Libertários não Precisam ser Conservadores

Tempo de Leitura: 7 minutos

Postado originalmente em https://gazetalibertaria.news/danielmorais/libertarios-nao-conservadores/

A análise atenta do argumento contido no Capítulo X do livro “Democracia: O Deus que falhou” e o que ela nos revela.

A primeira coisa que Hoppe faz é uma análise do que significa o termo “conservador”.

‘Conservador’ refere-se a alguém que reconhece aquilo que é antigo e natural através do ‘ruído’ das anomalias e dos acidentes; refere-se a alguém que o defende, o apoia e ajuda a preservá-lo contra aquilo que é temporário e o anômalo.

Logo depois, ele entra em dois argumentos fundamentais que são:

Deixem-me agora efetuar uma avaliação do conservadorismo contemporâneo e, em seguida, explicar (1) a razão pela qual os conservadores da atualidade devem ser libertários antiestatistas e – o que é igualmente importante – (2) o motivo pelo qual os libertários devem ser conservadores.

Contra o primeiro argumento, não vou fazer postulados porque é uma pauta eminentemente conservadora. A segunda é uma pauta libertária e, portanto, vamos a ela.

Não obstante essa diferença, ambas concordam em um aspecto fundamental. Os conservadores estão convencidos de que o ‘natural’ e o ‘normal’ é antigo e generalizado (e assim podem ser discernidos em todos os tempos e em todos os lugares). Do mesmo modo, os libertários estão convencidos de que os princípios da justiça são eterna e universalmente válidos (e, portanto, devem ter sido essencialmente conhecidos pela humanidade desde os seus primórdios). 

Ou seja, a ética libertária não é nova nem revolucionária; ela é antiga e conservadora. Até mesmo os indivíduos primitivos e as crianças são capazes de compreender a validade do princípio da apropriação original, e a maioria das pessoas normalmente costuma reconhecê-lo como uma realidade indiscutível.

Aqui, o primeiro postulado incorreto é feito. A de que a ética libertária é antiga e conservadora. O fato de ela ser antiga é porque ela é intrínseca à humanidade e não um aspecto da ordem natural que ele levanta. Se assim fosse possível postular, a linguagem em si, o sexo, o pecado, seriam eminentemente conservadores. Portanto, a ética libertária é sim antiga. Não antiga e conservadora, mas antiga e humana.

O próximo postulado que em nada sustenta a afirmação de que libertários devem ser conservadores é a de que conservadores e libertários tratam do mesmo objeto, humanos e cooperação social. Também é verdade que progressistas e libertários tratam do mesmo objeto, humanos e cooperação social. E isso nada diz sobre a validade dos dois elementos como definidores do libertarianismo por se tratarem de escopos claramente diferentes, quais sejam moral e ética.

A propriedade e as relações de propriedade não existem fora da família e das relações de parentesco. As últimas moldam e determinam a forma específica e a configuração da propriedade e das relações de propriedade, embora ao mesmo tempo estejam limitadas pelas leis universais e perenes da escassez e da propriedade.

A curiosidade disso tudo é a de que essa é uma especificação divertida. Dizer que as relações de propriedade são determinadas e moldadas pelas relações de parentesco me parece ser uma afirmação retirada de absolutamente lugar nenhum. Se as relações de propriedade são determinadas pelas relações de parentesco, como é que ficam as pessoas que não possuem família? Ou ainda que você diga que as relações de parentesco são relevantes para a sociedade como um todo, como é que essas relações de parentesco fazem com que a propriedade exista? O autor, ao definir a forma como sua ética argumentativa deriva a propriedade, esqueceu de acrescentar essa parte no raciocínio.

Hoppe continua:

