Por Ludwig von Mises
[Retirado de Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica, parte II, seç. I, cap. II]
A socialização dos meios de produção
Sob o socialismo, todos os meios de produção são propriedades da comunidade. Somente a comunidade dispõe deles e decide como usá-los na produção. A comunidade produz os produtos que são atribuídos à comunidade, e a comunidade decide como esses produtos serão usados.
Os socialistas modernos, especialmente os de orientação marxista, colocam grande ênfase na designação da comunidade socialista como sociedade, e, portanto, ao descrever a transferência dos meios de produção para o controle da comunidade como a “socialização dos meios de produção”. Em si, a expressão é inquestionável, mas na conexão na qual é usada, é especialmente projetada para obscurecer um dos problemas mais importantes do socialismo.
A palavra “sociedade”, com seu adjetivo correspondente “social”, tem três significados distintos. Ela implica, em primeiro lugar, a ideia abstrata das inter-relações sociais e, em segundo lugar, a concepção concreta de uma união dos próprios indivíduos. Entre esses dois significados nitidamente diferentes, um terceiro foi interposto na linguagem comum: a sociedade abstrata é concebida como personificada em expressões como “sociedade humana”, “sociedade civil”.
Agora, Marx usa o termo com todos esses significados. Isso não importaria, desde que ele fizesse uma distinção bem clara. Mas ele faz exatamente o oposto. Ele os alterna, com a habilidade de um mágico, sempre que parece adequado a ele. Quando ele fala do caráter social da produção capitalista, ele está usando social em seu sentido abstrato. Quando ele fala da sociedade que sofre durante as crises, ele se refere à sociedade personificada da humanidade. Mas quando ele fala da sociedade que deve expropriar os expropriadores e socializar os meios de produção, ele se refere a uma união social real. E todos os significados são trocados nas conexões de seu argumento sempre que ele tem que provar o improvável. A razão de tudo isso é para evitar o uso do termo Estado ou seu equivalente, já que essa palavra soa desagradável a todos os amantes da liberdade e da democracia, cujo apoio o marxista não deseja alienar logo de cara. Um programa que daria ao Estado a responsabilidade geral e a direção de toda a produção não tem perspectiva de aceitação nesses círculos. Segue-se que o marxista deve encontrar continuamente uma fraseologia que disfarce a essência do programa, que consiga ocultar o abismo intransponível que divide a democracia e o Socialismo. Não é de se admirar a percepção dos homens que viveram nas décadas imediatamente anteriores à Guerra Mundial, que não enxergavam esse sofisma. A doutrina moderna do Estado entende, pela palavra “Estado”, uma unidade autoritária, um aparato de compulsão caracterizado não por seus objetivos, mas por sua forma. Mas o marxismo limitou arbitrariamente o significado da palavra Estado, de modo que não inclui o Estado socialista. Apenas esses estados e formas de organização estatal são chamados de Estado e despertam a antipatia dos escritores socialistas. Para a futura organização à qual aspiram, o termo é rejeitado indignadamente como desonroso e degradante. Ela é chamada de “sociedade”. Desta forma, a social-democracia marxista poderia, ao mesmo tempo, contemplar a destruição da máquina estatal existente, combater ferozmente todos os movimentos anarquistas e seguir uma política que levasse diretamente a um Estado todo poderoso.1
Agora, não importa nem um pouco que nome particular seja dado ao aparato coercitivo da comunidade socialista. Se usarmos a palavra “Estado”, teremos um termo de uso comum, exceto na literatura marxista, bastante acrítica; uma expressão que é geralmente entendida e que evoca a ideia que pretende evocar. Mas não há nenhuma desvantagem em evitar este termo se quisermos, uma vez que desperta sentimentos contraditórios em muitas pessoas, substituir a expressão “comunidade”. A escolha da terminologia é puramente uma questão de estilo e não tem importância prática.
O que é importante é o problema da organização desse Estado ou comunidade socialista. Ao lidar com a expressão concreta da vontade do Estado, a língua inglesa fornece uma distinção mais sutil, permitindo-nos usar o termo governo em vez do termo estado. Nada é mais bem designado para evitar o misticismo que nesse sentido foi fomentado ao mais alto grau pelos usos marxianos. Pois os marxistas falam levianamente sobre expressar a vontade da sociedade, sem dar a menor dica de como a “sociedade” pode desejar e agir. No entanto, é claro que a comunidade pode agir apenas por meio de órgãos que ela mesma criou. Agora, segue-se da própria concepção da comunidade socialista que o órgão de controle deve ser unitário. Uma comunidade socialista pode ter apenas um órgão supremo de controle que combina todas as funções econômicas e outras funções governamentais.
É claro que este órgão pode ser subdividido e pode haver departamentos subordinados aos quais instruções definitivas são transmitidas. Mas a expressão unitária da vontade comum, que é objeto essencial da socialização dos meios de produção e da produção, implica necessariamente que todos os departamentos encarregados da supervisão de outros assuntos sejam subordinados a um só órgão.
Esse órgão deve ter autoridade suprema para resolver todas as variações do propósito comum e unificar o objetivo executivo. Como ele é constituído e como a vontade geral consegue se expressar nele e por ele é de menor importância na investigação de nosso problema em particular. Não importa se esse órgão é um príncipe absolutista ou uma assembleia de todos os cidadãos, organizada em democracia direta ou indireta. Não importa como esse órgão concebe sua vontade e a expressa. Para o nosso propósito, devemos considerar isso como dado e não precisamos perder tempo sobre a questão de como isso pode ser realizado, se isso pode ser realizado ou se o socialismo já está condenado porque isso não pode ser realizado.
No início de nossa investigação, devemos postular que a comunidade socialista não possui relações externas. Ela abrange o mundo inteiro e seus habitantes. Se o concebemos como limitado, de modo que compreende apenas uma parte do mundo e seus habitantes, devemos supor que ele não tem relações econômicas com os territórios e povos fora de suas fronteiras. Discutiremos o problema da comunidade socialista isolada. As implicações da existência contemporânea de várias comunidades socialistas serão tratadas quando examinarmos o problema em sua generalidade.
Cálculo econômico numa comunidade socialista
A teoria do cálculo econômico mostra que, na comunidade socialista, o cálculo econômico seria impossível.
