Nova Luz sobre a Pré-História da Escola Austríaca

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Por Murray Rothbard

[Retirado de Economic Controversies, seç. 2, cap. 9]

O mais notável desenvolvimento na historiografia da Escola Austríaca na era pós Segunda Guerra Mundial tem sido a drástica reavaliação do que pode ser chamado de sua pré-história e, como um corolário, uma reconsideração fundamental da história do pensamento econômico em si. Essa reavaliação pode ser resumida esboçando brevemente o paradigma ortodoxo pré-guerra do desenvolvimento do pensamento econômico antes do advento da Escola Austríaca. Os filósofos escolásticos foram bruscamente descartados, considerados como pensadores que falharam totalmente em entender o mercado e que acreditavam, com base em fundamentos religiosos, que o preço justo era um que cobria ou o custo de produção ou a quantidade de trabalho incorporada no produto. Depois de esboçar brevemente a discussão dos bulionistas e anti-bulionistas entre os mercantilistas ingleses e levemente tocando em poucos economistas franceses e italianos do século XVIII, o historiador do pensamento econômico apontava com um floreio para Adam Smith e David Ricardo como os fundadores da ciência econômica. Depois de algum apoio e preenchimento em meados do século XIX, o marginalismo, incluindo a Escola Austríaca, atingiu outra grande explosão na década de 1870. À parte da menção ocasional de um ou dois precursores ingleses dos austríacos, como Samuel Bailey no início do século XIX, isso completava o quadro básico. Típico foi o texto enciclopédico de Lewis Haney: os escolásticos foram descritos como medievais, rejeitados como hostis ao comércio e declarados adeptos das teorias de trabalho e de custo de produção do justo preço.[1] Não é surpresa que em sua famosa frase, R.H. Tawney pôde chamar Karl Marx de “o último dos tutores”.[2]

A nova visão incrivelmente contrastante da história do pensamento econômico irrompeu em cena em 1954 na monumental, embora inacabada, obra de Joseph Schumpeter.[3] Longe dos estúpidos místicos que deveriam ser ignorados para chegar aos mercantilistas, os filósofos escolásticos foram vistos como economistas notáveis e prescientes, desenvolvendo um sistema muito próximo da abordagem austríaca e de utilidade subjetiva. Isso era particularmente verdadeiro para os anteriormente negligenciados escolásticos espanhóis e italianos dos séculos XVI e XVII. Praticamente o único ingrediente que faltava na teoria de valor deles era o conceito marginal. Deles, as filiações procederam aos economistas franceses e italianos posteriores. Na visão schumpeteriana, os mercantilistas ingleses eram panfletários polêmicos e mal-acabados, em vez de marcos essenciais no caminho para Adam Smith e a fundação da ciência econômica. De fato, a nova visão via Smith e Ricardo, não como fundadores das ciências da economia, mas como aqueles que desviaram a economia para um caminho tragicamente errado, que coube aos austríacos e outros marginalistas a corrigirem isso. Até então, apenas os negligenciados escritores anti-ricardianos mantinham a tradição viva. Como veremos, outros historiadores, como Emil Kauder, demonstraram ainda mais as raízes aristotélicas (e, portanto, escolásticas) dos austríacos em meio às diversas variantes da Escola Marginalista. O quadro é quase o reverso da ortodoxia anterior.

Não é o objetivo deste artigo demorar-se na obra merecidamente bem conhecida de Schumpeter, mas sim avaliar as contribuições de escritores que levaram a visão schumpeteriana ainda mais longe e que permanecem negligenciados pela maioria dos economistas, possivelmente por uma falha em se igualar a Schumpeter na construção um tratado geral. O melhor desenvolvimento da nova história precisa ser buscado em artigos fugitivos e breves panfletos e monografias.

As outras contribuições relativamente negligenciadas começaram simultaneamente com Schumpeter. Um dos mais importantes, e provavelmente o mais negligenciado, foi o The School of Salamanca, de Marjorie Grice-Hutchinson, que sofreu na profissão de economia por ser professora de literatura espanhola. Além disso, o livro carregava o fardo de um subtítulo enganosamente estreito: Readings in Spanish Monetary Theory.[4] De fato, o livro foi uma descoberta brilhante das visões pré-austríacas de valor subjetivo e de utilidade dos escolásticos espanhóis do final do século XVI. Mas, primeiro, Grice-Hutchinson mostrou que os trabalhos de escolásticos ainda anteriores, já em Aristóteles, continham uma análise de valor subjetivo baseada nos quereres do consumidor ao lado da concepção objetiva concorrente do justo preço baseado no trabalho e nos custos. No início da Idade Média, Santo Agostinho (354–430) desenvolveu o conceito da escala de valor subjetivo de cada indivíduo. Pela Alta Idade Média, os filósofos escolásticos haviam abandonado amplamente a teoria de custo de produção para adotar a visão de que o reflexo do mercado da demanda do consumidor realmente define o justo preço. Isso foi particularmente verdadeiro para Jean Buridan (1300–1358), Henri de Gante (1217–1293) e Ricardo de Mediavilla (1249–1306). Como Grice-Hutchinson observou:

