Texto autoral
Este texto é um tanto incomum pelo tema que aborda: um livro de Martin Heidegger. De fato, os temas dos artigos publicados nos últimos meses não são tão propícios para um tema como esse, salvo alguns textos acerca de metodologia econômica publicados aqui, como A Dimensão Interpretativa da Economia, que abordam um tema que possui algo minimamente comum com o que será aqui falado neste texto: hermenêutica filosófica. O texto é feito visando aqueles que talvez se interessem pelo pensamento do filósofo alemão, embora não tenham lido.
I.
Ser e Tempo é uma biografia do animal contemporâneo em seu hábitat enfumaçado, em meio às luzes da cidade, a projetar em seus muros cimentados sombras fantasmagóricas, anestesiado pelo soar da música ligeira dos divertimentos noturnos que aí têm lugar, dançando à beira do abismo, em sua ânsia desenfreada pela rapidez que mascara a morte
Heidegger: Facticidade e Experiência Cristã, p. 255
Ser e tempo é um livro de difícil leitura, sua linguagem é extremamente complicada para leitura, talvez uma pergunta que ronde muitos que cheguem a ler esse livro é o porquê de ser desse modo.
A primeira das respostas é que o livro foi escrito originalmente em alemão, os autores que escreveram em alemão não tem tanta fama, ao menos entre os não falantes de alemão, de escreverem bem e em serem claros. Pessoalmente, porém, considero Ser e Tempo um livro bem claro em relação aos de outros autores como Hegel por exemplo.
De todo modo, o principal motivo para ser e tempo ter sido escrito com a linguagem “estranha” que foi, até mesmo para falantes de alemão, foi pelo fato de uma noção fundamental dentro do pensamento de Heidegger, ao menos nessa fase de sua filosofia: preconceitos.
A noção de “preconceito” é também uma noção de hermenêutica filosófica, Gadamer foi o maior responsável por desenvolvê-la, um preconceito é tratado tão somente como uma “noção pré-concebida”, ou como um “plano de fundo” que acompanha nossa compreensão acerca “das coisas”.
O linguajar usado até aqui com certeza não teria sido utilizado por Heidegger, mas a questão é tentar explicar o que se compreendeu de uma leitura do livro com um tanto de atenção. E a primeira delas é esta: Heidegger busca fugir, com sua terminologia, de toda filosofia “prévia” ou “herdada”.
II.
Ser e Tempo, desse modo, estabelece-se como um grande confronto a toda a filosofia até então, a todo o modo de se filosofar, embora não seja uma rejeição disso tudo. A questão fundamental colocada é a questão do ser, a tradição da filosofia é acusada de tê-la esquecido, embora nunca tenha deixado de testemunhar o fato de que ela é uma questão — embora fosse muitas vezes tratada como “trivial” — e de que o “ser” se dá.
A questão do ser é, segundo Heidegger, a questão mais fundamental e, devido ao modo errôneo pelo qual foi tratada ao longo de toda a história da filosofia, precisa ser re-colocada. Uma série de preconceitos foram colocados, não errôneos, mas se derivando deles uma conclusão precipitada: a de que por conta disso [desses preconceitos] a questão do ser deve ser descartada. Tais preconceitos são: “ser é o mais universal dos conceitos”, “ser é indefinível”, “ser é o conceito evidente em si mesmo”.
A tese que Heidegger buscava esclarecer em seu escrito era a de que o tempo é o horizonte possível de toda compreensão do ser, e que, pela tradição, o ser foi sempre tratado segundo uma compreensão do tempo (ou, em um termo de Heidegger, uma ekstase) específica: foi dada uma primazia ao presente. Tomou-se o ser como “substância” (ousia), como “permanência” ou “presença vista” (daí o termo de Derrida a se referir à metafísica como sempre sendo “metafísica da presença”).
Pois bem, como deveria ser estabelecida a questão do ser? Heidegger coloca que, visando um reestabelecimento provisório da questão do ser, deve-se começar por um “ente privilegiado”, partindo de uma análise [fenomenológica] do que é uma “pergunta”. Todo perguntar, coloca Heidegger, é uma busca, e toda busca possui uma direção prévia do que busca. Questionar, desse modo, é buscar algo, de forma ciente. Todo questionar possui “aquilo pelo que se pergunta”, ou “questionado” [Gefragtes, em alemão], esse é o sentido de conteúdo da questão, o autor coloca também que todo perguntar por algo é, de certo modo, um perguntar a…. Então além daquilo pelo que se pergunta, existe também “aquilo a que se pergunta”, ou o “interrogado” [Befragtes], que é o sentido de relação da questão. No perguntar por algo, existe também “aquilo que se pergunta” [Erfragtes], ou “o perguntado”, este serve como sentido de realização da questão.
