Por Frank van Dun[1]
[Tradução de Natural Law, Liberalism, and Christianity por Gabriel Gavenas, retirado de The Journal of Libertarian Studies, Volume 15, N.° 3 (Verão de 2001)]
O liberalismo clássico surgiu numa época em que a ortodoxia cristã ainda era vibrante.[2] O liberalismo e a ortodoxia cristã, compartilhando várias ideias fundamentais sobre a natureza do homem e das relações interpessoais, pressupõem a mesma ontologia moral do direito natural. O ápice do pensamento cristão ortodoxo e liberal clássico pertenceu à época em que o direito natural era o conceito fundamental de todo pensamento sério sobre o mundo humano.
Tanto o liberalismo clássico quanto o cristianismo entraram em declínio do final do século XIX em diante, e, no início do século XX, o conceito de direito natural foi rapidamente desaparecendo da imaginação dos intelectuais. Hoje, não é mais parte do quadro intelectual padrão. Entre os intelectuais, a filosofia do direito natural foi suplantada durante o último século por uma crença progressista na mais ou menos eminente chegada de uma “nova era” em uma “utopia social” (ou, mais recentemente, “Ecotopia”) nacional ou global.
Progressismo não é o simples reconhecimento da explosão de riqueza que começou no século XIX, uma explosão que tem sido a base de um progresso significativo na ciência, tecnologia e no padrão de vida. Em vez disso, é uma religião que combina temas e pressuposições milenaristas e gnósticas para justificar o sacrifício compulsório dos limitados direitos naturais dos indivíduos no altar de um ilimitado “direito à tudo” – um direito à total libertação de todas as restrições naturais e sociais da condição humana.[3] Dessa forma, progressismo é um ataque direto contra a filosofia do direito natural.
Após algumas notas explicativas sobre os conceitos relevantes do direito natural e da religião, devo discutir três tipos de ontologias morais religiosas. A discussão deve clarificar os diferentes padrões de relações interpessoais implicados por esses tipos ontológicos. Primeiro devo considerar o depoimento bíblico do direito natural em Genesis, e então os desafios impostos a isso pelas tradições milenaristas e gnósticas. Observarei essas religiões a fim de determinar como elas representam as relações interpessoais entre “Eu” e “Você”, ou entre “Eu” e “Outro”.
A discussão também enfatiza o contraste entre a política de liberdade liberal clássica, enraizada no direito natural, e a política de libertação progressista, embasada na negação do direito natural. Devo mencionar algumas correntes de pensamento que são sintomáticas dessa negação, e concluir com uma breve avaliação do seu impacto no pensamento liberal do século XX.
DIREITO NATURAL
Ao contrário da crença comum de que o direito natural é um conceito metafísico ou até teológico, a palavra “natural” nessa expressão deve ser tomada literalmente. Direito natural se refere ao mundo natural, físico onde os seres humanos habitam. Além disso, “direito [law]” não deve, nesta associação, ser entendida no seu sentido atualmente dominante de um comando, ou regra (cf. a lex[4] latina). Em vez disso, deve ser entendida num sentido muito mais profundo de ordem, especialmente a ordem ou vínculo de convivência que tem sua fundação natural na pluralidade e diversidade de pessoas distintas e separadas.[5] Assim, direito é semanticamente relacionado ao ius latino, que se refere aos vínculos que surgem da fala solene (iurare, assumir um compromisso pessoal com o outro), e que pressupõem a separação e independência das pessoas. Nesse sentido, direito é oposta ao orlaeg do inglês antigo, que significa destino, o desaparecimento inevitável da ordem, como na guerra.[6] Desordem ocorre quando a separação natural das pessoas não é mais respeitada, e as distinções entre uma pessoa e outra, ou entre palavras, feitos e trabalhos de uma pessoa e outra, não são ou não podem ser atendidas.[7]
Claramente, direito (ordem) pode ser natural em um sentido direto e literal.[8] Entretanto, um império da lei não é nunca natural nesse sentido. Um império da lei é um regime inferido que pressupõe o valor de manter, fortalecer ou restaurar a ordem natural de convivência entre as pessoas. Assim, um império da lei não é uma lex, uma hierarquia de comando e obediência numa organização específica (uma societas,e.g., um exército, uma companhia, um estado). Por isso, é duplamente enganoso falar de leis naturais (leges naturales): isso obscurece a distinção entre um império da lei e um comando (lex), e isso assimila a ordem nomocrática de convivência à ordem telocrática de uma organização social feita para perseguir um conjunto específico de objetivos.[9]
Seres humanos tem direitos naturais. Como o direito natural, um direito natural não é um objeto ou qualidade metafísica ou teológica. O direito de alguém é aquele que está sob seu controle.[10] Um direito natural em sentido estrito é aquele que está naturalmente sob o controle da pessoa, seu corpo com suas faculdades de movimento, sentimento, pensamento e fala. Por extensão, um direito natural é o que uma pessoa toma sob seu controle sem violar os direitos naturais de outra.
Contudo, nem todos direitos são direitos naturais. Os mais fortes podem estabelecer controle sobre os fracos e submetê-los ao seu governo, e um ladrão ou um bandido pode tomar posse e controle daquilo que por direito natural pertence a outro. Esses direitos estabelecidos podem conflitar com os direitos naturais.
Portanto, surge uma questão: qual desses direitos conflitantes são respeitáveis ou normativamente significantes? A resposta comum no pensamento liberal clássico é que direitos naturais são respeitáveis per se, e os direitos estabelecidos são respeitáveis apenas se são estabelecidos com total respeito aos direitos naturais.[11] A mesma resposta também é pressuposta na ética cristã de direito natural (veja abaixo).
RELIGIÕES TEÍSTAS E ATEÍSTAS
Uma religião fornece um esquema para interpretar eventos e avaliar ações humanas. É, na memorável frase de Marx, “a lógica do mundo em forma popular”. Como tal, neste artigo, “religião” tem o sentido amplo daquilo que mantém o mundo junto e dá sentido para a existência humana, sua origem e seu destino; religião não é usada aqui como sinônimo para “o serviço de Deus”[12] ou “aderência a uma igreja”.
Religião é a fonte comum de preconceitos dos quais todo pensamento precisa partir, e para os quais é provável que retorne em face de dúvida ou quando afligido por fadiga ou estresse. Dada essa compreensão do termo, devemos notar que pode haver não somente religiões teístas como também religiões ateístas.
As religiões teístas mais proeminentes são as “religiões do Livro” (cristianismo, judaísmo e islamismo). Elas postulam a existência simultânea de um ser pessoal com poderes sobrenaturais e incomparáveis. Entre as religiões ateístas, várias formas de gnosticismo se destacam. Elas postulam a existência de um processo que é destinado a “alcançar o potencial infinito do homem” através da quebra das limitações do mundo finito da história e da natureza.
Muitos intelectuais veem religiões teístas – o cristianismo em particular – como restritivas porque tais religiões negam que os seres humanos são ou podem ser deuses. Eles estão inclinados a ver as religiões ateístas como libertadoras por conta de sua promessa de libertação das restrições naturais e históricas sob as quais os seres humanos têm trabalhado desde tempos imemoriais. Com Deus fora do caminho, o que (de acordo com as religiões teístas) pertence a Deus e apenas a Deus – incluindo onisciência e onipotência – se torna acessível para apropriação humana.
Religiões teístas tendem a ser adaptativas. Tipicamente, mas não invariavelmente, elas postulam um fosso intransponível entre o mundo natural e a esfera de Deus. O mundo natural é, consequentemente, o único lugar onde seres humanos, sendo do jeito que são, podem esperar existir. Portanto, religiões teístas tendem a focar a mente nos problemas de sobrevivência e prosperidade neste mundo, e em desenvolver práticas e instituições que são bem adaptadas às condições do mundo natural.[13] O mundo, ou natureza, é o que está dado, e os humanos devem se adaptar a isso, usando todos os recursos, habilidades e experiências a sua disposição.
Religiões ateístas, em contrapartida, não têm uma grande consideração pelo mundo como ele é. Ele de qualquer forma ou definhará ou será derrubado quando os homens se tornarem conscientes de sua própria natureza divina. As distinções objetivas, separações, e consequentes limitações, restrições e escassez que caracterizam o direito natural ou são falsos ou apenas condições temporárias – em qualquer caso, desprovidos de significância normativa. Consequentemente, essas religiões tendem a insinuar que regras de conduta, legislações e políticas não deveriam buscar melhorar a condição humana dentro da estrutura estabelecida do direito natural. Na verdade, deveriam buscar alcançar a libertação das amarras do direito natural. O principal motivo não é adaptação ao mundo, mas libertação dele. Na forma de escapar ou destruição ou subjugação do mundo natural, define-se a direção do progresso.
Algumas religiões teístas – por exemplo, várias formas de milenarismo cristão – lembram o ateísmo gnóstico pois também esperam por uma condição de libertação das restrições naturais e históricas da vida. Entretanto, elas tipicamente esperam esse tipo de libertação de uma luta vitoriosa dos verdadeiros “servos de Deus” contra seus inimigos ou de uma intervenção divina direta.
O RELATO BÍBLICO DO DIREITO NATURAL
A ortodoxia cristã é baseada na religião da Bíblia. Os primeiros capítulos do Genesis fornecem um relato de como as coisas foram ordenadas da maneira que são, de acordo com um esquema que fixa para sempre o que é possível e o que é impossível. Como veremos, os temas de lei e justiça são partes centrais do mito bíblico da criação.
