É o Aborto Moralmente Correto?

Tempo de Leitura: 10 minutos

Uma Análise Crítica da Postura de Peter Singer

INTRODUÇÃO

Aborto é um assunto em constante debate nos dias atuais, e, infelizmente, o foco da discussão tem sido direcionado a uma mera questão de natureza social. Todavia, o debate acadêmico em torno desse tema, ao qual o público em geral, e não apenas o público leigo, está complemente alheio, foca-se numa resposta à única e derradeira pergunta “É o feto uma pessoa?”.

A resposta para essa pergunta é de essencial importância, pois, tem sido assumido como um axioma base, por qualquer sistema jurídico eticamente aceitável, o respeito aos direitos individuais, incluindo o respeito pelo direito à vida. Logo, muitos eticistas de renome, e.g. Peter Singer, Jeff Mcmaham, Michael Tooley, entre outros, concordam que, uma vez que o feto é uma pessoa, seus direitos devem ser resguardados.

Peter Singer, tem apresentado inúmeros argumentos a favor da despessoalização do feto, a fim de que, com isso, o aborto, em quaisquer circunstâncias, seja descriminalizado. Portanto, é necessária não uma análise dos argumentos apresentados por Singer, mas dos seus próprios pressupostos usados para calcar seus argumentos. Uma vez que tais pressupostos são derrubados, derrubar-se-á, igualmente, qualquer estrutura argumentativa construída sobre tais pressupostos.

ABORTO E PRESSUPOSIÇÕES ÉTICAS

Peter Singer, eticista australiano, sem dúvida alguma, é um dos mais proeminentes ativistas a favor do aborto. Sua posição tem por base pressuposições éticas, ou seja, sua militância pró-aborto tem como base a teoria ética normativa conhecida como utilitarismo. Apesar de o utilitarismo poder ser dividido em três vertentes – preferencial, hedonista e pluralista – o utilitarismo a ser tratado será o preferencial, devido ao endosso do mesmo por Singer.

Segundo o utilitarismo preferencial, em bases subjetivas, o objetivo das ações morais é a satisfação dos desejos ou anseios que expressam preferências individuais (CRAIG, MORELAND, 2005, p. 531). Porém, tal teoria descamba para uma forma de relativismo quando é usado para especificar bondade com o propósito de guiar uma ação. Porque quando alguém tenta usar o princípio para determinar qual ação tomar, qualquer ação pode ser justificada, contanto que satisfaça as preferências particulares do indivíduo.

Se alguém deseja ser um molestador de crianças ou quer praticar algum tipo de auto-reprovação, então, segundo esse conceito, tal ato é apropriado, por poder maximizar a satisfação dos desejos individuais. A teoria não pode responder ao simples fato de que as pessoas podem ter preferências moralmente inaceitáveis como o desejo de cometer genocídio (CRAIG, MORELAND, 2005, p. 532).

Todavia, alguns utilitaristas – e.g. Singer e Hare – defendem que o utilitarismo preferencial tem como objetivo a satisfação dos desejos individuais racionalmente desejáveis. Dessa forma, eles visam evitar o problema do relativismo, acentuando que o utilitarismo não é responsável pela resolução dos problemas da estupidez universal. Noutras palavras, o conceito das preferências subjetivas simplesmente leva em consideração as preferências racionais (CRAIG, MORELAND, 2005, p. 532).

No utilitarismo preferencial de Singer, o interesse de um indivíduo não deve ser maior do que o outro e os interesses desse indivíduo devem levar em conta todos os indivíduos que serão afetados pela decisão dele, ou seja, visa que uma ação ética seja adequada para todos os envolvidos na ação tomada ao longo do tempo (SINGER, 2002, p.22).

Porém, existem, igualmente, problemas com essa versão do utilitarismo preferencial defendida por Singer. Primeiro, um ser é capaz de ter interesses apenas se possuir racionalidade. Portanto, um ser desprovido de qualquer razão, é um ser desprovido de interesses. Segundo, se tal ser é desprovido de interesses, então, lhe infligir mal não é moralmente errado. Isso é justamente a justificativa dada por Singer ao aborto, não somente ao aborto, como, igualmente, ao infanticídio (COOK, 2012, s\d).