Os escritores medievais viam o homem pobre como consumidor em vez de como produtor. Uma teoria de custo de produção teria dado aos comerciantes uma desculpa para cobrar demais sob o pretexto de cobrir suas despesas, e foi considerado mais justo contar com as forças impessoais do mercado que refletiam o julgamento de toda a comunidade, ou, para usar a frase medieval, a “estimativa comum”. De qualquer forma, parece que os fenômenos de troca passaram a ser cada vez mais explicados em termos psicológicos.[5]

Mesmo Henrique de Langenstein (1325-1397)[6], que de todos os escolásticos foi o mais hostil ao livre mercado e defendeu a fixação governamental do justo preço com base no status e no custo, desenvolveu o fator subjetivo da utilidade, bem como a escassez em sua análise de preço. Mas foram os escolásticos espanhóis do século XVI que desenvolveram a teoria de valor puramente subjetivo e pró livre mercado. Assim, Luis Saravía de la Calle (c. 1544) negou qualquer papel do custo na determinação do preço; em vez disso, o preço de mercado, que é o justo preço, é determinado pelas forças da oferta e da demanda, que, por sua vez, são o resultado da estimativa comum dos consumidores no mercado. Saravía escreveu que, “excluindo todo engano e malícia, o justo preço de uma coisa é o preço que geralmente é alcançado no momento e no local do acordo”. Ele continuou, apontando que o preço de uma coisa mudará de acordo com sua abundância ou escassez. Ele prosseguiu para atacar a teoria de custo de produção do justo preço:

Aqueles que medem o justo preço pelo trabalho, custos e risco incorridos pela pessoa que comercializa a mercadoria ou a produz, ou pelo custo do transporte ou da viagem […] ou pelo que ele tem que pagar, os fatores para sua indústria, risco e trabalho, estão muito errados, e estão ainda mais aqueles que permitem um certo lucro de um quinto ou um décimo. Pois o justo preço surge da abundância ou escassez de bens, de comerciantes e de dinheiro […] e não de custos, de trabalho e de risco. Se tivéssemos que considerar trabalho e risco para avaliar o justo preço, nenhum comerciante jamais sofreria perdas, nem a abundância ou a escassez de bens e dinheiro entrariam em questão. Preços geralmente não são fixados com base nos custos. Por que um fardo de linho trazido por terra da Bretanha com grande custo valeria mais do que um que é transportado de modo barato por mar? […] Por que deveria um livro escrito à mão valer mais do que um que é impresso, quando este último é melhor embora custe menos para ser produzido? […] O  justo preço é encontrado não pela contagem do custo, mas pela estimativa comum.[7]

Da mesma forma, o escolástico espanhol Diego de Covarrubias y Leiva (1512-1577), um distinto especialista em direito romano e um teólogo na Universidade de Salamanca, escreveu que o “valor de um artigo” depende “da estimativa dos homens, mesmo que essa estimativa seja tola”. O trigo é mais caro nas Índias do que na Espanha “porque os homens o estimam mais, embora a natureza do trigo seja a mesma em ambos os lugares”. O justo preço não deve ser considerado de forma alguma com referência ao seu custo original ou de trabalho, mas apenas com referência ao valor de mercado comum onde o bem é vendido, um valor, apontou Covarrubias, que cairá quando os compradores forem poucos e os bens forem abundantes e que aumentará em condições opostas.[8]

O escolástico espanhol Francisco García (d. 1659) envolvido em uma análise extremamente sofisticada dos determinantes do valor e da utilidade. A valorização dos bens, destacou Garcia, depende de vários fatores. Um é a abundância ou a escassez da oferta dos bens, a primeira causando uma estimativa mais baixa e a última uma aumentada. Um segundo é se os compradores ou vendedores são poucos ou muitos. Outro é se “o dinheiro é escasso ou abundante”, o primeiro causando uma estimativa mais baixa dos bens e o último uma estimativa mais alta. Outro é se “[os] vendedores estão ansiosos para vender seus produtos”. A influência da abundância ou da escassez de um bem levou García quase à beira, mas não sobre ela, de uma análise de utilidade marginal da valoração.

Por exemplo, dissemos que o pão é mais valioso do que a carne porque é mais necessário para a preservação da vida humana. Mas pode chegar um momento em que o pão seja tão abundante e a carne tão escassa que o pão seja mais barato do que a carne.[9]

