Nesses tempos de pandemia tenho visto algo curioso: a dicotomia entre saúde e economia. Preciso dizer, logo de cara, que tal dicotomia é falsa e muitos caem nesse raciocínio falho pelo desconhecimento da economia. O senso comum indica que falar em economia é falar apenas em lucro, ganância, poder, dinheiro… Ledo engano. Para superar tal equívoco, vamos, então, definir economia:
Economia nada mais é que o estudo da ação humana relativa ao uso dos recursos escassos.
Por conseguinte, quando falamos da ação humana e utilização dos recursos disponíveis, já estamos naturalmente englobando a saúde. Se a economia vai mal, isso significa que vai ter menos recurso para ajudar médicos, enfermeiros, biomédicos, infectologistas, toxicologistas, farmacêuticos e demais profissionais da área a enfrentarem cenários como esse que estamos vivendo.
Quando nós economistas falamos da nossa área, não somos mesquinhos capitalistas que só pensam no dinheiro. Muito pelo contrário! Estamos nos importando com a vida das pessoas, com o bem-estar da população e inclusive nos questionando como os profissionais da saúde vão fazer para atender a todos da melhor maneira possível. E quando alertamos sobre os perigos de uma crise econômica, estamos apontando para riscos concretos de deixarmos pessoas morrerem não só exclusivamente pelo COVID-19, mas por vários outros fatores.
A revista científica The Lancet Global Health recentemente publicou um estudo sobre a recessão brasileira em 2015-2016 e seu impacto na saúde do povo [1]. Foram 5.565 municípios analisados e a conclusão do estudo é que a crise econômica foi responsável pela morte de 31.415 pessoas.
Os motivos de tantas mortes são claros: se as famílias e empresas passam por dificuldades, elas consomem menos; como os tributos no Brasil incidem principalmente sobre o consumo, o governo tende a perder receita; perdendo receita, em tese sobra menos dinheiro para saúde pública. Do mesmo modo, na saúde particular, se famílias e empresas não conseguem pagar um plano de saúde, vai sobrar menos dinheiro para os convênios continuarem atendendo.
A capacidade de investimento começa a decair em hospitais, leitos, na aquisição de materiais e remédios essenciais para saúde, tanto no setor público quanto no privado. Consequentemente, a ampliação de pesquisas fica comprometida e o apoio à população se torna mais difícil, especialmente entre os mais vulneráveis. E esses são os efeitos mais imediatos, porém há inúmeras outras externalidades relacionadas. Ou seja, se você acha que crise econômica não mata, reveja urgentemente seus conceitos.
Os números estão aí para provar. O COVID-19 precisou percorrer quase o Planeta Terra inteiro para trazer praticamente o mesmo número de baixas [2] que uma recessão econômica ocorrida em apenas UM país. Por isso, antes de tomarmos posição sobre quais medidas adotar e compararmos com outros países sem tanto critério, precisamos entender o contexto que estamos inseridos.
E se você diz: “deixemos a economia para depois, ela se recupera”, veja o gráfico abaixo:
Recentemente o Brasil atravessou uma das piores recessões da história. Mensurando o tamanho da queda, devo dizer que a década atual apresentou a pior média de crescimento econômico das últimas doze décadas [3]. Em outras palavras, não vimos desempenho econômico tão baixo nos últimos 120 anos.
Percebe-se, conforme o gráfico, que a economia não só “parou de crescer”. Foi bem pior que isso. Ela retrocedeu fortemente e esboça poucos sinais de melhora. A recuperação é muito, muito lenta, e, nesse ritmo, talvez cheguemos no zero a zero somente em 3 ou 4 anos.
É preciso levar em conta que atrofiamos 6,8% e recuperamos, entre 2017 a 2019, cerca de 3,7%. Portanto estamos 3,1% negativos ainda. Para o ano 2020, estou contando com projeção atual do governo, mas é preciso salientar que corremos o sério risco de ter desempenho pior que 0,02%. Nesse cenário, óbvio que a questão social piora severamente e considerando média de crescimento 0,93% a.a entre 2017 a 2020, a recuperação real viria não antes de 2025. Isso significaria ter 50% da próxima década já comprometida.
Portanto, não é só falar “fica em casa” ou “sai de casa” de maneira apressada, sem refletir o cenário como um todo. Não é tão simples assim. Precisamos ver o contexto dos 207 milhões de habitantes no nosso país e considerar que cada vida é diferente. Alguns dirão: “Ah, mas na Itália está acontecendo isso, nos EUA aquilo, no país X aquilo outro (…)”. Acontece que os outros países não passaram a recessão que nós passamos em 2015-2016 e cada qual está tomando medidas conforme o cenário próprio. Eles estavam bem (ou muito melhor que nós) e tomaram um baque agora.
Já o nosso caso é como de um paciente que ficou em estado grave, passou por uma cirurgia séria, sobreviveu quase que por um milagre, saiu da UTI para ficar em observação no quarto, e, nesse meio tempo, enquanto esboçava uma lenta recuperação, acabou pegando uma outra grave doença.
E agora pergunto: se a última recessão ceifou mais de 31 mil vidas, qual seria o efeito social de uma recessão seguida da outra?
Além disso, conforme a ONU, temos mais de 5,2 milhões de pessoas vivendo na fome [4] e 13,5 milhões de pessoas na linha da pobreza [5]. Essas pessoas já não têm mais para onde correr. Se você se preocupa com elas, então pense na economia também. E saiba que você não deve abrir mão da economia para pensar na saúde, pois, se fizer isso, você estará prejudicando a própria saúde!
Não estou defendendo que devemos sair todos de casa amanhã pela manhã. Todas as precauções devem ser tomadas e não podemos tratar com leviandade a proporção de contágio. Apenas faço um alerta para não errarmos a dose, pois, na minha concepção, os assuntos econômicos estão sendo muito negligenciados e o risco disso pode ser muito pior que imaginamos.
E aqui chego ao cerne da questão: uma recessão é tão ou mais letal que uma pandemia. Uma crise econômica mata silenciosamente e aos poucos, enquanto uma pandemia causa enorme barulho e mata rapidamente, mas, conforme apontado, em proporções globais menores.
Logicamente, a maioria é atraída pelo alarde, pelo barulho e não percebe o “silêncio” da economia. Por isso muitos se previnem sobre a pandemia (e estão certos em fazer isso), mas infelizmente costumam negligenciar o efeito de uma crise econômica como perigo real à vida. Quem é razoável está pensando em saúde com economia, não em saúde versus economia.
Gostou do artigo? Sobre esse tema, leia o maravilhoso livro de Murray Rothbard: Homem, Economia e Estado.
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FONTES:
- [1] https://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X(19)30409-7/fulltext
- [2] https://www.cebm.net/covid-19/global-covid-19-case-fatality-rates/
- [3] https://blogdoibre.fgv.br/posts/brasil-precisaria-crescer-57-em-2019-e-2020-para-decada-2011-20-nao-ser-pior-decada-dos
- [4] http://www.fao.org/3/CA2127ES/CA2127ES.pdf – Página 6
- [5] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25882-extrema-pobreza-atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivel-em-7-anos