taxas e valores muito baixos, que a tributação fosse tão discreta e inofensiva quanto possível, imitando o mercado o máximo possível. Tal imitação pode incluir a venda voluntária de bens e serviços a um preço, ou a fixação de um preço pela participação na votação. A venda de bens ou serviços pelo governo seria, naturalmente, drasticamente limitada em nosso sistema dessocializado, devido ao enorme alcance da privatização das atividades governamentais. A privatização será tratada a seguir.

Abolir a Capacidade do Governo de Criar Dinheiro

Há três partes na capacidade de qualquer governo de gerar receita: tributação, criação de dinheiro novo e venda de bens ou serviços.[4] Não pode haver o genuino livre mercado ou dessocialização contanto que o governo esteja permitido a falsificar o dinheiro, isso é criar dinheiro novo, sejam bilhetes de papel ou depósitos bancários, do nada. Tal criação de dinheiro server como uma oculta e traiçoeira forma de tributação e expropriação da propriedade e dos recurso de produtores. Acabar com a falsificação significa tirar o governo do mercado financeiro, que em vez implica eliminar ambos, o dinheiro papel do governo e o banco central. Isso tambem significa desnacionalizar unidades monetárias, como o rublo, florim, zloti, etc., e retornando-as as mãos do mercado privado. Desnacionalizar a moeda somente pode ser alcançada redefinindo as moedas de papel em termos de unidades de peso de um metal de mercado, de preferência ouro. Quando os bancos centrais são liquidados, eles podem vomitar seus tesouros de ouro; como seu último ato na terra, eles poderiam resgatar todos os seus bilhetes de papel com o peso redefinido em moedas de ouro.

Embora, dada a vontade de dessocializar, esse processo de desnacionalização monetária não seja tão complexo ou difícil quanto possa parecer à primeira vista, pode de fato demorar mais do que um dia necessário para as outras partes do nosso plano.[5] Poderia então haver etapas de transição de alguns dias de duração: ou seja, o rublo ou o florim poderiam flutuar livremente e ser conversíveis às taxas de câmbio do mercado em outras moedas. Ainda seria imperativo tirar o poder de criação de dinheiro das mãos do governo nacional; uma maneira possível de fazer isso, e um segundo passo de transição, seria tornar o rublo conversível em moedas mais fortes, como o dólar, a alguma taxa fixa. Na pendência do retorno a um padrão ouro puro e da liquidação do banco central, também seria importante restringir o poder do governo de criar dinheiro congelando permanentemente todas as atividades do banco central, incluindo operações de mercado aberto, empréstimos e emissão de notas. Não é preciso acrescentar que uma lei ou decreto limitando ou congelando o próprio governo não é um ato de intervenção na economia ou na sociedade. Pelo contrário.

Assim como os mercados negros e todos os mercados privados seriam liberados, as instituições de crédito privadas, para emprestar poupança ou canalizar a poupança de outros, seriam liberadas para se desenvolver.

Demita a Burocracia

Uma pergunta pode ter ocorrido ao leitor: se a tributação for drasticamente reduzida e o governo for privado de seu poder de imprimir ou criar dinheiro, então como o governo financiará seus gastos e operações? A resposta é: não precisaria, porque sobraria muito pouco para o governo fazer. (Isso será explicado mais adiante na discussão da privatização abaixo.) A economia socialista é uma economia de comando, composta e dirigida por uma burocracia gigantesca. Essa burocracia seria imediatamente demitida, seus membros finalmente liberados para encontrar empregos produtivos e desenvolver quaisquer habilidades produtivas que pudessem ter, no setor privado agora em rápida expansão e florescente.

Isso nos leva a um problema fascinante que, embora permanecendo por muito tempo no coração e nas mentes dos súditos oprimidos do socialismo, agora inesperadamente se tornou uma questão política viva. O que é para ser feito com a cadre superior do partido comunista, com a nomenklatura, com o vasto aparato da outrora todo-poderosa polícia secreta? A justiça deveria finalmente ser aplicada a eles por uma série de julgamentos de crimes de estado, seguidos de punição adequada e digna? Ou o passado deve ser passado, uma anistia geral ser declarada e ex-homens da KGB contratados como guardas particulares ou detetives? Confesso uma ambivalência nesta questão, ao ponderar as reivindicações concorrentes de justiça e de paz social. Felizmente, a decisão pode ser deixada para os povos da antiga União Soviética e da Europa Oriental. Não há muito que um economista, mesmo um economista de livre mercado, possa dizer para resolver essa questão.