Os escolásticos espanhóis também anteciparam a Escola Austríaca ao aplicar a teoria de valor ao dinheiro, iniciando assim a integração do dinheiro na teoria geral do valor. Em geral, acredita-se, por exemplo, que Jean Bodin, em 1568, inaugurou o que infelizmente é chamado de aplicação da análise de oferta e de demanda ao dinheiro. No entanto, ele foi antecipado doze anos antes pelo teólogo de Salamanca, o dominicano Martín de Azpilcueta Navarro (1493-1576), que estava inspirado a explicar a inflação provocada pela importação de ouro e de prata do Novo Mundo pelos espanhóis. Citando os escolásticos anteriores, Azpilcueta declarou que “[o] dinheiro vale mais onde é escasso do que onde é abundante”. Por quê? Porque “todas as mercadorias se tornam mais caras quando estão em grande demanda e pouca oferta, e esse dinheiro, na medida em que pode ser vendido, permutado ou trocado por alguma outra forma de contrato, é mercadoria e, portanto, também se torna mais caro quando está em grande demanda e pouca oferta”. Azpilcueta observou que

vemos por experiência que na França, onde o dinheiro é mais escasso do que na Espanha, o pão, o vinho, as roupas e o trabalho valem muito menos. E mesmo na Espanha, em tempos em que o dinheiro era mais escasso, os bens vendíveis e o trabalho eram pagos por muito menos do que depois da descoberta das Índias, que inundou o país de ouro e prata. A razão para isso é que o dinheiro vale mais onde e quando é escasso do que onde e quando é abundante.[10]

Além disso, os escolásticos espanhóis passaram a antecipar a teoria clássica da paridade do poder de compra de Mises-Cassel das taxas de troca, procedendo logicamente para aplicar a teoria de oferta e de demanda às trocas exteriores, uma instituição que foi altamente desenvolvida no início do período moderno. O influxo de espécie para dentro da Espanha depreciou o escudo espanhol nas trocas exteriores, bem como aumentou os preços dentro da Espanha, e os escolásticos tiveram que lidar com esse fenômeno surpreendente. Foi o eminente teólogo de Salamanca, o dominicano Domingo de Soto (1495–1560), que em 1553 aplicou totalmente pela primeira vez a análise de oferta e de demanda às taxas de trocas. De Soto notou que

quanto mais abundante o dinheiro é em Medina, mais desfavoráveis são os termos de troca e mais alto é o preço que precisa ser pago por quem deseja enviar dinheiro da Espanha para a Flandres, já que a demanda por dinheiro é menor na Espanha do que em Flandres. E quanto mais escasso o dinheiro é em Medina, menos ele precisa pagar lá, porque mais pessoas querem dinheiro em Medina do que estão enviando para Flandres.[11]

O que De Soto estava dizendo é que à medida que o estoque de dinheiro aumenta, a utilidade de cada unidade de dinheiro para a população diminui e vice-versa; em suma, apenas o grande obstáculo de deixar de especificar o conceito da unidade marginal o impediu de chegar à doutrina da utilidade marginal decrescente do dinheiro. Azpilcueta, no trecho citado acima, aplicou a análise de Soto da influência da oferta de dinheiro nas taxas de trocas, ao mesmo tempo em que elaborou uma teoria da oferta e da demanda ao determinar o poder de compra do dinheiro dentro de um país.

A análise de Soto-Azpilcueta foi divulgada aos mercadores da Espanha pelo frade dominicano Tomás de Mercado (d. 1585), que em 1569 escreveu um manual de moralidade comercial em espanhol, em contraste com os teólogos escolásticos, que invariavelmente escreviam em latim. Foi seguido por Garcia e endossado no final do século XVI pelo teólogo de Salamanca, o dominicano Domingo de Bañez (1527–1604) e pelo grande jesuíta português Luís de Molina (1535–1600). Escrevendo perto da virada do século, Molina expôs a teoria de uma maneira elegante e abrangente:

Existe outra maneira pela qual o dinheiro pode valer mais em um lugar do que em outro; a saber, porque é mais escasso lá do que em outro lugar. Outras coisas sendo iguais, onde quer que o dinheiro seja mais abundante, ele será menos valioso para o propósito de comprar e comparar coisas que não sejam dinheiro.

Assim como uma abundância de bens faz com que os preços caiam (a quantidade de dinheiro e o número de mercadores sendo iguais), uma abundância de dinheiro faz com que eles aumentem (a quantidade de bens e o número de comerciantes sendo iguais). A razão é que o próprio dinheiro se torna menos valioso para o propósito de comprar e comparar mercadorias. Vemos, assim, que na Espanha o poder de compra do dinheiro é muito menor, devido à sua abundância, do que há oitenta anos. Uma coisa que naquela época se podia comprar por dois ducados vale hoje em dia 5, 6 ou até mais. Os salários aumentaram na mesma proporção, assim como os dotes, o preço dos latifúndios, a renda de benefícios e outras coisas.

Da mesma forma, vemos que o dinheiro é muito menos valioso no Novo Mundo (especialmente no Peru, onde é mais abundante) do que o é na Espanha. Mas em lugares onde é mais escasso do que na Espanha, será mais valioso. Nem o valor do dinheiro será o mesmo em todos os outros lugares, mas irá variar: e isso será devido às variações em sua quantidade, outras coisas sendo iguais. […] Mesmo na própria Espanha, o valor do dinheiro varia: é geralmente o mais baixo de todos em Sevilha, onde chegam os navios do Novo Mundo e onde, por isso, o dinheiro é mais abundante.

