Por Ludwig von Mises
[Retirado de Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica, “Epílogo”, §3]
Na terminologia de Marx e de Engels, as palavras comunismo e socialismo são sinônimos. Elas são aplicadas alternadamente sem qualquer distinção entre eles. O mesmo era verdade para a prática de todos os grupos e seitas marxistas até 1917. Os partidos políticos do marxismo que consideravam o Manifesto Comunista como o evangelho inalterável de sua doutrina se autodenominavam partidos socialistas. O mais influente e numeroso desses partidos, o partido alemão, adotou o nome de Partido Social-democrata. Na Itália, na França e em todos os outros países nos quais os partidos marxistas já desempenhavam um papel na vida política antes de 1917, o termo socialista também substituiu o termo comunista. Nenhum marxista jamais se aventurou, antes de 1917, em distinguir comunismo e socialismo.
Em 1875, em sua crítica ao programa de Gotha do Partido Social-democrata alemão, Marx fez uma distinção entre uma fase inferior (anterior) e uma superior (posterior) da futura sociedade comunista. Mas ele não reservou o nome de comunismo para a fase superior, e não chamou a fase inferior de socialismo como se fosse diferente do comunismo.
Um dos dogmas fundamentais de Marx é que o socialismo está fadado a vir “com a inexorabilidade de uma lei da natureza”. A produção capitalista engendra sua própria negação e estabelece o sistema socialista de propriedade pública dos meios de produção. Esse processo “executa-se por meio da operação das leis inerentes da produção capitalista”.1 Ele não depende da vontade das pessoas.2 É impossível para os homens acelerá-lo, atrasá-lo ou impedi-lo. Pois “nenhum sistema social jamais desaparece antes de todas as forças produtivas serem desenvolvidas para o desenvolvimento das quais ele é amplo o suficiente, e novos métodos superiores de produção nunca aparecem antes de as condições materiais de sua existência terem sido carregadas no ventre da sociedade anterior”.3
Essa doutrina é, naturalmente, inconciliável com as próprias atividades políticas de Marx e com os ensinamentos que ele apresentou para a justificação dessas atividades. Marx tentou organizar um partido político que, por meio da revolução e da guerra civil, realizasse a transição do capitalismo ao socialismo. O traço característico de seus partidos era, aos olhos de Marx e de todos os doutrinários marxistas, o de serem partidos revolucionários invariavelmente comprometidos com a ideia de ação violenta. Seu objetivo era se rebelar, estabelecer a ditadura dos proletários e exterminar impiedosamente todos os burgueses. Os feitos dos comunardos de Paris em 1871 foram considerados o modelo perfeito dessa guerra civil. A revolta de Paris, é claro, falhou lamentavelmente. Mas esperava-se que levantes posteriores tivessem sucesso.4
No entanto, as táticas aplicadas pelos partidos marxistas em vários países europeus eram irreconciliavelmente opostas a cada uma dessas duas variedades contraditórias dos ensinamentos de Karl Marx. Eles não confiavam na inevitabilidade da chegada do socialismo. Tampouco confiaram no sucesso de uma revolta revolucionária. Eles adotaram os métodos de ação parlamentar. Eles solicitaram votos em campanhas eleitorais e enviaram seus delegados aos parlamentos. Eles “degeneraram-se” em partidos democráticos. Nos parlamentos, eles se comportaram como outros partidos da oposição. Em alguns países, eles estabeleceram alianças temporárias com outros partidos e, ocasionalmente, membros socialistas sentavam-se nos gabinetes. Mais tarde, após o fim da Primeira Guerra Mundial, os partidos socialistas tornaram-se dominantes em muitos parlamentos. Em alguns países eles governaram exclusivamente, em outros em estreita cooperação com os partidos “burgueses”.
É verdade que esses socialistas domesticados antes de 1917 nunca deixaram de fazer juras falsas aos princípios rígidos do marxismo ortodoxo. Eles repetiram várias vezes que a chegada do socialismo é inevitável. Eles enfatizaram o caráter revolucionário inerente de seus partidos. Nada poderia despertar mais sua raiva do que quando alguém ousou contestar seu inflexível espírito revolucionário. No entanto, eles na verdade, eram partidos parlamentares tal como todos os outros partidos.
