Escrito por: Echonomics
I. Introdução
O presente texto tem como objetivo apresentar uma crítica austríaca de uma parte constituinte importante da teoria neoclássica do bem-estar, a saber: a teoria das externalidades. Neste primeiro momento não será questionada a validade dos teoremas de otimização da teoria do bem-estar, mas sim a praticabilidade de sua aplicação nos casos que os economistas convencionalmente colocam como “externalidades” a partir de uma extensão do alicerce teórico erguido por Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk e Ludwig von Mises, com auxílio da interpretação de Harold Demsetz do problema.
II. A forma como a questão é colocada
Na teoria convencional, externalidades negativas são custos impostos a terceiros que não participam de um processo de produção ou consumo de uma mercadoria qualquer e que alegadamente não entram no cômputo feito pelo agente gerador desse efeito colateral. Já externalidades positivas são benefícios usufruídos pelos quais não se paga nada no processo de produção ou consumo de uma mercadoria qualquer, de maneira que o agente gerador de tal condição aparentemente não é recompensado economicamente por prover esse serviço extra. No primeiro caso, fala-se em uma disparidade entre os custos privados (o custo considerado pelos agentes que produzem efeitos colaterais negativos) e os custos sociais (o custo privado somado ao custo que é imposto a terceiros e não entra no cômputo realizado pelo referido agente). No segundo caso, a mesma disparidade é observada, mas pela ótica do benefício: uma diferença entre os benefícios privados (aqueles que entram no cômputo do mercado e que geram remuneração a quem provê o serviço) e os benefícios sociais, que constituem o benefício privado somado ao benefício usufruído pelos batizados pela teoria de “caroneiros” ou free riders, que são as pessoas extras que usufruem do serviço sem pagar pelo mesmo (ver GRUBER, 2021).
O objetivo principal do desenvolvimento de tal conceito era o de demonstrar que, dentro do modelo neoclássico, baseado no autointeresse, poderia haver divergências entre o interesse individual e o interesse social, sendo, então, possível que mesmo um arranjo de competição perfeita leve a um estado ineficiente de alocação dos recursos na ausência de alguma intervenção externa. Para tal constatação, basta verificar o a obra “The Economics of Welfare”, de Arthur Cecil Pigou, economista que, utilizando o framework do conceito de “deseconomias” desenvolvido por seu professor, Alfred Marshall, foi responsável pela elaboração de tal tese (BOUNDREAUX; MEINERS, 2019; PIGOU, [1912]/2017).
No entanto, essa abordagem possui problemas. Chegou a hora de analisá-los.
III. A utilização de teoremas de otimização e o pressuposto que muda tudo
O teorema de Coase, segundo a formulação de Demsetz (2011), consiste na afirmação de que, na ausência de custos de transação, os recursos são alocados de forma ótima independentemente da distribuição inicial dos direitos de propriedade, de maneira que o próprio sistema permitiria ser deduzida uma eficiência alocativa a partir dos teoremas de otimização. No entanto, Coase (1960) alega que, numa situação de custos de transação positivos, o mercado pode falhar em alocar os recursos eficientemente, tendo em vista que uma eventual impossibilidade de se realizar uma barganha economicamente viável entre as partes envolvidas na situação de conflito vai fazer com que, sendo mais barato para uma parte do que para outra lidar com a externalidade, a responsabilização legal em se lidar com ela tenha impacto sobre a alocação, e o economista acaba nesse quesito concordando com o paradigma de Pigou quanto à possibilidade de uma distinção entre custos privados e custos sociais.