Onde quer que a demanda por dinheiro seja maior, seja para comprar ou transportar mercadorias, […] ou por qualquer outro motivo, alí seu valor será maior. São essas coisas também que fazem com que o valor do dinheiro varie com o passar do tempo em algum lugar e no mesmo.[12]

O trabalho revisionista excepcional sobre o pensamento econômico dos escolásticos medievais e posteriores é o de Raymond de Roover. Baseando seu trabalho em parte no volume de Grice-Hutchinson, de Roover publicou sua primeira discussão abrangente em 1955.[13] Para o período medieval, de Roover apontou particularmente para o escolástico occamista francês do início do século XIV, Jean Buridan, e para o famoso italiano do início do século XV, o pregador San Bernardino de Siena (1380–1444). Buridan insistiu que o valor é medido pelos quereres humanos da comunidade de indivíduos e que o preço de mercado é o justo preço. Além disso, talvez tenha sido o primeiro a deixar claro de forma pré-austríaca que a troca voluntária demonstra preferência subjetiva, pois afirmou que a “pessoa que troca um cavalo por dinheiro não o teria feito se não tivesse preferido o dinheiro a um cavalo”.[14] Ele acrescentou que os trabalhadores se empregam porque valorizam os salários que recebem mais do que o trabalho que têm de despender.[15]

De Roover então discutiu os escolásticos espanhóis do século XVI, centrados na Universidade de Salamanca, a rainha das universidades espanholas do período. A partir de Salamanca a influência desta escola de escolásticos espalhou-se para Portugal, Itália e os Países Baixos. Em adição a sumarizar a contribuição de Grice-Hutchinson e adicionar à bibliografia dela, de Roover observou que tanto de Soto quanto Molina denunciaram como “falaciosa” a noção de John Duns Scotus (1308), escolástico do final do século XIII,  de que o preço justo é o custo de produção mais um lucro razoável; em vez de o preço ser a estimativa comum, a interação da oferta e da demanda no mercado. Molina introduziu ainda mais o conceito de competição, declarando que a competição entre os compradores aumentará os preços, enquanto a escassez de compradores os derrubará.[16]

Em um artigo posterior, de Roover elaborou suas pesquisas sobre a teoria escolástica do justo preço. Ele descobriu que a visão ortodoxa do justo preço como um preço de custo de produção e de condição de vida se baseava quase exclusivamente nas visões do escolástico vienense do século XIV Henrique de Langenstein. Mas Langenstein, de Roover apontou, era um seguidor das visões minoritárias de Guilherme de Ockham e fora da tradição tomista dominante; Langenstein foi raramente citado por escritores escolásticos posteriores. Embora algumas de suas passagens estejam abertas a uma interpretação conflitante, de Roover demonstrou que Alberto Magno (1193–1280) e seu grande pupilo Tomás de Aquino (1226–1274) defenderam que o preço justo era o preço de mercado. De fato, Tomás de Aquino considerou o caso de um comerciante que traz trigo para um país onde há grande escassez; o comerciante sabe que mais trigo está a caminho. Ele pode vender seu trigo pelo preço existente ou deve anunciar a todos a chegada iminente de novos suprimentos e sofrer uma queda no preço? Tomás de Aquino respondeu inequivocamente que poderia vender o trigo justamente ao preço de mercado atual, embora tenha acrescentado, posteriormente, que seria mais virtuoso de sua parte informar os compradores. Além disso, de Roover apontou para o resumo da posição de Tomás de Aquino por seu mais ilustre comentador, o escolástico do final do século XV Tommaso de Vio, Cardeal Caetano (1468-1534). Caetano concluiu que, para Tomás de Aquino, o justo preço é “aquele que, em determinado momento, pode ser obtido dos compradores, assumindo o conhecimento comum e na ausência de toda fraude e coerção”.[17]

A teoria de custo de produção do justo preço mantida pelos scotistas foi atacada de forma incisiva pelos escolásticos posteriores. São Bernardino de Siena, apontou de Roover, declarou que o preço de mercado é justo independentemente do produtor ganhar ou perder, ou se está acima ou abaixo do custo. O grande jurista do início do século XVI, Francisco de Vitoria (c. 1480–1546), fundador da escola de Salamanca, assim como seus seguidores, insistia que o justo preço é estabelecido pela oferta e demanda, independentemente dos custos ou despesas do trabalho; produtores ineficientes ou especuladores ineptos devem arcar com as consequências de sua incompetência e má previsão. Além disso, de Roover deixou claro que a ênfase geral da escolástica na justiça da “estimativa comum” (communis aestimatio) é idêntica à “valoração de mercado” (aestimatio fori), uma vez que os escolásticos usavam essas duas expressões latinas de forma intercambiável.[18]

De Roover observou, no entanto, que essa aceitação do preço de mercado não significava que os escolásticos adotassem uma posição de laissez-faire. Ao contrário, muitas vezes estavam dispostos a aceitar a fixação de preços pelo governo em vez da ação do mercado. Alguns escolásticos proeminentes, no entanto, liderados por Azpilcueta e incluindo Molina, se opuseram a qualquer fixação de preços; como disse Azpilcueta, o controle de preços é desnecessário em tempos de fartura e ineficazes ou positivamente prejudiciais em tempos de escassez.[19]