De um ponto de vista marxiano correto, conforme expresso nos escritos posteriores de Marx e de Engels (mas ainda não no Manifesto Comunista), todas as medidas destinadas a restringir, regular e melhorar o capitalismo eram simplesmente absurdos de “pequenos-burgueses” decorrentes de uma ignorância das leis imanentes da evolução capitalista. Os verdadeiros socialistas não devem colocar nenhum obstáculo no caminho da evolução do capitalismo. Pois apenas a maturidade total do capitalismo poderia trazer o socialismo. Recorrer a tais medidas não é apenas vão, mas prejudicial aos interesses dos proletários. Mesmo o sindicalismo não é um meio adequado para a melhoria das condições dos trabalhadores.5 Marx não acreditava que o intervencionismo pudesse beneficiar as massas. Ele rejeitou violentamente a ideia de que medidas como salários mínimos, tetos de preços, restrição de taxas de juros, seguridade social e assim por diante são passos preliminares para a concretização do socialismo. Ele visava a abolição radical do sistema de salários, que só pode ser realizada pelo comunismo em sua fase superior. Ele teria sarcasticamente ridicularizado a ideia de abolir o “caráter de mercadoria” do trabalho dentro da estrutura de uma sociedade capitalista pela promulgação de uma lei.
Mas os partidos socialistas, da maneira como operavam nos países europeus, não estavam virtualmente menos comprometidos com o intervencionismo do que a Sozialpolitik da Alemanha do Kaiser e o New Deal americano. Foi contra essa política que Georges Sorel e o Sindicalismo dirigiram seus ataques. Sorel, um tímido intelectual de origem burguesa, condenou a “degeneração” dos partidos socialistas, pela qual atribuía a penetração de intelectuais burgueses. Ele queria ver o espírito de agressividade implacável, inerente às massas, revivido e livre da tutela de covardes intelectuais. Para Sorel, nada contava a não ser tumultos. Ele defendeu a ação direta, i.e., a sabotagem e a greve geral, como passos iniciais para a grande revolução final.
Sorel teve sucesso principalmente entre intelectuais esnobes e preguiçosos e herdeiros não menos esnobes e preguiçosos de empresários ricos. Ele não moveu as massas perceptivelmente. Para os partidos marxistas na Europa Ocidental e Central, sua crítica veemente não passava de um incômodo. Sua importância histórica consistia principalmente no papel que suas ideias desempenharam na evolução do bolchevismo russo e do fascismo italiano.
Para entender a mentalidade dos bolcheviques, devemos novamente nos referir aos dogmas de Karl Marx. Marx estava totalmente convencido de que o capitalismo é um estágio da história econômica que não se limita a apenas alguns países avançados. O capitalismo tem a tendência de converter todas as partes do mundo em países capitalistas. A burguesia força todas as nações a se tornarem nações capitalistas. Quando soar a hora final do capitalismo, o mundo inteiro estará uniformemente no estágio de capitalismo maduro, maduro para a transição para o socialismo. O socialismo surgirá ao mesmo tempo em todas as partes do mundo.
Marx errou nesse ponto não menos do que em todas as suas outras declarações. Hoje mesmo os marxistas não podem e não negam que ainda prevalecem enormes diferenças no desenvolvimento do capitalismo em vários países. Eles percebem que há muitos países que, do ponto de vista da interpretação marxista da história, devem ser descritos como pré-capitalistas. Nesses países, a burguesia ainda não atingiu uma posição governante e ainda não estabeleceu a fase histórica do capitalismo, que é o pré-requisito necessário para o surgimento do socialismo. Esses países, portanto, precisam primeiro realizar sua “revolução burguesa” e precisam passar por todas as fases do capitalismo antes que possa haver qualquer questão de transformá-los em países socialistas. A única política que os marxistas poderiam adotar em tais países seria apoiar a burguesia incondicionalmente, primeiro em seus esforços para tomar o poder e depois em seus empreendimentos capitalistas. Um partido marxista não poderia, por muito tempo, ter outra tarefa que não seja ser subserviente ao liberalismo burguês. Só essa é a missão que o materialismo histórico, se aplicado de forma consistente, poderia atribuir aos marxistas russos. Eles seriam forçados a esperar em silêncio até que o capitalismo fizesse sua nação madura para o socialismo.