Em qualquer grande empreendimento, as obras ou departamentos individuais são parcialmente independentes em suas contas. Eles podem calcular o custo de materiais e mão de obra, e é possível, a qualquer momento, para um grupo individual atingir um equilíbrio separado e somar os resultados de sua atividade em números. Dessa forma, é possível determinar o grau de sucesso na operação de cada ramo individualmente e, assim, tomar decisões relativas à reorganização, limitações ou extensão de ramos existentes ou o estabelecimento de novos. Alguns erros, é claro, são inevitáveis nesses cálculos. Eles surgem em parte da dificuldade de alocar os custos indiretos. Outros erros surgem novamente da necessidade de calcular a partir de dados insuficientes, como, i.e., ao calcular a lucratividade de um determinado processo, a depreciação da máquina empregada é determinada assumindo uma certa vida útil para a máquina. Mas todos esses erros podem ser confinados dentro de certos limites estreitos que não perturbam o resultado total do cálculo. Qualquer incerteza remanescente é atribuída à incerteza das condições futuras inevitáveis em qualquer estado de coisas imaginável.
Parece natural, então, perguntar por que ramos individuais de produção em uma comunidade socialista não deveriam fazer contas separadas da mesma maneira. Mas isso é impossível. Onde não há mercado, não há sistema de preços, e onde não há sistema de preços, não pode haver cálculo econômico.
Alguns podem pensar que é possível permitir trocas entre os diferentes grupos de empreendimentos de modo a estabelecer um sistema de relações de troca (preços) e assim criar uma base de cálculo econômico na comunidade socialista. Assim, dentro da estrutura de um sistema econômico unitário que não reconhece a propriedade privada dos meios de produção, ramos individuais da indústria com administração separada poderiam ser criados, sujeitos, é claro, à autoridade econômica suprema, mas capazes de transferir uns aos outros bens e serviços por uma consideração calculada em um meio comum de troca. De grosso modo, é assim que as pessoas concebem a organização produtiva da indústria socialista quando se fala hoje em dia de socialização completa ou algo parecido. Mas, novamente, o ponto decisivo é evitado. As relações de troca em bens produtivos só podem ser estabelecidas com base na propriedade privada dos meios de produção. Se o Sindicato do Carvão entregar carvão ao Sindicato de Ferro, um preço só poderá ser fixado se ambos os sindicatos possuírem os meios de produção da indústria. Mas isso não seria socialismo, mas sim sindicalismo.
Para os escritores socialistas que aceitam a teoria do valor-trabalho, o problema é, obviamente, bem simples.
“Assim que”, diz Engels, “a sociedade se apossa dos meios de produção e os aplica à produção social direta, o trabalho de todos, por mais diferente que seja seu uso específico, se tornará imediatamente trabalho social direto. A quantidade de trabalho social inerente a qualquer produto não precisa ser verificada de forma indireta: a experiência cotidiana mostrará o quanto dele, em média, é necessário. A sociedade pode facilmente calcular quantas horas de trabalho são inerentes a uma máquina a vapor, a um hectolitro de trigo da última safra, a cem metros quadrados de tecido de certa qualidade. É claro que a sociedade terá que descobrir quanto trabalho é necessário para a manufatura de cada artigo de consumo. Ela terá de basear seus planos na consideração dos meios de produção à sua disposição — e é claro que a força de trabalho se enquadra nesta categoria. A utilidade dos diferentes objetos de consumo comparados uns com os outros e com o trabalho necessário para sua produção determinará, finalmente, o plano. O povo vai decidir tudo facilmente, sem a intervenção do tão alardeado valor.”2
Não é parte de nossa função aqui reafirmar os argumentos críticos à teoria do valor-trabalho. Eles nos interessam nesse ponto apenas na medida em que nos permitem julgar a possibilidade de tornar o trabalho a base do cálculo econômico em uma comunidade socialista.
À primeira vista, parece que os cálculos baseados no trabalho levam em consideração as condições naturais de produção, bem como as condições decorrentes do elemento humano. O conceito marxista de tempo de trabalho socialmente necessário leva em consideração a lei dos rendimentos decrescentes, na medida em que resulta de diferentes condições naturais de produção. Se a demanda por uma mercadoria aumenta, e as condições naturais menos favoráveis precisam ser exploradas, então o tempo médio socialmente necessário para a produção de uma unidade também aumenta. Se condições mais favoráveis de produção forem descobertas, a quantidade necessária de trabalho social diminui.3 Mas isto não é o suficiente. O cálculo das mudanças nos custos marginais do trabalho leva em consideração apenas as condições naturais na medida em que influenciam os custos do trabalho. Além disso, o cálculo de “trabalho” cai por terra. Ele desconsidera, por exemplo, o consumo de fatores materiais de produção. Suponha que o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de duas mercadorias, P e Q, seja de dez horas, e que a produção de uma unidade de P e de Q requer o material A, uma unidade da qual é produzida por uma hora de trabalho socialmente necessário, e que a produção de P envolve duas unidades de A e oito horas de trabalho, e de Q, uma unidade de A e nove horas de trabalho. Em um cálculo baseado no tempo de trabalho, P e Q são equivalentes, mas, em um cálculo baseado no valor, P deve valer mais do que Q. O primeiro cálculo é falso. Somente o segundo corresponde à essência e ao objeto do cálculo econômico. É verdade que este excedente pelo qual o valor de P excede o de Q, esse substrato material, “é fornecido pela natureza sem a ajuda do homem”,4 mas desde que esteja presente apenas em quantidades tais que se torne um fator econômico, também deve, de alguma forma, entrar no cálculo econômico.
A segunda deficiência da teoria do cálculo pelo trabalho é que ela desconsidera as diferenças na qualidade da mão-de-obra. Para Marx, todo trabalho humano é economicamente homogêneo, porque é sempre o “gasto produtivo do cérebro humano, músculos, nervos, mãos, etc.” “O trabalho qualificado é apenas um trabalho simples intensificado, ou melhor, multiplicado, de modo que uma pequena quantidade de trabalho qualificado é igual a uma maior quantidade de trabalho simples. A experiência mostra que essa redução do hábil ao simples acontece constantemente. Uma mercadoria pode ser produto de um trabalho altamente qualificado, mas seu valor se equipara ao produto de um trabalho simples e representa apenas uma certa quantidade de trabalho simples.”5 Böhm-Bawerk foi justo ao descrever este argumento como uma obra-prima de ingenuidade surpreendente.6 Ao criticá-la, pode-se convenientemente não resolver a questão se podemos descobrir uma medida fisiológica unitária de todo o trabalho humano, tanto físico quanto “mental”. Pois é certo que entre os próprios homens há diferenças de capacidade e habilidade que resultam em qualidades diferentes dos bens e serviços produzidos. O que é decisivo, em última instância, para a solução do problema da viabilidade do uso do trabalho como base de cálculo econômico é a questão de saber se é possível assimilar diferentes tipos de trabalho a um denominador comum sem uma avaliação dos produtos pelo consumidor. É claro que o argumento que Marx sustenta neste ponto falhou. A experiência mostra que, de fato, as mercadorias entram na troca independentemente de serem produtos de mão de obra qualificada ou simples. Mas isso apenas provaria que uma determinada quantidade de trabalho simples é igual a uma determinada quantidade de trabalho qualificado se fosse provado que o trabalho é a fonte do valor de troca. Mas isso não é apenas incomprovado; é exatamente o que Marx originalmente se propôs a provar. O fato de que, na troca, uma relação substituta entre trabalho simples e qualificado tenha surgido na forma de salários — um ponto ao qual Marx não alude aqui — não é a menor prova dessa homogeneidade. Esse processo de equiparação é resultado do funcionamento do mercado, não de sua pressuposição. Cálculos baseados no custo do trabalho, e não nos valores monetários, teriam de estabelecer uma relação puramente arbitrária para transformar o trabalho qualificado em simples, e isso os tornaria inúteis como um instrumento para a organização econômica dos recursos.