Adicionalmente, a conclusão anarquista da doutrina libertária atraiu e agradou a esquerda contra cultural. Pois a ilegitimidade do estado e o axioma da não agressão (segundo o qual não se permite a iniciação – ou a ameaça da iniciação – do uso da força física contra outras pessoas e os seus bens) não implicavam que todos tivessem a liberdade de escolher o seu próprio estilo de vida não agressivo? Isso não implicava que a vulgaridade, a obscenidade, a grosseria, o uso de drogas, a promiscuidade, a pornografia, a prostituição, o homossexualismo, a poligamia, a pedofilia ou qualquer outra perversidade ou anormalidade imaginável, na medida em que constituíam crimes sem vítimas, fossem estilos de vida e atividades perfeitamente normais e legítimos? 
Portanto, não é de surpreender que, a partir do seu início, o movimento libertário atraiu um número anormalmente elevado de seguidores desequilibrados e perversos. Subsequentemente, o ambiente contra cultural e a ‘tolerância’ multicultural e relativista do movimento libertário atraiu um número ainda maior de desajustados, de fracassados (tanto em termos pessoais quanto em termos profissionais) ou de simples perdedores. Murray Rothbard, em nojo, chamou-os de ‘libertários vazios’ e os identificou como libertários ‘modais’ (típicos e representantes). Eles fantasiavam uma sociedade em que todos estariam livres para escolher e cultivar quaisquer estilos de vida, carreiras ou características que não fossem agressivos e em que, graças à economia de livre mercado, todos poderiam fazê-lo em um nível elevado de prosperidade geral. Ironicamente, o movimento que estabeleceu o objetivo de desmantelar o estado e de restaurar a propriedade privada e a economia de mercado foi, em larga medida, apropriado e moldado em sua face externa pelos produtos mentais e emocionais do estado de bem-estar social (assistencialista): a nova classe de adolescentes permanentes.

É algo muito curioso a forma como Hoppe diz que a pedofilia constitui crimes sem vítima. De fato, ele ignora o dever de tutela defendido por Rothbard e que configuraria claramente não apenas uma obrigação para o tutor, mas uma obrigação para a sociedade. Ou seja, um indivíduo não pode fazer um contrato ou agir na esfera de um tutelado porque ele não tem como consentir. Mas, mais curioso ainda, é a forma como ele coloca pedofilia do lado do homossexualismo e do uso de drogas. Pedofilia é algo contra qual todos os libertários decentes são moralmente e eticamente contra, então é claro sua intenção ao colocar pedofilia do lado de práticas normais como a homossexualidade ou a “vulgaridade” (eminentemente feminina pela época em que foi postulada e de caráter sexista. Aquilo que Hoppe considera vulgar é muito diferente do que é considerado vulgar hoje em dia, mostrando o quanto os critérios mudaram de lá pra cá).

O que os libertários contra culturais falharam em reconhecer – e o que os verdadeiros libertários não podem deixar de enfatizar – é que a restauração dos direitos de propriedade privada e da economia laissez-faire implica um aumento forte e drástico da ‘discriminação’ social, eliminando rapidamente a maior parte – se não a totalidade – das experiências de estilos de vida multiculturais e igualitaristas tão caras aos libertários de esquerda. Em outras palavras, os libertários devem ser conservadores radicais e intransigentes.

Eu posso dizer que nada foi mais importante para o progressismo libertário do que a premissa trazida aqui. Toda a ideia do progressismo libertário na verdade se apoia nessa discriminação social. Não aceitar de forma alguma o racismo e o preconceito sexual por exemplo. Progressistas libertários são radicais e intransigentes. A ideia da multiculturalidade foi afastada quando se percebe que o cara com uma arma na mão e cara de poucas ideias não é amigo, mas também não pode me dizer o que fazer. E então ele argumenta de forma genial dizendo que a propriedade é naturalmente discriminadora e eu concordo grandemente. E na minha propriedade homofóbicos não são aceitos, assim como racistas, sexistas e todo tipo de anomalia humana.

Os libertários de esquerda e os experimentadores de estilos de vida multiculturais ou contra multiculturais, mesmo que não estivessem envolvidos em algum crime, mais uma vez teriam de pagar um preço pela sua conduta. Se continuassem com o seu comportamento ou o seu estilo de vida, eles seriam barrados da sociedade civilizada e viveriam separados fisicamente dela, em guetos ou em lugares distantes, e muitos cargos ou profissões lhes seriam inatingíveis. Em contraste, se eles quisessem viver e progredir no seio da sociedade, eles teriam de se adaptar e de assimilar as normas morais e culturais da sociedade em que desejassem entrar.

Essa assimilação não implicaria necessariamente que seria preciso renunciar completamente a um comportamento ou estilo de vida anormal ou diferente. Isso significaria, porém, que não mais seria possível “sair por aí” exibindo em público um comportamento ou estilo de vida alternativo. Esse comportamento teria de ficar “no armário”, estando escondido dos olhos do público e ficando fisicamente restrito à total privacidade das quatro paredes. A sua propaganda ou a sua demonstração em público engendrariam a expulsão.

