Introdução
Já fiz alguns textos sobre a ética argumentativa hoppeana enquanto a estudava e conforme aprendia mais sobre, mas acredito que hoje (dia 13 de dezembro de 2018), após ver a palestra de Hans Hermann Hoppe de 2016, tenha definitivamente alcançado o entendimento completo de sua teoria e seu argumento ético, e tenho como objetivo agora fazer este texto como meu último (no sentido de meu melhor) texto a respeito do tema, abordando-o da forma mais elucidativa possível e com a melhor estrutura lógica que consigo montar com base em todos os argumentos e partes de argumentos fragmentados pelos artigos, capítulos de livros e palestras de Hoppe.
Esta foi minha frase de iniciação deste mesmo texto há certo tempo. E quem diria que haveria ainda mais a ser estudado e entendido sobre a Ética Argumentativa Hoppeana? Graças às recomendações de Daniel Morais em relação à base pragmática de Hoppe e a um mais aprofundado estudo da Praxeologia de Mises, pude aprofundar ainda mais meu conhecimento sobre a Ética Argumentativa Hoppeana, produzindo textos como A Praxeologia e os Fundamentos Praxeológicos da Ética e A Pragmática e os Fundamentos Pragmáticos da Ética. Venho, então, hoje para reformular e aperfeiçoar este texto para a sua versão final, na qual a Ética Argumentativa de Hans Hermann Hoppe possa ser inteiramente abordada.
Parte I: Fundamentações
Irei começar apresentando a conclusão, e então demonstrar como Hoppe chega a ela.
A conclusão de Hoppe é a seguinte: “a única lei logicamente defensável é a Ética Libertária”; e para chegar a esta conclusão ele parte de duas premissas: “qualquer argumento contra a ética libertária necessariamente cairá em uma contradição performativa” e “qualquer norma, para que possa ser demonstrada como verdadeira, deve ser comprovada por meio de uma argumentação”, sendo que estas premissas são demonstradas e validadas e por um processo lógico mais complexo. Agora tentarei demonstrar como se chegar a estas premissas, e, então, a esta conclusão.
O Argumento pela Contradição Performativa
Primeiro é importante entender o conceito de contradição performativa, pois Hoppe, se baseando em seus professores Apel e Habermas, utiliza o método do argumento pela contradição performativa para provar sua teoria.
Uma contradição performativa é uma contradição entre o que é dito e o que é pressuposto pela pessoa no ato de dizer isto; a contradição existe porque a pessoa ao mesmo tempo assume a invalidade de uma proposição explicitamente (com o argumento proferido) e a validade desta proposição implicitamente (com a pressuposição que ela necessariamente faz ao entrar em uma argumentação, ao propor um argumento). Por exemplo, suponha que eu diga “eu não existo”, para que eu possa dizer algo eu preciso necessariamente existir, logo ao dizer algo eu pressuponho que existo, minha fala entra em contradição performativa por contradizer esta pressuposição.[1]
Conforme a explicação de Habermas:
“Apel renova o modo da fundamentação transcendental com os meios fornecidos pela pragmática linguística. Ao fazer isso, utiliza o conceito de contradição performativa, que surge quando um ato de fala constatativo ‘Cp’ se baseia em pressuposições não-contingentes cujo conteúdo proposicional contradiz o enunciado asserido ‘p’. Partindo de uma reflexão de Hintikka, Apel ilustra o significado das contradições performativas para a compreensão de argumentos clássicos da filosofia da consciência com base no exemplo do ‘Cogito ergo sum’. Se exprimirmos o juízo de um oponente sobre a forma do ato de fala: ‘Duvido que eu exista’, o argumento de Descartes poderá ser reconstruído com a ajuda de uma contradição performativa. Para o enunciado:
(1) Eu não existo (aqui e agora)
o falante ergue uma pretensão de verdade; ao mesmo tempo, ao proferi-la, ele faz uma inevitável predisposição de existência cujo conteúdo proporcional pode ser expresso pelo enunciado:
(2) Eu existo (aqui e agora)
(sendo que, em ambas proposições, o pronome pessoal refere-se à mesma pessoa).” (HABERMAS, Jürgen. Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso.)
Assim, com este método, Hoppe busca demonstrar que sua teoria é a única possivelmente correta a respeito do tema, com o argumento de que qualquer outra opção irá necessariamente cair numa contradição performativa, ou seja, será ilógica.
As Fundamentações Praxeológicas da Ética
O argumento ético de Hoppe começa com a suas fundamentações praxeológicas, ou seja, fundamentações da ética que são demonstradas com base nos estudos da Praxeologia, a ciência que estuda como as pessoas agem.
A Praxeologia de Mises e Rothbard (tendo este último sido um importante professor de Hoppe) é apenas um estudo de como os humanos agem, da forma como escolhem entre seus possíveis objetivos; apesar disso, Hoppe teve o insight necessário para identificar as implicações destes estudos na ética, as regras e a estrutura da ação humana que carregam implicações na forma como uma ética pode ser logicamente desenvolvida.
E, não apenas isso, mas os conceitos utilizados por ele, conceitos como corpo, meios (recursos) e uso (controle), são conceitos praxeológicos, muito comumente mal interpretados por quem estudou a Ética Argumentativa sem ter antes um correto entendimento da Praxeologia. Além disso, foi ao reconhecer a argumentação como uma forma de ação (lembrando que a ação é estudada pela Praxeologia) analisando as contradições performativas ocorridas numa argumentação com base nestes conceitos praxeológicos, que Hoppe foi ainda mais além que seus professores pragmáticos, sendo capaz de encontrar uma solução definitiva para o problema das normas.