Pensou-se, durante muito tempo, que a teoria do valor-trabalho fornecia uma base ética necessária para a exigência da socialização dos meios de produção. Agora sabemos que isso foi um erro. Embora a maioria dos socialistas tenha adotado essa visão, e embora nem mesmo Marx, com seu ponto de vista declaradamente não-ético, pudesse se livrar dela, é claro que, por um lado, as exigências políticas para a introdução do método de produção socialista também não precisam, e nem recebem, o apoio da teoria do valor-trabalho e, por outro lado, que aqueles que têm visões diferentes sobre a natureza e as causas do valor também podem ter tendências socialistas. Mas, de outro ponto de vista, a teoria do valor-trabalho ainda é um dogma essencial para os defensores do método de produção socialista. Pois a produção socialista em uma sociedade baseada na divisão do trabalho parece praticável apenas se houver uma unidade de valor objetiva reconhecível que permitiria cálculos econômicos a serem feitos em uma comunidade sem trocas e sem moeda, e o trabalho parece a única coisa para servir a esse propósito.
Doutrinas socialistas recentes e os problemas do cálculo econômico
O problema do cálculo econômico é o problema fundamental do socialismo. O fato de que, por décadas, as pessoas puderam escrever e falar sobre o socialismo sem tocar neste problema só mostra o quão devastadores foram os efeitos da proibição marxista sobre o escrutínio científico da natureza e do funcionamento de uma economia socialista.7
Provar que o cálculo econômico seria impossível na comunidade socialista é provar também que o socialismo é impraticável. Tudo o que foi apresentado a favor do socialismo durante os últimos cem anos, em milhares de escritos e discursos, todo o sangue que foi derramado pelos defensores do Socialismo, não pode tornar o Socialismo viável. As massas podem ansiar por isso tão fervorosamente, inúmeras revoluções e guerras podem ser travadas por ele, mas nunca será realizado. Cada tentativa de realizá-lo levará ao sindicalismo ou, por algum outro caminho, ao caos, que rapidamente dissolverá a sociedade, baseada na divisão do trabalho, em minúsculos grupos autárquicos.
A descoberta desse fato é claramente muito inconveniente para os partidos socialistas, e socialistas de todos os tipos têm feito tentativas para refutar meus argumentos e inventar um sistema de cálculo econômico para o socialismo. Eles não tiveram sucesso. Eles não produziram um único argumento novo que eu já não tenha levado em consideração.8 Nada abalou a prova de que no socialismo o cálculo econômico é impossível.9
A tentativa dos bolcheviques russos de transferir o Socialismo de um programa partidário para a vida real não encontrou o problema do cálculo econômico sob o socialismo, pois as Repúblicas Soviéticas existem em um mundo que forma preços em dinheiro para todos os meios de produção. Os governantes das Repúblicas Soviéticas baseiam os cálculos em que tomam suas decisões nesses preços. Sem a ajuda desses preços, suas ações não teriam objetivo ou planejamento. Somente no que se refere a este sistema de preços eles são capazes de calcular, manter registros livros e planejar. Sua posição é a mesma do Socialismo estadual e municipal de outros países: o problema do cálculo econômico socialista ainda não surgiu para eles. As empresas estaduais e municipais calculam com os preços dos meios de produção e dos bens de consumo que se formam no mercado. Portanto, seria precipitado concluir, a partir da existência de empresas municipais e estaduais, que o cálculo econômico socialista é possível.
Nós sabemos, de fato, que as empresas socialistas em ramos únicos de produção são praticáveis apenas por causa da ajuda que obtêm de seu ambiente não socialista. O Estado e o município podem realizar seus próprios empreendimentos porque os impostos que as empresas capitalistas pagam cobrem suas perdas. De maneira semelhante, a Rússia, que, por conta própria, há muito tempo teria entrado em colapso, tem sido apoiada por finanças de países capitalistas. Mas incomparavelmente mais importante do que esta ajuda material que a economia capitalista dá aos empreendimentos socialistas, é a ajuda mental. Sem a base de cálculo que o capitalismo coloca à disposição do socialismo, na forma de preços de mercado, os empreendimentos socialistas nunca seriam realizados, mesmo dentro de ramos únicos de produção ou países individuais. Os escritores socialistas podem continuar publicando livros sobre a decadência do capitalismo e a chegada do milênio socialista: eles podem pintar os males do capitalismo em cores lúgubres e contrastar com eles uma imagem atraente das bênçãos de uma sociedade socialista; seus escritos podem continuar a impressionar os irrefletidos — mas tudo isso não pode alterar o destino da ideia socialista.10 A tentativa de reformar o mundo socialisticamente pode destruir a civilização. Nunca seria criada uma comunidade socialista bem-sucedida.
O mercado artificial como uma solução para o problema do cálculo econômico
Alguns dos socialistas mais jovens acreditam que a comunidade socialista poderia resolver o problema do cálculo econômico pela criação de um mercado artificial para os meios de produção. Eles admitem que foi um erro por parte dos socialistas mais antigos ter procurado realizar o Socialismo por meio da suspensão do mercado e da abolição da precificação de bens de ordem superior; eles sustentam que foi um erro ter visto na supressão do mercado e do sistema de preços a essência do ideal socialista. E eles afirmam que, para não degenerar em um caos sem sentido no qual toda a nossa civilização desapareceria, a comunidade socialista, juntamente com a comunidade capitalista, deve criar um mercado no qual todos os bens e serviços possam ser precificados. Com base em tais arranjos, eles pensam, a comunidade socialista será capaz de fazer seus cálculos tão facilmente quanto os empresários capitalistas.