Em um comentário sobre o artigo de de Roover, David Herlihy observou que, nas cidades-estado do norte da Itália dos séculos XII e XIII, o berço do capitalismo comercial moderno, o preço de mercado era geralmente considerado justo porque era “verdadeiro” e “real”, se foi “estabelecido ou utilizado sem dolo ou fraude”. Como Herlihy resumiu, o justo preço de um objeto é seu “valor verdadeiro conforme determinado por uma de duas maneiras: para objetos que fossem únicos, pela negociação honesta entre vendedor e comprador; para mercadorias básicas, pelo consenso do mercado estabelecido na ausência de fraude ou conspiração”.[20]

A explicação definitiva de John W. Baldwin das teorias de justo preço durante a Alta Idade Média dos séculos XII e XIII confirmou amplamente a visão revisionista de de Roover. Baldwin apontou que havia três grupos importantes e influentes de escritores medievais: os teólogos (que estivemos examinando), os juristas romanos e os juristas canônicos. Por sua vez, os romanistas, junto com os canonistas, apegaram-se firmemente ao princípio do direito privado romano de que o justo preço é qualquer coisa que se chega pela livre negociação entre compradores e vendedores.[21] Baldwin demonstrou que mesmo os teólogos da Alta Idade Média, antes de Tomás de Aquino, aceitavam o preço de mercado corrente como o justo preço.[22]

Vários anos depois, de Roover voltou-se para as opiniões dos escolásticos sobre a questão mais ampla do comércio e da troca.[23] Ele concedeu a validade parcial da visão mais antiga de que a Igreja medieval desaprovava o comércio como uma ameaça à salvação pessoal; ou melhor, embora o comércio possa ser honesto, apresenta grande tentação para o pecado. No entanto, ele destacou que, à medida que o negócio e o comércio cresceram após o século X, a igreja começou a se adaptar à ideia dos méritos do comércio e da troca. Assim, embora seja verdade que o escolástico do século XII Pedro Lombardo (c. 1100-1160) denunciou o comércio e a vida militar como ocupações pecaminosas per se, uma visão muito mais benevolente do comércio foi apresentada durante o século XIII por Alberto Magno e seu aluno Tomás de Aquino, bem como por São Boaventura (1221–1274) e o Papa Inocêncio V (1225–1276). Embora o comércio apresente ocasiões para o pecado, ele não é pecaminoso per se; pelo contrário, a troca e a divisão do trabalho são benéficas para satisfazer os quereres dos cidadãos. Além disso, o escolástico Ricardo de Mediavilla, do início do século XIV, desenvolveu a ideia de que tanto o comprador quanto o vendedor ganham com a troca, uma vez que cada um demonstra que prefere o que recebe em troca do que abre mão. Mediavilla também aplicou essa ideia ao comércio internacional, apontando que ambos países se beneficiam com a troca de seus produtos excedentes. Uma vez que os comerciantes e os cidadãos de cada país se beneficiam, nenhuma das partes está explorando a outra.

Ao mesmo tempo, Tomás de Aquino e outros teólogos denunciaram a “cobiça” e o amor ao lucro, sendo o ganho mercantil apenas justificável quando dirigido ao “bem dos outros”; além disso, Aquino atacou a “avareza” como a tentativa de melhorar a “condição de vida” de alguém. Mas, como de Roover apontou, o grande italiano do início do século XVI, Tommaso Cardeal Caetano, corrigiu essa visão ao demonstrar que, se isso fosse verdade, todas as pessoas teriam de ser congeladas em sua ocupação e renda atuais. Pelo contrário, afirmou Caetano, pessoas com habilidades incomuns deveriam ser capazes de ascender no mundo. Em contraste com europeus do norte como Tomás de Aquino, Caetano estava bastante familiarizado com o comércio e a mobilidade social ascendente nas cidades italianas. Além disso, até mesmo Tomás de Aquino rejeitou explicitamente a ideia de que os preços deveriam ser determinados pela condição de vida de alguém, apontando que o preço de venda de qualquer bem tende a ser o mesmo, seja o empresário pobre ou rico.

De Roover elogiou o escolástico do início do século XV, São Bernardino de Siena,  como o único teólogo que tratou em detalhes da função econômica do empreendedor. São Bernardino escreveu sobre as qualidades e habilidades incomuns do empreendedor bem-sucedido, incluindo esforço, diligência, conhecimento do mercado e cálculo de riscos, com o lucro sobre o capital investido justificável como compensação pelo risco e esforço do empreendedor. A aceitação do lucro foi imortalizada em um lema em um livro de contabilidade do século XIII: “Em nome de Deus e do lucro”.[24]

O trabalho final de De Roover nessa área foi um livreto sobre São Bernardino e seu contemporâneo Santo Antonino (1389-1459) de Florença.[25] Na visão de São Bernardino sobre o comércio e o empreendedor, a ocupação do comércio pode levar ao pecado, mas o mesmo pode acontecer com todas as outras ocupações, incluindo aquela de bispos. Quanto aos pecados dos comerciantes, eles consistem em atividades ilícitas como fraude, deturpação de produtos, venda de produtos adulterados e uso de pesos e medidas falsas, bem como manter os credores à espera de seu dinheiro após o vencimento de uma dívida. Quanto ao comércio, existem vários tipos de comerciantes úteis, segundo São Bernardino: importadores-exportadores, armazéns, varejistas e fabricantes.