“Com esse passo eu perco, de uma vez por todas, a companhia de filósofos como Habermas e Apel. Ainda assim, como ficará claro a seguir, isso está diretamente implicado no passo anterior. Que Habermas e Apel são incapazes de dar este passo é, eu digo, devido ao fato de eles, também, sofrerem, como muitos outros filósofos, de uma completa ignorância da ciência econômica e uma correspondente cegueira em relação ao fato da escassez.” (HOPPE, Hans Hermann. A Justiça da Eficiência Econômica.)
A Praxeologia começa com o axioma fundamental da ação humana, o de que humanos agem, sendo a ação a manifestação da vontade humana, ou então a decisão de uma pessoa entre os possíveis fins que pode buscar em dada situação (ambas definições são dadas como sinônimas por Mises).[2]
“É a ciência de todo tipo de ação humana. Toda decisão humana representa uma escolha. Ao fazer sua escolha, o homem escolhe não apenas entre diversos bens materiais e serviços. Todos os valores humanos são oferecidos para opção. Todos os fins e todos os meios, tanto os resultados materiais como os ideais, o sublime e o básico, o nobre e o ignóbil são ordenados numa sequência e submetidos a uma decisão que escolhe um e rejeita outro. Nada daquilo que os homens desejam obter ou querem evitar fica fora dessa ordenação numa escala única de gradação e de preferência.” (MISES, Ludwig von. Ação Humana.)
O axioma da ação humana não pode ele mesmo ser negado sem que se caia numa contradição performativa, pois aquele que o negar estará fazendo uma proposição, já que “fazer uma proposição” é uma ação, uma decisão entre os possíveis fins (objetivos) de fazer aquela proposição ou de não fazer. E a partir do axioma da ação humana, são deduzidas suas implicações lógicas, que não são nada mais, nada menos, que verdades já implícitas neste axioma, que não podem ser negadas sem que se negue ele, ou seja, sem que se caia numa contradição performativa. Conforme explica Rothbard:
“Consideremos algumas das implicações imediatas do axioma da ação. Ação implica que o comportamento do indivíduo é proposital, em resumo, que é direcionado a objetivos. Além disso, o fato de ele agir implica que ele conscientemente escolheu certos meios para atingir seus objetivos. Uma vez que ele deseja atingir esses objetivos, estes devem ser valiosos a ele; de acordo com isso ele deve ter valores que governam as suas escolhas.” (ROTHBARD, Murray. Praxeologia: o método dos economistas austríacos.)
Para ilustrar este estudo, imagine que um humano tenha uma hierarquia de todos os possíveis fins que pode buscar em uma determinada situação (comer um bolo, assistir tv, jogar um jogo… etc.), quanto mais ele prefere um fim em relação aos outros mais valor ele da a ele, e mais alto ele fica em sua hierarquia; o humano, então escolherá entre os fins, escolhendo aquele que está mais alto, e utilizando os meios necessários para atingi-lo (sendo que, pelo menos o seu tempo, ele deve utilizar para ir em busca deste fim). Esta é a base da teoria praxeológica, e as proposições “humanos buscam fins” e “humanos usam meios” (sendo o significado do termo “usar” apenas “empregar o meio para chegar ao fim”) são proposições implícitas no axioma fundamental da ação humana.
Uma outra importante implicação do axioma da ação humana é a de que meios são escassos, ou seja, um meio não pode ser utilizado para atingir todos os fins (é isso que praxeologistas querem dizer quando falam que meios são escassos). Isso ocorre pois, se um meio pudesse ser utilizado para se atingir todos os fins já os teríamos atingido, ou seja, não estaríamos agora argumentando e agindo. O princípio da escassez está, portanto, implícito no axioma da ação humana, pois negá-lo seria afirmar que humanos não agem, o que, já sabemos, é falso.
A Origem dos Conflitos
Pessoas agem, agem para atingir fins e utilizando meios, meios que são escassos, qualquer um que negue estas proposições estará caindo, necessariamente em uma contradição performativa e elas não podem ser logicamente refutadas.
Como há escassez de meios, humanos podem, muitas vezes, entrar em conflitos. Conflitos são situações em que dois indivíduos querem usar um mesmo meio para fins conflitantes. Se os meios não fossem escassos eles todos poderiam atingir todos os seus possíveis fins sem que a ação de um tivesse qualquer influência ou limitação na de outro, ou seja, não haveriam conflitos; porém os meios são escassos, e a escassez implica na possibilidade de haverem conflitos, pois, assim, humanos podem entrar numa situação na qual o objetivo (fim) de um impeça o de outro, um conflito. Conforme explica Hoppe:
“Sozinho em sua ilha, Robinson Crusoé pode fazer o que bem quiser. Para ele, o problema relativo às regras que norteiam uma conduta humana ordeira — isto é, a cooperação social — simplesmente não existe. Naturalmente, esse problema só passará a existir quando uma segunda pessoa, Sexta-Feira, surgir na ilha. Entretanto, ainda assim, esse problema vai continuar irrelevante enquanto não houver algum tipo de escassez. Suponha que a ilha seja o Jardim do Éden; todos os bens externos estão disponíveis em superabundância. Eles são chamados de ‘bens não escassos’ ou ‘bens abundantes’, da mesma forma que o ar que respiramos é um bem ‘não escasso’. O que quer que Crusoé faça com esses bens, suas ações não terão quaisquer repercussões em relação à oferta presente e futura desses bens tanto para ele próprio quanto para Sexta-Feira (e vice versa). Assim, é impossível que algum dia possa haver um conflito entre Crusoé e Sexta-Feira concernente ao uso desses bens. Um conflito só é possível se os bens forem escassos. Somente nesse cenário é que surgirá a necessidade de se formular regras que tornem possível uma cooperação social ordeira — ou seja, livre de conflitos.” (HOPPE, Hans-Hermann. A ética e a economia da propriedade privada.)