A história é familiar. É uma história magnífica sobre amadurecer, sobre a inocência da infância e as responsabilidades de ser um adulto, sobre a ida de uma condição de obediência inquestionável e aceitação cega das autoridades para a condição de ver por si mesmo, de questionar as coisas com os seus gostos, e sobretudo de fazer escolhas cujas consequências é preciso suportar.[14]
Antes da Queda, Adão era só uma criança inocente vivendo em um jardim. Ele era capaz de ouvir e entender o que o Senhor do Jardim dizia para ele e instruiu-o a fazer, mas não era capaz de agir por conta própria. Ele não tinha qualquer cuidado e nem responsabilidades. Os frutos da Árvore da Vida estavam disponíveis gratuitamente, garantindo a ele uma existência despreocupada. Contudo, Adão também foi avisado, sem que entendesse, que sua situação era dependente de sua imaturidade pessoal. Iria continuar contanto que ele não comesse da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, quer dizer, contanto que não estivesse ciente da diferença entre o bem e o mal. Esse conhecimento está subentendido em todo ato de escolher, mas no Jardim do Eden, apenas o Senhor tomava decisões e fazia escolhas.[15] Ele tomava conta de tudo. Consequentemente, Adão, em sua inocência infantil, não tinha necessidade de escolher – então ele não tinha necessidade desse tipo de conhecimento, da mesma forma que não tinha necessidade de ser autoconsciente.
Quando Eva foi introduzida na simples hierarquia do Jardim do Eden, Adão descobriu que as coisas não eram tão óbvias quanto pareciam. Eva era como ele, uma igual – não uma superior, e não uma autoridade inquestionável. Ela era uma parceira que podia fazer perguntas sem que soubesse as respostas de antemão, e que podia responder suas perguntas sem ao mesmo tempo obliterar as dúvidas que as inspiraram em primeiro lugar. De repente, Adão e Eva entraram em um mundo onde escolhas tinham que ser feitas. Eles descobriram que tomar decisões implica em custos, e que eles precisavam saber a diferença entre o bem e o mal.
Ao adquirir esse conhecimento, eles inadvertidamente destruíram a própria possibilidade de manter o arranjo do paraíso no qual eles estavam vivendo. Até então, o reinado do Senhor sobre eles tinha sido justificado porque os faltava o conhecimento para reinar a si mesmos. Entretanto, uma vez que sabiam a diferença entre o bem e o mal, eles não poderiam mais reivindicar a proteção da inocência; eles tinham entrado na vida adulta.[16]
No decorrer da história, o Senhor percebe que eles se tornaram “como um de nós” (Genesis 3:22). Assim, não poderia mais haver nenhuma justiça em seu reinado sobre eles. Aqui nós temos o axioma da justiça na religião bíblica: não se governa seus semelhantes, nem se eles são inferiores em todas as dimensões de excelência moral – e não se pede para ser governado por seus semelhantes, mesmo que sejam superiores em todos os aspectos relevantes.[17]
Assim, a expulsão do paraíso foi um requerimento da justiça. Afinal, a justiça do governo direto de Deus tinha dependido da desigualdade da vigilância moral do Senhor do Jardim e da não-autoconsciência das crianças que habitavam nele. Ter continuado desse jeito depois que a desigualdade tinha desaparecido teria sido o ápice da injustiça. A expulsão não era tanto uma punição pelo pecado da desobediência, mas o necessário e justo preço de atingir a maioridade e adquirir o poder da descriminação moral. Essa expulsão, por mais dolorosa e carregada de consequências irrevogáveis que tenha sido, foi um ato de justiça e de amor comparável àquele momento dramático em que os pais dizem pela primeira vez aos filhos que eles devem ficar de pé, que o amor não implica dependência nem obrigação incondicional.
Se, entre semelhantes, o governo de um sobre os outros está fora de questão, suas relações só podem ser baseadas em respeito pela liberdade um do outro – ou seja, em independência mútua e concordância – mesmo que um seja Deus e o outro um mero mortal. Nada surpreendentemente, a religião bíblica é a religião da aliança, da fé e da confiança em vez da crença ou do conhecimento. Isso implica numa distinção clara entre duas esferas separadas, uma pertencendo a Deus, e a outra pertencendo aos seres humanos – entre o céu e a terra, o sobrenatural e o natural, ser eterno e vida mortal – cada um deles com sua própria realidade, integridade, autonomia e respeitabilidade.
Deus é o arquetípico Outro Significante no cristianismo ortodoxo, de onde vem o axioma ontológico fundamental da religião bíblica: o homem e Deus não são apenas seres distintos, mas também separados, mas são semelhantes no sentido de que ambos têm um senso moral. Seu relacionamento deve ser aquele de um ser independente do outro. Isso é ainda mais verdade para relacionamentos entre seres humanos. Se um ser humano é “como Deus”, ele é ainda mais como qualquer outra pessoa.
Os Dez Mandamentos servem como fortes lembretes da importância central desse axioma. Eles mandam os homens respeitarem o fato de que não são deuses, os filhos de deuses, ou os criadores de deuses. O lugar de Deus já está ocupado; nenhum humano precisa se candidatar. A divindade do julgamento de Deus não deve ser nem questionada nem apropriada pelo homem. Os mandamentos dizem para os homens respeitarem o fato de que são seres humanos trazidos a esse mundo por outros seres humanos, seus pais, sem os quais não poderiam sobreviver, e pra respeitar o fato de que somos todos semelhantes uns aos outros, nenhum deles tendo qualquer direito ou reivindicação prévias ao outro ou ao que pertence ao outro. Então, os homens são ensinados a respeitar as condições naturais de sua existência, e a aceitar suas limitações e restrições, bem como sua própria falibilidade. Desse modo, frustração não é injustiça.
A aliança é a única forma possível que faz justiça à existência separada e à semelhança de todas as pessoas envolvidas na história bíblica. Eles todos são agentes morais ou racionais, mesmo que não da mesma qualidade ou excelência. Esse fato define a ordem (ou direito) básica do mundo. É uma ordem que pode ser mantida apenas por respeito mútuo, não apenas entre Deus e os homens, mas também entre os próprios homens, independentemente das suas diferenças individuais. No que diz respeito às relações entre os homens, é a ordem do mundo natural, a ordem natural ou o direito natural. Respeito por essa ordem ou direito é justiça, e, então, como diz o ditado, justiça deve ser feita para que o mundo não pereça. Então, justiça emerge como a virtude fundamental ao lidar com os outros, porque justiça é simplesmente o respeito pela ordem ou direito natural do mundo humano. Se a análise dessa relação é feita em termos da relação entre “Eu” e “Outro”, é visto como completamente simétrico. Toda pessoa, ao lidar com os outros, é “Eu” e “Outro” de uma vez – as palavras são completamente intercambiáveis. Cada pessoa deve ser tomada seriamente pelo que é.
Mas a justiça não é uma virtude fácil – não para o homem e não para Deus. Abraão teve que provar sua lealdade à aliança mostrando sua disposição de sacrificar seu filho: a obrigação de justiça pesa mais até que a afeição paternal (Genesis 22:12). Por sua vez, Abraão tem que lembrar o Senhor (Genesis 18:23) que não há justiça em tratar os habitantes de Sodoma como se fossem partes indistinguíveis de um todo indivisível: “Fareis o justo perecer com o ímpio?” Olhando para o mundo dos seres humanos de seu assento distante, Deus pode estar inclinado a pensar “eles são todos iguais”; eles não são. Ninguém deve ser julgado meramente por pertencer a uma cidade, classe ou grupo. O princípio da solidariedade é contrário a justiça. Solidariedade nem ser conta como uma virtude, pois a virtude é direcionada a outras pessoas como tais, não a artefatos estatísticos.
Por isso, não é coincidência que na interpretação ortodoxa do cristianismo, o direito natural é a base para toda especulação sobre as relações humanas neste mundo. Justiça, isto é dizer respeito ao direito natural, implica em respeito pela liberdade de seus semelhantes, e por sua decência e propriedade, como também por suas iura ou alianças. Dentro dessa ordem natural, cada pessoa deve assumir sua própria responsabilidade, descarregando isso com amor e cuidado por si mesmo e pelos outros, especialmente seus filhos e pais. Amor e justiça são as fundações da ética cristão, mas é a justiça que tem precedência; amor não é desculpa para injustiça. Todas as regras de conduta devem ser avaliadas à luz da justiça, ou seja, pela contribuição que dão para a manutenção, reforço e, se necessário, restauração da ordem ou do direito natural. No entanto, apenas tais regras enquanto estão totalmente em consonância com esse propósito devem ser consideradas regras do direito em sentido estrito. Uma regra injusta impõe nenhuma obrigação lícita.
Para os temas centrais do direito natural e justiça, a interpretação ortodoxa adiciona mais uma: até o fim dos tempos, a separação entre Deus e o homem permanecerá intacta. Essa mensagem é clarificante: a condição inicial do Jardim do Eden está irrevogavelmente perdida. Na sua velhice, indivíduos podem retornar para uma condição de inocência infantil, mas senilidade não é uma fase na história da espécie. Não haverá retorno ao paraíso, nem “reino de Deus na terra” em um sentido literal – nem novo Messias, nem terceiro testamento.[18] Os seres humanos têm reconhecido a diferença entre bem e mal, o que é a pressuposição de todo ato de escolha, do qual bom e mal, ou melhor e pior, são aspectos distinguíveis, mas inseparáveis. Assim, seres humanos não podem, na justiça, ser súditos, nem mesmo de Deus ou do Jesus de uma Segunda Vinda. Não há substituto para a condição humana natural.
O DESAFIO MILENARISTA
É precisamente esse tema da irrevogável separação entre Deus e o homem e o tema relacionado da inseparabilidade entre bem e mal que são negados pelas versões milenarista ou quiliástica do cristianismo. Interpretando literalmente a visão do Livro do Apocalipse, eles anseiam por um retorno ao paraíso, uma restauração da condição de vida na qual a frustração não deve ser temida pois todos os pesos da escolha serão carregados pelo próprio Deus. A Árvore da Vida domina o cenário (Apocalipse 22:2) daquele “paraíso reconquistado”, mas a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal é evidente apenas por sua ausência.