São Bernardino descreveu as raras qualidades e virtudes que influenciam a formação de homens de negócio de sucesso. Uma é a eficiência (industria), que inclui conhecimento de qualidades, de preços e de custos e capacidade de avaliar riscos e estimar oportunidades de lucro, o que, declarou ele, “na verdade, muito poucos são capazes de fazer”. A habilidade empreendedorial inclui, portanto, a disposição para assumir riscos (pericula). Os homens de negócio precisam ser responsáveis e atentos aos detalhes, e problemas e labutas também são necessários. A condução racional e ordenada dos negócios, também necessária ao sucesso, é outra virtude elogiada por São Bernardino, assim como a integridade nos negócios e o pronto acerto de contas.

Voltando novamente para a visão escolástica de valor e de preço, de Roover apontou que, já em Tomás de Aquino, os preços eram tratados como determinados, não por sua posição filosófica na natureza, mas pelo grau de usabilidade ou utilidade dos respectivos produtos ao homem e aos quereres humanos. Como escreveu de Roover sobre Aquino: “Essas passagens são claras e sem ambiguidade; o valor depende da utilidade, da usabilidade ou dos quereres humanos. Há em nenhum lugar alguma menção ao trabalho como o criador ou a medida do valor”.[26] Um século antes dos escolásticos espanhóis e um século e meio antes da formulação sofisticada de Francisco Garcia, São Bernardino havia demonstrado que o preço é determinado pela escassez (raritas), pela usabilidade (virtuositas) e pela prazerosidade ou desejabilidade (compacibilitas). Maior abundância de um bem causará uma queda em seu valor e maior escassez, um aumento. Além disso, para ter valor, um bem precisa ter utilidade, ou o que podemos chamar de “utilidade objetiva”; mas dentro dessa estrutura, o valor é determinado pelas complicibilitas, ou “utilidade subjetiva”, que tem para os consumidores individuais. Novamente, apenas o elemento marginal está faltando para uma teoria do valor pré-austríaca de escala natural. Chegando à beira da solução austríaca posterior ao “paradoxo do valor” dos economistas clássicos, São Bernardino observou que um copo de água para um homem morrendo de sede seria tão valioso que quase não tem preço, mas felizmente, a água, embora absolutamente necessária à vida humana, é normalmente tão abundante que exige um preço baixo ou mesmo nenhum preço.

Corrigindo a atribuição de Schumpeter da fundação da utilidade subjetiva a Santo Antonino e observando que ele a derivou de São Bernardino, de Roover mostrou ainda que estudos recentes demonstram que Bernardino derivou sua própria análise quase palavra por palavra de um escolástico provençal do final do século XIII, Pierre de Jean Olivi (1248–1298). Aparentemente, Bernardino não deu crédito a Olivi porque o último, vindo de outro ramo da ordem franciscana, era então suspeito de heresia.[27]

Voltando-se para o conceito de “justo preço”, de Roover deixou claro que São Bernardino, seguindo Olivi, considerava ser o preço de um bem ou serviço “a estimativa feita em comum por todos os cidadãos da comunidade”. Isso ele considerou ser explicitamente como a valoração do mercado, uma vez que definiu o justo preço como “aquele que prevalece em um determinado momento de acordo com a estimativa do mercado, isto é, quanto as mercadorias à venda então valem comumente em um determinado lugar”.[28]

Os salários eram tratados pelos dois frades italianos da mesma maneira que os preços dos bens. Para São Bernardino, “as mesmas regras que se aplicam aos preços dos bens também se aplicam ao preço dos serviços com a consequência de que o justo salário também será determinado pelas forças que atuam no mercado ou, em outras palavras, pela demanda por trabalho e a oferta disponível”. Um arquiteto ganha mais do que um cavador de valas, afirmou Bernardino, porque “o trabalho do primeiro exige mais inteligência, maior habilidade, maior treinamento e, como consequência, menos se qualificam. […] Os diferenciais de salários são, portanto, a ser explicados pela escassez, porque os trabalhadores qualificados são menos numerosos do que os não qualificados e os cargos elevados exigem até mesmo uma combinação muito incomum de habilidades e aptidões”.[29] E Santo Antonino concluiu que o salário de um trabalhador é um preço que, como qualquer outro, é devidamente determinado pela estimativa comum do mercado na ausência de fraude.