Diferentes indivíduos não podem usar o mesmo meio para fins conflitantes (pois isso seria uma contradição), porém humanos agem, ou seja, meios sempre serão utilizados, e quando houverem conflitos sempre haverá um fim buscado em detrimento do outro.
Sem a existência de conflitos a existência de normas (que digam o que um humano deve ser proibido ou permitido de fazer) é impossível; isso se deve ao fato de que sem conflitos, e sem a escassez de recursos (meios), humanos seriam capazes de atingir todos os seus objetivos sem que os dos outros tivessem qualquer interferência ou limitação nos seus; qualquer humano sequer pensaria em propor uma norma, pois propor uma não faria qualquer diferença, nem seria capaz de aplicar norma alguma, pois suas ações não poderiam interferir nas dos outros. Com isso conclui-se que o objetivo das normas é o de resolver conflitos, pois o único aspecto da ação humana que é possível de ser regulado por uma norma, é um conflito.[3]
Além disso, uma norma deve evitar conflitos, o que Hoppe quer dizer com isso? Uma norma que evite conflitos é uma que, caso seja seguida por todos, não levará a conflito algum, ou seja, basicamente, a norma é livre de contradições internas, ela não diz que duas pessoas podem usar um mesmo meio para fins conflitantes (caso dissesse isso faria com que, mesmo com todos a seguindo, ainda haveriam conflitos), ou seja, ela resolve conflitos. Uma norma que não evite conflitos não resolve conflitos, portanto um implica no outro.
Para que uma norma evite conflitos ela deve necessariamente definir não apenas quem tem o direito de usar cada meio, mas quem tem o direito exclusivo de usar cada meio, pois caso o direito de um não exclua o do outro duas pessoas podem utilizar o mesmo meio ao mesmo tempo para fins conflitantes. Uma lei que permita isto não evita conflitos, entra em contradição e não é logicamente defensável.
Além disso, assim que um meio for apropriado de uma forma demonstrada como legítima, a sua propriedade é definitiva, pois caso uma lei permitisse que alguém além do primeiro proprietário se apropriasse dele sem a permissão deste ela estaria gerando conflitos, entre os fins destinados ao meio pelo seu primeiro proprietário e o último, esta lei não estaria evitando conflitos, mas sim gerando e permitindo novos conflitos, sendo contraditória.
Por exemplo, se uma pessoa se apropriar de algum terreno, caso ela deixe de usar fisicamente este terreno, mas ainda queira mantê-lo, isso significa que ela ainda o está usando, caso o contrário não iria querer mantê-lo (lembrando que a posse física não é o mesmo que o uso praxeológico do meio, destiná-lo a um fim), seu fim poderia ser até mesmo o de apenas armazená-lo, ainda seria um fim, e qualquer um que tentasse utilizar este terreno contra a sua vontade estaria dando início a um novo conflito.
Uma lei que leve a conflitos é logicamente contraditória com o conceito de ação, e com o conceito de lei em si, logo, ao entrar em uma argumentação a respeito da legitimidade de leis, qualquer pessoa pressupõe a legitimidade de se evitar conflitos, não podendo argumentar a favor de uma lei que leve a conflitos, sem que caia em uma contradição performativa.
Assim se deduz que qualquer norma (lei) deve estabelecer quem tem o direito de uso exclusivo e definitivo sobre cada meio, sendo este direito chamado de direito de propriedade.
“Para desenvolver o conceito de propriedade é necessário que os bens sejam escassos, de modo que seja possível surgir conflitos sobre o uso desses bens. É função dos direitos de propriedade evitar esses possíveis conflitos sobre o uso dos recursos escassos através da atribuição de direitos de propriedade exclusiva. A propriedade é, dessa forma, um conceito normativo, concebido para tornar possível uma interação livre de conflitos pela estipulação de regras de conduta (normas) mútuas e vinculativas em relação aos recursos escassos. Não é preciso observar muito para verificar que há, na verdade, uma escassez de bens, de todos os tipos de bens, em qualquer lugar, e assim se torna evidente a necessidade dos direitos de propriedade.” (HOPPE, Hans-Hermann. Propriedade, Contrato, Agressão, Capitalismo e Socialismo, em Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo)
As Fundamentações Pragmáticas da Ética
Enquanto são seus conhecimentos praxeológicos que separam Hoppe de seus professores Habermas e Apel, são seus conhecimentos pragmáticos que o separam de seus predecessores praxeologistas Mises e Rothbard, e é apenas com a junção destas duas linhas que Hoppe foi capaz de chegar à sua conclusão.
O uso do argumento pela contradição performativa para a criação de uma teoria ética foi, anteriormente, mais bem desenvolvido por seu professor Jürgen Habermas em sua ética do discurso, que foi utilizada como base por Hoppe. Esta parte do argumento de Hans Hermann Hoppe que ele pega de Habermas é extremamente importante, não apenas pelo uso do argumento pela contradição performativa e dos conceitos de justificação e argumentação (que ele pega de Habermas), mas também pela prova de que normas só podem ser justificadas no curso de uma argumentação (parte essencial da Ética Argumentativa), assim como do princípio da universalização.
Proposições sobre normas, assim como quaisquer proposições, podem ser justificadas, sendo a justificação definida como o ato de se dar razões para a validade ou veracidade da proposição. Justificações podem ser de dois tipos argumentativas (argumentações) e monológicas (justificações monológicas), sendo ar argumentações aquelas justificações de proposições que são intersubjetivas (ou seja, cujo processo envolve mais de uma pessoa), e as monológicas aquelas que não são.