Aquilo pelo que se pergunta, na questão do ser, é o próprio ser, ser é tratado aqui como “o que determina o ente como ente”, decerto uma expressão, à primeira vista, estranha e é uma compreensão, de fato, vaga do que é ser, tal compreensão vaga é um fato, quando se pergunta o que “é” ser, já se está dentro de uma compreensão do “é”, sem no entanto fixarmos o sentido desse “é”, tal compreensão do ser é inicial e prévia somente — é o que se tem —, mas fundamental nas investigações subsequentes.
Aquilo a que se pergunta, o interrogado, é o sentido do ser, sentido, trata Heidegger, é o horizonte no qual se movem as possibilidades de algo, mas, colocando uma noção mais inicial e, creio eu, suficiente, interroga-se pelo que se quer dizer por “ser”, o que é “ser”? Esta é a pergunta pelo sentido do ser.
“Ser”, também, é tratado como sempre sendo “ser de um ente”, um ente, tradicionalmente, é tratado como “aquilo que é”, ou “aquilo que está sendo”, diferente de “ser”, que, como dizemos previamente com outras palavras, é aquilo por meio do qual tudo o que é, é. Tais definições parecem tão claras que a luz de tamanha clareza nos cega, e torna tais “definições”, em verdade, extremamente obscuras.
Sendo “ser” sempre ser de um ente, aquilo que se pergunta na questão do sentido do ser é o próprio ente, este sendo perguntado “em seu ser”.
Os entes são múltiplos e vários, “ser”, em sentido vulgar, é também utilizado como sendo sinônimo de ente, Aristóteles nos diz: “o ser é dito de diversos modos”. Mas, sendo aqui ente aquilo que está sendo, e ser o que lhe fundamenta, a partir de que ente deve-se compreender o sentido do ser?
Heidegger elenca o Dasein, traduzido literalmente como “ser-aí” como sendo aquele ente da qual deve partir a análise. O termo Dasein é designado para se referir ao ente que nós mesmos somos. Tal termo é usado pela mesma razão elencada no início deste texto, Heidegger não se utilizou de termos como “sujeito”, “ser humano”, “o eu”, “consciência” e termos derivados justamente por acreditar que tais termos já são carregados por suposições metafísicas, as quais Heidegger busca confrontar.
Os caracteres fundamentais que aqui devem ser colocados para o Dasein, são:
Dasein se compreende sempre em termos de seu próprio ser.
O ser deste ente (o Dasein) é sempre meu.
A essência, deste ente é sua existência.
São caracteres que, acredito, qualquer explicação rápida por minha parte tenderia a distorcer a intenção original do autor, e há um modo melhor de se elucidar o que se quer dizer pelos assim chamados “existenciais” do Dasein.
III.
Para se compreender melhor a análise de Heidegger, chamada por ele de analítica existencial do Dasein, é importante compreender a “pré-história” e o ímpeto que moveu o autor a nos apresentar essa compreensão no mínimo peculiar da existência humana.
A analítica existencial possui raízes no pensamento do Heidegger ainda jovem. Após a Primeira Guerra, sua ruptura com o “sistema do catolicismo” e seu encontro com a fenomenologia de Edmund Husserl e com a hermenêutica filosófica de Wilhelm Dilthey, o jovem autor resolve ir rumo a um questionamento radical da vida humana, o questionamento tanto de Husserl rumo às coisas mesmas, como a postulação de Dilthey da “vida” como o ponto de partida e aquilo sobre o que a filosofia discursa faz o jovem Heidegger ver como tarefa da filosofia uma “hermenêutica da facticidade”, o primeiro dos projetos a serem realizados em Ser e Tempo que tudo tem a ver com a “analítica existencial”.
“Até aqui os filósofos se ocuparam em degradar a experiência fática da vida como um pormenor secundário e assegurado, apesar de a filosofia surgir precisamente a partir dela e a ela retornar em uma virada totalmente essencial.”
Fenomenologia da Vida Religiosa, p. 15
A mensagem essencial da hermenêutica da facticidade, em Heidegger, é uma captação da vida em seu penhor, em suas dificuldades em seu “estado de ela mesma estar em jogo”, este seria o estado originário da vida. Em obras anteriores a Ser e Tempo, em suas preleções, Heidegger usa uma série de expressões como “Vida Fática”, “eu-histórico”, “eu-situação” e demais termos para ilustrar o que buscava dizer, tais noções culminaram em Dasein, expressão que em alemão denota algo como “existência” em seu sentido cotidiano.