Para prosseguir, devo introduzir uma parte da doutrina mengeriana sobre os bens que será crucial para a análise. Menger [1871]/(1988), após enumerar os pressupostos fundamentais para a emergência da qualidade de bem a uma coisa externa ao sujeito agente, distingue duas categorias de bens: bens reais (que são tangíveis) e ações úteis (ações e omissões que trazem benefícios a alguém, tendo destaque a categoria de serviços). Se me for permitido interpretar que todo serviço é uma ação útil, mas nem toda ação útil é a prestação de um serviço, é possível chegar ao âmago da questão. Consideremos um exemplo dado pelo próprio Menger. Há dois médicos clínicos gerais numa cidade, e um deles acaba se mudando para fora do local. Como resultado, o médico que ficou pode cobrar preços mais altos pelo seu serviço, de forma que essa decisão de saída do segundo médico trouxe benefícios para o remanescente, que agora pode satisfazer suas necessidades de forma mais plena. A teoria neoclássica, analisando a situação através da ótica da distinção entre benefícios privados e benefícios sociais, enxergaria tal situação como uma ineficiência, pois o médico restante não está remunerando o “serviço” que o outro prestou a ele, ou seja, os preços de mercado não vão refletir esse benefício recebido. Fica claro, então, que um pressuposto implícito fundamental da análise neoclássica do bem-estar é a ideia de que, para que haja eficiência, toda ação útil deve ser tratada como um serviço. Alego que não é o caso.
Como Demsetz (1964) reconhece, a estruturação de um mercado ou de uma propriedade privada não é livre de custo, ou seja, devem ser alocados recursos para se criar e manter o mecanismo de preços, ou seja, transações, a base do processo de mercado, não são gratuitas. Quanto à propriedade, que é o direito de controle exclusivo sobre um recurso escasso, existem custos em se tentar assegurar esse controle, que Demsetz reduz a ou caracteriza como custos de policiamento.
Quando o custo marginal de se assegurar a exclusividade do controle de um recurso exceder, na visão do proprietário, o valor adicionado à sua propriedade ou o benefício marginal de tal monitoramento, o mesmo optará por não fazê-lo. Analogamente, quando uma transação é cara demais de se arranjar, ela não será levada a cabo. Bawerk [1889]\(1986) expressa um raciocínio muito similar ao enfatizar que, no processo de avaliação de um curso de ação, deve-se ser tão exato quanto valer a pena. Isso quer dizer que, se o benefício marginal de se obter uma informação extra sobre as circunstâncias da decisão exceder seu custo marginal, serão desconsiderados certos detalhes. Caso Bawerk tivesse percebido que as transações que constituem o processo de mercado, assim como a salvaguarda dos direitos de um proprietário, não são gratuitas, chegaria à conclusão parecida com ou idêntica à de Demsetz (2011).
Chegamos ao ponto mais importante. De acordo com os teoremas neoclássicos de otimização, no equilíbrio, a alocação ótima dos recursos pode ser deduzida a partir de equações entre as taxas marginais de substituição e de transformação no processo de produção dos vários bens envolvidos. Porém, isso só vale para bens e serviços que, no nível de eficiência máxima, são produzidos em quantidade positiva. Para o caso de bens providos em quantidade zero na situação de equilíbrio, a alocação dos recursos é deduzida por uma série de inequações entre as taxas citadas (DEMSETZ, 1964).
Portanto, uma interpretação correta dos teoremas de otimização da própria teoria neoclássica do bem-estar, incluindo a existência de custos de transação e de propriedade, nos permite deduzir a alocação de eficiência dos recursos de forma diferente. Porém, que forma seria essa?
IV. A provisão do mecanismo de preços como um serviço
Vimos que o sistema de preços não opera livre de custo, ou seja, as pessoas precisam dispor de meios para alcançar o fim de operacionalizar as interações que constituem essa instituição social. Ficou evidente também que a abordagem convencional da economia do bem-estar pressupõe implicitamente com seu uso dos teoremas de otimização que deve haver equações na dedução da alocação ótima dos recursos no caso de externalidades. No entanto, considerando que a própria atividade de viabilizar as operações do mercado é um serviço, a ausência de um mercado para algo pode ser explicada partindo-se do pressuposto de que a criação e manutenção desse mercado exige a alocação de recursos que poderiam ter sido usados para fins mais urgentes, constituindo uma verdadeira ineficiência econômica até no sentido neoclássico. A conclusão fundamental é a de que, ao se sugerir que se crie um mercado para transformar toda ação útil em um serviço, os economistas do mainstream sugerem implicitamente que não economizemos em custos de transação e propriedade, o que significa que uma interpretação correta dos teoremas neoclássicos de bem-estar leva a conclusões não-neoclássicas, e que o ótimo nesse caso incluiria inequações que expressam o fato de que prover um mercado para a transformação de uma ação útil positiva em um serviço é economicamente inviável frente a uma forma alternativa de se lidar com o problema da escassez: uma consideração completamente econômica e interna de que não se levar um certo efeito econômico em consideração não é viável economicamente.
Explicarei essa forma de analisar a questão voltando ao exemplo dos dois médicos,e posteriormente inserindo um segundo exemplo. Se o médico que saiu da cidade não é remunerado pelo médico que permaneceu, significa que o custo de criar esse mercado, sustentar essa transação e tratar esse feito como um serviço exigiria a alocação de recursos que se prestam a usos alternativos mais importantes. Nenhuma ineficiência aí ocorre, pois prover o serviço de arranjar essa transação, no nível de eficiência econômica máxima, não seria uma situação ótima, sendo a alocação mais apropriada um arranjo em que a ação útil do segundo médico é gratuita, amparando parte da proposta ousada de Demsetz (1964), a saber: a de que a provisão de um bem privado a preço zero não necessariamente é ineficiente.
O raciocínio quanto a externalidades negativas segue a mesma linha que a teorização quanto às positivas, porém, ao invés de se falar em ações úteis, podemos falar em ações que constituem desutilidades, e assim o raciocínio se inverte: se, ao tratar de externalidades positivas, fala-se em que o produtor da externalidade seja compensado pelo aproveitador, aqui o produtor da externalidade compensa uma parte prejudicada.
Vamos a um exemplo grotesco. Um indivíduo adentra um espaço público e está usando uma camiseta tão feia, tão horrorosa, tão torpe que as pessoas ao redor se sentem incomodadas em olhar para o mesmo, gerando, assim, certa perda de bem-estar. Supondo que o total que as pessoas estariam dispostas a pagar para que tal camiseta não seja usada – ou melhor, que não seja ofertada – é de 200 reais, excedendo muito o preço de uma camiseta que consideramos feia, a teoria neoclássica prevê que esta camiseta está sendo ofertada acima do nível de eficiência com base numa disparidade entre o custo privado e o custo social na qual a primeira grandeza (que considera apenas o custo considerado pelo sujeito ao usufruir da camiseta) e a segunda (que considera o total do custo de se usá-la, considerando o custo de oportunidade de não se ganhar o que os outros sujeitos estavam dispostos a pagar pelo desuso, supondo que essa medida possa ser agregada ao ser medida em termos monetários, pressuposto que não está sujeito a objeção no presente artigo). A solução seria, então, com base no paradigma de Pigou, taxar o indivíduo em questão no valor da diferença entre o preço pago pela camiseta e o preço que os indivíduos ao redor estão dispostos a pagar para que ela não seja usada simplesmente pois alguém decidiu usar uma camiseta que causa incômodo. O acima exposto é suficiente para se determinar que tal arranjo seria indesejável.
O tratamento da teoria dos bens públicos e da propriedade intelectual, apesar de ser semelhante ao exposto acima, exige certas precisões que não podem ser ignoradas, merecendo um artigo distinto.
V. Bibliografia
BOHM-BAWERK, Eugen von. Teoria positiva do capital. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
BOUNDREAUX, D.; MEINERS, R. Externality: Origins and Classifications. Natural Resources Journal, v. 59, n. 1, p. 1, 6 abr. 2019.
COASE, R. H. The Problem of Social Cost. The Journal of Law and Economics, v. 3, n. 3, p. 1–44, out. 1960.
DEMSETZ, H. The Exchange and Enforcement of Property Rights. The Journal of Law and Economics, v. 7, p. 11–26, out. 1964.
DEMSETZ, H. The Problem of Social Cost: What Problem? A Critique of the Reasoning of A.C. Pigou and R.H. Coase. Review of Law & Economics, v. 7, n. 1, p. 1–13, 2 jan. 2011.
GRUBER, J. Public finance and public policy. New York: Worth Publishers, 2019.
MENGER, C. Princípios de economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
PIGOU, A. C. The economics of welfare. London ; New York: Routledge, 2017.
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