Sabemos que justificações buscam sempre resolver alguma questão, seja uma discordância ou até mesmo uma incerteza; como normas servem para resolver conflitos, a questão que uma justificação sobre normas busca resolver é um conflito. Daí se descobre que justificações sobre normas servem para resolver conflitos, motivo pelo qual normas não podem ser justificadas monologicamente, pois uma justificação monológica, por envolver apenas uma pessoa, não é capaz de transmitir o resultado da resolução do conflito para os demais envolvidos, consequentemente não resolvendo-o. Por isso mesmo normas podem apenas ser defendidas no curso de uma argumentação, pois aquele que tentar defender uma norma como válida em uma justificação monológica estará caindo numa contradição performativa, por ir contra o próprio objetivo do tipo de ação que ele desempenha, o de resolver conflitos.[4]
“Mas, quando se tem presente a função coordenadora das ações que as pretensões de validez normativas desempenham na prática comunicativa quotidiana, percebe-se porque os problemas que devem ser resolvidos em argumentações morais não podem ser superados monologicamente, mas exigem um esforço de cooperação. Ao entrar numa argumentação moral, os participantes prosseguem seu agir comunicativo numa atitude reflexiva com o objetivo de restaurar um consenso perturbado. As argumentações morais servem, pois, para dirimir consensualmente os conflitos da ação.” (HABERMAS, Jürgen. Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso)
Além disso, numa argumentação, existem várias pressuposições, que não podem ser negadas sem que se caia numa contradição performativa, muitas delas foram descobertas por Habermas, as que importam à Ética Argumentativa serão apresentadas aqui: todo o sujeito capaz de agir e falar (não necessariamente na mesma linguagem) pode participar da argumentação, e ninguém pode impedir um falante de exercer esta participação ou de introduzir ou questionar qualquer asserção por meio de coerção. Estas pressuposições se dão pelo fato de que uma justificação sobre normas busca resolver a discordância (no caso, o conflito) por meio de proposições que são apresentadas com razões para serem aceitas, ou seja, no ato de se justificar normas já se pressupõe que é a força argumentativa das proposições que irá trazer o consenso que se busca numa argumentação; claro, uma pessoa poderia obrigar outra a aceitar sua proposta através da coerção, mas isso não seria mais uma justificação, e sim uma imposição de força.
“O siginficado de verdade não está no fato de que algum consenso seja de fato atingido, mas antes disso: que a qualquer hora e em qualquer lugar que entramos num discurso podemos alcançar um consenso sob certas condições que provem que se trata de um consenso bem fundamentado.” (ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica.)
Além disso, uma argumentação sobre normas, ao fazer aquelas pressuposições, também pressupõe que todas as normas devem ser universalizáveis (ou seja, devem ser igualmente aplicáveis) a todos os sujeitos capazes de falar e agir; pois todos eles, conforme foi demonstrado, têm seu direito de entrar nessa argumentação e de argumentar sem serem impedidos por meio da coerção.
“De acordo com a ética do Discurso, uma norma só deve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar), enquanto participantes de um Discurso prático, a um acordo quanto à validez desta norma.” (HABERMAS, Jürgen. Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso.)
Uma justificação que busque a resolução de conflitos deve, então, necessariamente propor normas que sejam igualmente aplicáveis a todos os sujeitos capazes de agir e argumentar, aqueles ditos como os que têm capacidade argumentativa, correndo o risco de gerar uma contradição performativa caso não o faça.
“Obviamente, da mesma forma que Crusoé poderia se envolver em conflitos com Sexta-Feira, o homem – conflitos relativos a seu corpo e ao espaço que ele ocupa -, ele também poderá se envolver nesse mesmo tipo de conflito com Sexta-Feira, o gorila. O gorila pode querer ocupar o mesmo espaço que Crusoé já ocupa. Nesse caso, se o gorila for o tipo de ente que sabemos ser, não haveria uma solução racional para o conflito. Ou o gorila iria acossar, esmagar e devorar Crusoé – essa seria a solução do gorila para o problema -, ou Crusoé iria domar, caçar, abater ou matar o gorila – essa seria a solução de Crusoé. Nesse cenário, alguém poderia de fato falar sobre relativismo moral. Entretanto, seria mais apropriado se referir a essa situação como uma na qual a questão da justiça e da racionalidade simplesmente não seria levantada; isto é, esta seria considerada uma situação extra-moral. A existência do gorila implicaria um problema técnico para Crusoé, e não em um problema moral. Ele não teria outra escolha que não a de aprender como gerenciar e controlar com sucesso os movimentos do gorila, assim como ele teria de aprender a gerenciar e controlar quaisquer outros objetos inanimados no ambiente ao seu redor.
Dedutivamente, somente se ambos os lados de um conflito forem capazes de incorrer mutuamente em uma argumentação, é que poderemos considerar a questão do problema moral. E, apenas nesse caso, a pergunta sobre se há ou não uma solução para esse problema se torna uma pergunta significante. Logo, somente se Sexta-Feira, independentemente de sua aparência física, for capaz de incorrer em alguma argumentação (mesmo que ele tenha se mostrado capaz de tal ato apenas uma vez), poderá ele ser considerado racional, e a pergunta sobre se existe ou não uma solução correta para o problema da ordem social passará então a fazer sentido. Não se deve esperar que uma pessoa dê qualquerresposta para uma outra pessoa que jamais fez alguma pergunta ou, mais especificamente, que jamais expressou seu próprio ponto de vista relativístico na forma de um argumento. Nesse caso, essa ‘outra’ pessoa só poderá ser considerada e tratada como uma planta ou um animal – isto é, como uma entidade extra-moral. Somente se esta outra entidade for capaz de pausar suas atividades – quaisquer que sejam – e dizer ‘sim’ ou ‘não’ (não necessariamente em termos verbais, obviamente) para alguma coisa que outra pessoa tenha dito, é que então teremos a obrigação de dar a essa entidade uma resposta. E, consequentemente, só então poderemos alegar que o nosso ponto de vista é o correto para ambos os lados envolvidos eu um conflito.” (HOPPE, Hans Hermann. A ética e a economia da propriedade privada.)