Durante e depois do século XVI, a Igreja Católica Romana e a filosofia escolástica sofreram ataques cada vez mais virulentos, primeiro dos protestantes e depois dos racionalistas, mas o resultado não foi tanto para eliminar qualquer influência da filosofia e economia escolástica, mas para mascarar essa influência, visto que seus inimigos proclamados muitas vezes deixavam de citar seus escritos. Assim, o grande jurista protestante holandês do início do século XVII Hugo Grotius (1583-1645) adotou muito da doutrina escolástica, incluindo a ênfase no querer e na utilidade como os principais determinantes do valor, e a importância da estimativa comum do mercado na determinação do preço. Grotius, de fato, citou explicitamente os escolásticos espanhóis Azpilcueta Navarro e Covarrubias. Seguindo ainda mais explicitamente os escolásticos espanhóis do século XVI estavam os teólogos jesuítas do século seguinte, incluindo o muito influente jesuíta flamengo Leonardus Lessius (1554-1623), amigo de Luís de Molina e o ainda mais influente cardeal jesuíta espanhol Juan de Lugo (1583–1660), cujo tratado foi publicado originalmente em 1642 e foi reimpresso muitas vezes nos três séculos seguintes. Também seguindo explicitamente os escolásticos e a Escola de Salamanca no século XVII estava o filósofo e jurista genovês Sigismundo Scaccia (c. 1618), cujo tratado foi amplamente reimpresso, assim como Antonio de Escobar (c. 1652), autor de um manual de moral.

Para retornar ao que seria a tendência protestante dominante para o pensamento econômico posterior, as doutrinas jurídicas e econômicas de Grotius foram seguidas atentamente no final do século XVII pelo jurista luterano sueco Samuel Pufendorf (1632-1694). Enquanto Pufendorf seguia Grotius na utilidade e escassez e na estimativa comum do mercado na determinação do valor e do preço, e embora ele certamente consultasse os escritos dos escolásticos espanhóis, foi o racionalista Pufendorf que abandonou todas as citações a essas odiosas influências escolásticas sobre seu professor. Consequentemente, quando a doutrina grotiana foi trazida para a Escócia pelo professor de filosofia moral do início do século XVIII em Glasgow, Gershom Carmichael (1672-1729), que traduziu Pufendorf para o inglês, o conhecimento das influências escolásticas foi perdido. Consequentemente, com o grande aluno e sucessor de Carmichael, Francis Hutcheson, a utilidade começou a ser enfraquecida pelas teorias de valor do trabalho e de custo de produção, até que finalmente, quando o aluno de Hutcheson, Adam Smith (1723-1790) escreveu o Wealth of Nation, a influência escolástica pré-austríaca infelizmente havia desaparecido completamente. Daí a visão de Schumpeter, de Roover e outros de que Smith e mais tarde Ricardo desviaram a economia para o caminho errado, que os marginalistas posteriores (incluindo os austríacos) tiveram de corrigir.

A doutrina escolástica teve uma influência mais duradoura sobre os economistas do continente, particularmente nos países católicos. Assim, o brilhante italiano de meados do século XVIII, o abade Ferdinando Galiani (1728-1787), costuma ser creditado pelos historiadores por ter inventado, totalmente desenvolvido, o conceito de utilidade e escassez como determinantes do preço. Ninguém queria enfatizar os escritos escolásticos naquela era racionalista, mas uma forte influência escolástica é detectável na obra de Galiani, cuja seção sobre valor contém até uma citação explícita ao escolástico de Salamanca Diego Covarrubias y Leiva. O tio de Galiani, Celestino, que criou o jovem economista, foi professor de teologia moral antes de se tornar arcebispo e, portanto, sem dúvida estava familiarizado com a literatura escolástica sobre o assunto, que lotava as bibliotecas italianas do século XVIII. O economista italiano contemporâneo de Galiani, Antonio Genovesi (1712-1769), também foi diretamente influenciado pelo pensamento escolástico; ele havia servido como professor de ética e filosofia moral na Universidade de Nápoles.

De Galiani, o papel central da utilidade, da escassez e da estimativa comum do mercado se espalhou para a França, até o abade francês do final do século XVIII, Etienne Bonnot de Condillac (1714-1780), bem como para aquele outro grande abade Robert Jacques Turgot (1721-1781). Conhecendo apenas Galiani como seu antecessor, Turgot ecoou a Escola de Salamanca ao manter os preços dos bens e o valor do dinheiro, como resultado da “estimativa comum” do mercado, a ser construída a partir das avaliações subjetivas de indivíduos naquele mercado. François Quesnay (1694-1774) e os fisiocratas franceses do século XVIII — muitas vezes considerados os fundadores da ciência econômica — também foram fortemente influenciados pelos escolásticos, tanto em sua teoria da lei natural quanto em sua ênfase no consumo e no valor subjetivo. A doutrina escolástica aparece até mesmo na ferozmente anti-católica Encyclopédie, incluindo a doutrina da lei natural, bem como a análise de preço conforme determinado pela estimativa corrente e comum do mercado. Mesmo durante o século XIX, fortes traços de Condillac e Turgot aparecem em Jean-Baptiste Say (1767-1832), que defendeu um modelo de utilidade para o futuro.[30]

Quase ao mesmo tempo que Schumpeter, Grice-Hutchinson e de Roover publicaram suas pesquisas, Emil Kauder apresentou um ponto de vista revisionista semelhante. Kauder traçou a conexão entre os escolásticos e Galiani, primeiro até o político italiano de meados do século XVI Gian Francesco Lottini (1512–1572).[31] Ele mostrou que Lottini primeiro elaborou um conceito rudimentar de preferência temporal: que as pessoas estimam os quereres presentes mais altamente do que os futuros. O próximo elo foi o comerciante italiano do final do século XVI Bernardo Davanzati (1529–1606), que aplicou a teoria de valor subjetivo ao dinheiro em 1588. Na verdade, Schumpeter logo apontaria que Davanzati também resolveu o “paradoxo do valor”, que a água é muito útil, mas não tem valor no mercado porque é altamente abundante. Se Davanzati foi ou não influenciado por São Bernardino, não se sabe.[32] Ele foi seguido quase um século depois pelo professor de matemática italiano Geminiano Montanari (1633-1687). Galiani foi definitivamente influenciado por Davanzati.