Infelizmente, os defensores de tais propostas não veem (ou talvez nem verão) que não é possível divorciar o mercado e suas funções no que diz respeito à formação dos preços do funcionamento de uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção e na qual, sujeitos às regras de tal sociedade, os proprietários de terra, capitalistas e empresários podem dispor de suas propriedades como eles considerem adequado. Pois a força motriz de todo o processo que dá origem aos preços de mercado dos meios de produção é a busca incessante por parte dos capitalistas e dos empresários de maximizar seus lucros atendendo aos desejos dos consumidores. Sem a luta dos empresários (incluindo os acionistas) pelo lucro, a luta dos latifundiários pela renda, a luta dos capitalistas pelos juros e a luta dos trabalhadores pelos salários, o funcionamento bem-sucedido de todo o mecanismo é impensável. É apenas a perspectiva de lucro que direciona a produção para os canais em que as demandas do consumidor são mais bem satisfeitas com o menor custo. Se a perspectiva do lucro desaparece, o mecanismo do mercado perde sua mola propulsora, pois é somente essa perspectiva que o põe em movimento e o mantém em operação. O mercado é, portanto, o ponto de foco da ordem capitalista da sociedade; é a essência do Capitalismo. Isso é possível, portanto, somente sob o capitalismo, e não pode ser imitado artificialmente sob o socialismo.
Os defensores do mercado artificial, entretanto, são da opinião de que um mercado artificial pode ser criado instruindo os controladores das diferentes unidades industriais a agirem como se fossem empresários em um estado capitalista. Eles argumentam que mesmo sob o capitalismo os administradores das sociedades anônimas não trabalham para eles mesmos, mas para as empresas, ou seja, para os acionistas. Sob o socialismo, portanto, seria possível que eles agissem exatamente da mesma maneira que antes, com a mesma circunspecção e devoção ao dever. A única diferença seria a de que, sob o Socialismo, o produto do trabalho do administrador iria para a comunidade, e não para os acionistas. Desse modo, ao contrário de todos os socialistas que escreveram sobre o assunto até agora, especialmente os marxistas, eles pensam que seria possível construir um socialismo descentralizado, em oposição a um centralizado.
Para julgar adequadamente tais propostas, é necessário, em primeiro lugar, compreender que esses controladores de unidades industriais individuais teriam de ser nomeados. Sob o capitalismo, os administradores das sociedades anônimas são nomeados direta ou indiretamente pelos acionistas. Na medida em que os acionistas dão aos gestores o poder de produzir por meio dos recursos ações da empresa (ou seja, dos acionistas), eles estão arriscando sua própria propriedade ou uma parte de sua propriedade. A especulação (pois é necessariamente uma especulação) pode ter sucesso e trazer lucro; ela pode, no entanto, falhar e causar a perda da totalidade ou de parte do capital despendido. Esse comprometimento do capital próprio com um negócio, cujo resultado é incerto e com homens cuja capacidade futura ainda é uma questão de conjectura, seja o que for que se conheça de seu passado, é a essência dos negócios de uma sociedade anônima.
Agora, é uma falácia completa supor que o problema do cálculo econômico em uma comunidade socialista esteja relacionado apenas a questões dentro da esfera do cotidiano de negócios dos administradores de sociedades por ações. É claro que tal crença só pode surgir da concentração exclusiva na ideia de um sistema econômico estacionário — uma concepção que, sem dúvida, é útil para a solução de muitos problemas teóricos, mas que não tem correspondência na realidade e que, se considerada exclusivamente, pode até ser positivamente enganosa. É claro que, em condições estacionárias, o problema do cálculo econômico realmente não surge. Quando pensamos em uma sociedade estacionária, pensamos em uma economia na qual todos os fatores de produção já são utilizados de forma a fornecer, nas condições dadas, o máximo das coisas que são demandadas pelos consumidores. Na verdade, em condições estacionárias, não existe mais um problema para o cálculo econômico resolver. A função essencial do cálculo econômico, por hipótese, já foi cumprida. Não há necessidade de uma estrutura de cálculo. Para usar uma terminologia popular, mas não totalmente satisfatória, podemos dizer que o problema do cálculo econômico é de dinâmica econômica: não é um problema de estática econômica.
O problema do cálculo econômico é um problema que surge numa economia perpetuamente sujeita a mudanças, uma economia que a cada dia se confronta com novos problemas que devem ser resolvidos. Agora, para resolver tais problemas, é necessário, acima de tudo, que o capital seja retirado de determinadas linhas de produção, de determinadas empresas e interesses, e que seja aplicado a outras linhas de produção, a outras empresas e interesses. Este não é um assunto para os gestores de sociedades anônimas, é essencialmente um assunto para os capitalistas — os capitalistas que compram e vendem ações e posições, que fazem empréstimos e os recuperam, que fazem depósitos nos bancos e os sacam dos bancos novamente, que especulam em todos os tipos de commodities. São essas operações dos capitalistas especulativos que criam as condições do mercado monetário, das operações na bolsa de valores e dos mercados de atacado que devem ser tomadas como certas pelo gerente da sociedade anônima, que, de acordo com os escritores socialistas que estamos considerando, deve ser concebido como nada mais que o servidor confiável e zeloso da empresa. São os capitalistas especulativos que criam os dados aos quais ele deve ajustar seus negócios e que, portanto, orientam suas operações comerciais.
Segue-se, portanto, que é uma deficiência fundamental de todas essas construções socialistas que invocam o “mercado artificial” e a competição artificial como uma saída para o problema do cálculo econômico, que elas repousem na crença de que o mercado de fatores de produção é afetado somente por produtores comprando e vendendo mercadorias. Não é possível eliminar de tais mercados a influência da oferta de capital dos capitalistas e da demanda de capital pelos empresários sem destruir o próprio mecanismo.
Diante dessa dificuldade, o socialista provavelmente irá propor que o Estado socialista, como proprietário de todo o capital e de todos os meios de produção, deve simplesmente direcionar o capital para as empresas que prometem o maior retorno. O capital disponível, ele irá argumentar, deve ir para as empresas que oferecem a maior taxa de lucro. Mas tal estado de coisas significaria simplesmente que os gerentes menos cautelosos e mais otimistas receberiam capital para ampliar seus empreendimentos, enquanto os gerentes mais cautelosos e mais céticos iriam embora de mãos vazias.
Sob o capitalismo, o capitalista decide a quem vai confiar seu próprio capital. As crenças dos dirigentes das sociedades por ações em relação às perspectivas futuras dos seus empreendimentos e as esperanças dos projetistas quanto à rentabilidade dos seus planos não são, de forma alguma, decisivas. O mecanismo do mercado monetário e do mercado de capitais decide. Isso é, de fato, a sua principal tarefa: servir o sistema econômico como um todo, julgar a rentabilidade de aberturas alternativas e não seguir cegamente o que os gestores de empresas particulares, limitados pelo estreito horizonte de seus próprios empreendimentos, são tentados a propor.