Parte II: A Ética Libertária
Então, com base nas fundamentações praxeológicas e pragmáticas apresentadas, Hoppe estabelece os pressupostos éticos da argumentação, ideias normativas que não podem ser negadas sem que se caia em uma contradição performativa, e a partir delas deduz a única norma que pode ser lógicamente defendida, a da autopropriedade e do homesteading, a Ética Libertária.
É por isso mesmo que comumente se diz que o argumento de Hoppe não é ético, mas sim metaético, pois, enquanto a ética fala sobre normas, a metaética fala sobre a ética em si, sendo que Hoppe não tenta deduzir diretamente uma ética, mas sim estabelecer os limites lógicos e argumentativos nos quais uma ética pode ser defendida, chegando à inevitável conclusão de que a libertária é a única logicamente defensável.
Autopropriedade
Dentre as pressuposições identificadas por Hoppe, temos a norma da autopropriedade. Para que participar da argumentação seja possível a pessoa deve ter direito de controle exclusivo de seu próprio corpo (corpo, no sentido praxeológico da palavra é o meio primário e mínimo necessário para se praticar uma ação), logo, no curso de uma argumentação, a pessoa pressupõe que todos aqueles capazes de proferir argumentos, assim como de ouvir e entender seu argumento, ou seja, todos os indivíduos, têm o direito de controle exclusivo do próprio corpo, não podendo argumentar contra isto, a autopropriedade, sem que caia em uma contradição performativa.
Para se analisar isso é importante lembrarmos dos axiomas da ação humama, todos os humanos agem, agem usando meios e para alcançar fins, todas estas proposições são axiomas pois são autoevidentes, ou seja, não precisam de outras proposições para serem evidenciadas. Elas são necessariamente evidentes pois qualquer negação delas cai em uma contradição performativa.
“Ninguém tem o direito de agredir o corpo de outra pessoa sem permissão e dessa forma delimitar ou restringir o controle de outrem sobre o seu próprio corpo”. (HOPPE, Hans Hermann. A Justificativa Ética do Capitalismo e Por que o Socialismo é Moralmente Indefensável, em Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo)
O controle (uso) de um meio, por definição, restringe o controle que a outra pessoa tem do meio caso seus fins sejam conflitantes; toda a ação envolve o controle de meios, e o corpo como cateogria praxeológica (ou seja, a definição dada à palavra corpo, o conceito representando por ela, dentro da Praxeologia) é o meio mínimo e primário utilizado para uma ação, sendo necessariamente o meio controlado pelos humanos para a argumentação. Logo, se o corpo é (por definição) o meio controlado para a argumentação, e se qualquer controle/uso dele (qualquer uso da força contra ele) irá (por definição) restringir o controle que a pessoa tem do próprio corpo, então qualquer agressão irá necessariamente impedir que a pessoa controle seu corpo para atingir o fim de argumentar durante uma argumentação. Ou seja, a autopropriedade, o controle exclusivo do próprio corpo, é, por definição, necessário para que a pessoa participe da argumentação, o que torna esta proposição inegável.[5]
Consequentemente, pelo direito de todos os sujeitos com capacidade argumentativa de participarem de uma argumentação ser pressuposto em uma justificação sobre normas, o direito de autopropriedade de todos eles é, também, pressuposto.
A última frase citada de Hoppe também já nos explica qual é o critério para se detectar o que é e o que não é controle/uso da força, o controle de um meio é aquilo que restringe o controle da outra pessoa do próprio meio; o que já refuta aquelas pessoas que dizem “ah posso te agredir te cutucando enquanto você argumenta sem impedir a argumentação”, a resposta para isso é simples, cutucar sem restringir o controle da pessoa do meio não é controle do meio, não é uso da força contra o meio, logo não pode ser agressão.
Homesteading
Porém pessoas não podem ser proibidas de usar outros meios, pois caso pudessem ser, para que pudessem ser impedidas, teriam que ter suas autopropriedades agredidas, pois para impedir uma pessoa de usar um meio a força deve ser utilizada contra seu corpo (já que a apropriação é uma ação, logo usa meios, usando pelo menos o corpo); logo qualquer norma que impeça indivíduos de se apropriar de meios será necessariamente inválida por não ser compatível com o princípio da autopropriedade.
“Uma vez que segundo o princípio da não-agressão uma pessoa pode fazer com o seu corpo tudo aquilo que quiser na medida em que, desse modo, ela não agrida o corpo de outra pessoa, essa pessoa poderia usar outros meios escassos, assim como usar o seu próprio corpo, desde que essas outras coisas já não tenham sido apropriadas por alguém e continuem num estado natural sem dono.” (HOPPE, Hans Hermann. A Justificativa Ética do Capitalismo e Por que o Socialismo é Moralmente Indefensável, em Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo.)
E, para que uma apropriação de um meio possa ser considerada legítima, indivíduos devem usar este meio, criando um elo objetivo (um elo que possa ser determinado e verificado por todos, gerado por uma ação específica em um momento específico, que necessariamente envolve o uso do meio) com ele. Uma norma que dê a indivíduos o direito de se apropriar sem criar o elo objetivo irá necessariamente ser inválida por não ser compatível com o direito de autopropriedade previamente estabelecido, pois apropriações sem a criação do elo objetivo, chamadas de apropriações por declaração, poderiam ser utilizadas para se apropriar dos corpos dos outros (por exemplo, eu poderia dizer “os corpos de todas as pessoas que nascerem serão meus”).[6]
“Nesta tradição intelectual, propriedade é definida como objetos físicos tangíveis, que foram ‘visivelmente’ retirados do estado de natureza de bens sem dono por meio de atos de apropriação e produção. Por meio da mistura de seu trabalho com recursos específicos, fronteiras de propriedade objetivamente verificáveis são estabelecidas e objetos específicos conectados a indivíduos particulares. Existem indicadores de objetos possuídos (em oposição aos sem dono) e de quem os possui (e quem não), para todos ‘lerem’. Ademais, a teoria preenche perfeitamente o requisito de ser operacional porque ela traça toda propriedade presente até atos de ‘apropriação original’ (até o ponto do tempo em que havia apenas ‘natureza’ ou recursos ‘sem dono’).” (HOPPE, Hans Hermann. Propriedade, Causalidade e Responsabilidade Legal.)