Mas os marxistas russos não queriam esperar. Eles recorreram a uma nova modificação do marxismo, segundo a qual era possível para uma nação pular uma das etapas da evolução histórica. Eles fecharam os olhos para o fato de que essa nova doutrina não era uma modificação do marxismo, mas sim a negação do último remanescente que restou dele. Foi um retorno indisfarçado aos ensinamentos socialistas pré-marxistas e antimarxistas, segundo os quais os homens são livres para adotar o socialismo a qualquer momento se o considerarem um sistema mais benéfico para o bem-estar comum do que o capitalismo. Explodiu totalmente todo o misticismo embutido no materialismo dialético e na alegada descoberta marxista das leis inexoráveis da evolução econômica da humanidade.
Tendo se emancipado do determinismo marxista, os marxistas russos estavam livres para discutir as táticas mais adequadas para a realização do socialismo em seu país. Eles não se preocupavam mais com problemas econômicos. Eles não precisavam mais investigar se a hora havia chegado ou não. Eles tinham apenas uma tarefa a cumprir: a tomada das rédeas do governo.
Um grupo sustentou que o sucesso constante só poderia ser esperado se o apoio de um número suficiente de pessoas, embora não necessariamente da maioria, pudesse ser conquistado. Outro grupo não era favorável a um procedimento tão demorado. Eles sugeriram uma estratégia mais atrevida. Um pequeno grupo de fanáticos deve ser organizado como os cavalheiros brancos da revolução. A disciplina estrita e a obediência incondicional ao chefe deveriam tornar esses revolucionários profissionais em aptos para um ataque repentino. Eles deveriam suplantar o governo czarista e então governar o país de acordo com os métodos tradicionais da polícia do czar.
Os termos usados para significar esses dois grupos — bolcheviques (maioria) para o último e mencheviques (minoria) para o primeiro — faz referência a uma votação realizada em 1903 em uma reunião realizada para a discussão dessas questões táticas. A única diferença que separava os dois grupos um do outro era a questão dos métodos táticos. Ambos concordaram quanto ao fim último: o socialismo.
Ambas as seitas tentaram justificar seus respectivos pontos de vista citando passagens dos escritos de Marx e de Engels. Esse é, é claro, o costume marxista. E cada seita estava em posição de descobrir nesses livros sagrados frases que confirmam sua própria posição.
Lenin, o chefe dos bolcheviques, conhecia seus compatriotas muito melhor do que seus adversários e seu líder, Plekhanov. Ele não cometeu, como Plekhanov, o erro de aplicar aos russos os padrões das nações ocidentais. Ele se lembrou de como as mulheres estrangeiras simplesmente usurparam o poder supremo por duas vezes e governaram em silêncio pela vida inteira. Ele estava ciente do fato de que os métodos terroristas da polícia secreta do Czar eram bem-sucedidos e estava confiante de que poderia melhorar consideravelmente esses métodos. Ele era um ditador implacável e sabia que os russos não tinham coragem de resistir à opressão. Como Cromwell, Robespierre e Napoleão, ele era um usurpador ambicioso e confiava totalmente na ausência de espírito revolucionário da imensa maioria. A autocracia dos Romanov estava condenada porque o infeliz Nicolau II era um fraco. O advogado socialista Kerensky falhou porque estava comprometido com o princípio do governo parlamentar. Lenin teve sucesso porque ele nunca teve como objetivo outra coisa senão sua própria ditadura. E os russos ansiavam por um ditador, por um sucessor de Ivan, O Terrível.
O governo de Nicolau II não foi encerrado por uma verdadeira revolta revolucionária. Ele desabou nos campos de batalha. Resultou uma anarquia que Kerensky não conseguiu dominar. Uma escaramuça nas ruas de São Petersburgo removeu Kerensky. Pouco tempo depois, Lenin teve seu 18 de Brumário. Apesar de todo o terror praticado pelos bolcheviques, a Assembleia Constituinte, eleita por direito universal para homens e mulheres, tinha apenas cerca de vinte por cento de membros bolcheviques. Lenin dissipou pela força das armas a Assembleia Constituinte. O curto interlúdio “liberal” foi liquidado. A Rússia passou das mãos dos ineptos Romanov para as de um verdadeiro autocrata.
Lenin não se contentou em conquistar apenas a Rússia. Ele estava totalmente convencido de que estava destinado a levar a felicidade do socialismo a todas as nações, não apenas à Rússia. O nome oficial que escolheu para o seu governo — União das Repúblicas Socialistas Soviéticas — não contém nenhuma referência à Rússia. Foi concebido como o núcleo de um governo mundial. Estava implícito que todos os camaradas estrangeiros por direito deviam lealdade a esse governo e que todos os burgueses estrangeiros que ousassem resistir eram culpados de alta traição e mereciam a pena de morte. Lenin não tinha a menor dúvida de que todos os países ocidentais estavam às vésperas da grande revolução final. Ele esperava diariamente seu colapso.