Privatizar ou Abolir as Operações Governamentais

Isso nos leva ao princípio final, mas não menos importante, da nossa plataforma de dessocialização proposta: privatizar as operações do governo. Como teoricamente a totalidade, ou na prática a maior parte, da produção nos países socialistas esteve nas mãos do Estado, o desiderato mais importante, o caminho crucial para alcançar um sistema de propriedade privada e livre mercado, deve ser privatizar as operações governamentais.

Mas simplesmente dizer “privatize” não é suficiente. Em primeiro lugar, há muitas operações governamentais, especialmente em estados socialistas, que não queremos privatizar, mas sim abolir completamente. Por exemplo, não desejaríamos, como libertários e dessocializadores, privatizar os campos de concentração, ou o Gulag, ou a KGB. Deus nos livre de que tenhamos uma oferta eficiente de “serviços” de campos de concentração ou de polícia secreta!

Aqui está um ponto que precisa ser enfatizado. A suposição básica da renda nacional e a análise PNB é que todas as operações do governo são produtivas, que elas contribuem suas despesas para a

produção nacional e o bem-estar comum. Mas se nós verdadeiramente acreditarmos na liberdade e na propriedade privada, devemos concluir que algumas dessas operações não são “serviços” sociais,mas desserviços para a economia e a sociedade, “males” em vez de “bens”.

Isso significa que a dessocialização deve envolver a abolição, não a privatização de tais operações como (em adição aos campos de concentração e facilidades da polícia secreta) todas as comissões reguladoras, bancos centrais, agências de imposto de renda e, é claro, todas as agências administrando essas funções que vão ser privatizadas.[6]

Princípios da Privatização

Bens e serviços genuínos, então, devem ser privatizados. Como isso deve ser realizado? Em primeiro lugar, a competição privada com monopólios governamentais anteriores deve ser livre e desimpedida. Isso legalizaria não apenas o mercado negro, mas toda a concorrência com as operações governamentais existentes. Mas o que dizer da acumulação massiva de empresas governamentais e dos próprios bens de capital? Como serão privatizados?

Várias rotas possíveis foram sugeridas, mas elas podem ser agrupadas em três tipos básicos. Uma são brindes igualitários. Todo cidadão soviético ou polonês recebe um dia pelo correio uma alíquota da donidade de várias propriedades anteriormente estatais. Assim, se a siderurgia XYZ for de propriedade privada, então, se houver 300 milhões de ações de emissão da empresa siderúrgica XYZ e 300 milhões de habitantes, cada cidadão recebe uma ação, que imediatamente se torna transferível ou trocável à vontade. Que este sistema seria impossivelmente desajeitado é evidente. O número de pessoas seria grande demais e as ações muito poucas para permitir que cada pessoa tivesse uma ação, e haveria ações de números e variedades inumeráveis ​​que cairiam rapidamente sobre a cabeça do cidadão médio. Grande parte desse caos seria eliminado na sugestão do ministro da fazenda tcheco Vaclav Klaus, que propõe que cada cidadão receba certificados básicos, que poderiam ser trocados por um certo número ou variedade de ações de donidade de várias empresas no mercado.

Mas mesmo sob o plano Klaus, existem graves problemas filosóficos com essa solução. Ele consagraria o princípio de brindes do governo, e brindes igualitários, para cidadãos indignos. Assim, um princípio infeliz formaria a própria base de um novo sistema de direitos de propriedade libertários.