Com isso podemos saber que não basta que uma pessoa faça a apropriação original de um recurso escasso, se ela não o delimitar com um elo que possa ser verificado pelos outros; afinal, não faria sentido punir um sujeito que usasse um meio apropriado sem saber que este meio já fora apropriado.
A negação do direito de uso exclusivo e definitivo sobre os meios adquiridos com o primeiro uso irá sempre, necessariamente, entrar em contradição performativa; pois para que uma pessoa possa negar tal direito ela deve, ou defender o direito de uma pessoa impedir a outra de utilizar estes meios, ideia que negaria o direito de autopropriedade e por isso cairia em contradição performativa, ou defender que os direitos de uso dos meios adquiridos não são exclusivos, ou que eles não são definitivos, duas normas que levariam a conflitos, ao invés de evitá-los. A pessoa, portanto, cairia, também, numa contradição performativa, por ir contra o próprio objetivo de uma justificação de normas ao defender normas que levam a conflitos ao invés de evitá-los.
“O primeiro proprietário não pode ter entrado em conflito com ninguém ao se apropriar do bem em questão, já que todos os outros apareceram apenas depois. E qualquer um que venha depois pode tomar posse do bem em questão apenas com o consentimento do primeiro proprietário, ou se o primeiro proprietário voluntariamente transferiu sua propriedade para ele, neste caso e a partir deste momento ele se torna seu dono exclusivo, ou então se o primeiro usuário garantiu a ele algum direito de uso condicional sobre sua propriedade, neste caso ele não se torna o dono, mas seu possessor. Argumentar contra isso e dizer que um último usuário do bem, independentemente e contra a vontade do primeiro proprietário deveria ser o dono do bem consiste numa contradição performativa, pois isto levaria a conflitos eternos, e não à paz, sendo contrário ao próprio objetivo da argumentação”. (HOPPE, Hans Hermann. Ethics of Argumentation, PFS 2016.)
Conclusão do Argumento
Logo qualquer norma que negue aos indivíduos o direito de controle/uso exclusivo dos próprios corpos, assim como o direito de se apropriar de outros meios (ganhando a propriedade definitiva deles) será logicamente indefensável, pois qualquer um que a defenda entrará em contradição performativa. A única norma que garante este direito é a lei da não agressão à propriedade privada, a Ética Libertária.
Como todas as normas, para que possam ser demonstradas como verdadeiras, devem ser comprovadas no curso de uma argumentação, e como qualquer argumento contra a Ética Libertária será necessariamente pego em uma contradição performativa, a única lei logicamente defensável é a Ética Libertária.
Parte III: Refutando Espantalhos e Más Interpretações.
Aqui tenho como objetivo apresentar todos os espantalhos e erros de interpretação correntes feitos contra a Ética Argumentativa e explicar o porquê de eles estarem errados.
“A ética argumentativa pressupõe o dualismo substancial”
Erro grave. Acho a ideia de que somos um corpo um absurdo lógico, mas não irei entrar aqui no debate acerca da filosofia da mente; a questão é que dualismo substancial, materialismo e etc. não têm nada a ver com a Ética Argumentativa, e esse é um espantalho feio.
A autopropriedade não pressupõe dualismo algum porque propriedade é o controle exclusivo, ou seja, um direito de exclusão, exclusão de todos os outros da possibilidade de usar/controlar (i.e. usar a força contra) determinado meio; dizer que você tem o direito de propriedade de seu corpo é dizer que todos estão excluídos do direito de controlar (ou seja, usar a força contra, ou seja limitar seu controle sobre) seu corpo, o que é completamente compatível com qualquer posição na filosofia da mente.
Alguns tentam defender esse argumento analisando as fundamentações da ética hoppeana, dizem que para que você possa ter autopropriedade seu corpo deve ser um meio (já que propriedades são propriedades de meios), e que isso pressupõe o dualismo. Errado de novo, um meio é simplesmente algo usado para se alcançar um fim, e seu corpo se encaixa nisso, não há nenhuma necessidade de se pressupor dualismo; e, mesmo se alguém tentar argumentar que para que seu corpo possa ser usado por você, e ser um meio para você, ele teria que ser um ente alheio a você, o argumento ainda não refutará a Ética Argumentativa, pois seu corpo ainda poderia ser um meio para os outros, podendo ser violado e controlado por eles, e a necessidade de se estabelecer o controle exclusivo sobre ele permanece. Este argumento incorre na realidade de uma confusão entre os conceitos de posse (uso) e propriedade (uso exclusivo), que leva a uma interpretação errada do argumento como um todo.
“Autopropriedade é uma condição constitutiva da argumentação”
Argumento que já vi sendo utilizado por algumas pessoas que parecem ter certo conhecimento sobre a filosofia de Habermas, porém que não entenderam nada sobre as fundamentações praxeológicas da Ética Argumentativa.
Dentro da pragmática habermasiana uma condição constitutiva é aquela que não pode der violada, pois sem ela o evento nem é possível. Condições constitutivas da argumentação não podem ser normas, pois uma norma é algo que pode, mas não deve, ser violado, e uma condição constitutiva não pode ser possivelmente violada, logo não faz sentido estabelecê-la como uma norma.[7]
O argumento que fazem é que seu controle direto do seu corpo, a relação direta entre sua mente e seu corpo, apenas você pode ter, e que consequentemente ninguém pode tomar este controle direto para si, o que tornaria a autopropriedade uma condição constitutiva da argumentação, e não uma condição praxeológica.