Para entender isso completamente, é essencial perceber que o capitalista não investe seu capital apenas em empreendimentos que oferecem altos juros ou altos lucros; ele tenta, em vez disso, empreender um equilíbrio entre seu desejo de lucro e sua estimativa do risco de perda. Ele deve exercer a previsão. Caso contrário, ele sofre perdas — perdas que fazem com que sua disposição sobre os fatores de produção seja transferida para as mãos de outros que sabem melhor pesar os riscos e as perspectivas da especulação empresarial.
Agora, para se manter socialista, o Estado socialista não pode deixar em outras mãos aquela disposição sobre o capital que permite o crescimento das empresas existentes, a contração de outras e a concretização de empresas completamente novas. E dificilmente se deve supor que socialistas de qualquer convicção proponham seriamente que esta função deveria ser transferida para algum grupo de pessoas que teriam “simplesmente” o trabalho de fazer o que os capitalistas e especuladores fazem sob condições capitalistas, sendo a única diferença que o produto de sua previsão não deveria pertencer a eles, mas à comunidade. Propostas desse tipo podem muito bem ser feitas em relação aos administradores de sociedades anônimas. Eles nunca podem ser estendidos aos capitalistas e especuladores, pois nenhum socialista contestaria que a função que os capitalistas e especuladores desempenham sob o capitalismo, ou seja, orientar o uso de bens de capital na direção em que melhor atendam às demandas do consumidor, é apenas desempenhada porque são incentivados a preservar sua propriedade e a obter lucros que a aumentem ou, pelo menos, permitam que vivam sem diminuir seu capital.
Segue-se, portanto, que a comunidade socialista nada pode fazer a não ser colocar à disposição sobre o capital nas mãos do Estado ou, para ser mais exato, nas mãos dos homens que, como autoridade governante, conduzem os negócios do Estado. E isso significa a eliminação do mercado, que de fato é o objetivo fundamental do socialismo, pois a orientação da atividade econômica pelo mercado implica na organização da produção e uma distribuição do produto de acordo com a disposição do poder de compra dos membros individuais da sociedade, o que implica na existência de um mercado; ou seja, implica precisamente naquilo que o socialismo pretende eliminar.
Se os socialistas tentarem menosprezar a importância do problema do cálculo econômico na comunidade socialista, alegando que as forças do mercado não levam a arranjos eticamente justificáveis, eles simplesmente mostram que não entendem a real natureza do problema. Não se trata de saber se serão produzidos canhões ou roupas, moradias ou igrejas, bens de luxo ou subsistência. Em qualquer ordem social, mesmo sob o socialismo, pode-se decidir muito facilmente o quais tipos e números de bens de consumo que devem ser produzidos. Ninguém nunca negou isso. Mas, uma vez que essa decisão tenha sido tomada, ainda resta o problema de determinar como os meios de produção existentes podem ser usados de forma mais eficaz para produzir esses bens em questão. Para resolver este problema é necessário que haja cálculo econômico. E o cálculo econômico só pode ocorrer por meio de preços em dinheiro estabelecidos no mercado de bens de produção em uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção. Ou seja, devem existir preços monetários de terras, matérias-primas, semimanufaturas; isto é, deve haver salários em dinheiro e taxas de juros.
Assim, as únicas alternativas permanecem sendo ou o socialismo ou uma economia de mercado.
Lucratividade e Produtividade
A atividade econômica da comunidade socialista está sujeita às mesmas condições externas que regem um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção ou mesmo em qualquer sistema econômico concebível. O princípio econômico se aplica a ele da mesma forma que a todo e qualquer sistema econômico: isto é, reconhece uma hierarquia de fins e, portanto, deve se esforçar para alcançar o mais importante antes do menos importante. Essa é a essência da atividade econômica.
É óbvio que as atividades produtivas da comunidade socialista envolverão não apenas trabalho, mas também instrumentos materiais de produção. Segundo um costume muito difundido, esses instrumentos materiais de produção são chamados de capital. A produção capitalista é aquela que adota métodos intermediários sábios, em contraste com uma produção não capitalista que vai diretamente ao seu fim de uma forma equilibrada.11 Se aderirmos a essa terminologia, temos de admitir que a comunidade socialista também deve trabalhar com capital e, portanto, produzirá capitalisticamente. O capital, concebido como os produtos intermediários que surgem nos diferentes estágios de produção por métodos indiretos, não seria, de maneira alguma, a princípio,12 abolido pelo socialismo. Seria simplesmente transferido do indivíduo à posse comum.
Mas se, como sugerimos acima, desejamos entender por produção capitalista aquele sistema econômico em que o cálculo monetário é empregado, de modo que podemos resumir sob o termo capital um conjunto de bens destinados à produção e avaliados em termos monetários, e poder tentar estimar os resultados da atividade econômica pelas variações no valor do capital, então é claro que os métodos socialistas de produção não podem ser chamados de capitalistas. Em um sentido bem diferente do dos marxistas, podemos distinguir entre métodos de produção socialistas e capitalistas e entre o socialismo e o capitalismo.