Seria muito melhor consagrar o venerável princípio de apropriação original até a base do novo sistema de propriedade dessocializado. Ou, para reviver o antigo slogan marxista: “todas as terras para os camponeses, todas as fábricas para os trabalhadores!” Isso deve estabelecer o princípio básico lockeano que a donidade de propriedade possuida deve ser adquirida ao “misturar seu trabalho com o solo” ou com outros recursos sem dono. Dessocialização é um processo de privar o governo de sua existente “donidade” ou controle, e devolvendo-o a indivíduos privados. Em um sentido, a abolição da donidade do governo de ativos os coloca imediatamente e implicitamente em um status sem dono, do qual a apropriação original anterior pode rapidamente convertê-los em uma doninade privada. O princípio de apropriação original afirma que esses ativos devem ser devolvidos, não ao público geral abstrato como no princípio de brinde, mas àqueles que realmente trabalharam sobre esses recursos: isto é, seus respectivos trabalhadores, camponeses e gerentes. É claro que esses direitos devem ser genuinamente privados; isto é, terra para camponeses individuais, enquanto bens de capital ou fábricas vão para trabalhadores na forma de ações privadas e negociáveis. A donidade não deve ser concedida a coletivos ou cooperativas ou trabalhadores ou camponeses de forma holística, o que apenas traria de volta os males do socialismo de uma forma sindicalista descentralizada e caótica.

Não é preciso dizer que essas ações de donidade, para serem verdadeiramente propriedade privada, deve ser transferíveis e cambiáveis à vontade por seus titulares. Muitos planos atuais nos países socialistas imaginar “ações” que devem ser detidas pelo trabalhador ou camponês e, por um período de anos, só podem ser vendidas de volta ao governo. Isso claramente viola o próprio ponto da dessocialização. Outro plano sugerido impôs severas restrições sobre a transferência da donidade para estrangeiros. De novo, a genuína privatização requer a completa propriedade privada, incluindo a venda para estrangeiros. Há, além do mais, nada de errado com “vender o país” para estrangeiros. De fato, quanto mais os estrangeiros compram “o país”, melhor, pois isso significaria injeções rápidas de capital estrangeiro e, portanto, prosperidade e crescimento econômico mais rápidos no empobrecido bloco socialista.

Um problema imediatamente surge ao conceder ações para trabalhadores nas fábricas, um problema semelhante à questão do que é para ser feito com as cadres comunistas e a KGB: a nomenklatura gestora deve ser cortada nas ações de donidade? Ao aconselhar os soviéticos em um discurso em Moscou no início de 1990, o economista Paul Craig Roberts observou que o povo soviético poderia cortar a garganta da nomenklatura ou cortá-la em ações de donidade; em prol da paz social e da transição suave para uma economia livre, ele recomendou o último. Como escrevi acima, eu não seria tão rápido em frustrar as exigências da justiça; mas gostaria de apontar novamente um terceiro caminho possível: não fazer nenhum dos dois, e liberar a nomenklatura para encontrar empregos produtivos no setor privado. O ponto filosófico em disputa é até que ponto, se é que foram, as atividades dos gerentes na velha economia soviética eram produtivas e, portanto, participantes do trabalho de apropriação original, e até que ponto eram incapacitantes e contraproducentes e, portanto, merecedoras de nada melhor do que uma demissão rude.[7]

A terceira rota comumente sugerida para a privatização merece ser rejeitada de imediato: que o governo venda todos seus ativos para o público em leilão, para o maior licitante. Um grave erro dessa abordagem é que uma vez que o governo possui praticamente todos os ativos, onde o público conseguiria dinheiro para comprá-los, exceto por um preço muito baixo que seria equivalente à distribuição gratuita? Mas outro, até mais importante erro não foi suficientemente enfatizado: por que o governo merece possuir a receita da venda desses ativos? Afinal, um dos principais motivos da dessocialização é que o governo não merece possuir os ativos produtivos do país. Mas se não merece possuir os ativos, por que no mundo merece possuir seu valor monetário? E nem sequer consideramos a questão: o que o governo supostamente deveria fazer com os fundos depois de recebidos?[8]