Com a expectativa de uma Segunda Vinda que não irá sinalizar o fim dos tempos, mas apenas o fim dos tempos ruins e o começo dos tempos bons, a imaginação milenarista é levada a rejeitar o valor permanente do direito natural da existência humana. A vida humana é vista apenas como uma condição transitória, e uma que não pode passar tão depressa. Em vez de concentrar no problema da sobrevivência nesse mundo, a humanidade deveria atentamente esperar ou até mesmo ajudar a trazer a nova era de alegria. Em qualquer forma, seja desconexão em relação ao mundo, excesso antinômico ou violência revolucionária, a sua conduta própria visa minar as instituições básicas do mundo como ele é.
A promessa de um futuro infinitamente melhor, sem respeito pelo direito natural, guia o comportamento dos verdadeiros crentes durante sua peregrinação terrena. A serem rejeitadas são as igrejas estabelecidas, junto com as instituições de ciência, propriedade, troca, arte, dinheiro e até a família. Por serem os pilares que sustentam a ordem natural, elas não têm lugar na Nova Jerusalém, onde todos os homens serão irmãos desfrutando de uma vida sem morte, em uma alegre comunidade sem carências ou necessidades, sob “o Trono de Deus e do Cordeiro”.
Milenaristas não apenas acreditam na promessa de que a separação entre Deus e os homens eventualmente será desfeita, pelo menos para os justos, mas alguns também acham que a separação nunca foi completa. A luz divina brilha dentro do coração e alma daqueles que, porque uma “luz interior” os guia, podem abrir mão das convenções deste mundo. Qualquer um desses poderia ser o próximo Messias, autor de um terceiro e último Testamento.[19]
Da perspectiva da filosofia moral, o milenarismo difere do cristianismo ortodoxo porque rejeita a pressuposição básica do segundo da separação das pessoas, e com isso a ideia de que a verdadeira religião – aquilo que mantém o mundo unido – é a aliança. Em vez disso, assume uma explicação mereológica da existência humana, i.e., uma explicação em termos de um todo e suas partes. Bem como o Adão original não tinha uma existência separada, era meramente uma parte subordinada da casa divina, então, os justos também irão reconquistar essa condição original na Nova Jerusalém do Milênio. A perda de seu status temporário como pessoas independentes, mas amaldiçoadas é a condição necessária para a sua libertação de todos os males e misérias de suas estadias fora do reino de Deus.
Deus continua sendo o arquetípico Outro significante, que nem é no cristianismo ortodoxo – uma entidade distinta. Na análise final, entretanto, ele não é mais um ser separado; em vez disso, ele é o todo do qual toda pessoa justa virá a ser uma parte inseparável. A ética religiosa aqui é governada pelo desejo de perder sua identidade pessoal ao submeter-se a Deus. O ser humano não é nada; Deus é tudo. Similarmente, a ética social do milenarismo é uma de extremo altruísmo. A relação entre uma pessoa e outra não é mais concebida em termos do encontro de duas pessoas livres e iguais, mas no da submissão e do serviço do Eu ao Outro. Como Wynstan H. Auden sagazmente observou, “estamos todos aqui na terra para ajudar os outros; para que diabos os outros estão aqui, eu não sei”.[20]
Na visão quiliástica, a validade normativa de uma regra de conduta não é consequência de sua relação com o direito natural. Em vez disso, deriva de sua relação com algo que não existe mas deveria e irá – não de uma relação com a ordem natural, mas da relação com uma ordem ideal. O próprio conceito do direito é, então, imbuído de significado normativo. Não mais descreve a realidade objetiva à qual todo homem são tem acesso pelos poderes ordinários dos sentidos e da razão. Ele projeta uma visão que deriva sua significância normativa de sua distância do direito natural. O mundo natural é reduzido a ser apenas um entre vários mundos possíveis – e um dos menos atraentes. Da perspectiva da filosofia do direito, isso é uma mudança fatídica. Isso marca a troca da ideia de que jurisprudência e legislação são as artes de induzir respeito pelos semelhantes, seus seres, feitos, palavras e obras, para a ideia de que eles são ferramentas para reconstruir a sociedade de acordo com alguma noção grandiosa.
O DESAFIO GNÓSTICO
O gnosticismo também nega a separação das pessoas, mas de uma forma bem mais radical que o milenarismo. Religiões gnósticas tipicamente identificam a identidade do Homem e de Deus, ou pelo menos a natureza divina do Homem, que é então representado como um aspecto do divino. O que dá sentido para a existência humana é a divindade do Homem, de sua origem e seu destino. O mundo material e histórico obscurece essa verdade fundamental, mas não pode destrui-la. Gnosticismo é a religião da libertação deste mundo – uma libertação que é o propósito comum de todos os homens que têm conhecimento (gnosis) da verdade. Portanto, o gnosticismo é radicalmente oposto à religião da aliança, que defende que todo ser moral tem seu próprio lugar de direito e esfera de vida e liberdade neste mundo.
No mito gnóstico original, o Deus do Antigo Testamento, apelidado de Demiurgo, se encontra bem abaixo do Homem na hierarquia do divino, muito abaixo do verdadeiro Deus que, sendo tudo e nada ao mesmo tempo, transcende todas as dimensões do pensamento, existência e personalidade.[21] O Deus de Moisés é o vilão da peça, um maligno ou, na melhor das hipóteses, desastrado imitador do Deus verdadeiro. Seu crime é ter prendido o espírito divino do Homem no mundo material. Então, o “verdadeiro Homem” vive cativo no plano terreno criado por aquele falso Deus da matéria. Lá o Homem pode viver apenas a vida de um indivíduo finito, mortal e particular, enquanto sua verdadeira natureza é de um ser infinito, imortal e universal. A procriação humana e as instituições mundanas como a família e a propriedade privada servem mais para dispersar o elemento divino entre seus recipientes materiais, assim exacerbando a alienação do homem da sua verdadeira natureza e condenando-o ao incessante conflito.
Contudo, alguns homens ainda estão em comunhão com sua divindade original. Eles são os “pneumatikoi”, conscientes de sua origem divina e intencionados a acordar seus companheiros de seu sono dogmático. Pois é parte da crença gnóstica que quando o homem recuperar consciência de seu verdadeiro eu, eles poderão recapturar o potencial infinito que é seu direito divino. O lema básico do gnosticismo é: “Se conhecer é conhecer tudo”.[22] Na análise final, o eu divino é a única realidade verdadeira: é o próprio Homem, o ego universal. Esse Homem com H maiúsculo não é o mesmo que seres humanos que rastejam por esta terra. Ele é verdadeiramente real, enquanto eles têm no máximo um tipo ilusório de ser.
Os gnósticos denunciam como mau e errado tudo que o Velho Testamento pronuncia como bom e correto. O mundo da natureza e da história tem que ser destruído ou superado pois é uma forma ilusória de existência – uma mentira. É a criação de um deus falso cujos poderes são bem inferiores aos do próprio Homem. O Deus da Bíblia não é mais que um tolo arrogante, uma parte insignificante do Homem que acredita ele mesmo ser o todo. Mais tolos ainda são aqueles que cultuam esse falso Deus, porque eles projetam o divino fora de si mesmos enquanto ele está escondido em suas almas. Eles vivem em um estado de autoalienação autoinfligida.
A atitude correta para o Homem é destruir a ilusão de que há qualquer coisa significante fora de si mesmo, e.g., um Deus que é um Outro significante, ou qualquer pessoa que poderia legar ser separada e distinta. Para destruir essa ilusão, é necessário ver que cada pessoa que aparenta ser outra superficialmente, é na verdade é apenas uma parte de si mesmo. Essa é a atitude do egoísmo universal: Eu, o Homem universal, sou tudo; nada é distinto de mim. Sua necessária imagem espelhada é o altruísmo incondicional de qualquer outro, que deve por força ser um outro insignificante. Ele não pode ter nenhuma raison d’être, exceto servir o ego exaltado do Homem universal. Nesse sentido, a tradição gnóstica do ego universal é complementária a tradição milenarista de submissão e serviço. Todavia, o “eu te sirvo” milenarista é compatível com o voluntarismo. Se cheira a moralidade de escravos, ainda é escravidão voluntária. Em contrapartida, o “você me serve” gnóstico não dá espaço nenhum para o voluntarismo. Que o cristianismo, para o gnóstico, é uma moralidade de escravos ou Untermenschen, é uma consequência inevitável de sua egomania. Não é tanto um comentário sobre o cristianismo, mas sobre si mesmo. Na verdade, a lógica religiosa do gnosticismo começa da suposição de que, em última análise, não há nada mais para comentar.
MARX COMO UM GNÓSTICO
Os temas básicos da seção prévia – alienação e consciência de si, inversão das categorias de realidade e ilusão e de vida e morte, oposição entre o homem particular e o universal – são trazidos juntos no texto gnóstico mais conhecido entre os estudantes de filosofia política: A acusação de Marx contra a religião em seu “Toward the Critique of Hegel’s Philosophy of Law”. O texto é cheio de temas e palavras-chave gnósticas:
E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do homem, que ou ainda não encontrou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas [esse] homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o estado, a sociedade. Esse estado e essa sociedade produzem a religião, que é uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, seu ponto de honra espiritual, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua base geral de consolação e de justificação. Ela é a realização na fantasia do ser humano, porque o ser humano não possui uma realidade verdadeira. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.
A miséria religiosa é por um lado a expressão da miséria real e por outro um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, assim como o espírito de condições sem espirito. Ela é o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de suas condições é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe, uma crítica deste vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.[23]
Em certo sentido, Marx é o gnóstico mais extremo, pois não apenas bota a Bíblia de cabeça para baixo, mas também a hierarquia do espiritual e do material, uma hierarquia comum para as tradições judaico-cristãs e para as gnósticas originais. Para ele, o Homem universal não é mais uma visão mística, mas a própria espécie humana. Como o Homem universal, a espécie irá tornar-se sua quando todos os homens e mulheres, ao descobrirem que são um só com a espécie como um todo, se despojarem da sua individualidade particular.[24] Essa é a essência religiosa do seu comunismo. Ele defende o fim do mundo da história e da natureza como conhecemos – o mundo no qual a espécie ainda está dispersa entre vários indivíduos particulares diferentes e, por isso, divididos contra si mesmos.
A luta que Marx empreendeu durante toda a vida contra a divisão do trabalho e as instituições da família e da propriedade na qual é realizada mostram ainda mais o seu gnosticismo. No estágio final do comunismo, o Homem irá ter controle completo de todas as condições sociais e naturais de sua existência. Ele será o autor do Homem e da Natureza também – ele se tornará o Deus autossuficiente e autocriador que sempre foi destinado a ser, consciente de sua onipotência, libertado de tudo e todos que pudessem se opor a ele.
O gnóstico não vê utilidade em uma ética de genuíno amor e justiça. Para ele, amor só pode ser amor próprio.[25] O direito natural não é algo a ser apreciado e respeitado. Ao contrário, é o que o bête noire do gnosticismo, porque o direito defende precisamente a condição de separação e alienação do divino, na qual a humanidade não é nada além de uma massa de indivíduos particulares. Homens e mulheres particulares não têm qualquer importância, exceto na medida em que são arrastados pelo processo de aumento da consciência do Homem sobre o seu destino final.
Não é surpreendente que Marx, em seu famoso ensaio “On the Jewish Question”,[26] não apresentou nada além do desprezo pela noção de direitos naturais, i.e., os direitos de indivíduos naturais e particulares que nós conhecemos através de observação empírica e histórica direita. A esses direitos naturais ele opôs os “direitos do cidadão” de Rousseau, que pertencem a uma pessoa apenas enquanto ela é um cidadão, ou seja, uma parte de um todo maior, o estado. De acordo com o contrato social de Rousseau, todo homem incondicionalmente une ele mesmo, seus direitos e suas posses com todos os outros, não retendo nada da comunidade, que deve ser seu ego comum (seu moi commun).[27]
Ao fazer isso, todo homem abjura sua humanidade natural e se compromete a ser um cidadão, um ser comunal – um Gemeinwesen, para usar a terminologia de Marx. O verdadeiro cidadão é o estado, participando do exercício de seu poder legislativo soberano, governando não apenas a si mas a todos os outros cidadãos – e fazendo isso sem ameaçar a liberdade deles. Na verdade, ao fazer as leis, o verdadeiro cidadão apenas expressa a vontade geral, que é, por definição, a mesma para todos os cidadãos. Obviamente, então, como Rousseau nunca cansou de insistir, cidadania é a forma legal da solução final para o problema das relações interpessoais na política. De fato, para o cidadão como tal, não há tais relações porque o todo da política deve ser internalizado dentro da única pessoa do estado, que é o ego comum de todos os cidadãos. Claro, enquanto cidadania continua sendo não mais que um jogo que as pessoas jogam, uma mera forma legal, o real problema da política subsiste. Para resolvê-lo, é necessário “mudar a natureza humana” para que a cidadania se torne a real natureza do homem.[28]
Do ponto de vista de Marx, o atributo mais atraente dos direitos do cidadão era eles apresentavam uma forma pura de unidade comunista, mesmo que Rousseau tivesse em mente aplicá-los somente às atividades políticas do homem. Assim, a menos que os direitos do cidadão de Rousseau fossem estendidos para cobrir todos os aspectos da vida humana, eles não poderiam ser mais que meio caminho andado para a emancipação política, não poderiam ser o destino final de toda a libertação. Portanto, o verdadeiro Homem comunista de Marx não poderia ser menos que o todo da humanidade, um ser da espécie ou Gattungswesen. O comunismo de Marx defende a completa obliteração do indivíduo particular no indivíduo universal que abrange tudo, cujos interesses e vontades são um com os interesses e vontades da espécie como um todo. Tal obliteração e união são necessárias para fazer o Homem completo de novo, depois de ter sido separado e dividido contra si mesmo por tanto tempo no mundo natural e histórico.
A POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO VERSUS A POLÍTICA DA LIBERDADE
A tendência política do gnosticismo deve estar clara por agora. Em um nível, isso pode não ser mais que uma promessa de libertação espiritual individual, mas na sua forma mais potente é a religião da unidade coletiva. Esse aspecto do gnosticismo está escondido por suas amplas referências à pessoa humana, seu ego e sua liberdade, que o dá um ar de individualismo liberal.[29] No entanto, as referências são ao indivíduo universal, o ser da espécie, não ao indivíduo particular como você ou eu. Nesse sentido, “a libertação do indivíduo” não é a mesma coisa que a liberdade individual no sentido liberal clássico. Não é a liberdade de qualquer indivíduo dispor de sua própria propriedade sem ser sujeito a interferência coercitiva ou agressiva por outros e sem sujeitar os outros a tal interferência. Na verdade, trata-se da libertação do indivíduo universal de todas as suas limitações e restrições desse mundo de escassez, pluralidade e diversidade.
De novo, foi o jovem Marx que mais claramente declarou a essência da filosofia da libertação (e, por implicação, sua diferença da filosofia liberal de liberdade individual). Em German Ideology, Parte I, ele escreveu que, sob o comunismo, “eu posso fazer o que eu quiser […] enquanto a sociedade toma conta da produção geral”. Marx não especificou como a sociedade vai tomar conta da produção geral ou quem vai, de fato, fazer o trabalho, mas é seguro admitir que a sociedade aqui é o Outro Insignificante: a massa organizada de outros sem nome que deve ser submetida ao indivíduo universal para que ele possa desfrutar de sua vida sem preocupações. O indivíduo libertado, afinal de contas, tem total controle das condições sociais e naturais de sua existência. Ele é o mestre, a sociedade é sua serva; ele existe para seu próprio bem, ela existe apenas para satisfazer suas necessidades e desejos.[30] A socialização completa de todos os outros é a precondição de sua autonomia. Aqui estamos muito próximos do moderno “individualismo de bem-estar” daquele que assume que o mundo deve a ele sustento, e que ele está autorizado a fazer o que quer às custas das massas anônimas precisam ser mobilizadas e controladas pelo bem de sua “dignidade”.
Há ecos de tal filosofia liberacionista e de suas implicações sociais na distinção de John Stuart Mill entre produção e distribuição.[31] A produção supostamente é um processo mais ou menos automático governado por fixas leis da natureza; a distribuição é uma atividade moral livre, sem outro propósito senão dar aos indivíduos o que é socialmente produzido. A mesma distinção entre “o indivíduo autônomo” e a sociedade como uma força anônima permeia seu On Liberty, porém, nesse folheto grandemente superestimado, Mill tipicamente tenta abraçar ambos os lados da questão. Por um lado, “o indivíduo não é responsável perante a sociedade por suas ações enquanto elas não disserem respeito aos interesses de ninguém, exceto ele mesmo”. Por outro, “por tais ações enquanto são prejudiciais aos interesses dos outros, o indivíduo é responsável e pode ser sujeitado a punição social ou legal se a sociedade for da opinião de que um ou outro é requisito para sua proteção”.[32] Para além da hipostatização da “sociedade”, note aqui a aceitação de Mill da noção irremediavelmente vaga, subjetiva e relativista de “um interesse” como o critério para o uso legal de violência e coerção. Aqui há pouco que nos lembra da filosofia de direito natural do liberalismo clássico, que é expressa nas precisas categorias do direito: pessoa, propriedade, contrato, responsabilidade legal. Essas categorias são enraizadas nos aspectos físicos ou naturais dos seres humanos, mas Mill não tem utilidade para elas.
Se a esfera de liberdade individual de uma pessoa compreende apenas aquelas ações “não prejudiciais aos interesses dos outros”, sua extensão não é determinada por nenhum fato objetivo sobre a pessoa em relação às outras, mas por seja lá o que os outros digam ser seus interesses. Claramente, a liberdade de um indivíduo não pode ser parte de sua existência social. Na extensão em que é livre, um ser humano não é parte da sociedade. Contrariamente, o indivíduo autônomo como tal não tem obrigações sociais perante os outros, mas o poder coercitivo do estado deve fazê-los respeitar sua autonomia de outro mundo.
A mensagem básica do On Liberty de Mill é liberacionista, não liberal ou libertária. Contudo, teve um enorme impacto, mudando o estilo e substância do discurso liberal. Ela entronou o dualismo antagônico de “indivíduo versus sociedade”, que o liberalismo clássico sempre se esforçou para negar. De acordo com Mill, a sociedade, essa massa de outros anônimos, reside em uma moralidade meramente convencional que requer nada além de uma “faculdade simiesca de imitação”, enquanto o indivíduo autônomo “emprega todas as suas faculdades”.[33] A simetria básica entre o “Eu” e o “Outro”, que é a fundação sólida do direito natural, é substituída por uma hierarquia descompromissada. Seja lá quais foram as intenções de Mill, há pouca dúvida de que ele ajudou a dar inicia à atitude “progressista” que logo iria denominar “opinião esclarecida”. Se o confronto entre o Homem e os macacos é realmente o assunto central da filosofia política, então talvez o estado devesse controlar ou até substituir a sociedade pra fazer o mundo seguro para a real “individualidade”. Nesse caso, o controle social e a arregimentação da sociedade – não direito e justiça – deveriam ser as preocupações primárias da política.[34]
GNOSTICISMO COMO A RELIGIÃO DO INTELECTUAL MODERNO
Como os comentários de Marx e Mill ilustram, o gnosticismo não é meramente um fenômeno dos primeiros séculos da era cristã. No meio da crise religiosa e das divisões da Idade Média tardia e da Renascença, o gnosticismo fez um notável retorno, especialmente entre os intelectuais – o povo comum foi muito mais facilmente atraído ao milenarismo, que também reapareceu com força nesses tempos críticos.[35]
O intelectual renascentista arquetípico Giovanni Pico dela Mirandola, que considerava que “a humanidade contém todas as coisas em si como seu centro”, escreveu, “ao [homem] é dado ter o que deseja, ser o que quer”.[36] Além disso, “a alma intelectiva em todas as pessoas é uma”.[37] Jakob Böhme (1575-1624), talvez o mais influente gnóstico do início da modernidade, anunciou os temas que iriam receber uma elaboração rigorosa na dialética do Espírito de Hegel.[38]
As influências gnósticas têm sido identificadas em muitas filosofias construtoras de sistemas de Spinoza a Hegel e além, e em outras tentativas de colocar a gnose sistematicamente em termos lógicos e racionais. Pelo início do século XIX, o gnosticismo já tinha se estabelecido como “o terceiro componente da tradição cultural europeia”[39] – e sua fortuna estava aumentando.
A ambiguidade do Ego, ao mesmo tempo a força universal da humanidade e o recurso secreto do divino na alma individual, provou ser um ativo valioso na competição por dominância intelectual. Sua maneira de largar um Deus pessoal – o Grande Mago, como foi chamado algumas vezes – tornou o gnosticismo atraente para aqueles que olhavam com espanto e expectativas esperançosas para os milagres feitos pelo homem do progresso científico e dos poderes incríveis do estado secular. Certamente, aqui foi provado que “o Homem é o Templo do Espirito Santo”.[40] Por outro lado, os temas gnósticos de libertação das restrições da natureza e sociedade iriam ressoar em várias noções românticas e existencialistas de individualidade e autonomia.
Tendo sobrevivido como uma religião esotérica nas mais diversas circunstâncias, o gnosticismo foi adaptado pra apresentar seus ensinamentos básicos das mais variadas formas. Marx podia fazer e fez com a mesma facilidade sua versão do gnosticismo sob as vestes da dialética hegeliana, do socialismo revolucionário francês e da economia política britânica. Ele poderia muito bem ter tentado adaptar o darwinismo aos seus propósitos se não tivesse perdido sua energia pra continuar seu empreendimento teórico.[41] O gnosticismo poderia existir e prosperar como uma conspiração sectária dos cognoscentes, e, quando fosse a hora certa, como “uma conspiração aberta”.[42] Sem a empolgação dos rituais da igreja e confiança no dogma canonizado, poderia facilmente prover uma religião que iria atrair os intelectuais sofisticados. Tinha absorvido elementos das versões evolucionárias ou progressistas do milenarismo cristão que entrou em voga no século XVII depois dos desastrosos episódios anteriores do milenarismo revolucionário ou apocalíptico.[43] Acima de tudo, tinha habilmente misturado a experiência contemporânea do inegável progresso material com sua própria visão do inevitável, e agora iminente, fim da ordem natural e dos indivíduos particulares que constituem-na.
No fim do século XIX, visões religiosas fundamentalmente opostas à noção de direito natural vieram a dominar a cena intelectual. Nos Estados Unidos, o milenarismo, com sua ênfase no serviço voluntário, pode ter sido a força dominante.[44] Na Europa, o gnosticismo, com sua cruel ou, no máximo, condescendente atitude perante os outros, tornou-se para muitos intelectuais quase como uma religião autoevidente. Foi apoiada por várias correntes esotéricas de pensamento – teosofia, antroposofia – e o que Sir Karl Popper chamaria de pseudociências[45] – psicanálise e, claro, marxismo. Também foi, talvez menos autoconscientemente, apoiada por uma mistura curiosa de determinismo rígido e relativismo ético que então estava para se tornar o paradigma dominante da visão científica e racional para muitos intelectuais. No início do século XX, o gnosticismo havia se tornado o principal ingrediente da religião secular da versão europeia da Era Progressista. Dentro de algumas décadas depois do anúncio de Nietzsche da morte de Deus, o gnosticismo reivindicaria a posição de religião universal do Homem e a forma definitiva de evolucionismo científico.[46] Entre os intelectuais ocidentais, “a lógica do mundo em forma popular” nunca mais seria a mesma.
Em vez da simetria do “Eu” e do “Outro” da ordem natural, a ontologia moral do gnosticismo postula uma assimetria fundamental. O indivíduo ou é denegrido como um outro insignificante, uma parte sem nome do grande todo da sociedade, ou exaltado como o ego universal completamente autônomo para cujo bem todo o resto deve existir. Vistas em conjunto, essas visões mutualmente inconsistentes oferecem uma oportunidade de ouro para o uso demagógico da linguagem moral. A oportunidade não foi perdida, um fato que a história do último século amplamente ilustra.
Além disso, a assimetria gnóstica decisivamente afetou a atitude dos intelectuais nos seus estudos do homem e da sociedade. Assumindo que eles estejam na mesma relação aos seus objetos de investigação que um cientista natural está em relação aos seus gases e moléculas, eles criam uma lacuna entre eles como pessoas autônomas e os outros insignificantes anônimos que são meramente matéria social, sem nenhum ser pessoal real, destino ou propósito. A lacuna é a precondição para sua ciência social e tecnologia. Isso permite eles estudarem outros através de estatísticas e modelos mecanicistas, e a manipular eles pela cautelosa administração de incentivos. Desse jeito, os intelectuais e cientistas sociais podem manter sua confortável crença de que as normas e valores que constituem sua própria comunidade de investigação, argumentação e crítica não têm aplicação ao mundo dos outros.
Já que esses últimos não estão no seu nível de ser, relações com eles não podem ser pessoais; com eles, nenhum diálogo genuíno é possível. Talvez aqui esteja a razão fundamental do porquê os intelectuais modernos e cientistas sociais serem todos muito dispostos a conceder que eles deveriam respeitar um ao outro como pessoas livres e iguais sem ter qualquer recurso à violência, ao roubo ou à fraude, enquanto simultaneamente recusam-se a aceitar que os direitos naturais de outras pessoas são igualmente respeitáveis. A validação dialética da respeitabilidade dos direitos naturais dos outros – o que só pode ser alcançado em discussão real cara a cara – não faz sentido para o intelectual moderno, porque independente do quanto ele possa discutir sobre eles, ele nunca discute com eles.[47]
O DECLÍNIO DO DIREITO NATURAL E DO LIBERALISMO
Rumo ao fim do século XIX, o liberalismo estava na defensiva, e, de fato, indo rumo à derrota na arena ideológica. Complacência e preguiça intelectual por parte dos pensadores liberais certamente desempenharam um papel nesse processo, assim como uma infeliz disposição conformista para tentar agarrar-se a qualquer moda intelectual que chamasse a atenção do público. Os liberais tinham a tendência de se identificar com o status quo da sociedade burguesa mesmo quando o status quo se tornava cada vez mais caracterizado em termos das doutrinas políticas de soberania democrática, republicanismo, e “direitos políticos” dos cidadãos no estado-nação.
A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 tinha insistido ainda que o estado é apenas um meio para a melhor proteção dos direitos naturais dos seres humanos.[48] O cidadão não era mais que uma “pessoa legal”, um meio designado para esse fim. Contudo, um século depois, o republicanismo de Rousseau, com sua noção coletivista de soberania popular e sua identificação do estado com o cidadão, obteve a vitória. Na concepção republicana, os direitos dos cidadãos eram tudo; os direitos naturais dos homens não eram nada. No entanto, o cidadão como tal não é mais que uma forma legal vazia. Para dar alguma substância a ele, homens e mulheres tinham que ser educados, treinados, doutrinados e programados para lealdade incondicional ao estado, suas leis, e sua “vontade geral”. De acordo com a filosofia republicana, apenas o estado poderia e deveria prover esse tipo de educação.
Mas que tipo de liberalismo era esse que mudou o papel do estado de um de proteger a ordem natural de convivência para um de modelar a mente dos homens e controlar suas visões políticas? Ao fim do século, a retórica de direitos naturais tinha praticamente sumido, e poucos liberais estavam protestando. Na sua mais visível manifestação política, como a ideologia de um partido buscando poder, o liberalismo se rendeu ao republicanismo. Hoje, a retorica do liberalismo político está muito mais alinhada com “o cidadão” do que com “a pessoa natural”.[49]
Utilitarismo, historicismo, darwinismo e outras correntes de pensamento na moda também avançaram contra a filosofia de direito natural do liberalismo clássico. No esquema utilitarista, os direitos naturais das pessoas individuais não eram mais tidos como restrições rígidas sobre a ação política. Em vez do direito e da justiça, que dizem respeito ao que as pessoas fazem umas às outras, estatísticas se tornaram o critério da política – mas as estatísticas dependem de coletar dados sobre as pessoas e então agregar e organizar em bases de dados que obliteram as pessoas de quem os dados são. A preocupação utilitarista não é com pessoas, mas com “desejos e necessidades” sem corpo que podem ser arbitrariamente descritos como “desejos e necessidades sociais”. Da mesma forma, opiniões e expressões de preferência podem ser coletados, separados das pessoas que as tem, e transformadas em “opinião pública” e “escolhas social”.
Historicismo e darwinismo social proveram uma respeitabilidade filosófica e cientifica espúria pela ideia de uma lei de evolução progressiva de acordo com a qual as condições são destinadas a ficar melhores e mais perfeitas. Foi fácil conectar essa concepção de um processo involuntário e sobre-humano de evolução progressiva a uma nova concepção de direitos de acordo com a qual todo ser humano tem tanto direito aos frutos desse progresso quanto qualquer outro. A visão de Marx – um mundo no qual “eu posso fazer o que quiser […] enquanto a sociedade toma conta da produção geral” – estava rapidamente se tornando consenso. Logo, os direitos naturais dos seres humanos seriam substituídos por essa massa sempre crescente de “direitos humanos” – direitos a tudo que é desejado e assumido estar disponível em algum lugar.