A característica do método de produção capitalista, aos olhos dos socialistas, é que o produtor trabalha para obter lucro. A produção capitalista é a produção para o lucro, a produção socialista será a produção para a satisfação das necessidades. Que a produção capitalista visa o lucro é verdade. Mas para obter lucro, que é um resultado maior em valor do que os custos, deve ser também o objetivo da comunidade socialista. Se a atividade econômica é dirigida racionalmente, isto é, se satisfaz necessidades mais urgentes antes de necessidades menos urgentes, já alcançou lucros, pois o custo, i.e., o valor da mais importante das necessidades não satisfeitas, é menor que o resultado alcançado. No sistema capitalista, os lucros só podem ser obtidos se a produção atender a uma demanda comparativamente urgente. Quem produz sem atentar para a relação entre oferta e demanda deixa de alcançar o resultado que almeja. Direcionar a produção para o lucro significa simplesmente direcioná-la para satisfazer a demanda de outras pessoas: neste sentido, pode ser contrastada com a produção do homem isolado para necessidades pessoais. Mas ele também está trabalhando pelo lucro no sentido usado acima. Entre a produção para o lucro e a produção para as necessidades não há contraste.13
O contraste entre produção para lucro e produção para necessidades está intimamente ligado à prática comum de contrastar produtividade e lucratividade ou do ponto de vista econômico “social” e “privado”. Uma ação econômica é considerada lucrativa se, no sistema capitalista, ela gerar um excesso de receitas sobre os custos. Uma ação econômica é dita produtiva quando, abordada do ponto de vista de uma comunidade socialista hipotética, o rendimento excede o custo envolvido. Agora, em alguns casos, a produtividade e a lucratividade não coincidem. Alguns atos econômicos que são lucrativos não são produtivos e, vice-versa, alguns são produtivos, mas não são lucrativos. Para aqueles ingenuamente tendenciosos a favor do socialismo, como é o caso até mesmo para a maioria dos economistas, esse fato é suficiente para condenar a ordem capitalista da sociedade. O que quer que uma comunidade socialista faça parece-lhes indiscutivelmente bom e razoável: que qualquer coisa diferente possa acontecer em uma sociedade capitalista é, em sua opinião, um abuso que não pode ser tolerado. Mas um exame dos casos em que se alega que lucratividade e produtividade não coincidem, mostrará que esse julgamento é puramente subjetivo e que o manto científico com que é coberto é uma farsa.14
Na maioria dos casos em que geralmente se presume que existe um contraste entre lucratividade e produtividade, esse contraste não existe. Isso é verdade, por exemplo, para os lucros da especulação. A especulação no sistema capitalista desempenha uma função que deve ser desempenhada em qualquer sistema econômico, por mais organizado que seja: ela provê o ajuste da oferta e da demanda no tempo e no espaço. A fonte do lucro da especulação é o valor agregado, que é independente de qualquer forma particular de organização econômica. Quando o especulador compra a preço baixo produtos que chegam ao mercado em quantidades comparativamente grandes e os vende a preço mais alto quando a demanda volta a aumentar, seus ganhos representam, do ponto de vista empresarial e econômico, um aumento de valor. Que em uma ordem socialista a comunidade e não o indivíduo obteria esse lucro tão detestado e caluniado, nós não negamos. Mas essa não é a significância do problema em que estamos interessados. O que nos preocupa aqui é que o alegado contraste entre rentabilidade e produtividade não existe neste caso. A especulação presta um serviço econômico que, concebivelmente, não pode ser eliminado de nenhum sistema econômico. Se ela for eliminada, como os socialistas pretendem, alguma outra organização deve assumir suas funções: a própria comunidade deve se tornar um especulador. Sem especulação, não pode haver atividade econômica que vá além do presente imediato.
Um contraste entre lucratividade e produtividade, às vezes, pode ser descoberto escolhendo um processo específico e o considerando por si só.
As pessoas talvez podem caracterizar como improdutivas certas características peculiares à constituição da organização capitalista da indústria, por exemplo, despesas de vendas, custos de publicidade e similares são caracterizados como improdutivos. Isso não é legítimo. Nós devemos considerar o resultado do processo completo, não as etapas individuais. Não devemos considerar as despesas constituintes sem confrontar com elas o resultado para o qual elas contribuem.15
Produto líquido e bruto
A tentativa mais ambiciosa de comparar produtividade e lucratividade deriva do exame da relação entre o produto bruto e o produto líquido. É claro que todo empresário no sistema capitalista visa alcançar o maior produto líquido. Mas afirma-se que, considerando corretamente, o objetivo da atividade econômica deve ser alcançar não o maior produto líquido, mas o maior produto bruto.
Essa crença, entretanto, é uma falácia baseada em especulações primitivas a respeito da valoração. Mas, julgando por sua ampla aceitação até hoje, é uma falácia muito popular. Ela está implícita quando as pessoas dizem que uma determinada linha de produção é recomendada porque emprega um grande número de trabalhadores, ou quando uma determinada melhoria na produção é contrariada porque pode privar as pessoas de seu sustento.
Se os defensores de tais pontos de vista fossem lógicos, teriam de admitir que o princípio do produto bruto se aplica não apenas ao trabalho, mas também aos instrumentos materiais de produção. O empresário leva a produção até o ponto em que ela deixa de render um produto líquido. Suponhamos que a produção além deste ponto requer somente os instrumentos materiais e não o trabalho. É do interesse da sociedade que o empresário amplie a produção de forma a obter um produto bruto maior? A sociedade faria isso se tivesse o controle da produção? Ambas as perguntas devem ser respondidas com um decisivo NÃO. O fato de que o aumento da produção não compensa mostra que os instrumentos de produção poderiam ser aplicados a um propósito mais urgente no sistema econômico. Até mesmo uma comunidade socialista, supondo que agiu racionalmente, não empurraria certas linhas de produção indefinidamente e negligenciaria outras. Até mesmo uma comunidade socialista interromperia uma determinada linha de produção quando a produção adicional não cobriria as despesas, isto é, no momento em que a produção adicional significaria o fracasso em satisfazer uma necessidade mais urgente em outro local.
Mas o que é verdade sobre o aumento do uso de instrumentos materiais é verdade exatamente da mesma maneira para o aumento do uso de trabalho. Se o trabalho é dedicado a uma determinada linha de produção a ponto de apenas aumentar o produto bruto enquanto o produto líquido diminui, ele está sendo retirado de alguma outra linha onde poderia prestar um serviço mais valioso. E aqui, novamente, o único resultado ao negligenciar o princípio do produto líquido é que os desejos mais urgentes permanecem insatisfeitos enquanto os menos urgentes são atendidos. É esse e mais nenhum outro fato que fica evidente no mecanismo do sistema capitalista pelo declínio do produto líquido. Em uma comunidade socialista, seria dever da administração econômica vigiar para que não ocorressem aplicações errôneas semelhantes da atividade econômica. Aqui, portanto, não há discrepância entre lucratividade e produtividade. Até mesmo do ponto de vista socialista, o maior produto líquido possível e não o maior produto bruto possível deve ser o objetivo da atividade econômica.
No entanto, as pessoas continuam se posicionando contra, ora à produção em geral, ora apenas ao trabalho e ora à produção agrícola. O fato da atividade capitalista ser direcionada exclusivamente para a obtenção do maior produto líquido é criticado negativamente e a intervenção do Estado é necessária para reparar o abuso alegado.
Esta discussão tem uma longa ancestralidade. Adam Smith sustentava que diferentes linhas de produção deveriam ser consideradas mais ou menos produtivas de acordo com a maior ou menor quantidade de trabalho que fosse colocado em prática.16 Por isso, ele foi veementemente criticado por Ricardo, que apontou que o bem-estar das pessoas aumentava apenas por meio de um aumento do produto líquido e não do produto bruto.17 Por isso Ricardo foi severamente atacado. Até J. B. Say o entendeu mal e o acusou de um total desprezo pelo bem-estar de tantos seres humanos.18 Enquanto Sismondi, adepto de enfrentar os argumentos econômicos por declamações sentimentais, achava que poderia resolver o problema de forma debochada: ele disse que um rei que pudesse produzir produto líquido apertando um botão tornaria, de acordo com Ricardo, supérflua a nação.19 Bernhardi concordou com Sismondi nesse ponto.20 Proudhon foi mais longe a ponto de resumir o contraste entre a empresa socialista e a privada na fórmula: que embora a sociedade deva se empenhar pelo maior produto bruto, o objetivo do empresário é o maior produto líquido.21 Marx evita comprometer-se com isso, mas preenche dois capítulos do primeiro livro de Das Kapital com uma exposição sentimental em que a transição dos métodos agrícolas intensivos para os extensivos é retratada da forma mais escura, como, nas palavras de Sir Thomas More, um sistema ‘onde ovelhas devoram homens’, e consegue, no decorrer dessa discussão, confundir as grandes expropriações realizadas pelo poder político da nobreza, que caracterizaram a história agrária europeia nos primeiros séculos da modernidade, com as mudanças nos métodos de cultivo iniciadas posteriormente pelos proprietários de terras.22 Desde então, declamações sobre este esquema formaram o estoque dos polêmicos escritos e discursos dos socialistas. Um economista agrícola alemão, Freiherr von der Goltz, tentou provar que a obtenção do maior produto bruto possível não é apenas vantajoso do ponto de vista social, mas também lucrativa do ponto de vista individual.