Na opinião de Lenin, havia apenas um grupo na Europa que poderia, embora sem qualquer perspectiva de sucesso, tentar impedir o levante revolucionário: os membros depravados da intelectualidade que usurparam a direção dos partidos socialistas. Lenin há muito tempo odiava esses homens por seu vício em procedimentos parlamentares e sua relutância em endossar suas aspirações ditatoriais. Ele se enfureceu contra eles porque os responsabilizou pelo fato de os partidos socialistas terem apoiado o esforço de guerra de seus países. Já em seu exílio na Suíça, que terminou em 1917, Lenin começou a dividir os partidos socialistas europeus. Agora, ele estabeleceu uma nova, uma Terceira Internacional, que ele controlou da mesma maneira ditatorial com que dirigiu os bolcheviques russos. Para esse novo partido, Lenin escolheu o nome de Partido Comunista. Os comunistas deveriam lutar até a morte contra os vários partidos socialistas europeus, esses “traidores sociais”, e deveriam providenciar a liquidação imediata da burguesia e a tomada do poder pelos trabalhadores armados. Lenin não diferenciou socialismo e comunismo como sistemas sociais. O objetivo que ele almejava não era chamado de comunismo em oposição ao socialismo. O nome oficial do governo soviético é União das Repúblicas Socialistas (e não comunistas) Soviéticas. No que diz respeito a isso, ele não quis alterar a terminologia tradicional que considerava os termos como sinônimos. Ele simplesmente chamou seus partidários, os únicos defensores sinceros e consistentes dos princípios revolucionários do marxismo ortodoxo, de comunistas e seus métodos táticos de comunismo, porque queria distingui-los dos “mercenários traiçoeiros dos exploradores capitalistas”, os malvados líderes sociais-democratas como Kautsky e Albert Thomas. Esses traidores, ele enfatizou, estavam ansiosos para preservar o capitalismo. Eles não eram verdadeiros socialistas. Os únicos marxianos genuínos foram aqueles que rejeitaram o nome de socialistas irremediavelmente caídos em descrédito.
Assim, a distinção entre comunistas e socialistas veio a ser. Os marxianos que não se renderam ao ditador de Moscou se autodenominam sociais-democratas ou, em suma, socialistas. O que os caracterizou foi a convicção de que o método mais adequado para a concretização dos seus planos de instauração do socialismo, objetivo final comum tanto a eles como aos comunistas, era obter o apoio da maioria dos seus concidadãos. Eles abandonaram os slogans revolucionários e tentaram adotar métodos democráticos para a tomada do poder. Eles não se preocuparam com o problema de saber se um regime socialista é ou não compatível com a democracia. Mas para a conquista do socialismo, eles estavam decididos a aplicar procedimentos democráticos.
Os comunistas, por outro lado, estavam nos primeiros anos da Terceira Internacional firmemente comprometidos com o princípio da revolução e da guerra civil. Eles eram leais apenas ao seu chefe russo. Expulsaram de suas fileiras todos os que eram suspeitos de se sentirem vinculados a alguma das leis de seu país. Eles conspiraram incessantemente e desperdiçaram sangue em rebeliões malsucedidas.
Lenin não conseguia entender por que os comunistas fracassaram em todos os lugares fora da Rússia. Ele não esperava muito dos trabalhadores americanos. Nos Estados Unidos, concordavam os comunistas, os trabalhadores careciam de espírito revolucionário porque eram estragados pelo bem-estar e mergulhados no vício de fazer dinheiro. Mas Lenin não duvidou que as massas europeias tinham consciência de classe e, portanto, estavam totalmente comprometidas com as ideias revolucionárias. A única razão pela qual a revolução não foi realizada foi, em sua opinião, a inadequação e covardia dos funcionários comunistas. Repetidamente ele depôs seus vigários e nomeou novos homens. Mas ele não teve maior sucesso.