Um quarto princípio de privatização não deve ser negligenciado; na verdade, deveria ter prioridade. Infelizmente, pela natureza do caso, esta quarta via não pode ser transformada num princípio geral. Isso seria para o governo devolver todas as propriedades roubadas e confiscadas a seus donos originais ou a seus herdeiros. Embora isso possa ser feito para muitas parcelas de terra, que são fixadas em área de terra, ou para joias particulares, na maioria dos casos, especialmente bens de capital, não há donos originais identificáveis ​​para quem restaurar a propriedade.[9] Pela natureza do caso, encontrar proprietários originais de terras é mais fácil na Europa Oriental do que na União Soviética, já que muito menos tempo se passou desde o roubo original. No caso de bens de capital construídos pelo Estado, não há donos a identificar. A razão pela qual este princípio deve ter prioridade onde quer que se aplique é porque os direitos de propriedade implicam, acima de tudo, a restituição dos bens roubados aos donos originais. Ou, em outras palavras: um ativo torna-se filosoficamente sem dono e, portanto, disponível para ser apropriado, apenas onde um proprietário original, se existir, não pode ser encontrado.

Há um problema persistente: qual deve ser o tamanho das novas empresas privadas? Todas as indústrias nos países socialistas geralmente estão presas a uma empresa monopolista, de modo que, se cada empresa for privatizada em uma empresa de tamanho equivalente, o tamanho de cada uma será muito maior do que o ótimo no livre mercado. Um problema fundamental, é claro, é que não há como ninguém em uma economia socializada descobrir qual será o tamanho ótimo ou o número de empresas sob liberdade. Em certo sentido, é claro, os erros cometidos na mudança para a liberdade tenderão a se resolver depois que um livre mercado for estabelecido, com tendências a se fragmentar ou se consolidar na direção de tamanho e número ótimos. Por outro lado, não devemos cometer o erro de presumir alegremente que os custos ou ineficiências desse processo podem ser desconsiderados. Seria preferível chegar o mais próximo possível do ótimo na privatização inicial. Talvez cada fábrica, ou cada grupo de fábricas em uma área, possa ser inicialmente privatizada como uma empresa separada. Escusado será dizer que um aspecto muito importante de um livre mercado e desse processo de otimização é permitir que o mercado funcione com total liberdade: e.g., fundir, combinar ou dissolver empresas conforme for lucrativo.

Conclusão

As dimensões do Plano Rothbard proposto para a dessocialização devem agora ser claras: (1) Enormes e drásticas reduções de impostos, emprego governamental e gastos governamentais. (2) Privatização completa dos ativos do governo: quando possível, devolvê-los aos proprietários originais expropriados ou seus herdeiros; na falta disso, conceder ações aos trabalhadores e camponeses produtivos que trabalharam nesses ativos. (3) Honrando os direitos de propriedade completos e seguros para todos os donos de propriedade privada. Uma vez que os direitos de propriedade plenos implicam a total liberdade de fazer trocas e transferir propriedade, não deve haver interferência do governo em tais trocas. (4) Privar o governo do poder de criar dinheiro novo, melhor feito por uma reforma fundamental que ao mesmo tempo liquide o banco central e use seu ouro para resgatar suas notas e depósitos em uma unidade recém-definida de peso de ouro de moedas existentes. Tudo isso poderia e deveria ser feito em um dia, embora a reforma monetária pudesse ser feita em etapas que levariam alguns dias.

Um ponto que não especificamos: exatamente quão baixos devem ser os impostos ou o emprego ou os gastos do governo, e quão completa deve ser a privatização? A melhor resposta é a do grande Jean-Baptiste Say, que deveria ser conhecido por muitas outras coisas além da Lei de Say: “O melhor esquema de finanças [públicas] é gastar o mínimo possível; e o melhor imposto é sempre o mais leve.”[10] Em suma, é melhor aquele governo que gasta e tributa e emprega menos, e privatiza mais.

