Geralmente Começa em Casa

Tempo de Leitura: 16 minutos

Por Frank van Dun

[Tradução de It Usually Begins at Home por Alex Pereira de Souza, retirado de https://users.ugent.be/~frvandun/]

Meu avô (1882-1960) trabalhava como mecânico na fábrica onde eram produzidos os belos carros Minerva. Ele era ativo no Partido dos Trabalhadores Belgas, o antecessor do Partido Socialista Belga. Em Wilrijk, uma aldeia perto de Antuérpia, tornou-se conselheiro daquele Partido e depois, nos dias caóticos da Libertação, no final da Segunda Guerra Mundial, prefeito interino. Ele era um homem quieto, de fala mansa e acima de tudo gentil. O que quer que o tenha levado à política, certamente não era ambição pessoal.

Assim como seu pai, meu pai (1919-1997) passou a maior parte de sua vida ativa no âmbito do Movimento Socialista, mas nunca como político. Após a guerra, ele começou a trabalhar para a Social Providence Insurance Company (PS), uma empresa financiada principalmente pelos sindicatos socialistas. Um negócio lucrativo de sucesso, foi o carro-chefe do movimento cooperativo socialista belga. Seus lucros foram usados ​​em parte para “obras sociais” e outras instituições de caridade ligadas ao Movimento Socialista: sanatórios, centros de revalidação e resorts para as classes trabalhadoras. Meu pai estava muito orgulhoso de fazer parte desse arranjo.

Quando comecei a questionar meu pai sobre política — eu já sabia que “nós éramos socialistas’”, mas não tinha ideia do que isso significava — ele deu grande ênfase ao fato de ser um socialista cooperativista. Deduzi que ele não tinha nenhuma simpatia pelos comunistas. Embora sempre tenha votado no partido socialista, não compartilhava de sua suposição de que precisava chegar a posições de poder para melhorar o padrão de vida das classes trabalhadoras. Segundo ele, os trabalhadores eram perfeitamente capazes de administrar suas próprias vidas e assuntos. Ele se considerava homem bem sucedido independente.

Por causa de seu trabalho e seu passatempo — ele era um ator amador em um grupo chamado “Labourers’ Art” — tudo que meu pai fazia estava de alguma forma ligado ao “socialismo”. No entanto, a política quase nunca foi um assunto em nossa casa. Durante os anos sessenta, quando eu estava no ensino médio, tornou-se moda na mídia discutir a “ilusão da riqueza” ou “a nova pobreza” que era o pretexto da esquerda para expandir o estado de bem-estar social. Meu pai zombou da ideia. O que preocupa, disse ele, é a ilusão da pobreza, a crença de que um é pobre porque os outros têm mais. Foi a única vez que o ouvi fazer um comentário “teórico” sobre o cenário político.

Minha mãe era ainda menos inclinada a discutir política do que meu pai. As discussões políticas tendiam a se tornar amargas — e ela não gostava disso. No entanto, ela também votava habitualmente no Partido Socialista.

Meus pais não fizeram segredo de como votaram, mas nunca explicaram o porquê. No entanto, eu não via razão para votar de forma diferente porque “socialismo” para mim era apenas uma palavra para o nosso modo de vida — e não havia nada de errado com isso até onde eu podia ver. A ideia de que ao votar não se estava apenas dizendo o que se era, mas fazendo algo para outras pessoas não me ocorreu.

Não havia nada divisivo, partidário ou sectário no “socialismo” dos meus pais. Eu nunca os ouvi fazer um comentário inconstante sobre a igreja ou seus padres, a burguesia, os ricos ou qualquer outro grupo ou classe de pessoas. Eles achavam que se deveria julgar as pessoas como indivíduos e não como espécimes.

Para meus pais, lucro, propriedade, dinheiro, capital, poupança e coisas do gênero não eram palavrões. Eram coisas que podiam ser conquistadas de diferentes maneiras e usadas para diferentes propósitos, alguns melhores que outros. Era óbvio que eram coisas que meus pais estavam ansiosos para adquirir — mas não a qualquer preço, não de qualquer maneira. Eles deixaram claro que a vida tem uma qualidade moral e que é uma responsabilidade moral mais do que qualquer outra coisa. Honestidade, tolerância, paciência, “viva e deixe viver”, “ser independente”, “nunca invejar ninguém por sua boa sorte” — essas eram as coisas em que eles insistiam. Quanto ao resto, você tem uma vida; cabe a você torná-la uma boa.

Já na escola primária, tornei-me um leitor voraz. Uma editora começou a comercializar livros de bolso em brochura por um preço fixo de 40 centavos cada. O catálogo era verdadeiramente enciclopédico, cobrindo quase todas as ciências e todos os períodos da história. Sempre que tinha dinheiro suficiente, comprava um desses livros, lia-o de capa a capa e tentava entendê-lo o melhor que podia. No ensino médio, comecei a ler sobre filosofia e política, especialmente, é claro, sobre socialismo. Achei difícil conectar o que li com a perspectiva de vida que havia absorvido em casa, mas atribuí isso à minha imaturidade. Mesmo assim, comecei a usar as frases e fórmulas que havia aprendido em minhas leituras para explicar meus pensamentos e opiniões. Às vezes funcionava e às vezes não. Eu ainda tinha muito a aprender. Descobri também que a leitura não substitui o pensamento. Havia muitas contradições e controvérsias não resolvidas no que li para justificar uma suspensão do ceticismo.

Em 1965, fui para a Universidade de Ghent para estudar línguas do Extremo Oriente. No entanto, logo senti que a qualidade do ensino de japonês e chinês em Ghent não era muito boa. Por isso, depois de alguns meses, decidi me matricular também na Faculdade de Direito, apenas para manter minhas opções em aberto. Naquela época, antes de iniciar sua formação jurídica formal, um estudante de direito tinha que passar dois anos estudando latim, direito romano, história, literatura, lógica, ética, psicologia e história do pensamento, especialmente a história do pensamento sobre direito e política. Eu gostava muito dessas disciplinas, embora lamentasse que economia, sociologia e antropologia não estivessem no currículo. No terceiro ano, em vez de me concentrar no direito — ou seja, no direito positivo belga — adicionei Filosofia ao meu programa. Essa combinação eventualmente me levaria a focar na filosofia do direito.

Estudar Direito foi uma experiência frustrante. O positivismo desenfreado que permeava todas as partes do currículo me repelia. Como um professor poderia nos ensinar com uma cara séria que um veredicto ou uma regra legal que era “incompatível com todos os princípios de direito conhecidos” era mesmo assim “lei” simplesmente porque algum juiz ou legislador havia declarado que era? Que tipo de “ciência” era essa que pedia uma deferência supina aos “poderes constituídos” de seus praticantes?

Também não consegui engolir a aparente arbitrariedade da “ideologia progressista” que então reivindicava o direito exclusivo de definir o programa de reforma legislativa. Por exemplo, muitas pessoas exigiam que o casamento fosse reduzido a um simples contrato de serviços que qualquer uma das partes poderia rescindir unilateralmente. Quase ao mesmo tempo, essas pessoas insistiam que um empregador poderia rescindir um contrato de trabalho apenas em circunstâncias excepcionais a serem especificadas pelo legislador. Em vez de princípios sólidos de direito, havia apenas fórmulas vazias e contraditórias, por exemplo, sobre preservar a “liberdade de expressão”, regular o “discurso comercial” e proibir o “discurso de ódio”. Parecia que a lei era principalmente um exercício de codificação e simplificação de preconceitos predominantes. Não era uma ciência da justiça.

Na Universidade, encontrei-me cercado por intelectuais de esquerda. Eu fui atraído por eles por causa da minha origem familiar e minha auto-identificação como socialista. No entanto, a maior parte do que eles estavam dizendo era pura bobagem. Reconheci as frases e as fórmulas dos livros que li, mas descobri que por trás da retórica e da postura revolucionária não havia nada além de emoção, frustração ou ambição, e muitas vezes nem isso. Encontrei velhos amigos do ensino médio que nunca haviam afirmado ser socialistas antes, mas agora se viam como a vanguarda da Revolução. Um deles foi rapsódico com o “sucesso [de Mao Ze Dong] em reunir bilhões de chineses em uma família unida!” Poucos membros das duas faculdades em que eu estava matriculado — Direito e Filosofia — estavam dispostos a criticar essas visões da moda, se não estivessem muito dispostos a acompanhá-las. Também tive meu primeiro encontro com a “ciência militante”. Um membro do Departamento de Filosofia fez campanha ativa para tornar os anticoncepcionais, especialmente a “pílula”, amplamente disponíveis. Parte de sua mensagem era que “estudos científicos mostraram que a disponibilidade da pílula não tem efeito perceptível sobre a atitude das meninas em relação ao sexo”. Em conversa particular, ele confidenciou que só um completo idiota acreditaria nisso.

Para minha consternação, descobri que a argumentação não se destinava a separar verdade e falsidade, raciocínio válido e falacioso. Seu propósito ostensivo era identificar os “progressistas”, que estavam além da crítica porque seus motivos supostamente eram puros e nobres, e os “reacionários”, que estavam abaixo da crítica porque eram alegadamente defensores dos interesses sinistros das classes dominantes. Aparentemente, os fatos, a lógica e até mesmo o bom senso seriam as primeiras vítimas da Revolução Gloriosa que se aproximava.

Certa vez, resolvi escrever uma defesa do “socialismo” — a visão de vida que eu havia absorvido de meus pais — e uma refutação da balbúrdia utópica que passava por crítica intelectual na universidade. No entanto, logo descobri que o socialismo como uma tradição intelectual distinta tinha pouco a ver com os pontos de vista e os valores com os quais eu havia sido criado. Percebi que a forma como meus pais votavam e se identificavam “politicamente” tinha pouco ou nada a ver com o que eles valorizavam e acreditavam. Isso acabou sendo verdade para a maioria das pessoas que eu conhecia.

Eventualmente, descobri que, se algum rótulo se encaixava na minha educação, era “liberalismo clássico”, não “socialismo”. Não foi uma descoberta dolorosa, porque meu apego era à substância de minha educação, não ao rótulo que de alguma forma havia sido colado nela. No entanto, a descoberta me fez perceber que eu tinha que entender muito mais sobre economia do que eu entendia. Quando perguntei às pessoas por onde começar o estudo da economia, dois e apenas dois nomes foram sugeridos: Karl Marx e Paul Samuelson. Li os dois, mas já havia decidido que não compraria nada que eles tivessem para oferecer até que satisfizessem meu teste pessoal.

Esse teste foi baseado em um silogismo simples: Economia é sobre seres humanos; Eu sou um ser humano e todos que conheço também são. Portanto, a economia é sobre mim e as pessoas que conheço. Seguiu-se que se um livro sobre economia sistematicamente ou de forma flagrante errasse sobre mim e as pessoas que eu conhecia, não seria aceitável. Tanto Marx quanto Samuelson falharam no teste e eu fiquei de mãos vazias.

Então, pouco depois de me formar na faculdade de direito, me deparei com “The Uses of Knowledge in Society” de Friedrich Hayek e imediatamente soube que havia encontrado ouro. Muito em breve, eu estava lendo tudo de Hayek que eu pudesse colocar em minhas mãos. De Hayek, fui para Mises e depois para Rothbard. No entanto, quando cheguei a Rothbard, muitas coisas aconteceram.

O que me impressionou na “economia austríaca” desde o início foi sua tentativa de explicar os fenômenos econômicos em termos de seres humanos como eles realmente são, sentem, pensam e agem. Levou em conta todas as limitações de suas capacidades físicas, intelectuais, emocionais e morais que são óbvias para o observador mais casual da vida humana e para qualquer pessoa com o mínimo de autoconhecimento. Eventualmente, as referências frequentes dessa literatura a Robinson Crusoé me fizeram entender a importância de distinguir claramente entre o confronto de uma pessoa com a natureza impessoal e seu confronto com outros como ele.

Percebi que precisamente essa distinção era a principal razão pela qual eu não podia concordar com meus amigos e professores “progressistas”. Por exemplo, enquanto eu via o mercado como uma maneira pela qual as pessoas lidam com os outros sem negar sua alteridade, eles o viam como um mecanismo impessoal, que eles — cada um acreditando ser um Robinson Crusoé — tinham que colocar sob seu controle para “humanizá-lo”. Claro, eles negaram ser motivados por um desejo de controle e poder. Eles alegavam ser meros porta-vozes do Homem, os vigários da Humanidade na Terra. Falavam de indivíduos como se não fossem mais do que “material humano”, “recursos humanos” — partículas da Natureza que o Homem teve de moldar em ferramentas úteis para construir o Seu próprio mundo.

Embora eu fosse (e ainda sou) ateu, comecei a suspeitar que a questão crucial era religiosa. Por um lado, havia a religião bíblica com sua mensagem clara de que o lugar de Deus já está ocupado, então nenhum ser humano precisa se candidatar. Por outro lado, havia a crença de que o Deus da bíblia estava morto e que, consequentemente, seu lugar estava em disputa. O Homem é o verdadeiro Deus; é sua tarefa refazer homens e mulheres à sua própria imagem. Essa Religião do Homem implicava uma clara distinção entre aqueles que deveriam ter o poder de refazer e aqueles que deveriam ser refeitos. Isso me lembrou da convicção de Hobbes de que “as mentes das pessoas comuns […] são como papel em branco, aptas a receber tudo o que a Autoridade Pública deve imprimir nelas”. Eu havia descoberto o lado negro do Iluminismo — e a razão para os enormes gastos públicos em “educação”.

Eu não pretendia embarcar na carreira acadêmica, mas meu professor de filosofia, Prof. Dr. Leo Apostel, sugeriu que eu tentasse. No início, fiz algumas pesquisas sobre os fundamentos da lógica, principalmente na visão de Paul Lorenzen de que as leis da lógica são regidas pelas exigências do diálogo. Ocorreu-me que, nessa perspectiva, a lógica tinha seu fundamento em uma estrutura ou distribuição de direitos dos participantes de um diálogo. Assim, pode-se gerar quase qualquer “lógica” que se queira simplesmente escolhendo um conjunto apropriado de “direitos de diálogo”. Por outro lado, se houvesse um verdadeiro teste de lógica, então se poderia passar de uma crítica da “lógica” resultante para uma crítica do conjunto pressuposto de direitos de diálogo.

Estava na moda, naquela época, sustentar que havia um número infinito de “lógicas” — como evidenciado, por exemplo, pela literatura sobre “lógicas” de dois, três, n e mesmo valores infinitos — todas de que se dizia serem “igualmente válidas por direito próprio”. Aparentemente, a lógica poderia ser quase qualquer coisa que você quisesse que fosse. Achei que era uma visão falaciosa. É verdade que se poderia produzir tantos “sistemas formais” quanto se quisesse, e anexar-lhes uma interpretação que fizesse uso do vocabulário da lógica, mas ainda se poderia submeter o raciocínio que entrou na construção ou na interpretação a uma crítica baseada em princípios da lógica. Estritamente falando, a lógica é o que essa crítica apela, não aquilo a que a crítica é aplicada. Da mesma forma, pode-se produzir tantos “sistemas de regras” quanto se queira, e atribuir-lhes uma interpretação que faça uso do vocabulário da lei e dos direitos. No entanto, ainda se poderia submeter o raciocínio que entrou na construção ou na interpretação do sistema a uma crítica baseada em princípios da lei e direitos. Gradualmente, a ideia se enraizou em minha mente de que, assim como pode haver ciência da lógica, distinta de uma análise de sistemas formais, também pode haver uma ciência do direito que é distinta de uma análise de “sistemas de regras”.

Nesse exato momento, Leo Apostel sugeriu meu nome ao Prof. Dr. Willy Calewaert, que procurava um assistente, “um advogado com algum conhecimento de filosofia”. Calewaert ensinava “Direito Natural” na Universidade de Ghent. Isso foi bastante estranho porque ele achava que o Direito Natural é um absurdo e que de todos os filósofos que ele mencionou em seu curso apenas Maquiavel parecia saber alguma coisa sobre política. No entanto, ele acrescentou, era importante que ele mantivesse o curso para que algum católico reacionário não o pegasse. Calewaert era mais conhecido como um político da ala ultraprogressista do Partido Socialista. No entanto, ele aceitou a recomendação de Apostel para mim, talvez porque Apostel era a figura principal no Departamento de Filosofia e um marxista conhecido.

Apostel sabia do meu interesse pela filosofia do direito. Ele gostou da minha posição de que a lei, propriamente falando, não é uma ordem social imposta pelo estado, mas uma “ordem de liberdade entre iguais”. No entanto, sua interpretação dessa sequência de palavras era radicalmente diferente da minha. Como tantos na época, ele era devotado ao igualitarismo, mas alheio às enormes desigualdades na distribuição do poder político que a implementação de seu ideal igualitário exigiria. Eventualmente, ele admitiu que o socialismo real, mesmo o socialismo democrático, era “realmente apenas fascismo com rosto humano”, mas, acrescentou, isso apenas prova a necessidade de continuar a investigação teórica sobre os verdadeiros fundamentos do socialismo. Ele estava convencido de que meu interesse em liberdade e igualdade me levaria eventualmente à conclusão de que Marx estava certo. O mesmo acontecia com Calewaert, embora eu lhe dissesse antes que não era marxista. “Tudo bem para mim”, ele respondeu magnanimamente, “desde que você estude Marx seriamente, porque dentro de dez a quinze anos o mundo inteiro será marxista”.

Apostel defendeu o que chamou de uma interpretação “libertária” — na minha terminologia, uma “liberacionista” — de Marx. Ele pensava na liberdade à maneira marxista como estar no controle do próprio destino, sem medo de frustração. Para ele, a liberdade era a grande promessa dos estágios finais do comunismo. Para mim, a liberdade era o fato de que cada um é responsável por suas próprias ações. Essa liberdade implicava o risco de frustração a cada momento de sua vida ativa. Achei que fazia sentido pensar nisso como um direito humano básico, de fato natural, porque era uma propriedade comum e, na minha opinião, respeitável de seres humanos reais.

A noção marxista de liberdade obviamente não se aplicava aos seres humanos reais. Pode-se pensar nisso como se referindo a uma propriedade de uma nova espécie que um dia em um futuro distante superaria o Homo Sapiens. No entanto, não consegui ver como as propriedades hipotéticas de uma espécie inexistente poderiam ser tomadas pelos direitos dos membros de outra espécie realmente existente. Por que alguém deveria acreditar que a ordem que existiria entre uma espécie inexistente define a lei da espécie humana?

Percebi que havia algo fundamentalmente errado com a ideia de que o direito é essencialmente “uma norma”, algo que “deve ser” independentemente de ser ou mesmo ser real — algo, portanto, que logicamente falando “poderia ser qualquer coisa”. Eu estava me movendo rapidamente em direção a uma posição de “direito natural”. Comecei a pensar no direito não como uma “norma”, mas como uma condição de ordem no mundo humano que poderia ser especificada completamente, em um nível apropriado de abstração, em termos de propriedades objetivas e naturais dos seres humanos e do mundo em que viviam. Se tal ordem natural pudesse ser identificada, haveria uma resposta inequívoca à pergunta “o que é o Direito?”, mesmo que ainda fosse possível argumentar que talvez não fosse uma ordem que os seres humanos devem respeitar. No entanto, tal argumento implicaria na defesa da tese de que os seres humanos não se devem respeitar uns aos outros. Seria possível para uma pessoa que se preze defender essa tese de forma coerente? Aqui estava uma oportunidade para colocar meu interesse em lógica e diálogos em bom uso na filosofia do direito.

Outra consequência de minhas discussões com Apostel foi que comecei a duvidar da validade da consagrada definição do homem como animal social. Suponhamos que estar livre de frustração seja de fato um direito fundamental do homem. Então, parece seguir que o direito básico de alguém é ser protegido das consequências de suas próprias ações. Mas quem deve fornecer o escudo? Apostel concordou que seria inconsistente responder que outros deveriam fazê-lo. Em vez disso, ele deu a resposta socialista por excelência: Sociedade! Para mim, essa resposta pedia muitas perguntas para serem levadas a sério mesmo por um momento. Que sociedade? Qual sociedade? O que eram as sociedades senão organizações de empreendimentos humanos particulares? Algumas eram ferramentas úteis, outras eram impedimentos sufocantes, até prisões — mas todas eram ordens artificiais, construções, envolvendo inúmeras distinções artificiais entre posições sociais, papéis e funções. Ao longo da história, as sociedades surgiram e desapareceram, mas a espécie humana e a natureza humana permaneceram. Consequentemente, pensei, a natureza tinha que ser a chave para entender a condição humana, não alguma convenção social particular existente ou proposta. Dizer que o homem é um animal social soava como dizer que o homem é um animal vestido. Como se, depois de tudo dito e feito, as roupas fazem o homem e, portanto, todos os problemas da espécie serão resolvidos uma vez que as roupas que o tornam perfeito tenham sido desenhadas.

Infelizmente, a premissa de minha educação formal era que, por haver tantas convenções, não poderia haver uma natureza humana — ou, se houvesse uma, não poderia ser de qualquer relevância, exceto naquelas ciências para as quais os humanos são meramente objetos físicos ou organismos. Compreensivelmente, quando comecei a trabalhar na faculdade de direito, não me senti muito confortável. Naquela época, Kelsen e Hart estavam na moda no que dizia respeito à “ciência do direito” e John Rawls acabara de lançar as sementes do que rapidamente estava se tornando uma moda acadêmica multinacional. Nada disso chegou perto de meus próprios interesses em direito.

Já trabalhando para Calewaert estava Boudewijn Bouckaert, que na época era uma espécie de esquerdista, mas incomumente aberto e de mente rápida. No decorrer de nossas discussões diárias, encontrei inúmeras oportunidades para apresentar e refinar argumentos que acabaram corroendo completamente sua fé no socialismo. Juntos, começamos a produzir o que mais tarde seria chamado de críticas libertárias da visão predominante do direito e da economia.

Na época, eu não sabia da existência de um Movimento Libertário. Isso mudou quando outro colega, o sociólogo Willy van Poucke, me surpreendeu com o anúncio de que “aparentemente, você não está mais sozinho”. Ele tinha visto uma pequena exposição de livros de Hayek e alguns outros autores — todos eles com “Liberty” ou “Freedom” no título – em uma ótica. Os livros estavam lá porque a loja fazia parte de uma rede de Fred Dekkers. Juntamente com Hubert Jongen, Fred reuniu um pequeno círculo de anti-estatistas randianos de língua holandesa e entusiastas do livre mercado. Por causa da observação casual de Van Pouke, conheci Dekkers e Jongen pessoalmente. Também descobri os escritos de Murray Rothbard, a luz intelectual mais criativa e prolífica do Movimento Libertário Americano. Achei seu Man, Economy, and State, seu Power and Market e For a New Liberty extremamente úteis e estimulantes. Também li Ayn Rand, mas não achei que sua “filosofia” acrescentasse muito ao meu entendimento.

Não me senti à vontade com os argumentos da Escola de Economia de Chicago e da Escola de Escolha Pública, que eram proeminentes na literatura libertária americana. Também não me sentia à vontade com o Movimento Law & Economics que estava surgindo na época. Quando chegou um convite para ingressar em uma filial europeia desse Movimento, Bouckaert aceitou, mas eu não. Senti que essas abordagens adotaram uma metodologia irreparavelmente falha, sacrificando o realismo ao formalismo, substituindo a análise meticulosa do que as pessoas realmente fazem pela derivação de implicações de modelos matemáticos, por que o fazem e quais efeitos isso produz no mundo humano.

Em particular, pensei que esses modelos expressavam o desejo de uma tecnologia de satisfação de desejos, em vez de uma compreensão de como a ordem no mundo humano é possível. Consequentemente, fiquei apreensivo com as ilusões tecnocráticas que estavam sendo propagadas sob a bandeira do neoliberalismo emergente. Eu não achava que os esquemas de “gestão de recursos humanos” que os neoliberais estavam vendendo aos políticos, burocratas e gerentes de grandes corporações no setor público, comercial ou sem fins lucrativos fossem mais compatíveis com as realidades humanas do que aqueles dos ideólogos de esquerda. Desconfiava do “livre mercado” neoliberal com suas estruturas de incentivos centralmente organizadas, mesmo que fossem apresentadas como “direitos de propriedade” e “direitos de contrato”. Eu achava que, enquanto não tivesse elaborado suficientemente minha própria filosofia do direito, seria imprudente me envolver com “movimentos” que eu instintivamente achava errados. É verdade que eles frequentemente apresentavam recomendações de políticas que eu podia aceitar, mas seu sabor manipulador e hobbesiano continuava sendo um obstáculo intransponível.

Quando ficou claro para Calewaert que minha dissertação não seria uma defesa de Marx, ele retirou seu apoio. Percebi que minha posição na universidade estava rapidamente se tornando precária e que havia uma chance de que nunca houvesse um testemunho escrito de meus esforços intelectuais. Resolvi apostar. Deixando de lado as notas de pesquisa que eu havia reunido nos oito anos anteriores, escrevi minha dissertação em um período de seis semanas em dezembro de 1981 e janeiro de 1982. Trabalhei sem parar, produzindo um capítulo manuscrito por semana, que deixei com o datilógrafo no sábado e voltou para casa para uma única revisão uma semana depois. O resultado foi O Princípio Fundamental do Direito. Era uma defesa da soberania individual como o único princípio de direito que era consistente com a suposição de que homens e mulheres são seres finitos e limitados em um mundo finito e limitado e o único princípio cuja respeitabilidade poderia ser defendida em um diálogo racional.

Não era um livro elegante, mas dizia o que eu queria dizer. A escrita pode ter sido apressada, mas o pensamento em que se baseou levou muito tempo para amadurecer. Exceto por alguns detalhes e questões marginais, ainda defendo suas posições e argumentos.

Enviei uma cópia de cortesia ao Prof. Dr. Rudolf Böhm, que foi um dos meus professores de filosofia. Eu sabia que ele não concordaria com isso — ele foi um dos primeiros expoentes da agora na moda “esquerda verde” —, mas também sabia que ele dificilmente discordaria da premissa filosófica de todo o meu argumento: que as pessoas humanas são seres finitos. Uma semana depois, ele me chamou para seu escritório. Ao me devolver o livro (ele não quis ficar com ele!), ele disse: “É um livro forte, mas posso te dizer uma coisa: não espere nenhuma resposta crítica, ele será completamente ignorado.”  Eu não descobri o que ele quis dizer com isso até algumas semanas depois, quando Apostel me enviou um comentário manuscrito de quarenta páginas. Perto do final, havia uma passagem reveladora: “Concordo com as premissas”, escreveu Apostel, “e concordo com o raciocínio, mas não concordo com as conclusões”. Ele também concordou quando respondi que seu comentário indicava que talvez seus problemas fossem maiores que os meus.

O livro não salvou minha posição na universidade de Ghent. Como Böhm havia previsto, foi amplamente ignorado — mas não completamente. Bouckaert fez bom uso disso. Andreas Kinneging, um filósofo político liberal (agora um conservador) holandês, comparou-o favoravelmente a The Ethics of Liberty, de Rothbard, que também apareceu em 1982. Apesar de minhas dúvidas sobre rótulos, eu me acostumei, e não me importei, de ser rotulado como um libertário.

Meus pais estavam orgulhosos do meu trabalho, embora pensassem que isso significava principalmente que eu agora votaria no Partido Liberal. Acho que não me levaram a sério quando disse que não votaria em nenhum partido, mas acreditaram em mim quando disse que nenhuma palavra em minha tese contrariava qualquer princípio que me ensinaram.

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