O problema destas pessoas é que elas confundiram completamente controle interno direto com controle praxeológico, elas não entenderam a Ética Argumentativa por uma falta de estudo da Praxeologia.
Esse argumento é um grande erro de categorias, quando Hoppe fala do controle/uso do corpo ele não se refere necessariamente a um controle direto e à relação entre a mente e corpo, aliás ele nem usa tais termos, ele se refere ao controle no sentido praxeológico, ou seja, alocar um meio para atingir um fim, se isso é feito pela relação direta entre mente e corpo, ou não, não importa para o argumento.[8]
Além disso tais pessoas fazem uma confusão grave entre posse e propriedade. Posse é o controle físico, propriedade é o direito de controle exclusivo, quando Hoppe fala sobre a autopropriedade ele nunca diz “autoposse”, obviamente está sempre se referindo à exclusão dos outros do direito de controlar seu corpo, e não ao seu controle do corpo. A autopropriedade não poderia estar mais longe de ser uma condição constitutiva da argumentação, não, ela é uma condição praxeológica.
Tanto você quanto qualquer outra pessoa tem a capacidade sim de usar seu corpo, de alocar ele para atingir fins (exemplo simples, um canibal poderia arrancar seu cérebro para se alimentar, isso já seria a alocação do cérebro para se alcançar o fim de saciar a fome), porém como o controle do seu corpo por outros indivíduos impede a sua participação na argumentação, a autopropriedade é pressuposta em uma argumentação.
“Você pode justificar normas sozinho internamente”
O argumento do monólogo, diz que podemos justificar uma norma sem pressupor a autopropriedade dos outros se fizermos isso de forma monológica, ou seja, sem entrar numa argumentação.
Este argumento é refutado pela base habermasiana de Hoppe, conforme foi explicado lá em cima. Nada mais a acrescentar.
“Você pode justificar normas em textos, panfletos, sem entrar numa argumentação”
Esse é outro clássico, geralmente quem usa esse argumento confunde a argumentação com um debate, dão exemplos de argumentos sendo dados fora de um debate presencial e formal e dizem que isso refuta a ética argumentativa.
Erro de interpretação, argumentação não é apenas um debate, mas sim qualquer justificação intersubjetiva de proposições; pode ser feita em um debate presencial, ou em texto, panfletos, etc., a questão é que uma argumentação é uma justificação e é intersubjetiva, não necessariamente sendo um debate formal.
A origem deste erro é a mesma do anterior, uma falta de leitura de Habermas.
“Nem todas as agressões contra o corpo impedem a argumentação”
Algumas pessoas argumentam que algumas agressões ao corpo (como pisar no pé, tirar um rim…) não impedem a argumentação e que logo você não deve pressupor o direito de autopropriedade ao entrar em uma argumentação.
Este argumento já foi refutado por Marian Eabrasu, que explicou que estas pessoas estão cometendo um erro de categorias e confundindo categorias praxeológicas com categorias fisiológicas. Explico: como é demonstrado por Hoppe, qualquer norma válida deve estabelecer quem tem o direito exclusivo de uso de cada meio; quando Hoppe fala do corpo na ética argumentativa ele não fala do corpo no sentido fisiológico e sim praxeológico (é como a palavra “humano”, que dependendo da área é utilizada com diferentes significados. Por exemplo, na biologia é utilizada para se referir ao ser vivo com DNA de humano, já na filosofia é utilizada para se referir a qualquer ser racional), ou seja, o meio primário e mínimo necessário para se praticar uma ação. Se seu corpo fisiológico como um todo é um meio ele deve ter apenas um proprietário, logo a pressuposição vale para todo o meio e não apenas para partes dele; e se seu corpo fisiológico não é um único meio, mas sim uma junção de vários meios, e que apenas alguns deles, como cordas vocais e etc., são necessários para a argumentação (são o corpo no sentido praxeológico da palavra), então a pressuposição vale apenas para estas partes; é aí que está o erro de categorias, a exata fisiologia do corpo não importa para a justificação da Ética Argumentativa, caso corpo não seja um meio único e alguma parte do corpo não impeça a argumentação quando agredida essa parte não é pressuposta como autopropriedade ao se fazer um argumento, porém ela é apropriada via primeiro uso, e a violação dela é tão ilegítima quanto a violação da propriedade de um terreno ou de uma casa; ou seja, estas pessoas estão apenas debatendo a descrição do que é a autopropriedade, mas não refutando-a de forma alguma.[9]
“Posso bater e argumentar”
Por acaso você pode dar uma porrada com um machado direto no cérebro de uma pessoa enquanto fala sem impedir a argumentação? Não. Em determinado intervalo de tempo necessário para uma argumentação se de alguma forma você foi capaz de falar e bater na pessoa sem que isso interrompa a argumentação é porque você bateu em partes do corpo fisiológico que não eram essenciais para se argumentar, ou seja, esse argumento é só uma versão adaptada do anterior, bater nestas partes do corpo ainda é ilegítimo caso seja agressão da mesma forma que arrancar as árvores de um jardim de alguém é.
“Hoppe cai na guilhotina de Hume”
Algumas pessoas dizem que Hoppe deriva a norma libertária (um imperativo) da proposição descritiva de que você controla seu corpo, e que isso cairia no famoso coringa da argumentação, a guilhotina de Hume, uma regra lógica que diz que para que sua conclusão seja uma norma ao menos uma das premissas deve ser uma norma também.