Em outro fronte, a popularidade crescente de várias versões do determinismo psicológico e sociológico começaram a erodir a noção do ser humano como um agente moral. A ideia de que o ser humano não era nada mais que um meio pelo qual forças impessoais se exerciam tomou seu lugar. Psicólogos e psiquiatras estavam começando a cantar louvores à um “mundo além do bem e do mal” no qual os homens teriam “se libertado dessas correntes morais”.[50] Não foi esse conhecimento do bem e do mal que se colocou entre nós e o paraíso – ou entre nós e o Übermensch de Nietzsche?
O relativismo epistemológico e o positivismo selaram o destino da filosofia do direito natural. Em última análise, a mente progressista não tinha utilidade para tais noções como “verdade objetiva” e “realidade”, que consideravam como marcas do pensamento pouco sofisticado ou até reacionário. Se não há realidade por aí, então não há distinções reais – todas as distinções são artificiais e convencionais. Consequentemente, não pode haver direito ou ordem natural; toda lei é artificial e convencional. Daí, a fórmula geral do positivismo: as coisas são o que se diz que elas são – e a fórmula do positivismo legal em particular: a lei é o que dito ser a lei. Contudo, se em teoria toda opinião é tão boa quanto qualquer outra, na prática o direito de definir só pode ser uma prerrogativa da opinião dominante, a opinião dos poderosos.[51] Apenas a opinião deles é “objetiva”; toda outra opinião é meramente “subjetiva” – ela pode ser tolerada, mas não deve ser levada a sério.
A ideia de que teorias e organizações sociais são construções humanas que então deveriam ser sujeitadas a uma crítica rigoroso abriu caminho para a ideia de que indivíduos humanos são construtos teóricos ou sociais sem nenhuma realidade própria. Como podem as teorias dominantes e poderosas organizações sociais ser submetidas ao teste da realidade, se elas definem o que é real e o que não é? Com os intelectuais progressistas encarregados de produzir a opinião dominante em escolas, na mídia e na administração pública, quem seria corajoso o suficiente para criticá-los? Eventualmente, a filosofia – que uma vez fora a arte do diálogo na busca crítica da verdade – se tornou mera “conversa”,[52] uma busca trivial de nada em particular.
LIBERALISMO SEM O DIREITO NATURAL
A negação do direto natural não está isenta de consequências. Se a ordem do mundo humano não deve ser determinada pelas distinções naturais em um mundo de pessoas separadas do mesmo tipo, deve ser determinada pelas distinções artificias produzidas por ideologias partidárias. Se a ordem não deve ser determinada por liberdade e igualdade, deve ser determinada por servidão ou desigualdade. Se a relação própria entre o “Eu” e o “Outro” não é a simétrica, recíproca e horizontal relação de ius ou aliança., deve ser a assimétrica, hegemônica e vertical relação de comando e obediência. Se as relações interpessoais não devem ser baseadas no respeito pelos outros, ou seja, na justiça, então serão baseadas no desrespeito e na injustiça.
Infelizmente, ao longo do século passado, apenas alguns liberais se levantaram para enfrentar o ataque frontal à ontologia moral que já foi a base de sua perspectiva. O liberalismo clássico foi gradualmente deslocado por várias noções subjetivistas e positivistas que conectavam a liberdade a, entre outras coisas, uma oportunidade de fazer o que quiser, um comprometimento com a democracia e com o governo constitucional, uma preferência pelo mercado, ou até alguma mistura progressista favorecendo crescimento econômico e autonomia pessoal nas relações sociais. Como resultado, hoje, o pensamento liberal está, em sua maioria, reduzido a lutar suas batalhas intelectuais com um arsenal de armas elaborado por e para seus oponentes.
Com exceção de alguns neoaristotélicos,[53] a maioria dos escritores liberais sobre ética parecem ter abandonado objetivismo relativo ao agente, i.e., a realidade da pessoa, da filosofia do direito natural para um subjetivismo relativo à situação que torna a satisfação do desejo o único absoluto moral. Escritores sobre política e direito estão tão focados em provar seu liberalismo por seu apoio a “direitos humanos” que costumam não perceber que os direitos humanos, diferente dos direitos naturais, são reivindicações sobre o serviço dos outros – reivindicações que precisam ser pesadas e racionadas por um governo poderoso capaz de mobilizar os serviços e recursos de todos. “Levar os direitos a sério” muitas vezes aparece como uma desculpa para não levar as pessoas a sério. Enquanto direitos naturais tocam a política em um nível constitucional, definindo seu lugar e papel na ordem natural de convivência, os direitos humanos operam no nível de elaboração de políticas. Eles providenciam, no máximo, uma base para criticar a eficiência e estilo do governo, mas não limitam o escopo de suas ações coercitivas e gerenciais. Na verdade, todo direito humano implica no dever do governo de interferir em seu nome. Nesse sentido, o direito à intervenção governamental é o mais fundamental e, de qualquer forma, o direito mais estável no catálogo sempre em expansão de direitos humanos.
A maioria dos economistas liberais, exceto alguns adeptos da Escola Austríaca, parecem um tanto alegres ao entrar no jogo ingênuo da criação de modelos, nos quais as relações humanas são reduzidas a mecanismos impessoais para satisfação de vontades e necessidades sem corpo. O mítico conceito de eficiência que muda continuamente está em todo lugar; justiça – outrora a característica que definia a ação econômica (oposta à ação criminosa ou política) – já não é mais encontrada.[54]
A falta de um conceito claro de direito natural é muito evidente na presente fascinação com “eficiência” e “organização eficiente” como argumentos que acabam com qualquer discussão que parece prevalecer na retórica do liberalismo econômico e da economia de livre mercado. Adota uma visão desleixada de instituições básicas do capitalismo moderno como moeda fiduciária, banco de reservas fracionárias e a grande corporação – mesmo que permaneça a suspeita de que tais instituições são criaturas privilegiadas da legislação política, não do direito.[55] Elas, de fato, revelaram-se instrumentos eficazes e flexíveis para socializar o capital e a força de trabalho, fornecendo às elites políticas e corporativas que elaboram as políticas meios firmes de “gerir a sociedade” através de “engenharia gradativa”.[56]
Talvez não seja espantoso que, depois do colapso da União Soviética, os socialistas do Ocidente e de outros lugares tenham sido capazes de abraçar o mercado sem abrir mão de seus valores socialistas. Isso deveria dar-nos motivos para reconsiderar a confortável proposição (a qual Mises e Hayek,[57] entre outros, acreditavam) de que o debate entre socialistas e liberais não era sobre fins, mas apenas sobre meios. Essa proposição desconsidera inteiramente a ontologia moral dos participantes do debate, e pode levar alguém a concluir que os socialistas pré-1990 eram apenas liberais pouco esclarecidos. Talvez eles fossem, mas de novo, o liberalismo do século XX pode ter sido apenas um socialismo economicamente esclarecido, tão oposto à ontologia moral de lei natural quanto ao socialismo.
Do ponto de vista liberal clássico, a institucionalização da vida humana nas sociedades capitalistas modernas[58] para a glória do consumidor soberano lembra demais a visão marxiana da sociedade comunista para ser aceitável. Também lembra muito o relacionado mito político da cidadania. O eleitor soberano deveria querer os níveis altos e complexos de burocracia, regulação e taxação que está tendo. Da mesma forma, o consumidor soberano deveria aprovar seja lá o que os grandes nomes no mundo financeiro e corporativo estão fazendo. Ambos são construções ideológicas que providenciam espúrias justificações de instituições existentes. A primeira passa a mensagem de que, no estado, os cidadãos estão apenas taxando e regulando a si mesmos ao se expressar politicamente. Já a outra passa a mensagem parecida de que, no mercado, as pessoas só estão organizando a própria vida ao expressar suas preferências de consumo. Claro, o que as pessoas fazem a si mesmas não pode ser injusto. Contudo, as instituições políticas e algumas das instituições econômicas mais importantes da sociedade moderna são meios convenientes para obscurecer o que as pessoas fazem umas as outras – para externalizar custos e explorar os bens comuns criados por essas instituições. Será que o liberalismo clássico terá um futuro que combine com seu passado? Com “a lógica do mundo em forma popular” na forma que está atualmente, os argumentos liberais clássicos provavelmente não serão muito efetivos – se sequer forem entendidos. No entanto, em suas vidas cotidianas e discussões privadas, as pessoas parecem continuar comprometidas com a ontologia moral de senso comum do direito natural. Se, e enquanto, isso for verdade, há uma base da qual atacar as bases morais e teóricas sobre as quais o discurso público e acadêmico tem erguido tantas instituições iliberais de mobilização, controle e manipulação. Contudo, sem o suporte de uma religião popular do direito e da justiça, os liberais clássicos não conseguirão recuperar facilmente o terreno perdido no século passado. E mesmo que consigam, não adiantará de nada se eles próprios negligenciarem a ontologia moral da ordem natural de pessoas livres e iguais.
[1] Professor de Filosofia do Direito nas Universidades de Ghent e Maastricht. Uma versão anterior deste texto foi apresentada na conferência “The World Out of Balance?” (Gummersbach, Alemanha, 5 a 7 de novembro de 1999), realizada na Theodor Heuss Akademie e organizado em cooperação com o Von Mises Institute (Ghent), Nova Civitas (Ghent) e The Center for a New Europe (Bruxelas). O autor deseja agradecer aos participantes por suas perguntas e comentários.
[2] Por “liberalismo clássico”, eu me refiro ao liberalismo que postula uma conexão necessária entre liberdade e direito e justiça objetivos, i.e., respeito por pessoas naturais, suas propriedades e obrigações contratuais. Por “ortodoxia cristã”, eu me refiro a interpretação da Bíblia que se tornou a autoridade dentro das principais igrejas como resultado do esforço de Santo Agostinho e outros antigos pais da igreja. Contudo, eu estou considerando apenas sua ontologia moral. Além disso, eu devo desconsiderar a doutrina do pecado hereditário de Agostinho (ver nota 15).