O interessante disso é que falta um pedaço do raciocínio. Por que os libertários que adotassem estilos de vida multiculturais não adotariam sociedades próprias? Hoppe pega o argumento aqui e nos obriga a olhar o rodapé. Nele, ele na verdade explica de que formas as sociedades diversas das conservadoras se organizariam perfeitamente.

Para evitar qualquer mal-entendido, pode ser útil salientar que o aumento previsto na discriminação em um mundo puramente libertário não implica que a forma e a dimensão da discriminação serão as mesmas ou similares em todo o globo. Pelo contrário: um mundo libertário poderia ser – e provavelmente o seria – um mundo com uma grande variedade de comunidades localmente separadas que se engajariam em práticas de discriminação nitidamente diferentes (e de alcances diversos). 

Não obstante a variedade de políticas discriminatórias promovidas por diversas comunidades proprietárias, conforme será argumentado mais adiante no texto acima, em prol da autopreservação cada uma dessas comunidades terá de reconhecer e aplicar algumas limitações rigorosas e até mesmo inflexíveis em relação à sua tolerância interna; ou seja, nenhuma comunidade proprietária pode ser tão ‘tolerante’ e ‘não-discriminatória’ quanto os libertários de esquerda desejam que cada lugar o seja.

O que fica claro a qualquer observador é que o que se está defendendo até aqui é a adoção de uma sociedade discriminatória ser uma necessidade real de uma sociedade libertária. O grande lance é que o multiculturalismo foi vencido pela premissa das comunidades locais favoráveis. Isso fez com que o feminismo criasse mecanismos logicamente incorretos como o local de fala, mas ainda assim, é importante frisar que multiculturalismo não é há muito tempo uma pauta progressista. Logo em seguida, ele postula uma afirmação que é uma consequência lógica do ato de segregar. Se a população local passa a representar ideias incompatíveis com o modo local e pró democracia, você deve removê-las fisicamente. Belo e moral. E aconteceria em sociedades progressistas com todos aqueles que se mostrassem racistas, por exemplo.

Ainda além:

Deve estar bem claro, então, o motivo pelo qual os libertários devem ser conservadores morais e culturais da mais intransigente natureza. O estado atual de degradação moral, de desintegração social e de podridão cultural é precisamente o resultado de uma tolerância demasiada e, acima de tudo, errônea e equivocada. Ao invés de todos os habituais democratas, comunistas e adeptos de estilos de vida alternativos serem rapidamente isolados, excluídos e expulsos da civilização (de acordo com os princípios dos contratos), eles são tolerados pela sociedade. 

No entanto, essa tolerância apenas incentivou e promoveu ainda mais sentimentos e atitudes igualitaristas e relativistas – até que, finalmente, atingiu-se o ponto em que o direito (a autoridade) de excluir alguém de alguma coisa foi efetivamente extinto (ao passo que o poder do estado, que se manifesta nas políticas estatais de integração forçada, aumentou proporcionalmente).

Concordo totalmente com a intolerância levantada aqui. Acredito que uma sociedade progressista libertária que fosse tolerante com aqueles que apresentassem estilos de vida nocivos estaria fadada ao fracasso.

Então, terminamos. Vimos que o Capítulo X, longe de afastar sociedades progressistas libertárias nos ensina a afastarmos a ideia abominável do multiculturalismo puro e a defendermos fortemente o direito de segregar dos indivíduos e como, por estar atrelado a uma questão histórica, o progressismo debatido aqui ainda não era o progressismo libertário que vemos hoje e a de que libertários não precisam necessariamente ser conservadores, mas obrigatoriamente discriminadores.


Revisão por: Paulo Droopy (@PauloDroopy)

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Um comentário

  1. Daniel Moreno

    Como é raro encontrar uma crítica libertária ao conservadorismo, uma vez que, por uma motivação que nada mais parece ser que uma adequação social, um comodismo, passou-se a acreditar (ao menos no Brasil) que ambos são algum de tipo de sinônimo, quando na verdade há tantas discrepâncias, tantas contradições e tantos ruídos (notadamente o fato impossível de ignorar de que o conservador em regra realmente acredita na possibilidade do “bom governo”, do “bom estado”, sendo seu sucesso uma mera circunstância política facilmente atingível). O texto tem três anos, então espero que o autor não tenha se convertido a esse amálgama “libertário-conservador” que não passa, repito, de uma mera conveniência do ambiente de rede social, e não de uma real convergência de princípios.

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