O argumento está completamente errado, primeiro porque Hoppe não deriva sua conclusão da premissa de que controlamos nosso corpo, e sim da premissa de que não podemos argumentar contra a Ética Libertária sem cair em contradição performativa. Segundo, Hoppe não deriva um imperativo (uma proposição que é uma norma) de um descritivo (uma proposição que não é uma norma), ele deriva um descritivo de um descritivo. A conclusão de Hoppe é “a única lei logicamente defensável é a libertária”, um descritivo, e suas premissas são “qualquer norma, para que possa ser demonstrada como verdadeira, deve ser comprovada no curso de uma argumentação” e “qualquer um que argumente em favor de uma ética que não seja a libertária cairá em uma contradição performativa”, outros dois descritivos.
“O homesteading cai na guilhotina de Hume”
Algumas pessoas vêm dizendo que o homesteading, a teoria da apropriação original, cai na guilhotina de Hume. Isso é, claro, um salto lógico gigantesco.
A teoria da apropriação original, ou do homesteading, afirma que o fato de uma pessoa ter usado um meio pela primeira vez lhe garante o direito definitivo de uso exclusivo sobre este meio; como esta teoria pode ser defendida com diferentes argumentos, dizer que qualquer defesa dela necessariamente cairá na guilhotina de Hume é o maior salto lógico que já vi em minha vida.
E, no caso da ética hoppeana, o homesteading é defendido conforme já foi demonstrado, qualquer um que negue o direito de uso exclusivo definitivo de uma pessoa sobre um bem adquirido por ela através do primeiro uso estará necessariamente caindo em uma contradição performativa por defender uma daquelas duas normas, que pessoas podem ser impedidas fisicamente de usar meios do ambiente (cai em contradição performativa por negar o direito de autopropriedade), ou que pessoas não ganham o direito de uso exclusivo e/ou definitivo dos meios com o primeiro uso (cai em contradição performativa por levar à criação de mais conflitos).
E, conforme já foi dito, a ética de Hoppe, incluindo a parte da apropriação original, não cai na guilhotina de Hume, pois Hoppe deriva um descritivo de um descritivo.
“A Ética Argumentativa é circular porque Hoppe já pressupõe o homesteading“
Algumas pessoas dizem que Hoppe já pressupõe o homesteading pelo fato de ele supostamente defender que você faz homesteading de sua autopropriedade e que essa seria a justificativa do homesteading, e que isso tornaria o argumento dele circular.
Primeiro, o argumento da Ética Argumentativa para o homesteading não é esse, já o expliquei acima com as citações de Hoppe, dizer que este é o argumento é um espantalho.
Segundo, mesmo se fosse, isso não seria um argumento circular e sim um ratiocinatio polysilogística regressivo, ou seja uma sequência de argumentos na qual a conclusão de um é a premissa do outro, e na qual se comprova primeiro a validade do último argumento da sequência para então se demonstrar que os argumentos necessariamente implícitos neste (e necessários para a existência deste) são verdadeiros (lembrando que este não é o argumento hoppeano do homesteading, mas se fosse não seria circular).
Terceiro, não há como fazer “homesteading do corpo” porque o corpo (no sentido praxeológico do termo, e não fisiológico) é o meio mínimo e primário utilizado para as ações humanas, não há como agir sem ter um corpo, e consequentemente não há como fazer homesteading sem ter um corpo, a propriedade do corpo não é adquirida via primeiro uso, esta questão já foi mais bem esclarecida por Kinsella.[10]
Concluo aqui minha derivação completa da Ética Argumentativa Hoppeana, e as refutações dos espantalhos e erros de interpretação. Com este esclarecimento espero que possamos avançar com o debate nesta questão, abandonando discussões repetitivas originadas por erros de interpretação, e focando no debate lógico que realmente importa.
Para um aprofundamento ainda maior, e uma continuação dos estudos sobre a Ética Libertária, recomendo meus textos Teoria Legal Kinselliana e Responsabilidade Legal em uma Ordem Social Libertária.
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Notas:
[1] Para mais informações a respeito da contradição performativa e sua relação com o Libertarianismo recomendo o artigo de Marian Eabrasu Uma resposta às críticas correntes formuladas contra a Ética Argumentativa de Hoppe disponível no site do Instituto Rothbard assim como o ensaio de Habermas Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso, contido em seu livro Consciência Moral e Agir Comunicativo, assim como o artigo de Apel The Problem of Philosophical Foundations in Light of a Transcendental Pragmatics of Language.
[2] Para mais informações a respeito da Praxeologia e de sua fundamentação recomendo a leitura do livro de Hoppe A Ciência Econômica e o Método Austríaco disponível no site do Instituto Mises Brasil, assim como o artigo de Rothbard A Praxeologia: o método dos economistas austríacos, e o próprio Ação Humana de Mises.
[3] Para mais informações a respeito desta fundamentação praxeológica e do conceito de propriedade recomendo a leitura do capítulo 2 do livro de Hoppe Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo e do artigo A ética e a economia da propriedade privada, e a palestra de Hoppe de 2016 na PFS.
[4] Para quem quer saber mais sobre a Ética do Discurso de Habermas recomendo o já citado Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso, assim como o livro de Robert Alexy Teoria da Argumentação Jurídica.
[5] A norma da autopropriedade e sua fundamentação são mais bem apresentadas e explicadas nos capítulos 7 do Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo e 12 do The Economics and Ethics of Private Property, assim como em sua palestra de 2016 na PFS.
[6] Para mais informações acerca da apropriação recomendo o capítulo 7 já mencionado, assim como a palestra.
[7] Habermas explica sobre esta separação de pressuposições em Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso.
[8] Conceito bem abordado por Mises em Ação Humana.
[9] Argumento refutado por Marian Eabrasu em seu artigo já mencionado, para refutações gerais de argumentos contra a Ética Argumentativa recomendo este artigo, Uma resposta às críticas correntes formuladas contra a Ética Argumentativa de Hoppe.
[10] Para mais informações veja Como nos Tornamos Donos de Nós Mesmos.
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