[3] Veja Frank van Dun, “Human Dignity: Reason or Desire?”, Journal of Libertarian Studies (vindouro).
[4] Lex originalmente tinha conotações militares, cf. dilectus, o levantar de um exército, legio, legião.
[5] “Law [direito ou lei]” deriva da palavra escandinava lög, o plural de lag, ordem, laço. Para ser mais claro, preferi falar da ordem de convivência em vez da ordem social, porque a palavra inglesa “Society [sociedade]” e seus derivados (“social”, “sociable”, “socialista”, “socialisation”, e semelhantes) são altamente ambíguos e tendem a evocar imagens de uma organização ou companhia (maatschappij holandês) com um propósito comum em direção ao qual todos os membros devem trabalhar, e uma receita comum ou social que deve ser distribuída de acordo com algum critério de mérito relativo à organização. Uso “convivência” porque é a tradução mais próxima que consegui achar do samenleving holandês.
[6] “War [guerra]” deriva do germânico werra, confusão, desordem. Em holandês, estar in de war significa estar confuso. Orlaeg é obviamente relacionado a palavra holandesa pra guerra, oorlog.
[7] Veja Frank Van Dun “The Lawful and the Legal”, Journal des économistes et des études humaines 4, n.º 4 (1995).
[8] Veja especialmente E.A. Havelock, “The Liberal Temper in Greek Politics” (Londres: Jonathan Cape, 1957); e também Larry A. Eshelman, “Might versus Right”, Journal of Libertarian Studies 12, n.º 1 (Primavera de 1996), pp. 29–50, que corretamente traça a noção de direito natural não-metafísico aos sofistas dos séculos IV e V a.C.
[9] A distinção entre uma ordem nomocrática e uma telocrática é explicada no clássico de Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays (Indianapolis, Ind.: Liberty Fund, 1991).
[10] “Right [direito]”, do latim rectum, o particípio passado de regere, reinar, controlar ou gerir.
[11] O argumento de que direitos naturais devem ser respeitados aparece em Frank van Dun, Het fundamenteel rechtsbeginsel (Antwerpen: Kluwer-Rechtsweten-schappen, 1983); também independentemente, em Hans-Hermann Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism (Boston: Kluwer Academic Publishers, 1987). Veja também N. Stephan Kinsella, “New Rationalist Directions in Libertarian Rights Theory”, Journal of Libertarian Studies 12, n.º 2 (Inverno de 1996), pp. 313–26. O livro de Van Dun passou praticamente despercebido, mas o argumento similar de Hoppe foi severamene atacado (e.g., na edição de setembro de 1988 de Liberty). Uma possível razão para os ataques é dada neste artigo. Veja o texto ao qual a nota 46 é anexada.
[12] Cf. o Gottesdienst alemão com o godsdienst holandês.
[13] Como Alfred North Whitehead observou, provavelmente não é coicidência que a ciência e tecnologia só se tornaram parte integral da civilização no Ocidente Cristão — ou que os filósofos pagãos eram ativamente estudados lá, mesmo quando se tratava de assuntos sensíveis como ética, política e metafísica. Alfred North Whitehead, Science and the Modern World, Lowell Lectures 1925 (Nova York: Macmillan, 1925), p. 15.
[14] Esse tema é refletido no papel de Deus nas histórias bíblicas. A princípio, ele é a principal dramatis persona, comandando e estando no controle. Então, ele recua para o fundo, ainda dando avisos severos e conselhos diretos até que a sua presença não seja mais do que uma “vozinha pequena” (1 Reis 19:12). No fim, só se pode evocá-lo e rezar para ele. Ainda assim, ele está sempre lá, queimando sem consumir.
[15] Em hebreu, ao que parece, a palavra traduzida como “o Senhor” sugere a qualidade de consciência ou prontidão – o Senhor é ” o que está alerta”, “aquele que está pronto”, o feitor ou o empreendedor. Veja M. Reisel, Genesis, Transcriptie, Verklaring, Vertaling (Den Haag: Kruseman, 1972), p. 22.
[16] Eu tomo essa – e não a doutrina melancólica de Agostinho do pecado hereditário – como a interpretação correta de sua “queda”, i.e., seu tornar-se agentes independentes. “Sin [pecado]”, do inglês, é relacionado com sons do latim (literalmente “ser”, apesar de normalmente traduzido como “culpado”) e ao sein alemão e o zjin holandês, ambos significando “ser” (sem nenhuma conotação moralista). Esse ser humano (“sin”) é contingente e imperfeito, e por isso diferente do ser de Deus (Yhwh, normalmente traduzido como “eu sou eu mesmo”), mas isso não implica que o ser humano é moralmente mau. A moralização da diferença de Agostinho pode ser um indício da influência da ideia gnóstica (maniqueísta) de que bem e mal não são aspectos inseparáveis da escolha, mas forças radicalmente diferentes e separáveis. Veja Th. Sinnige, “Gnostic Influences in the Early Works of Plotinus and in Augustine,” em Plotinus amid Gnostics and Christians: Papers Presented at the Plotinus Symposium Held at the Free University, Amsterdam, on 25 January 1984, ed. David T. Runia (Amsterdam: VU Uitgeverij/Free University Press, 1984).
[17] O Velho Testamento não deixa a implicação política desse axioma escondida: “Roga pelos teus servos ao Senhor, teu Deus, para que não morramos, porque a todos nossos pecados ajuntamos o mal de pedirmos um rei” (I Samuel 12:19). O mesmo livro (I Samuel 8:10-18) dá um relato de ao que o reinado de um rei leva. Também nos lembra que enquanto as ambições políticas humanas podem ser cegas negações do julgamento divino, Deus não pode, justamente, chegar para ele mesmo comandar. Seu “reinado” é baseado na aliança, e daí vem seu conselho: “Ouve a voz do povo em tudo o que te disseram. Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, pois já não querem que eu reine sobre eles. […] [M]as declara-lhes solenemente, dando-lhes a conhecer os direitos do rei que reinará sobre eles” (I Samuel 8:7, 8:9).
[18] Isso é de suma importância para a ortodoxia cristão. Jesus Cristo é o único Messias; ele não será superado por nenhum recém-chegado.
[19] Essa visão iria eventualmente definir o outro lado do “Iluminismo”, o lado que não estava contente em celebrar o progresso da ciência, tecnologia e a avaliação racional dos assuntos humanos, mas que, em vez disso, afirmava ser o presságio daquela fase final da história mundial em que tudo se tornaria novo e fiel ao seu destino final. Veja, e.g., Frances Amelia Yates, The Rosicrucian Enlightenment (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1972).
[20] W.H.Auden, The Dyer’s Hand, and Other Essays (Nova York: Vintage Books, 1968), p. 14.
[21] Veja, por exemplo, F. Wisse, trad., Apocryphon of John, Nag Hammadi & Manichean Studies 33 (Leiden, 1995); também, J.M. Robinson, ed., The Nag Hammadi Library in English (San Francisco: Harper, 1990). O verdadeiro deus é referido como a “forma da luz”, mas definido apenas negativamente: sem começo, sem fim, sem necessidades, sem vida, sem nome, além da perfeição, ilimitado, além da diferenciação, imensurável, invisível, inefável, nem encarnado nem desencarnado, sem quantidade ou qualidade. Veja G. van Groningen, First Century Gnosticism: Its Origins and Motifs (Leiden: E.J. Brill, 1967). Para uma discussão recente, veja Peter Koslowski, Gnosis und Theodicee: Über der Leitenden Gott des Gnostizismus (Viena: Passagen Verlag, 1993).
[22] Veja J.-P. Mahé, ed., Hermès en Haute-Egypte (Québec: Peeters, 1982), vol. 2, p. 393.
[23] Citado em Saul K. Padover, Karl Marx on Religion (Nova York: McGrawHill, 1974), p. 35, ênfase no original.
[24] Esse é o sentido do “humanismo” de Marx que tornou ele tão atraente para certo tipo de humanista.
[25] G.K. Chesterton, Orthodoxy (Nova York: John Lane, 1908), p. 242, nos dá um comentário divertido sobre a doutrina do amor implicada pela noção do Ego Universal como defendido pela sempre presente e infatigável Annie Besant (ateia, Fabiana, e finalmente líder da Sociedade Teosófica até sua morte em 1933).
[26] Veja Padover, Karl Marx on Religion, pp. 169–92.
[27] Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat social (Amsterdam: M.M. Rey, 1762), livro I, cap. 6.
[28] Rousseau, Du Contrat social, livro II, cap. 6. Como Shaw colocou: “O único socialismo fundamental e possível é a socialização da reprodução seletiva do Homem: em outros termos, da evolução humana. Nós devemos eliminar o jeca, ou seu voto arruinará a comunidade.” Veja George Bernard Shaw, “The Revolutionist’s Handbook,” apêndice à Man and Superman: A Comedy and a Philosophy (Middlesex, England: Penguin, 1977), p. 245.
[29] Meu professor, o falecido Dr. Leo Apostel, sempre se perguntou o porquê de eu, como um libertário, não enxergar Marx como uma “alma gêmea” tão preocupado com a liberdade humana quanto qualquer outro filósofo.
[30] Marx e Engels escreveram que aqueles que entravam pelo portão da fábrica deveriam renunciar toda autonomia. Como produtores e trabalhadores, os homens adentram no “reino da necessidade” onde podem apenas ter uma existência heterônoma. Isso continua verdade nos estágios iniciais do comunismo, antes do advento da total libertação no “reino da liberdade”. Veja Karl Marx e Friedrich Engels, “On Authority”, em The Marx-Engels Reader, 2ª ed., ed. Robert C. Tucker (Nova York: W.W. Norton, 1978), pp. 730–33.