Nos países anglo-saxões e latino-americanos, os eleitores socialistas confiam nos métodos democráticos. Aqui, o número de pessoas que desejam seriamente uma revolução comunista é muito pequeno. Muitos daqueles que proclamam publicamente sua adesão aos princípios do comunismo se sentiriam extremamente infelizes se a revolução surgisse e expusesse suas vidas e suas propriedades ao perigo. Se os exércitos russos marchassem para seus países ou se os comunistas domésticos tomassem o poder sem envolvê-los na luta, eles provavelmente se regozijariam na esperança de serem recompensados por sua ortodoxia marxiana. Mas eles próprios não anseiam por honrarias revolucionárias.
É um fato que em todos esses trinta anos de agitação pró-soviética apaixonada nem um único país fora da Rússia se tornou comunista por vontade própria de seus cidadãos. A Europa Oriental se voltou para o comunismo apenas quando os arranjos diplomáticos da política de poder internacional o converteram em uma esfera de influência e hegemonia exclusivas da Rússia. É improvável que a Alemanha Ocidental, França, Itália e Espanha adotem o comunismo se os Estados Unidos e a Grã-Bretanha não adotarem uma política de “désintéressement” diplomático absoluto. O que dá força ao movimento comunista nesses e em alguns outros países é a crença de que a Rússia é movida por um “dinamismo” inabalável, enquanto as potências anglo-saxãs são indiferentes e não muito interessadas em seu destino.
Marx e os marxianos erraram lamentavelmente ao presumir que as massas anseiam por uma derrubada revolucionária da ordem “burguesa” da sociedade. Os comunistas militantes são encontrados apenas nas fileiras daqueles que ganham a vida com seu comunismo ou esperam que uma revolução promova suas ambições pessoais. As atividades subversivas desses conspiradores profissionais são perigosas justamente por conta da ingenuidade daqueles que estão apenas flertando com a ideia revolucionária. Esses simpatizantes confusos e equivocados que se dizem “liberais” e que os comunistas chamam de “inocentes úteis”, os companheiros de viagem e até mesmo a maioria dos membros oficialmente registrados do partido, ficariam terrivelmente assustados se descobrissem um dia que seus chefes falam sério ao pregar a sedição. Mas então pode ser tarde demais para evitar um desastre.
Por enquanto, o perigo ameaçador dos partidos comunistas no Ocidente está em sua posição nas relações exteriores. A marca distintiva de todos os partidos comunistas atuais é sua devoção à política externa agressiva dos soviéticos. Sempre que precisam escolher entre a Rússia e seu próprio país, eles não hesitam em preferir a Rússia. Seu princípio é: certo ou errado, minha Rússia. Eles obedecem estritamente a todas as ordens emitidas por Moscou. Quando a Rússia era aliada de Hitler, os comunistas franceses sabotaram o esforço de guerra de seu próprio país e os comunistas americanos se opuseram veementemente aos planos do presidente Roosevelt de ajudar a Inglaterra e a França em sua luta contra os nazistas. Os comunistas de todo o mundo rotularam todos aqueles que se defenderam contra os invasores alemães de “fomentadores de guerra imperialistas”. Mas assim que Hitler atacou a Rússia, a guerra imperialista dos capitalistas mudou da noite para o dia em uma guerra justa de defesa. Sempre que Stalin conquista mais um país, os comunistas justificam essa agressão como um ato de autodefesa contra os “fascistas”.
Em sua adoração cega a tudo o que é russo, os comunistas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos superam de longe os piores excessos já cometidos por chauvinistas. Eles ficam extasiados com os filmes russos, a música russa e as alegadas descobertas da ciência russa. Eles falam em palavras de êxtase sobre as realizações econômicas dos soviéticos. Eles atribuem a vitória das Nações Unidas aos feitos das forças armadas russas. A Rússia, eles afirmam, salvou o mundo da ameaça fascista. A Rússia é o único país livre, enquanto todas as outras nações estão sujeitas à ditadura dos capitalistas. Só os russos são felizes e desfrutam da felicidade de viver uma vida plena; nos países capitalistas, a imensa maioria sofre de frustração e desejos não realizados. Assim como o piedoso muçulmano anseia por uma peregrinação ao túmulo do Profeta em Meca, o intelectual comunista considera uma peregrinação aos santuários sagrados de Moscou como o grande evento de sua vida.
No entanto, a distinção no uso dos termos comunistas e socialistas não afetou o significado dos termos comunismo e socialismo quando aplicados ao objetivo final das políticas comuns a ambos. Foi só em 1928 que o programa da Internacional Comunista, aprovado pelo sexto congresso em Moscou,6 começou a diferenciar comunismo e socialismo (e não apenas entre comunistas e socialistas).