Porém, como foi demonstrado mais acima com o utilitarismo de preferência subjetiva, o utilitarismo endossado por Singer leva, igualmente, a absurdos morais. A titulo de exemplo, matar uma pessoa dormindo não seria moralmente errado, visto que, quando dormimos perdemos, momentaneamente, nossos sentidos, e somos incapazes de ter interesses. Dopar uma mulher e estuprá-la dormindo não seria errado, visto que, durante esse período em que ela encontrar-se-ia desprovida de seus sentidos, ela também encontrar- se-ia desprovida de ter interesses.

Claro, alguns utilitaristas, assim como Singer, diriam que o importante não é ter interesses a todo instante, mas em longo prazo, ou seja, alguém dormindo não exerce a capacidade de ter interesses naquele exato momento, porém, ele a exercerá ao acordar- se. Todavia, isso é um tiro no próprio pé. Pois um feto, ou um neonato de algumas semanas, não tem interesses durante o seu desenvolvimento, porém, tal capacidade está lá, ou seja, ele apenas ainda não a exerce por imaturidade.

Uma segunda objeção seria que um ser humano adulto, uma vez que exerce a capacidade de ter interesses, mesmo que tenha instantes que fique desprovido de tal exercício, ainda mantém sua identidade como pessoa, pois, possui o aparelhamento cognitivo necessário para racionalidade, e, por sua vez, para ter interesses. Todavia, essa objeção caracteriza-se como um ad hoc. Primeiro, que não está demasiadamente claro o porquê ter interesses é a prerrogativa necessária para ter direito à vida. Segundo, existem acidentes em que a vitima tem seu aparelhamento cognitivo danificado, isto é, ele fica, não temporariamente, mas interminavelmente desprovido do exercício de ter interesses. Logo, segundo os critérios dados por Singer, infligir qualquer tipo de sofrimento, a uma pessoa que encontra-se nesse estado, não seria moralmente errado.

A NATUREZA DAS TEORIAS DA IDENTIDADE PESSOAL

Antes de tratar de qualquer Teoria sobre Identidade Pessoal per se é necessária uma explanação a respeito da natureza das Teorias da Identidade Pessoal. Teorias sobre a identidade pessoal dividem-se em duas vertentes: o dom e a realização (KACZOR, 2015, p. 93). A versão por dom é inclusiva, ao passo que, a versão por realização é exclusiva. Ou seja, teorias sobre identidade pessoal que não consideram a pessoalidade como um dom elencam critérios diversos que são usados como prerrogativas para pessoalidade – e.g. estética, desejabilidade, produtividade, atividade cerebral, linguagem, idade, saúde, religião, raça, fertilidade. Há uma nítida discordância no que tange ao que confere, a um determinado ser, o status de pessoa. Essa discordância é extremamente nociva ao que entendemos como dignidade, pois, dependendo do critério a ser elencado, há, sempre, um número determinado de seres, que, intuitivamente, os conferimos pessoalidade, que acaba por ficar excluído. A titulo de exemplo, se a pessoalidade é tomada como a capacidade de fala, ou seja, a capacidade de expressar-se mediante uma linguagem inteligível, então, seres humanos com problemas mentais, bebês de até determinada idade, não são pessoas, e, portanto, não possuem direito à vida. Porém, sabemos intuitivamente que tais seres humanos são pessoas, mesmo que ainda não possam se expressar mediante uma linguagem. Muitos defensores do aborto reconhecem o grave problema, por exemplo, McMahan:

It is unthinkable to abandon our egalitarian commitments, or even to accept that they might be justifi ed only in some indirect way— for example, because it is for the best, all things considered, to treat all people as equals and to inculcate the belief that all are indeed one another’s moral equals, even though in reality they are not. Yet the challenges to the equal wrongness thesis, which is a central element of liberal egalitarian morality, support Mulgan’s skepticism about the compatibility of our all- or-nothing egalitarian beliefs with the fact that the properties on which our moral status appears to supervene are all matters of degree. It is hard to avoid the sense that our egalitarian commitments rest on distressingly insecure foundations (MCMAHAN, 2008, s\d).

A visão de pessoalidade por dom, como foi dito acima, é inclusiva, justamente por evitar tais problemas. A inclusividade advém do fato da pessoalidade por dotação ser algo intrínseco ao ser que a possui. Ou seja, se determinado ser é uma pessoa, então, ele é em todos os momentos da sua vida, e isso independe da sua capacidade cognitiva, isto é, um bebê, mesmo sendo incapaz de falar, expressar-se de alguma maneira, é uma pessoa pelo simples fato de ser um membro de um conjunto de seres racionais e livres.