[31] John Stuart Mill, Principles of Political Economy, 7ª ed. (Londres: J.W. Parker, 1870), livro 4, cap. 6, seção 7.
[32] John Stuart Mill, On Liberty, 4ª ed. (London: Longman, Roberts, & Green, 1869), cap. 5.
[33] Mill, On Liberty, cap. 3.
[34] É uma tragédia que, ao mesmo tempo, ninguém veio a criticar o individualismo romântico de Mill da perspectiva do liberalismo clássico. Quase todos seus críticos contemporâneos eram conservadores sociais e religiosos que não poderiam ter estado mais felizes com outro alvo. Se seu liberacionismo fosse a essência do liberalismo, eles poderiam se sentir livres para tomar o liberalismo como um inimigo.
[35] Violentas explosões de milenarismo haviam ocorrido no século XV entre os chamados Taboritas na Boêmia, e um século depois em Münster, na Alemanha. Veja o classico estudo de Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the Middle Ages, ed. rev. (London: Pimlico, 1993).
[36] E. Garin, ed., Giovanni Pico della Mirandola: De Hominis Dignitate (Florença, 1942), p. 106.
[37] B. Kieskowski, ed., Giovanni Pico della Mirandola: Conlusiones Sive Theses (Geneva, 1973), p. 34.
[38] Veja David Walsh, The Mysticism of Innerworldly Fulfillment: A Study of Jacob Böhme (Gainesville: University Presses of Florida, 1983).
[39] G. Quispel, Gnosis: De Derde Component van de Europese Cultuurtraditie (Utrecht: HES, 1988).
[40] Shaw, “Revolutionist’s Handbook”, p. 217
[41] Origin of the Species de Darwin apareceu em 1859, e seu The Descent of Man em 1871. Por volta da publicação do primeiro volume de Capital (1867), antes de chegar aos 50 anos, Marx tinha aparentemente parado de trabalhar em seu “sistema”, nunca produzindo as respostas que ele dizia ter para qualquer questão crítica sobre ele. Veja W.O. Henderson, The Life of Friedrich Engels (Londres: Frank Cass, 1976).
[42] H.G. Wells cunhou a frase em The Open Conspiracy: Blueprints for a World Revolution (Londres: V. Gollancz, 1928). Wells foi um membro proeminente da Sociedade Fabiana e um membro do parlamento do Partido Trabalhista, como também foi autor de vários livros populares, entre eles o romance mais gnóstico utópico Men like Gods (Nova York: Macmillan, 1923).
[43] A interpretação evolucionária de Daniel Whitby, Paraphrases and Comments on the New Testament, apareceu in 1703. Sobre o trabalho de Whitby, veja, e.g., Augustus Hopkins Strong, Systematic Theology, 7ª ed. (Philadelphia: A.C. Armstrong & Son, 1902), p. 1014.
[44] Veja, e.g., Hans F.M. Crombag e Frank van Dun, De Utopische Verleiding (Amsterdam: Contact, 1997); Paul T. Philips, A Kingdom on Earth: Anglo-American Social Christianity 1880–1940 (University Park: Pennsylvania State University Press, 1996); E.L. Tuveson, Redeemer Nation: The Idea of America’s Millennial Role (Chicago: University of Chicago Press, 1968); e G.M. Marsden, Fundamentalism and American Culture (Oxford: Oxford University Press, 1980). O socialista utópico Edward Bellamy, um dos mais bem sucedidos e populares críticos do “sistema americano”, atribuiu a vinda da próxima revolução da sociedade americana – na verdade, a restauração do reino de Deus na terra – a outro Grande Despertamento. Ele fez isso em seu Equality (Nova York: D. Appleton and Company, 1897), a continuação de menos sucesso de seu muito popular Looking Backward, 2000–1887 (New York: Houghton, Mifflin, 1887).
[45] Karl Popper, Conjectures and Refutations, 4ª ed. (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1972), pp. 37–39.
[46] Mais notavelmente em Gnosis als Weltreligion (Zürich: Ortigo Verlag, 1951) por Gilles Quispel, o decano dos estudantes de gnosticismo; e em Pierre Teilhard de Chardin, Le Phénomène Humain (Paris: Editions Seuil, 1957). O trabalho de Teilhard foi elogiado como “um ato de libertação espiritual” e “uma visão de unidade [que] encontra a necessidade espiritual de nossos tempos” por Arnold Toynbee, como citado na introdução de N.M. Wildiers a Het verschijnsel mens (Utrecht/Antwerp: Het Spectrum, 1960), tradução holandesa de D. de Lange do trabalho controverso de Teilhard.
[47] Sobre a validação dialética dos direitos naturais, veja a nota 10 acima. A atitude moderna representa uma quebra radical com a tradição do humanismo clássico que defendia que a fala e a argumentação eram as formas corretas de interação humana, não apenas entre a elite intelectual, mas entre todos os homens e mulheres. Veja, e.g., Cicero, De Ira, livro 2, cap. 31.
[48] Art. 2: “Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté et la résistance à l’oppression.” (“O fim de toda associação política é preservar os direitos naturais e vitalícios das pessoas. Esses direitos são liberdade, propriedade, segurança contra prisão arbitrária e resistência à opressão.”)
[49] E.g., os vários “Manifestos do Cidadão” produzidos por Guy Verhofstadt, líder do “partido liberal” flamengo e agora primeiro-ministro da Bélgica. Ele mudou o nome do partido de “Partido da Liberdade e do Progresso” para “Liberais e Democratas Flamengos”.
[50] O mais famoso sendo B.F. Skinner, Beyond Freedom and Dignity (Nova York: Alfred A. Knopf, 1971); mas veja também G.B. Chisholm, “The Reestablishment of Peacetime Society”, Psychiatry 9 (1946), de onde essa citação foi tirada. Chisholm posteriormente foi o líder da Organização Mundial da Saúde.
[51] Na jurisprudência teórica, essa posição é particularmente associada com o Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen – veja seu Reine Rechtslehre (Viena: Mohr, 1960) – mas sobreviveu numa forma modificada e mais suave em H.L.A. Hart, The Concept of Law (Oxford: Oxford University Press, 1962), e até nos escritos de Richard Dworkin. Na sociologia é associada ao famoso Teorema de Thomas, que mantém que “uma situação definida como real é real em suas consequências”.
[52] Veja, e.g., o pós modernista americano e pós filósofo Richard Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1979).
[53] E.g., Tibor Machan, Human Rights and Human Liberties (Chicago: Nelson Hall, 1975); Tibor Machan, Private Rights and Public Illusions (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1995); D.B. Rasmussen e D.J. Den Uyl, Liberty and Nature: An Aristotelian Defense of Liberal Order (LaSalle, Ill.: Open Court, 1991); D.B. Rasmussen e D.J. Den Uyl, Liberalism Defended: The Challenge of Post-Modernity (Cheltenham, U.K.: Edward Elgar, 1997); Eric Mack, “Moral Individualism and Libertarian Theory”, em Liberty for the Twenty-First Century, ed. Tibor Machan e D.B. Rasmussen (Londres: Rowan and Littlefield, 1995); e Van Dun, Het fundamenteel rechtsbeginsel.
[54] Parece que o significado primário da palavra “justiça” agora é o de “justiça distributiva”, que carece de qualquer significado definido porque o problema da distribuição social é uma coisa em uma organização e outra coisa em outra. Justiça social, a qual Roscoe Pound definiu como “a satisfação igual dos desejos de todos” está ainda menos preocupada com pessoais naturais. Veja Pound, “The Need for a Sociological Jurisprudence”, The Green Bag (1907).
[55] O falecido Murray Rothbard e outros economistas da Escola Austríaca associados ao Instituto Ludwig von Mises (entre eles Hans-Hermann Hoppe, Joseph Salerno, Guido Hülsmann, Walter Block, and Jesús Huerta de Soto) estiveram entre os mais persistentes críticos da moeda fiduciária e dos bancos de reserva fracionária do ponto de vista do direito natural. Contudo, a maioria dos autores liberais exibiu “reflexos de livre mercado” quase mecânicos. Eles são fortemente a favor de “desregular” os bancos sem pensar muito nos privilégios que os bancos tem dentro das leis bancárias básicas na sociedade ocidental – leis que eles parecem não ver como intervenções regulatórias no livre mercado. Com respeito às grandes corporações de capital aberto, a opinião liberal comum parece ser aquela propaga por Robert Hessen, In Defense of the Corporation (Stanford, Calif.: Hoover Institution, 1979), e por Armen Alchian, Henry Manne, e Brian Barry, Business Ethics (London: Macmillan, 1998): grandes corporações são meramente o resultado do comportamento que busca eficiência em um regime de liberdade de contrato, e são, de qualquer forma, efetivamente disciplinadas pelo “mercado”, especialmente “o mercado de controle corporativo” – assim, presumivelmente, o poder corporativo não é algo que deveria preocupar os liberais. Deixando de lado a natureza ahistórica do argumento e sua completa falta de preocupação com fatores legais, políticos e sociológicos do desenvolvimento das corporações (sobre isso, veja, e.g., W.G. Roy, Socializing Capital [Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1997]), está bem pouco claro o quanto as grandes corporações podem ser vistas se conformando com os requerimentos do direito natural.
[56] Karl Popper, The Open Society and its Enemies, 5ª ed. (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1974), vol. 1, p. 158.
[57] E.g., a afimação de Hayek em “Socialism and Science”, em seu New Studies in Philosophy, Politics, Economics, and the History of Ideas (Chicago: University of Chicago Press, 1978), p. 296: “[M]inhas concretas diferenças com os colegas economistas socialistas em questões particulares de política social se tornaram inevitáveis, não em diferenças de valores, mas nas diferences quanto aos efeitos que uma medida em particular terá.”
[58] Veja, e.g., o cri de cœur de Butler D. Shaffer em seu Calculated Chaos: Institutional Threats to Peace and Human Survival (San Francisco: Alchemy Books, 1985).