Esse captar da vida em seu estado originário é, antes de tudo, um captar da vida em sua dificuldade, desde Aristóteles temos sustentado que “a vida é difícil”: há diversos modos de se errar a marca da virtude, mas somente uma de atingi-la, de modo que este último é mais difícil, enquanto que o primeiro é mais fácil (Ética a Nicômaco, 1106 b). A vida fática, coloca Heidegger, possui uma tendência de buscar o caminho mais fácil, em fazer as coisas fáceis para si mesma, de modo que a hermenêutica da facticidade seguiria o caminho oposto da tendência predominante na tradição da filosofia: aquela velha tendência que criou os “sistemas”, que nos concedeu eloquentes elucidações sobre o ente e a essência, sobre o ato e a potência, sobre o “fundamento último”, o “princípio absoluto”.
Mas uma hermenêutica da facticidade, certeira de que a vida é composta de diversas quebras e rupturas, mantém olho aberto pelas ambiguidades e irregularidades de nossa existência. A hermenêutica da facticidade é antes de tudo uma postura, uma postura de revolta contra os grandes sistemas e contra toda teoretização e “construção de modelos” da vida, contra a redução da existência humana ao espectro de um mero sujeito em face aos vários objetos e aos “outros”, de reduzir a vida a um “processo objetivo”, todo ímpeto do gênero no final das contas só esconde a verdadeira “experiência humana de indigência perante o incontrolável da vida”.
“O que é inquietante, a efetividade da vida, a existência humana preocupada por sua própria
Fenomenologia da Vida Religiosa, p. 51
segurança, não é tomado em si mesmo, mas, ao invés, é considerado como objeto[…]”
A concepção pega por Heidegger e que, desse modo, culmina em sua compreensão do Dasein, e nas diversas categorias [sic] elencadas ao Dasein: o ser-no-mundo, o ser-com-os-outros, o impessoal, a angústia. A mensagem essencial de toda a compreensão da hermenêutica da facticidade.
A existência humana não é o “fato objetivo” de “se situar num espaço”, de ser um “objeto físico em meio a objetos físicos”, em cuja superfície é refletido luzes, a existência humana tem, antes de tudo, um sentido histórico, no qual toda a vida se articula.
IV.
“O homem é o ente, cujo ser consiste em importar-se com seu ser. Ser ou não ser, ser deste ou daquele modo, não lhe pode ser indiferente. Ele é, em cada momento, aquilo que ele procura ser […]”.
A Gênese da Ontologia Fundamental em Martin Heidegger, p. 140
A compreensão colocada do Dasein, em Ser e Tempo, é a realidade humana em sua existência concreta, é um questionamento radical sobre o próprio modo de ser da “vida”, a velha pergunta de “o que é a vida”. O homem se projeta em função de suas possibilidades no mundo, esquecido do sentido autêntico de sua vida, perde-se no “mundo de suas ocupações”, vive instalado no “momento de agora”, que passa a cada segundo, é o mundo com que se ocupa que determina suas possibilidades, suas escolhas, suas opiniões.
Ele é confrontado com a consciência lhe chamando, ambiguamente, “a ser ele mesmo”, sendo confrontado com ou se perder no impessoal de suas possibilidades dentro do mundo ou a se angustiar, não tendo certeza de sua própria autenticidade, compreendendo-se a partir do seu futuro, que o angustia mais ainda ao lhe ser revelada sua própria transitoriedade e desvelando a radical nulidade de todas as possibilidades ditas “intramundanas” (intra- de dentro, mundano, do mundo), que antes o guiava.
V.
Para conclusão, ou melhor, continuação da subparte anterior, a mensagem que falta é a de esclarecer mais explicitamente o que Heidegger tem a dizer sobre a temporalidade, o fenômeno originário, no qual reside o sentido de ser do Dasein, que guia sua compreensão de si mesmo e, consequentemente, a compreensão do ser. Tal não poderá ser feito aqui, tanto por incapacidade daquele que escreve este texto tanto pelo fato de Ser e Tempo ser um projeto inacabado, e que os posteriores desenvolvimentos no pensamento de Heidegger são marcados por uma grande ruptura (viragem) e uma nova mudança no modo de fazer filosofia do autor.
Leitura recomendada e referências de citações
Heidegger, Ser e Tempo
___________, Fenomenologia da Vida Religiosa
João Amazonas Macdowell, A Gênese da Ontologia Fundamental em Martin Heidegger
Lucas Gonçalves, Heidegger: Facticidade e Experiência Cristã
Theodore Kisiel, The Genesis of Being and Time