Nós, seres humanos, somos a única espécie capaz de expressar razão. Portanto, pertencemos a esse conjunto de seres racionais e livres. Um bebê humano, um embrião, feto, ou mesmo pessoas com portadoras de deficiência mental, por mais que não expressem razão, são considerados pessoas pelo simples fato de possuir essa capacidade, não potencialmente, mas intrinsecamente, e a não expressão de tal capacidade advém da imaturidade – embriões, feto, neonatos -, ou de cicatrizes patológicas – pessoas com portadoras de deficiência mental.

Vale salientar que a pessoalidade por dotação não é uma visão religiosa confessional, mas está antes implícita na medicina (vide o conceito de patologia). Patologia é incapacidade, inadequação ou falha em realizar uma disposição que, nas circunstâncias relevantes, pode e deve ser realizada, dada a dotação do ser em pauta. Pássaros não podem falar, mas nem por isso estão sofrendo de patologia. Um ser humano que, devido a um acidente, não pode falar, está sofrendo de patologia física ou mental. Nesse sentido, a medicina apela e tem apelado para dons que um determinado ser pode e deve ser capaz de atuar, dadas as condições requeridas.

À luz da pessoalidade por dotação, incorre-se em violação de direitos quando alguém, intencionalmente, dificulta o desabrochar humano. Matá-lo impede seu desabrochar porque estar vivo é necessário para fazê-lo, e faz parte do seu florescimento. Assim, é ruim se alguém te matar. Assim, é ruim matar qualquer outro ser que partilha um florescimento como o seu. Essa norma então excluiria a morte intencional de todos os seres humanos inocentes e de todo outro ser que partilha um florescimento como o seu.

A TEORIA DA CONTINUIDADE-MENTAL

A Teoria da Continuidade-Mental é uma teoria por realização, ou seja, entende que um ser instância pessoalidade quando passa a funcionar de uma determinada maneira. Singer é um de seus maiores defensores. Seguindo-o, outros filósofos, como Dworkin e Mcmahan, igualmente, endossam essa teoria. Essa concepção de identidade pessoal pressupõe que “eu” sou apenas minhas concepções, memórias ou pensamentos, não minha existência corpórea. Conforme Kaczor:

Indeed, we know we are the same person each day not because we wake up, look in the mirror, and see the same body, but because our desires, memories, expectations, and mental life are continuous from one day to the next. It is possible to imagine scenarios of waking up in another person’s body or with another person’s memories. In these science fi ction worlds, you might wake up tomorrow, look in the mirror, and see the face and body of Arnold Schwarzenegger staring back. He might wake up and fi nd himself looking in the mirror at what you now take to be your body. On this view of personal identity, my body, which predates my conceptions, memories, or thoughts, is something else that does not count as “me” (KACZOR, 2015, p. 108).

Porém, é digno de nota que se tal teoria estivesse correta, ao atacar o corpo de uma pessoa , seja por estupro, tortura ou mutilação, o agressor não estaria, de fato, causando dano à pessoa per se, mas diretamente faria dano ao que se consideraria propriedade da pessoa ou organismo humano em que ela mora. Estupro, tortura, mutilação apenas indiretamente, dada tal concepção de identidade pessoal, causaria mal às pessoas, interferindo de forma negativa em seus planos e metas da sua consciência.

Se alguém dilacerasse meu braço, por exemplo, não é exato dizer que alguém fez dano a mim, mas simplesmente a algo que tenho e de que faço uso. Destruir meu carro, que é uma propriedade minha, é uma coisa, dilacerar meu tendão de Aquiles é bem outra. Estupro, tortura, mutilação fazem dano direto às pessoas, além de interferir nos seus planos, metas e perspectivas.

Essa proposta de identidade pessoal enfrenta ainda duas objeções – descobertas no século XVIII por Sergeant e Berkeley (BEHAN, 1979, s\d), mas mais notoriamente discutidas por Reid e Butler (PERRY, 1972, s\d) – Primeiro, suponha que um jovem estudante receba uma falta por ter se atrasado para sua aula de direito tributário.

Mais tarde, como advogado de meia-idade, ele se lembra desse episodio. Mais tarde ainda, em sua caducidade, ele se lembra de sua carreira como advogado, mas esqueceu-se inteiramente do episodio supracitado, além de tudo o que ele fez em sua juventude. De acordo com o critério de memória, o jovem estudante é o advogado de meia-idade, o advogado é o homem idoso, mas o homem idoso não é o jovem estudante. Este é um resultado impossível: se x e y são um e y e z são um, x e z não podem ser dois. Identidade é transitiva; continuidade de memória não é. Ponderando tal problema, diz Kaczor:

[…]For instance, no man could say, “I was circumcised,” unless his circumcision took place after he began to remember. “When were you born?” asks the shopkeeper checking the age of someone wanting to buy alcohol. “Well, actually, I wasn’t born. In fact, you were not born either. Indeed, I don’t know a single person who was born.” The shopkeeper would have reason for thinking someone giving such an answer had already had quite enough to drink (KACZOR, 2015, p. 136).

