Texto de Daniel Aguiar Cavalcante Monteiro
Individualismo é uma expressão a sofrer, desde muito tempo, de uma conotação
negativa na dita “sociedade” que se vive. Confundida com a falta de caráter, pois
como ousa, alguém ser o “advogado de sua própria existência”? Ao mesmo
tempo em que muitos intelectuais juram que se vive um “vazio moral” nos tempos
contemporâneos, a verdade, sugiro, é outra, a julgar a forma como o primeiro
termo citado é visto. A verdade é que se é glorificado o “sacrifício” de uma pessoa
pelo bem das demais, é valorizada a abnegação, o altruísmo, em que se espera
que um indivíduo sirva o outro, num carrossel de serventia e “gentileza
desinteressada” infinita. O egoísmo, nessa visão de mundo, é uma característica
antissocial a ser vista com desconfiança e hostilidade.
A Nascente, Livro de Rand, vem para expor não somente essa realidade de
valorização do “coletivo sobre o indivíduo”, mas também vem para desafiá-la e
expor uma alternativa, especialmente sobre a ideia de autoestima, integridade e
egoísmo como um caminho mais saudável à alma. Nos é apresentado o arquiteto
Howard Roark como um exemplo dessas características valorizadas por Rand.
Ao mesmo tempo em que vagarosamente o mundo de “A nascente” e seus
outros personagens são também apresentados. Não nessa ordem, conhecemos
o demagogo Ellsworth Toohey, a exemplificar o intelectual descrito
anteriormente. Temos Peter Keating, um outro arquiteto, uma pessoa desprovida
de “self”, de personalidade, em que é guiada pela moral alheia, o que gera uma
imensa deformação de seu caráter, com atitudes questionáveis, mas que ele
classifica como “necessárias” para obter aceitação geral. A jornalista Dominique
Francon, uma idealista que crê que o mundo dos homens a seu redor não é
digno de qualquer consolo pela beleza, e por isso se põe a atacar a carreira de
Roark, que por conta própria, e enfrentando uma torrente de hostilidades,
persiste em seus valores estéticos e morais e com isso avança em sua carreira.
Mostra-se, nesse livro, o perigo representado por demagogos como Toohey, que
ao mansamente falarem sobre o ideal de não haver intenções, o ideal de não
sequer dever considerar alguém como digno de vida, a não ser para servir seu
próximo, corroem a alma frágil daqueles que os levam a sério, até que nada os
resta da alma. São absolutamente dominados pelo tal intelectual. Fala-se de
como não possuir um compasso moral, definido por seu próprio interesse na
genuína busca por felicidade e realização, pode deformar a vida de uma pessoa,
fazendo-a viver em eterna agonia pela culpa e rancor. E, por meio do
personagem Gail Wynad nos é apresentado o trágico destino daquele que busca
dominar os outros por meio de “oferecer o que suas mentes querem ouvir”, já
que ele, dono de um jornal expressivo, se põe a fazer populismo com suas
matérias. No momento em que resolve, enfim, tomar partido por algo não
agradável às ditas “massas” que ele tanto julgava dominar, é abandonado por
estas, e mais que isso, passa a ser visto com antipatia e hostilidade, não tendo
uma redenção pela traição inicial de seus ideais.
Ayn Rand fala, para além da novela a respeito, sobre a importância de se
conscientemente seguir, por meio da filosofia, das ideias, a única forma que se
tem de lidar com o mundo de realidade, um compasso moral seu, que valorize a
você. Alguns julgam possível, até mesmo desejável, ter uma vida dita
“pragmática” que não se apegue a ideias abstratas, sem saber que, no fim, estão
deixando que os valores de outros guiem seus passos, resultando na agonia de
Keating, a agonia de quem não tem uma moral definida. O que é visto como um
paradigma do egoísta acaba sendo então uma mostra do que é visto como um
ser “egoísta”, que de fato não se é. De fato, o senhor Keating é o oposto de um
egoísta.
No fim, é o que conecta todos os personagens aparentemente desconexos entre
si. O verdadeiro herói da trama, Roark, mantem-se intransigentemente fiel a seus
ideais, os de um prédio construído seguindo suas condições, não meras cópias
do passado, mas também não as mediocridades modernas, que terminam por
se copiar, já que ambas são apenas um verniz a sua falta de filosofia, a sua falta
de valores próprias. Pessoas como Peter Keating, aqueles que querem as
consequências sem os meios, e que não possuem ideais, são presas fáceis para
os demagogos como Toohey, que prosperam nesse ambiente. Para eles, é
interessante que se diga que “não há verdades, não existem mais padrões
morais”, enquanto pregam seu coletivismo altruísta, já que eles serão os
senhores das almas.