Segundo essa nova doutrina, existe, na evolução econômica da humanidade, entre a fase histórica do capitalismo e a do comunismo, uma terceira fase, a saber, do socialismo. O socialismo é um sistema social baseado no controle público dos meios de produção e na gestão total de todos os processos de produção e de distribuição por uma autoridade central de planejamento. Nesse aspecto, é igual ao comunismo. Mas difere do comunismo na medida em que não há igualdade das porções atribuídas a cada indivíduo para seu próprio consumo. Ainda há salários pagos aos camaradas e esses salários são graduados de acordo com a conveniência econômica, na medida em que a autoridade central considera necessário para garantir a maior produção possível de produtos. O que Stalin chama de socialismo corresponde em grande parte ao conceito de Marx da “fase inicial” do comunismo. Stalin reserva o termo comunismo exclusivamente para o que Marx chamou de “fase superior” do comunismo. O socialismo, no sentido em que Stalin usou o termo recentemente, está se movendo em direção ao comunismo, mas em si ainda não é comunismo. O socialismo se transformará em comunismo assim que o aumento da riqueza que se espera da operação dos métodos de produção socialistas elevar o padrão de vida inferior das massas russas ao padrão mais elevado do qual desfrutam os distintos detentores de cargos importantes na Rússia atual.7
O caráter apologético dessa nova prática terminológica é óbvio. Stalin acha necessário explicar à vasta maioria de seus súditos o porquê de seu padrão de vida ser extremamente baixo, muito inferior ao das massas nos países capitalistas e ainda inferior ao dos proletários russos nos dias do governo czarista. Ele quer justificar o fato de que os salários e as remunerações são desiguais, que um pequeno grupo de funcionários soviéticos desfruta de todos os luxos que a técnica moderna pode oferecer, que um segundo grupo, mais numeroso que o primeiro, mas menos numeroso que a classe média na Rússia imperial, vive no estilo “burguês”, enquanto as massas, maltrapilhas e descalças, subsistem em favelas congestionadas e são mal alimentadas. Ele não pode mais culpar o capitalismo por esse estado de coisas. Assim, ele foi compelido a recorrer a um novo improviso ideológico.
O problema de Stalin era tanto mais ardente quanto os comunistas russos nos primeiros dias de seu governo que proclamaram apaixonadamente a igualdade de renda como um princípio a ser forçado desde o primeiro instante da tomada do poder pelos proletários. Além disso, nos países capitalistas, o truque demagógico mais poderoso aplicado pelos partidos comunistas patrocinados pela Rússia é despertar a inveja daqueles com rendas mais baixas contra todos aqueles com rendas mais altas. O principal argumento avançado pelos comunistas para apoiar sua tese de que o nacional-socialismo de Hitler não era um socialismo genuíno, mas que era, ao contrário, a pior variedade de capitalismo, era que havia na Alemanha nazista desigualdade no padrão de vida.
A nova distinção de Stalin entre socialismo e comunismo está em franca contradição com a política de Lenin, e não menos com os princípios da propaganda dos partidos comunistas fora das fronteiras russas. Mas tais contradições não importam no reino dos soviéticos. A palavra do ditador é a decisão final, e ninguém é tão prudente a ponto de arriscar oposição.
É importante perceber que a inovação semântica de Stalin afeta apenas os termos comunismo e socialismo. Ele não alterou o significado dos termos socialista e comunista. O partido bolchevique é, como antes chamado, comunista. Os partidos russófilos além das fronteiras da União Soviética se autodenominam partidos comunistas e lutam violentamente contra os partidos socialistas que, a seus olhos, são simplesmente traidores sociais. Mas o nome oficial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas permanece o mesmo.
1 Marx, Das Kapital (7th edition, Hamburg 1914), Vol. I, p. 728.
2 Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, ed. por Kautsky (Stuttgart 1897), p. xi.
3 Ibid., p. xii.
4 Marx, Der Bürgerkrieg in Frankreich, ed. por Pfemfert (Berlim 1919), passim.
5 Marx, Value, Price and Profit, editado por Eleanor Marx Aveling (Nova York 1901), PP· 72-4.
6 Cf. Blueprint for World Conquest as Outlined by the Communist International, Human Events (Washington e Chicago), 1946, pp. 181-2.
7 Cf. David J. Dallin, The Real Soviet Russia (Yale University Press 1944), pp. 88-95.