Ele pensa que um grande produto bruto pressupõe naturalmente um grande produto líquido e, nessa medida, os interesses dos indivíduos cujo objetivo principal é obter um grande produto líquido coincidem com os do Estado que deseja um grande produto bruto.23 Mas ele não pode oferecer nenhuma prova disso.
Muito mais lógico do que esses esforços para superar o aparente contraste entre interesses sociais e privados, ignorando aspectos óbvios da contabilidade agrícola, é a posição assumida pelos seguidores da escola romântica do pensamento econômico, particularmente os estatistas alemães, por exemplo, que o agricultor tem a condição de funcionário público e, portanto, está obrigado a trabalhar de acordo com o interesse público. Visto que se diz que isso requer o maior produto bruto possível, segue-se que o agricultor, não influenciado pelo espírito, ideias ou interesses comerciais, e independentemente das desvantagens que possam acarretar, deve dedicar-se a atingir esse fim.24 Todos esses escritores presumem que os interesses da comunidade são atendidos pelo maior produto bruto. Mas não fazem nada para provar isso. Quando tentam, argumentam apenas do ponto de vista da Machtpolitik ou da Nationalpolitik. O Estado tem interesse em uma população agrícola forte, já que a população agrícola é conservadora; a agricultura abastece o maior número de soldados; devem haver provisões para alimentar a população em tempos de guerra, e assim por diante.
Em contraste com isso, uma tentativa de justificar o princípio do produto bruto pelo raciocínio econômico foi feita por Landry. Ele apenas admitirá que o esforço para obter o maior produto líquido é socialmente vantajoso na medida em que os custos que não mais fornecem lucro surgem do uso de instrumentos materiais de produção. Quando a aplicação de trabalho é envolvida, ele pensa o contrário. Então, do ponto de vista econômico, a aplicação de trabalho não custa nada: o bem-estar social não é diminuído. Economias salariais que resultam em uma diminuição do produto bruto são prejudiciais.25 Ele chega a essa conclusão ao presumir que a força de trabalho dispensada não poderia encontrar emprego em outro lugar. Mas isso está absolutamente errado. A necessidade de trabalho na sociedade nunca é satisfeita enquanto o trabalho não for um “bem gratuito”. Os trabalhadores dispensados encontram outro emprego onde têm de fornecer um trabalho mais urgente do ponto de vista econômico. Se Landry estivesse certo, teria sido melhor se todas as máquinas que economizam trabalho nunca tivessem existido, e a atitude dos trabalhadores que resistem a todas as inovações técnicas que economizam trabalho e que destroem tais máquinas seria justificada. Não há razão para que haja distinção entre o emprego de instrumentos materiais e de trabalho. Que, em vista do preço dos instrumentos materiais e o preço de seus produtos, um aumento de produção na mesma linha não é lucrativo, é devido ao fato de que os instrumentos materiais são necessários em alguma outra linha para satisfazer necessidades mais urgentes. Mas isso é igualmente verdadeiro para o trabalho. Os trabalhadores empregados no aumento não lucrativo do produto bruto são realocados em outras linhas de produção em que são mais urgentemente necessários. Que seus salários sejam altos demais para que um aumento na produção envolvendo um produto bruto maior seja lucrativo, resulta, de fato, do fato de que a produtividade marginal do trabalho, em geral, é mais alta do que na linha de produção em questão, onde é aplicada além os limites determinados pelo princípio do produto líquido. Não há contraste algum aqui entre os interesses sociais e privados: uma organização socialista não agiria de maneira diferente de um empreendedor na organização capitalista.
É claro que existem muitos outros argumentos que podem ser aduzidos para mostrar que a adesão ao princípio do produto líquido pode ser prejudicial. São comuns a todo pensamento nacionalista-militarista e são os conhecidos argumentos usados para apoiar toda política protecionista. Uma nação deve ser populosa porque sua posição política e militar no mundo depende de números. Deve ter como objetivo a autossuficiência econômica ou, pelo menos, deve produzir seus alimentos nacionalmente e assim por diante. No final, Landry precisa recorrer a tais argumentos para apoiar sua teoria.26 Examinar tais argumentos estaria deslocado em uma discussão da comunidade socialista isolada.
Mas se os argumentos que examinamos não são verdadeiros, segue-se que a comunidade socialista deve adotar o produto líquido e não o produto bruto como o princípio orientador da atividade econômica. A comunidade socialista, da mesma forma que a sociedade capitalista, também transformará as terras aráveis em pastagens, se for possível cultivar terras mais produtivas em outro lugar. Apesar de Sir Thomas More, “ovelhas comerão homens” mesmo na Utopia, e os governantes da comunidade socialista não agirão de maneira diferente da Duquesa de Sutherland, aquela “pessoa economicamente instruída”, como Marx uma vez a chamou jocosamente.27
O princípio do produto líquido é verdadeiro para todas as linhas de produção. A agricultura não é exceção. A máxima de Thaer, o pioneiro alemão da agricultura moderna, de que o objetivo do agricultor deve ser um alto rendimento líquido “mesmo do ponto de vista do bem-estar público” ainda se mantém.28
1 Veja a crítica de Kelsen, Staat und Gesellschaft, p. 11 et seq.
2 Engels, Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft, p. 335 et seq
3 Marx, Das Kapital, Vol.1, p. 5 et seq.
4 Ibid. p. 5 et seq.
5 Ibid. p. 10 et seq.
6 Böhm–Bawerk, Kapital und Kapitalzins, Vol. I, 3rd Edition, Innsbruck 1914, p. 531.
7 Podemos apontar aqui que, já em 1854, Gossen sabia “que apenas através da propriedade privada a medida é encontrada para determinar a quantidade de cada mercadoria que seria melhor produzir sob certas condições. Portanto, a autoridade central, proposta pelos comunistas, para a distribuição das várias tarefas e suas recompensas, logo descobriria que havia assumido um trabalho cuja solução ultrapassa em muito as habilidades de qualquer homem.” (Gossen, Entwicklung der Gesetze des menschlichen Verkehrs, New Edition, Berlim 1889, p. 231.) Pareto (Cours d’Economie Politique, Vol. II, Lausanne 1897, p. 364 et seq.) e Barone (Il Ministro della Produzione nello Stato Coletivista penetratein Giornale degli Economisti, Vol. XXXVII, 1908, p. 409 et seq.) não adentraram o cerne da questão. Pierce claramente e completamente reconheceu o problema em 1912. Veja seu Das Wertproblem in der solzialistischen Gesellschaft (Tradução alemã por Hayek, Zeitschrift für olkstcirtschaft, New Series, Vol. IV, 1925, p. 607 et seq.) Veja agora Hayek, Collectivist Economic Planning, Londres 1935.
8 Discuti brevemente as mais importantes destas respostas em dois pequenos ensaios — “Neue Beiträge zum Problem der sozialistischen Wirtschaftsrechnung” (Archiv für Sozialwissenschaft, Vol. VI, pp. 488-90). Veja o Apêndice.
9 Na literatura científica não há mais dúvidas sobre isso. Veja Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft (Grunriss der Sozialökonomik, Vol. III), Tübingen 1922, pp. 45-59; Adolf Weber, Allgemeine Volkswirtschaftslehre, 4th Edition, München und Leipzig 1932, Vol. II, p. 369 et seq; Brutzkus, Die Lehren des Marxismus im Lichte der russischen Revolution, Berlim 1928, p. 21 et seq; C. A. Verrijn Stuart, Winstbejag versus behoeftenbevrediging (Overdruk Economist, 76 Jaargang Aflevering 1), p. 18 et seq; Pohle-Halm, Kapitalismus und Sozialismus, 4th Edition, Berlim 1931, p. 237 et seq.
10 Uma característica deste ramo da literatura é a obra recentemente publicada de C. Landauer, Planwirtschaft und Verkehrswirtschaft, München e Leipzig 1931. Aqui, o escritor lida com o problema do cálculo econômico de maneira bastante ingênua, a princípio, ao afirmar que em uma sociedade socialista “as empresas individuais […] poderiam comprar umas das outras, assim como as empresas capitalistas compram uma das outras” … (p. 114). Algumas páginas depois, ele explica que “além disso” o estado socialista terá “de estabelecer uma contabilidade de controle em espécie”: o estado será “o único capaz de fazer isso porque, em contraste com o Capitalismo, ele controla a própria produção” (p. 122). Landauer não consegue entender que — e o porquê — não se é permitido adicionar e subtrair figuras de denominação diferente. Esse caso, é claro, já é um caso perdido.
11 Böhm-Bawerk, Kapital und Kapitalismus, Vol. II, 3rd Edition, Innsbruck 1912, p. 21.
12 A limitação contida nas palavras “a princípio” não pretende significar que o Socialismo, mais tarde, digamos, depois de atingir um “estágio superior da sociedade comunista”, irá se empenhar em abolir o capital no sentido aqui usado. O Socialismo nunca pode planejar o retorno à vida a nível de subsistência. Em vez disso, quero apontar aqui que o socialismo deve, por necessidade interna, levar ao consumo gradual de capital.
13 Pohle-Halm, Kapitalismus und Sozialismus, p. 12 et seq.
14 Sobre o monopólio ver p. 385 et seq., sobre o consumo “não-econômico” veja p. 445 et seq.
15 Ver pp. 160 et seq., 183 et seq.
16 A. Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, Book II, Chap. V (Londres 1776, Vol. I, p. 437 et seq.).
17 Ricardo, Principles of Political Economy and Taxation, Chap. XXVI (Works, edited MacCulloch, Edition, Londres 1852, p. 210 et seq.).
18 Say, em suas Notas à edição francesa de Constancio das obras de Ricardo, Vol. II, Paris 1819, p. 222 et seq.
19 Sismondi, Nouveaux Principes d’Economie Politique, Paris 1819, Vol. II, p. 331 nota de rodapé.
20 Bernhardi, Versuch einer Kritik der Gründe, die für grosses und kleines Grundeigentum angeführt werden, Petersburg 1849, p. 367 et seq.; também Cronbach, Das landwirtschaftliche Betriebsproblem in der deutschen Nationalökonomie bis zur Mitte des 19. Jahrhunderts, Viena 1907, p. 292 et seq.
21 “La societe recherche le plus grand produit brut, par consequent la plus grande population possible, parce que pour elle produit brut et produit net sont identiques. Le monopole, au contraire, vise constamment au plus grand produit net, düt-il ne l’obtenir qu’au prix de l’extermination du genre hurnain.” [“A sociedade procura o maior produto bruto, por consequência a maior população possível, pois, para ela produto bruto e produto líquido não são idênticos. O monopólio, ao contrário, visa constantemente ao mais produto líquido, mesmo que ele o obtenha a custo do extermínio da raça humana.”] (Proudhon, Systéme des contradictions economiques ou philosophie de la misère, Paris 1846, Vol. 1, p. 270.) Na linguagem de Proudhon, “monopólio” significa o mesmo que propriedade privada. (Ibid., Vol. l, p. 236; also Landry, L’utilité sociale de la propriété individuelle, Paris 1901, p. 76).
22 Marx, Das Kapital, Vol. l, pp. 613-726. Os argumentos sobre “a teoria da compensação para os trabalhadores deslocados devido ao maquinário” (ibid., pp. 403-12) são inúteis em vista à Teoria da Utilidade Marginal.
23 Goltz, Agrarwesen und Agrarpolitik, 2nd Edition, Jena 1904, p. 53; também Waltz, Vom Reinertrag in der Landwirtschaft, Stuttgart und Berlim 1904, p. 27 et seq. Goltz se contradiz em seus argumentos, pois, sobre a afirmação acima mencionada, ele acrescenta imediatamente: “No entanto, o montante que permanece como lucro líquido do produto bruto após dedução dos custos varia consideravelmente. Em média, é maior com cultivo extensivo do que com cultivo intensivo.”
24 Ver Waltz, op. cit. p. 19 et seq. Sobre Adam Müller, Bülow-Cummerow e Phillipp v. Amim, e p. 30 et seq. Sobre Rudolf Meyer e Adolf Wagner.
25 Landry, L’utilite sociale de la propriété individuelle, p. 81.
26 Landry, L’utilité sociale de la propriété individuelle, pp. 109, 127 et seq.
27 Marx, Das Kapital, Vol. I, p. 695.
28 Citado por Waltz, Vom Reinertrag in der Landwirtchaft, p. 29.