Falei sobre a arquitetura “cópia” de suas passadas e também da arquitetura
moderna pois em ambas há características da mediocridade, como foi dito
também no livro, que representa essa mudança de rumos no mundo da
arquitetura e da arte nos anos de 1920-1940. Aqui também age Toohey, sendo
um crítico de arquitetura no jornal de Wynad, promovendo nulidades enquanto
assassina verdadeiros talentos, em nome da “igualdade, e que todos tenham
uma chance”.
É nisso que deságua essa filosofia altruísta em suas ultimas consequências, e que
é cantada na Ária de uma Ópera pelo compositor americano John Adams, a ópera
em questão, chamada “Nixon in China”, trata-se da visita do presidente Richard
Nixon, que apesar de anticomunista, apenas tinha isso os separando de seus rivais
progressistas. Na ária que se fala, “I am the Wife of Mao ‘Se-Tung” a senhora Mao nos
presenteia com uma frase que representa não apenas a ideia totalitária dos comunistas,
como também toda a visão de Toohey “Eu sou a esposa de Mao ‘Se-Tung, aquele que
ergue o fraco em cima do forte”, ou seja, que glorifica o incapaz, e que segura as pernas
daqueles valorosos que poderiam seguir adiante sem ajuda, pois quem são eles
para viver sem ajuda, não somente do estado, mas também de suas ideias
coletivistas.
Roark é tão fiel a seus valores que no fim de um dos atos, por se recusar a fazer
concessões em seu projeto para o Banco de Manhattan, acaba perdendo o
restante que tinha e, pois, foi trabalhar em uma pedreira para sobreviver. Mas,
no fim, a história nos mostra que ele estava correto, que devemos nos manter
firmes em nossos ideais, ou não nos manteremos de forma alguma. A ideia de
se fazer concessões em relação a algo que parece abstrato, em que muitos vão
julgar “uma atitude desnecessária”, derruba todo o prédio da moral, e nos mostra
o abismo que se vive, num mundo onde todos estão dispostos a vender suas
almas se isso os ajudará a obter uma “vitória” efémera em sua existência. Há
uma frase dita, acredito que desse livro, que apresenta justamente essa ideia.
Todos estão dispostos a vender suas almas, então a autora pede que mantemos
as nossas com nós mesmos, sendo esse o maior dos desafios, porém um a ser
recompensado, pois a realidade é concreta e ela se impõe, fato observado até
mesmo por aqueles que não necessariamente concordariam com cada linha que
Rand escreve.
Como Dominique ao jurar que o mundo não merece Roark, que ela julga ser o
melhor arquiteto que conhecera, após ler o livro tão verossímil e necessário que
é “A Nascente”, pergunta-se qual o sentido de ter tal obra visto, já que o mundo
permanecerá o mesmo caos coletivista, que agora vemos com clareza. Mas
justamente por isso, tendo uma pessoa se imbuído de tais palavras tão
poderosas, tão não convencionais, já que a convenção atual pende para o
coletivismo, como tendeu a pender por tantos séculos a esse ponto. É o maior
tratado a respeito da disputa individualismo versus coletivismo, não no seio
político, que foi A Revolta de Atlas, mas num seio muito mais importante, o da
alma, o da moral.
Fecha-se esse ensaio falando a respeito do discurso de Toohey a Keating, um
dos momentos mais sinistros retratados na literatura moderna, um em que os
planos de um vilão são revelados à sua (não tão) pobre vítima, não de alguma
violência física, mas sim do apoderamento do que restou de sua alma. Keating
é uma vítima de sí mesmo nessa história, mas também é uma das maiores
vítimas de Toohey, que a princípio o endorsa para depois o ignorar. Uma das
únicas redenções de Keating seria seu amor pela que acabou sendo a sobrinha
de Toohey, porém ele, que não tolera qualquer fagulha de felicidade, qualquer
autoestima, os afasta, e por fim ela, com tanto potencial, também por sua
fraqueza de espírito, termina como uma frustrada e mesquinha funcionária
pública na área de assistência social. Com tantos conflitos na narrativa, essa
pode passar despercebida, porém ela própria já mostra o perigo que é um
predador de almas como Toohey, com suas palavras macias e aparentemente
benevolentes, desinteressadas, etéreas, o que ele pode fazer com pessoas que
apesar de fracas em espírito, poderiam buscar algo em suas vidas. Toohey as
arruína, deleita-se na mediocridade dolorosa que elas se tornam no fim, e reina
onde os Átilas e Napoleões do mundo não puderam chegar.