Um ponto final: tenho sido criticado por colegas libertários por propostas desse tipo porque envolvem ação do governo. Não é inconsistente e estatista para um libertário defender qualquer ação do governo? Isso me parece um argumento bobo. Se um ladrão roubou a propriedade de alguém, dificilmente é uma “ação de roubo” defender que o ladrão despeje sua propriedade roubada e a devolva aos seus donos. Em um estado socialista, o governo se arrogou praticamente todas as propriedades e poder do país. A dessocialização, e um movimento para uma sociedade livre, necessariamente envolve a ação desse governo de entregar sua propriedade a seus súditos privados e libertar esses indivíduos da rede de controles do governo. Em um sentido profundo, livrar-se do estado socialista exige que esse estado realize um ato final, rápido e glorioso de autoimolação, após o qual ele desaparece de cena. Este é um ato que pode ser aplaudido por qualquer amante da liberdade, por mais que seja um ato do governo.


[1] Murray N. Rothbard, “Ludwig von Mises and the Collapse of Socialism”, proferido na reunião anual da Allied Social Science Association, em Washington, D.C., 1990, e publicado como “The End of Socialism and the Calculation Debate Revisited”, Review of Austrian Economics 5, n.º 2 (1991): 51-76; incluído neste volume como o capítulo 44.

[2] Maltsev escreve: “Quando os soviéticos dizem privatização, no entanto, eles não querem dizer o que dizemos com o termo. O plano [Shatalin] exigiria que 80% das ações de qualquer empresa fossem de propriedade de outras empresas do mesmo campo, não do público. Para usar uma analogia dos EUA, seria como se a General Motors possuísse 80% das ações da Ford e vice-versa, e fosse ilegal tê-lo de outra forma.” Maltsev observa que Stanislav Shatalin e o autor original de seu plano para a República Russa, Grigory Yavlinsky, “são ambos econometristas cujas […] vidas foram gastas a anatematizar as ilusões do marxismo-leninismo. Ambos são planejadores centrais de longa data que ficaram desiludidos com o socialismo completo. Yuri N. Maltsev, “A 500-Day Failure?” The Free Market 8 (novembro de 1990): 6.

[3] Veja Murray N. Rothbard, “The Myth of Neutral Taxation”, Cato Journal 1 (outono de 1981): 519–84; incluído neste volume como o capítulo 24.

[4] Uma quarta forma de receita, o empréstimo do público, é estritamente dependente das outras três fontes.

[5] Veja Yuri N. Maltsev, “A One Day Plan for the Soviet Union”, Antithesia 2 (janeiro/fevereiro de 1991): 4, e no relato anterior, “The Maltsev One-Day Plan”, The Free Market (novembro de 1990): 7.

[6] É importante perceber que, se uma atividade governamental é ruim em vez de boa, gostaríamos que seu exercício, enquanto existisse, fosse o mais ineficiente do que o mais eficiente possível. Uma das organizações mais odiadas no início da Europa moderna era o “agricultor fiscal”, que comprou do rei o direito de coletar impostos por um certo período de anos. Podemos considerar: gostaríamos que os impostos de renda fossem privatizados e cobrados, totalmente armados com o poder do Estado, pela IBM ou McDonald’s, em vez do IRS? O industrial Charles F. Kettering supostamente animou um amigo no hospital, que se queixava do crescimento acelerado do governo: “Anime-se, Jim, graças a Deus não temos tanto governo quanto pagamos.”

[7] Yuri Maltsev recomenda a adoção do plano de apropriação original, com o esquema de distribuição de Vaclav Klaus a ser adotado em casos onde a apropriação original não seria viável. Maltsev, “A One-Day Plan For the Soviet Union”.

[8] Um dos principais argumentos para o governo vender seus ativos é que esse processo teria o efeito anti-inflacionário de absorver o temido “excedente de rublos”. A falácia neste argumento flagrante é que, a menos que os funcionários do governo proponham uma fogueira pública em massa dos rublos, o excedente não seria reduzido. O governo gastaria os rublos e eles permaneceriam em circulação.

[9] Na Hungria, o Partido dos Pequenos Proprietários foi formado para enfatizar a prioridade na privatização para devolver a terra aos proprietários expropriados do sul da Hungria.

[10] Jean-Baptiste Say, A Treatise on Political Economy, 6ª ed. (Philadelphia: Claxton, Remsen & Haffelfinger, 1880), p. 449. Veja também Rothbard, “The Myth of Neutral Taxation”, pp. 551–54.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *