Por Richard Storey
[Traduzido por Alex Pereira de Souza]
Antes de entrar em contato com o Prof. Frank van Dun, eu tinha compreendido tudo. Como muitos libertários anarcocapitalistas, eu acreditava que a Igreja, longe de ser um obstáculo ao crescimento do Estado, era a principal promotora do estatismo centralizado no norte da Europa. Embora muitos dos maiores defensores intelectuais da liberdade fossem cristãos (Tom Woods, Lew Rockwell etc. etc.), presumi que eles estivessem errados sobre a Igreja. Um tanto arrogantemente, pensei que eles estavam cegos para os dados históricos e por razões emocionais. Entrei em contato com o bom professor, esperando que ele pudesse me ensinar uma ou duas coisas e, claro, confirmar minhas conclusões. Eu consegui mais do primeiro do que eu esperava. Permita-me delinear a perspectiva histórica que apresentei ao Prof. van Dun antes de fornecer suas respostas.
Eu concordei com a opinião dominante, e.g. A hipótese de Martin Loughlin em Foundations of Public Law — o desenvolvimento do estatismo moderno foi a conclusão lógica da cristandade. Muito antes da Controvérsia da Investidura do século XI, entre o Papa e o Imperador do Sacro Império Romano, a tensão entre a Igreja e o Estado era inevitável. “O problema com essa relação simbiótica era que, levadas até seus fins lógicos, as posições do imperador e do papa não eram facilmente conciliáveis.” No entanto, as duas instituições não podiam questionar a existência ou o propósito da outra. “Do ponto de vista cristão, o governante existe e está equipado com poder por causa da existência do mal no mundo.” (Foundations of Public Law, p.23) O Antigo Testamento, é claro, apresenta um modelo teocrático de monarquia (2 Samuel 23:3), afirmado mais especificamente no Novo Testamento, em 1 Pedro 2:13-14.
O Papa Gelásio I, no final do século V, concebeu a divisão entre os poderes seculares e espirituais para acomodar o papel do Estado romano e também para declarar que o imperador estava sob a autoridade da Igreja, sendo membro dela. Mas “sua visão nunca foi aceita pela autoridade imperial… e a realidade era que os papas eram súditos do império”. Loughlin argumenta que,
“para evitar esses perigos para a posição da Igreja… o Papa Gregório I, no início do século VII, voltou-se para o Ocidente. Sentiu-se que o maior potencial para a Igreja estender sua influência estava no sistema de governo menos desenvolvido das nações germânicas do Ocidente.” (Foundations of Public Law, pp. 23-24)
O papel do direito público romano e, portanto, do Estado foi desenvolvido pela Igreja depois que Teodósio emitiu o Édito de Tessalônica em 380 d.C., tornando o cristianismo trinitário de Nicéia a religião imperial oficial, cimentando o catolicismo romano. Assim, fortemente influenciado por juristas romanos, até mesmo o idioma da tradução da Vulgata latina da Bíblia de Jerônimo continha linguagem jurídica romana. Certamente, não foi surpresa que o latim, sendo a introdução à alfabetização no norte da Europa, fosse também a introdução dos conceitos estatistas de governo romanos. A evidência de seu sucesso não poderia ter sido mais clara para mim, com a inclusão de tanto direito romano nos códigos de direito germânicos produzidos entre os séculos V e IX. Portanto, concluí, os estados do norte da Europa provavelmente se desenvolveram à medida que os reis buscavam a mesma soberania absoluta que os papas exerciam.
Na minha opinião, o desenvolvimento do estado corporativo nada mais era do que a secularização da monarquia papal que liderava “o corpo de Cristo”. No Novo Testamento, Romanos 12 e 1 Coríntios 12, a analogia do corpo de Cristo ilustra os cristãos como membros de um único organismo. Paulo teve uma educação grega e é evidente pelos escritos do Novo Testamento que podem ser atribuídos a ele que ele era hábil em retórica e literatura grega. Ele estava familiarizado com o conceito corporativo grego de sociedade (imagine o corpo político de Platão) e adotou isso para as congregações esparsas do scristianismo primitivo, usando a mesma linguagem para descrever a Igreja — ecclesia. A autoridade papal começou a se assemelhar mais a um monarca, tornando-se mais jurisdicional e emitindo decretos para as igrejas. Formado como advogado romano, o papa Leão I decidiu que a famosa passagem de Cristo construindo sua igreja sobre a rocha, do Evangelho de Mateus, era uma referência ao próprio Pedro em um cargo peculiar. O efeito da decisão de Leão I foi estabelecer
“a Igreja como uma sociedade de cristãos — em termos de direito romano, uma corporação — e [autoriza] um tipo distinto de estrutura de governo […] uma monarquia. […] É com base na formulação de Leão I que a distinção entre a pessoa e o cargo — talvez o mais fundamental no desenvolvimento do direito público — foi traçada.”
Desta forma, desenvolveu-se o conceito de uma entidade político-corporativa que outorgava autoridade, até mesmo autoridade suprema, a determinados cargos estatais; assim como a atribuição de responsabilidade a esses cargos, em vez dos indivíduos que os assumem. Assim, papa a nemine judicatur (o papa não é julgado por ninguém). A soberania do chefe da família (o paterfamilias) foi assumida por uma autoridade pública. Essa, eu acreditava, era a semente que cresceria no estado moderno, feito de indivíduos que podem assumir “cargos públicos” e, por meio de uma massa inchada e irreconhecível de direito público, tributar coercitivamente a renda da população com impunidade.
No entanto, o Prof. van Dun mudaria meus pontos de vista. A seguir, trechos de sua correspondência comigo, descrevendo o caso de que a Igreja foi de fato a maior limitação para a ascensão dos estados no norte da Europa e, tendo tido tanta dificuldade com poderosos poderes políticos centralizados no sul da Europa, eles dificilmente poderiam desejar voltar a tais condições. A Igreja não promoveu o estatismo do direito romano, mas, se alguma coisa, incorporou aqueles elementos prudentes dele que foram originalmente desenvolvidos privadamente por meio de disputas civis. Mais importante ainda, a Igreja certamente desenvolveu um sistema patriarcal de autoridade espiritual em sua própria hierarquia corporativa, mas isso não significa que promoveu autoridade política centralizada absoluta para governantes seculares. De fato, fez exatamente o oposto, promovendo o personalismo e a responsabilidade de vizinhança no corpo de Cristo; isso fez dela a principal instituição a ser superada para que os governantes atingissem a posição de irresponsabilidade que fundamentaria o estado moderno.
Por Frank van Dun [da correspondência por e-mail]
A maioria de seus comentários se encaixa no que ainda é a visão politicamente correta do período medieval e do papel da Igreja nele. Em meus anos de juventude, eu também a tomei completamente. Foi o que me ensinaram na escola e o que foi repetido de uma forma ou de outra na mídia e no entretenimento. Ela se encaixa no impulso para o estabelecimento de escolas controladas pelo estado no século XIX e sua “ideologia do Iluminismo” feita sob medida, que (como tanto da ideologia progressista posterior) tinha um interesse vital em obliterar tudo o que estava associado à ordem sem estado do período medieval, e especialmente com o papel das igrejas na educação formal. A maior parte está errada, como descobri mais tarde. No entanto, é particularmente tenaz, especialmente entre os anglófonos, que tendem a extrapolar gratuitamente da Idade Média inglesa para a situação totalmente diferente no continente.
A Common Law era uma afirmação do poder dos reis normandos, que reivindicavam o título de todas as terras da ilha e também reivindicavam a fidelidade de todos os habitantes. Nada disso existia no continente, onde havia uma pluralidade de jurisdições sobrepostas, muitas vezes concorrentes, e onde as relações feudais eram quase em toda parte não transitivas (o vassalo de meu vassalo não é meu vassalo e, portanto, não é obrigado por lei a estar à minha disposição). A centralização do poder foi incorporada ao sistema inglês a partir da Conquista em diante; era virtualmente impossível de alcançar no continente até que a revolução da pólvora deu uma vantagem decisiva aos exércitos (mercenários e permanentes) profissionais altamente capitalizados. No entanto, como o absolutismo real não durou tanto na Inglaterra quanto no continente, a “liberdade inglesa” tornou-se o modelo a seguir no século XVIII.
A Origem do Estado
A origem do Estado moderno no Ocidente está, de fato, na transformação da “regência” medieval no moderno “governo político”. Atingiu sua plena expressão no século XVI, quando alguns dos principais reis medievais se tornaram monarcas, fingindo que seu dominium se estendia tanto quanto seu imperium. A ideia de que o rei era essencialmente um primus inter pares [primeiro entre iguais], com prerrogativas especiais, mas sem direitos superiores, estava praticamente morta. O outro lado da moeda foi o surgimento da ideia de uma economia nacional que coincidia geograficamente com o território político controlado pelo monarca. Sua implementação exigiu a organização formal dos departamentos regulares de governo e sua profissionalização e burocratização — em outras palavras, a separação organizacional dos aspectos administrativos (“técnicos”) do governo dos aspectos puramente políticos. Foi um fator importante na ascensão da burguesia, que não era exclusivamente uma classe comercial, mas também e em muitos lugares (especialmente nas capitais e grandes centros de comércio) preponderantemente a classe profissional da qual “funcionários” e “servidores públicos” eram recrutados.
Essa transformação foi, obviamente, um processo demorado com muitas variações locais. Obviamente, algo parecido aconteceu em diferentes contextos geográficos no início da história. No entanto, não houve continuidade histórica ou geográfica entre essas manifestações iniciais de domínio político-econômico e o estado ocidental moderno. Além disso, nenhum desses precedentes foi em seu próprio tempo chamado de “estados”. O termo em si é moderno. Foi [mal] aplicado pelos modernos a quase todas as formas de regência ao longo da história (a Cidade-Estado grega, o Estado Medieval, o Estado Asteca, etc.) independentemente dos governantes reivindicarem ou não ser capazes / ter o direito de governar as família de seus súditos; se regiam ou não pela prerrogativa costumeira ou pelos “direitos de conquista” (os primeiros excluindo e os segundos incluindo os “direitos” de legislar e de tributar à vontade).
“Estado” deriva obviamente do latim “status” (condição, e.g., meu estado de saúde, o estado da economia). No século XV, começou a ser usado nos principados e cidades italianas para se referir à sua “economia política” (o reino, respectivamente cidade, considerado como uma única família). No entanto, ainda hoje permanece uma ambiguidade: o estado como uma economia única (agora geralmente chamado de ‘uma sociedade’) e o estado como o aparato de regência e o governo dentro da sociedade (que coloca cada habitante de um país dentro ou fora do aparato estatal).
O estatismo teve suas origens nos desastres e guerras do século XIV e nas guerras do século XV, mas não surgiu até a crise do século XVI. O estatismo é a ideia de que o governante deve ter não apenas o poder de reger (como comandante supremo em tempos de guerra, como diplomata e juiz em algumas, mas não necessariamente todas as disputas entre seus súditos), mas também o poder de governar. Um governante medieval regia seu reino, mas não governava nada dentro dele, exceto sua própria família ou “economia”. O governo (distinto da regência) era uma questão de governança privada. Cada família tinha seu próprio governo. No entanto, o governo político ou público originou-se nas cidades, quando famílias patrícias e, posteriormente, associações profissionais começaram a pensar em sua cidade como uma única família ou economia sob sua gestão.
O governo da cidade tornou-se o modelo do estado, quando os governantes (reis, duques), por sua vez, começaram a pensar em seu reino como constituindo uma única família semelhante a uma cidade (a civitas) e em si mesmos como os chefes de seu governo. Com seus regulações e ordenações muitas vezes muito intrusivos, o governo da cidade prenunciou o que se tornaria a prerrogativa dos estados: legislação detalhada, monopólio da aplicação da lei, “direitos públicos” de entrada forçada, expropriação “no interesse público” e impostos interpretados como contribuições para a “tesouro público”. A ideia de que o reino do rei era uma única família (uma “economia” em seu próprio direito) foi um passo crucial em direção ao conceito de estado moderno. Muito mais tarde, separar as funções de reger das funções de governar tornou-se uma preocupação central dos defensores do estado constitucional contra a monarquia absoluta: Le Roi règne mais ne gouverne pas [O rei reina, mas não governa]. A ideia básica é que um governante, por definição, está sob a lei, enquanto a função do governo é agir de forma oportunista no interesse da “economia”. À medida que a ideia de Estado surgiu, também surgiu a ideia de que tudo o que acontece dentro do estado faz parte de sua “economia” (sua família fictícia) e, portanto, está sujeito ao seu governo.
No entanto, sempre se podia contar com a Igreja para defender a autonomia das famílias reais contra as tentativas de fundi-las em uma única economia fictícia sob um governo central — em particular, tentativas de transformar reinos em monarquias. É claro que, à medida que os estados se fortaleceram, a margem de influência da Igreja diminuiu. Ela também foi forçada a entrar na família fictícia do estado, a fazer concessão após concessão e a entrar em uma aliança de Trono e Altar (sob a ameaça muito real de que a igreja local seria tomada completamente, talvez até saqueada, pelo governantes locais — como aconteceu na Inglaterra e em regiões protestantes no norte da Europa no século XVI).
A Igreja e “Sistemas de Direito Privado”
Se você consultar o registro histórico, logo perceberá que a Igreja medieval era a grande protetora dos “sistemas de direito privado” — embora fosse mais preciso se referir a eles como sistemas privados de governança. Sim, na época medieval, cidades livres, universidades, associações mercantis, latifúndios, etc., desenvolveram seus próprios sistemas de governança como economias mais ou menos fechadas (privadas) (famílias ou associações de famílias). Eles o fizeram sob a proteção da Igreja.
A Igreja estava tão ansiosa para parar a tendência centralizadora em direção ao “absolutismo do poder político e a adoração do poder dos poderosos” quanto reis e monarcas estavam ansiosos para promovê-la. Além disso, a insistência da Igreja na lei natural manteve esses “sistemas privados” compatíveis entre si quanto aos princípios básicos e impediu que se transformassem em coleções separadas de privilégios de interesse especial. Para usar uma analogia de mercado, a Igreja supervisionou a integridade do sistema de mercado sem interferir na ordenação interna de famílias individuais ou associações de famílias, pelo menos na medida em que não ameaçavam dominar o mercado eliminando à força a independência de outras famílias ou para subverter a autoridade dos princípios da lei natural.
Não tendo um exército próprio, a Igreja teve que confiar na boa vontade dos outros, i.e., em seu prestígio e autoridade moral e teológica (seu capital intelectual). Ao diminuir a autoridade da Igreja e roubando-lhe muita riqueza e renda (e, por implicação, poder de barganha), a crise protestante certamente minou o principal pilar de apoio aos “sistemas privados de governança” medievais que você aparentemente aprecia. Poucos deles sobreviveram à turbulência da Reforma, da qual o estado emergiu como o claro vencedor.
Criastianismo Corporativo vs. Estatismo Corporativo
A Igreja como “corpo (corpus) de Cristo” certamente é uma “corporação”, mas apesar de algumas semelhanças estruturais, nunca foi uma corporação no sentido jurídico moderno da palavra. A Igreja medieval estava ancorada institucionalmente nas igrejas locais (bispados) que eram doutrinariamente “unificadas na fé”, mas de modo algum “governadas” a partir de um único centro (“Roma”). Não havia família ou economia da “Igreja” (i.e., do “corpo de Cristo”). As “províncias da Igreja” (arcebispados) não estavam relacionadas com “Roma” da mesma forma que as “Provinciae” romanas estavam relacionadas com a sede imperial em Roma, Constantinopla, Ravena, ou onde quer que o Imperador tivesse a corte.
Até o século XI, a unidade prática da Igreja consistia na prática dos bispos locais de pedir conselhos ao Bispo de Roma, principalmente sobre questões doutrinárias relativas à fé e ética cristã e, ocasionalmente, sobre questões de natureza diplomática. Envolvia o envio de cartas (que levavam semanas, meses, às vezes mais de um ano para chegar ao seu destino, se chegassem) ou aproveitar a oportunidade para discutir certos assuntos com um “legatus” papal visitante. Doutrina à parte, o papa não tinha autoridade e não era responsável por nada que um bispo fizesse ou tolerasse. A “excomunhão” era o único meio bastante eficaz que “Roma” possuía para manter uma medida de controle sobre os bispos (ou outros lordes, incluindo imperadores), mas era eficaz apenas na medida em que tinha amplo apoio entre a população em geral (que teve que aprender por outros canais que não os controlados pelo bispo ou governante alvo). Outras “repreensões oficiais” eram expressões de desagrado em grande parte simbólicas e facilmente ignoradas.
No século XII, o direito canônico foi codificado, mas não era um instrumento do governo central da Igreja. Permaneceu inalterado até que Bento XV emitiu uma nova edição no final da Primeira Guerra Mundial. As primeiras tentativas de estabelecer um escritório central de assuntos da Igreja datam do século XV e consistiam principalmente na organização de arquivos sistemáticos e abrangentes de correspondência recebida e enviada pelo papa. O governo formal da Igreja, a Cúria, foi organizado em meados do século XVI, quando o “estado moderno” estava rapidamente se tornando a nova realidade europeia, conflitos locais e não tão locais explodiram em guerras devastadoras e a gestão das relações diplomáticas da Igreja virou um pesadelo efetivo.
No entanto, mesmo assim, a Igreja Pós-Reforma permaneceu descentralizada no que diz respeito a todos os assuntos “econômicos”. O “corpo de Cristo” não possuía nenhuma propriedade (no sentido moderno de propriedade). O Papa falava com autoridade moral para todos os fiéis, mas não tinha dominium nem imperium (exceto no Estado Pontifício, onde na maioria das vezes a aristocracia local elegia um dos seus para a Sé Papal). Sob a lei da Igreja, o papa, como outros bispos, era um intendente ou administrador da propriedade doada à Igreja (o “corpo de Cristo”) com o propósito de servir aos interesses da fé, não aos interesses de qualquer nobre local ou governante. Portanto, a (sempre relativa) isenção de impostos das terras da Igreja: tributar as terras da Igreja — de modo mais geral, usá-las para fins políticos — seria uma traição à confiança dos doadores e, portanto, violaria seu direito de dispor de suas propriedades para fins políticos. fins lícitos. (Em alguns países protestantes, fazer uma doação à Igreja Católica era considerado crime. Isso envolvia retratar deliberadamente o papa como “um príncipe estrangeiro”, i.e., ofuscar a distinção entre a Igreja e o Estado Papal na Itália central.)
Individualismo Luterano
Hoje, o tipo mais conhecido de anarcolibertarianismo é provavelmente algum tipo de anarcocapitalismo “rothbardiano”, que (como tantas outras teorias anglo-americanas modernas) pressupõe um (o que chamo de) individualismo luterano, sobre o qual se sobrepõe uma estrutura de propriedade e relações contratuais, mas que não presta muita atenção às questões de responsabilidade e argumentos justificativos. [O próprio Rothbard estava ciente dessa deficiência, mas nunca foi além de algumas referências à teoria medieval da lei natural, que obviamente precedeu o advento do individualismo “luterano” (“Aqui estou e não posso ser diferente”). Ele permaneceu praticamente em silêncio sobre a grande lacuna entre o conceito medieval de lei natural e a moderna “teoria dos direitos naturais” pós-Reforma.]
Quase desconhecido hoje é o libertarianismo medieval original, que era anarquista não apenas no sentido de estar preocupado e situado em um ambiente sem estado, mas também no sentido de que pretendia ser anti-estado (i.e., contrário à concentração, a fortiori centralização do poder político em monopólios de governo, aplicação, legislação, adjudicação e muito mais). Considere esta citação:
“[Ele(a)] diz não, e deve dizer não, ao absolutismo do poder político e à adoração do poder dos poderosos em geral… constitui a única proteção definitiva contra o poder do coletivo e, ao mesmo tempo, implica a completa abolição de qualquer ideia de exclusividade na humanidade como um todo.”
O que significa o “ele(a)” entre colchetes? Se você responder “libertarianismo”, você pode pensar que a citação é de um texto ou referindo-se a Murray Rothbard. Na verdade, o autor é Joseph Cardeal Ratzinger (mais tarde Papa Bento XVI), e “ele(a)” significa “a fé católica”. Ratzinger sempre enfatizou a continuidade da teologia católica desde suas formulações antigas e em particular medievais até o presente. Essa teologia era explicitamente libertária — embora não no sentido do individualismo moderno (i.e., luterano ou pós-luterano). Nos tempos medievais, ainda não havia uma concepção luterana do homem como “um indivíduo” (i.e., um corpo individual). Em vez disso, havia a concepção muito católica do homem como uma pessoa individual entre pessoas — um conceito que corresponde à ideia trinitária cristã de Deus: Deus não é uma pessoa, mas, no entanto, um ser pessoal individual: nem o Pai nem o Filho nem o Espírito é pensável como sendo independente dos outros dois. Da mesma forma, nenhuma pessoa humana é pensável como um corpo humano existente independentemente, sem consideração de quão indivisível (individual) e biologicamente independente possa ser. Na verdade, cada um de nós é uma pessoa individual, independentemente de qualquer progresso na ciência que possa levar à possibilidade de tornar os corpos humanos divisíveis.
Somos pessoas entre pessoas: a menos que “Você” e “Eu” sejam pensados como “nós”, eles não representam pessoas. A ideia católica e a valorização da pessoa humana, em conjunto com a ideia etimologicamente correta de consciência (con-scientia) como conhecimento compartilhado, comum, nos deu a ideia de humanidade (humaneness) como distinta da mera humanness. A consciência só pode ser determinada por meio da argumentação pública. A Igreja estava (e está) comprometida em garantir a integridade desse processo argumentativo da mesma forma que um juiz deve garantir a integridade do processo em seu tribunal.
A Reforma Luterana introduziu o conceito de consciência privada. No entanto, “consciência privada” é um oxímoro da mesma ordem que “física privada”, “matemática privada”, etc. É propriamente consciência apenas em relação a Deus (cujo acordo supostamente dado em particular com a interpretação das Escrituras justifica a opinião de que alguém age conscienciosamente): “Só respondo a Deus, não a mais ninguém”. Não é cons-scientia em relação a outros seres humanos. As relações entre os seres humanos são consideradas “seculares”, i.e., desprovidas de qualquer dimensão que transcenda o tempo e o lugar. Em suma, são puramente físicas; são relações de poder. Conjugada a outra invenção “moderna”, a reconstrução acadêmica do que se supunha ser o puro direito romano (livre de elementos medievais e cristãos), essa ideia de um “mundo do homem” puramente secular levou à visão de que o direito era um sistema de relações contratuais e de propriedade. A “propriedade” definia a esfera na qual uma pessoa era legalmente livre para agir de forma irresponsável, e o “contrato” era a única maneira pela qual tais esferas de propriedade poderiam ser redefinidas legalmente, de modo que as relações jurídicas nunca se afastariam muito em relação às relações de poder. A lei deveria ser mantida por meio da negociação (o uso hábil de qualquer poder de barganha que se pudesse reunir).
Seguiu-se que uma nova teoria moderna do direito natural tinha que ser formulada e adaptada ao direito romano (ou o que era pensado e ensinado como o direito romano). A nova ênfase na propriedade e no contrato levou a substitutos proprietários e contratistas para a velha ideia da lei natural como a participação do homem no desdobramento da razão divina (e, portanto, objetiva). Essa participação exigia argumentação intensiva e contínua para mantê-la livre de distorções e preconceitos subjetivos e idiossincráticos. Assim, com o advento da “modernidade”, a cultura medieval católica de responsabilidade foi descartada.
A Ascensão do Estado
O direito romano (modernizado) obviamente atraiu os primeiros governantes modernos (i.e., monarcas políticos, não mais meros reis ou chefes de sua tribo) porque derivava toda a autoridade do imperador por meio de uma ordenação hierárquica de posições societais, cada uma das quais era responsável apenas à autoridade superior, não aos seus pares e muito menos aos seus próprios súditos. Em outras palavras, era um sistema de irresponsabilidade distribuída. O imperador (agora o monarca absoluto) não era responsável a ninguém, e nenhuma autoridade era responsável, exceto a uma autoridade superior, por qualquer coisa que fizesse dentro de seu próprio domínio ou área de competência legal legalmente reconhecida. Assim, o poder absoluto do pater familias romano sobre sua família era temperado apenas pelo costume e tradição (“decorum”) e só podia ser restringido legalmente pela legislação imperial. Combinado ao individualismo luterano, isso resultou em um novo tipo de libertarianismo, centrado no indivíduo como senhor absoluto de seu patrimônio, não responsável perante ninguém pelo que ali fazia, mas livre para fazer tratados e contratos com os donos de outros patrimônios. O proprietarianismo e o contratismo, as formas dominantes do libertarianismo moderno, são de fato sistematizações jurídicas do individualismo “luterano” moderno.
A irresponsabilidade distribuída foi uma combinação perfeita para a insistência luterana na consciência privada, que também exclui a responsabilidade de qualquer estranho (exceto Deus). Assim, a ideia medieval de liberdade, que derivava da convicção de que, pelo menos em princípio, todo ato pode ser questionado publicamente quanto à sua justificabilidade, foi substituída pela ideia moderna de liberdade, centrada em uma esfera “privada” dentro da qual não é preciso se preocupar com justificação (exceto como questão de consciência privada). A ascensão do conceito de soberania foi o desdobramento lógico desse novo conceito de liberdade na esfera política. O Soberano (primeiro o monarca absoluto, depois o estado independente) é o senhor absoluto de seu domínio territorial e não é responsável perante ninguém pelo que faz lá. Assim, todo o espectro do pensamento político moderno, do anarcolibertarianismo ao estatismo absolutista, se encaixa formalmente na mesma ideia de direito. Além disso, é logicamente possível passar de uma ponta a outra do espectro, simplesmente reorganizando os direitos e obrigações de propriedade por meio de contrato ou doação. A teoria do contrato social fez amplo uso dessa possibilidade nas tentativas de justificar o Estado.
O anarcolibertarianismo moderno não tem nenhuma objeção lógica a isso, se aceita a eliminação da “velha” teoria da direito natural (com sua ênfase na responsabilidade de pessoa para pessoa) e aceita a teoria moderna (que declara que a propriedade dos recursos materiais e a liberdade de contrato sejam os únicos “direitos naturais”). Se fizer isso, torna possível ceder propriedade e direitos a pessoas artificiais (corporações, que podem ser corporações políticas ou empresariais) de tal forma que nenhuma pessoa natural é responsável pelas dívidas da corporação com seu próprio patrimônio “privado”. Nem o chefe de estado nem os membros do governo ou os cidadãos do estado são pessoalmente responsáveis pela dívida pública. Nenhum dos diretores, gerentes, acionistas ou funcionários de uma coporação “pública” é pessoalmente responsável por sua dívida. Os libertários podem muito bem protestar que os estados são de fato criados e viciados por injustiças passadas, mas o mesmo acontece com muitas, se não a maioria, das propriedades privadas. A maioria dos libertários (na verdade, a maioria das pessoas) aceita doutrinas como título por prescrição e posse vaut titre, que tornam possível considerar injustiças passadas não mais legalmente relevantes. Isso é uma violação do direito estrito de propriedade e contrato, mas uma atitude sensata do ponto de vista da velha teoria do direito natural, que não se preocupa em manter “um sistema jurídico”, mas em encontrar soluções práticas e justas para os problemas de convivência apelando para a consciência comum (não a “privada”) dos homens.
Enquanto o anarcocapitalismo moderno continua sendo um exercício de poltrona, o anarcolibertarianismo medieval foi uma experiência real. Seria insincero tentar entendê-lo sem uma apreciação do papel da Igreja como sua autoridade moral e guardiã. Embora anárquico, o catolicismo medieval obviamente não era anarcocapitalista. As condições para a formação de capital ainda não existiam na cristandade latina. Elas tiveram que ser construídos do zero em um ambiente onde não havia infraestrutura para falar, além de algumas vilas e cidades romanas remanescentes, em grande parte decrépitas. A Igreja desempenhou um grande papel no início e na manutenção do processo de formação do capital, sobretudo através da sua adesão e protecção das ordens monásticas: os mosteiros limparam as terras, melhoraram a agricultura, fizeram da poupança um modo de vida, serviram de reserva de riqueza e forneceram refúgio em tempos de perigo. Ao fundar mosteiros, a Igreja os colocou sob a proteção dos bispos locais sem diminuir seu autogoverno.
A Idade Média sem estado foi o único exemplo de uma ordem anárquica em funcionamento no Ocidente. Sua religião comum de paz e consciência teve uma influência quase insuficiente, mas ainda assim notável, em coibir as manifestações mais flagrantes de busca violenta de poder e riqueza. Na ausência de imposição armada, apenas a contenção moral pode funcionar, mas precisa ter uma espinha dorsal institucional. A Igreja medieval, apesar de todas as suas deficiências demasiado humanas, tornou possível a ordem medieval “anárquica” (sem estado). O desaparecimento da fé comum no período da Reforma pôs fim à função diplomática da Igreja. Isso levou quase imediatamente a uma orgia de conflitos violentos que se estenderam até o estabelecimento, em 1648, do sistema europeu de estados soberanos — um acordo de compartilhamento de mercado entre monopólios de defesa territorial consolidados.
À luz da história, você pode imaginar o que pode acontecer em um “sistema” anarcocapitalista que permita a formação de grandes ou megacorporações nos setores de aplicação armada da economia? De acordo com a maioria dos anarcocapitalistas modernos, não há nada de errado com essas corporações, mesmo que estejam estruturadas de tal forma que seja impossível descobrir quem as possui (e, portanto, é pessoalmente responsável por suas dívidas e outras obrigações). E de qualquer forma, mesmo que os proprietários pudessem ser identificados, quem faria valer “a lei do mercado” contra elas? Quem romperia seus acordos de compartilhamento de mercado? Certamente, não adianta responder que as corporações agiriam contra seus donos? Como tantas vezes, Platão tem a última palavra: quem aplicaria a lei contra os aplicadores da lei? A teoria anarcocapitalista moderna parece pressupor que o crime não compensa e que, portanto, o mercado da justiça será sempre mais lucrativo do que o mercado da injustiça.
Valores Libertários vs. Valores Conservadores
Como você sabe, Hoppe vem se afastando das posições estritamente individualistas de que não há “bens públicos” e que todas as referências à cultura, tradições, etc., não passam de manobras estatistas desonestas. O fenômeno da imigração em massa, que provavelmente foi o que mais o levou a fazê-lo, sem dúvida representa uma séria ameaça à consciência já emagrecida do Ocidente. Isso pode ter levado ao ponto de que ter a oportunidade de fazer o que quiser (com sua própria propriedade) pode ser o ideal de liberdade pessoal de qualquer indivíduo, mas não faz nada para promover a causa da liberdade a longo prazo. Especificamente, não oferece nenhum foco educacional na promoção da consciência dos valores e virtudes comuns aos quais as pessoas precisam poder apelar se quiserem se estabelecer pacificamente, quase rotineiramente e em um espírito de respeito mútuo pela liberdade de cada um, os muitos pequenos e grandes conflitos que são o tempero da vida cotidiana.
Muitos, talvez a maioria dos libertários americanos, gostam de se apresentar como aderindo a uma filosofia “moderna” (científica, quase livre de valores). Eles fingem não ter necessidade de apelos à consciência comum e afirmam que podem fazer apelos ao interesse próprio ou à busca de lucro de cada indivíduo. Como uma filosofia ou programa educacional, isso não soa muito tranquilizador. Ela remonta à redução da ética de Hobbes à psicologia da paixão e do desejo e, em particular, à máxima de Hume “a razão é e deve ser escrava das paixões” para justificar a afirmação de que a racional (i.e., calculista e prudencial, mas sem princípios) busca auto-interessada do lucro funciona para o benefício de todos. Como Hume pretendia, seu ditado afirma uma verdade universal necessária. Como tal, deve aplicar-se à educação, bem como a qualquer outra atividade humana. No entanto, pode-se perguntar: é o que Hume teria ensinado a seus filhos, se tivesse algum? Teria ele aprovado as universidades de hoje, que chegam assustadoramente perto de institucionalizar sua ideia de que “o ensino superior é e deve ser escravo da política” (tomando a política como a expressão do equilíbrio das paixões no nível social)?
A Consciência Comum
Muitas pessoas acreditam que o abuso do monopólio dos meios de violência defensiva pode ser contido pela força da fé em um único código moral, compartilhado por governantes e súditos (“a verdadeira constituição, escrita no coração dos homens e preservada pela educação”).
Se — como era o caso na Idade Média — a fé ou código cobria uma área geográfica muito mais ampla do que qualquer jurisdição política ou associativa local, então o senso comum de “o que é certo” tornava relativamente fácil organizar não apenas a oposição local ao abuso local, mas também coalizões externas para exercer pressão, in extremis para ir à guerra contra governantes desonestos. Se existe ou não uma consciência comum à qual se pode apelar, faz uma enorme diferença. O confucionismo e o taoísmo provavelmente desempenharam uma função semelhante na história da China, mas não desafiaram a centralização do poder político nas mãos do imperador. Nesse aspecto, eles se assemelhavam mais ao estoicismo que prevaleceu por um tempo como a filosofia mais ou menos oficial do Império Romano do que à Igreja latina, que trabalhou arduamente para impedir tanto a ressurreição de um império no Ocidente quanto a adoção de qualquer coisa que cheirasse a “cesaropapismo” ao longo das linhas bizantinas. A luta reconhecidamente apenas parcialmente bem-sucedida pela independência da Igreja foi o fator decisivo na formação da cultura e da civilização européias.