Segundo, parece pertencer à própria ideia de lembrar que você pode se lembrar apenas de suas próprias experiências. Lembra-se de ter se atrasado para uma aula (ou a experiência de ter se atrasado) é se lembrar de atrasar. Isso torna trivial e pouco informativo dizer que você é a pessoa cujas experiências você pode lembrar – isto é, que a continuidade da memória é suficiente para a identidade pessoal. Não é informativo porque você não pode saber se alguém genuinamente se lembra de uma experiência passada sem saber se ele é quem a teve. Suponha que nós queremos saber se João, que existe agora, é o mesmo que Paulo, que sabemos que existiu em algum momento no passado. O critério da memória nos diz que João é Paulo apenas se João agora se lembra de uma experiência que Paulo teve naquela época. Mas o fato de João parecer se lembrar de uma das experiências de Paulo conta como memória genuína apenas se João for realmente Paulo. Então já deveríamos ter que saber se João é Paulo antes de podermos aplicar o princípio que deve nos dizer se ele é.

Uma possível solução para o primeiro problema é modificar o critério de memória trocando de conexões diretas de memória para indiretas: o homem velho é o jovem estudante porque pode lembrar-se de experiências que o advogado teve no momento em que o advogado lembrava-se da vida de estudante. O segundo problema tem como possível solução substituir a memória por um novo conceito, “retrocognição” ou “quase-memória”, que é como a memória, mas sem o requisito de identidade: mesmo que seja auto-contraditório dizer que você se lembra de fazer algo que não fez, mas alguém fez, você ainda pode “quase lembrar”. Porém, ambas as soluções são inviáveis, como diz Olson:

Neither move gets us far, however, as both the original and the modified memory criteria face a more obvious problem: there are many times in one’s past that one cannot remember or quasi- remember at all, and to which one is not linked even indirectly by an overlapping chain of memories. For instance, there is no time when you could recall anything that happened to you while you dreamlessly slept last night. The memory criterion has the absurd implication that you have never existed at any time when you were unconscious. The person sleeping in your bed last night must have been someone else (OlSON, Eric.T. 2015, s\d)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após exposição crítica quanto às pressuposições éticas, assumidas por Singer, foi possível estabelecer que tais pressuposições, em favor do aborto, são falsas. Do mesmo modo, foi possível observar que sempre incorrem em critérios arbitrários e excludentes, que solapam, injustificadamente, os direitos de seres humanos. Tais pressuposições, inequivocamente, se assumidas, estabelecem valores diferentes para seres humanos, ao passo que se diz, contraditoriamente, que estes são iguais perante a lei. À medida que valores diferentes são dados aos seres humanos, tem-se uma hierarquia de tratamento e de direitos, o que vai contra os princípios mais fundamentais da humanidade – dignidade e igualdade – tão bem expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BEHAN, David P., 1979. Locke on Persons and Personal Identity. Canadian Journal of Philosophy, 9: 53–75.

CRAIG, W, L. MORELAND, J, P. Filosofia e Cosmovisão Cristã: 1. ed. São Paulo : Vida Nova, 2005.

COOK,      Michel.      Peter     Singer      on      abortion      2012.      Disponível                  em <https://www.bioedge.org/bioethics/peter_singer_on_abortion/10287>. Acesso em 01 de Agosto de 2018.

SINGER, Peter. Ética Prática: 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MCMAHAM, Jeff. Challenges To Human Equality. The Journal of Ethics 12(1) 81-104, 2008.

OLSON, Eric T. Personal Identity, The Stanford Encyclopedia of Philosophy  (Summer 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = https://plato.stanford.edu/archives/sum2017/entries/identity-personal/ Acesso em 01 de Agosto de 2018.

PERRY, John., 1972. Can the Self Divide?. Journal of Philosophy, 69: 463–488. KACZOR, Chistopher. The ethics of abortion : women’s rights, human life, and the question of justice: 2. Ed. EUA: Routledge annals of bioethics, 2015.

Um comentário

  1. Não é uma pessoa não, é uma rocha.

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