Kauder desenvolveu então de forma original as grandes contribuições de Galiani. Pois Galiani não só expôs de forma abrangente a conhecida teoria de utilidade e de escassez como determinantes do preço — que carecia apenas do princípio marginal para chegar à teoria austríaca —, mas também passou a aplicar a teoria de utilidade ao valor do trabalho e de outros fatores de produção. Pois o valor do trabalho é, por sua vez, determinado pela utilidade e escassez do tipo particular de trabalho que está sendo considerado. Os altamente qualificados recebem muito mais do que o trabalhador comum, visto que a natureza produziu apenas um pequeno número de homens capazes. Mas não só isso; para Galiani, não são os custos do trabalho que determinam o valor, mas o valor — e a escolha do consumidor — que determina o custo do trabalho. Além disso, Galiani abordou uma teoria de preferência temporal pré-Böhm-Bawerk dos interesses, com os interesses sendo a diferença entre o dinheiro presente e futuro.[33] Turgot então antecipou os austríacos ao aplicar a teoria de utilidade de Galiani a uma análise detalhada da troca isolada. Além disso, Turgot, como Schumpeter apontou, desenvolveu uma análise temporal da produção e elaborou uma análise geral pré-austríaca da lei dos retornos decrescentes, que não seria igualada até o final do século XIX. Muito justamente, Schumpeter escreveu que “não é demais dizer que a economia analítica levou um século para chegar onde poderia ter chegado em vinte anos após a publicação do tratado de Turgot se seu conteúdo tivesse sido devidamente compreendido e absorvido por uma profissão alerta”.[34] Em vez disso, como Kauder apontou, coube a Condillac oferecer um último lance e uma defesa negligenciada da teoria de utilidade de Galiani contra a maré crescente da teoria de custo britânica. Na frase incisiva de Condillac, “uma coisa não tem valor porque custa, como as pessoas supõem; em vez disso, custa porque tem um valor”.[35]

Em um fascinante artigo complementar, Kauder especulou sobre a persistência da teoria de utilidade e de valor subjetivo no continente, em comparação com o surgimento e o domínio de uma teoria de quantidade de trabalho e custo de produção na Grã-Bretanha.[36] Ele ficou particularmente intrigado com o fato de que os subjetivistas franceses e italianos anteriores ao século XIX eram todos católicos (e, é claro, ele poderia ter acrescentado os escolásticos medievais e do século XVI também), enquanto os economistas britânicos eram todos protestantes, ou, mais precisamente, calvinistas. Kauder especulou que foi seu treinamento calvinista que levou John Locke e particularmente Adam Smith a rejeitar a tradição continental (Smith conheceu Turgot e leu Grotius) e a enfatizar uma teoria de valor-trabalho. Os calvinistas acreditavam que o trabalho ou labor era divino; essa impressão não poderia ter levado Smith e os outros a adotar uma teoria de valor econômico do trabalho? Além disso, Kauder destacou que até meados do século XVIII as universidades francesas e italianas eram dominadas pela filosofia aristotélica, principalmente como transmitida pelos jesuítas e outras ordens religiosas. Kauder acrescentou que, em contraste com o Calvinismo, a filosofia aristotélico-tomista não glorificava o trabalho ou labor per se como divino; o trabalho pode ser necessário, mas “a busca moderada de prazer e felicidade” — em suma, a utilidade — “formam o centro das ações econômicas”. Kauder concluiu que “se o prazer de uma forma moderada é o propósito da economia, então, seguindo o conceito aristotélico da causa final, todos os princípios da economia, incluindo a valoração, precisam ser derivados dele”.[37]

Kauder admitiu que a sua conjectura é uma que não pode ser provada e também que não é particularmente válida para o século XIX. No entanto, ele ofereceu uma explicação intrigante para o fracasso de Alfred Marshall em adotar completamente a teoria de utilidade marginal e, em vez disso, seu desvio da teoria em favor de um recrudescimento da teoria de custo de produção objetivo de Ricardo. Essa explicação reside na, sem dúvida, forte formação evangélica e calvinista de Marshall.[38]

Finalmente, Emil Kauder demonstrou de forma convincente a influência direta da filosofia aristotélica sobre os fundadores da Escola Austríaca e contrastou o resultado com as outras escolas marginalistas do final do século XIX. Em primeiro lugar, em contraste com Jevons e Walras, que acreditavam que as leis econômicas são hipóteses que lidam com quantidades sociais, Carl Menger e seus seguidores sustentaram que a economia investiga, não as quantidades de fenômenos, mas as essências subjacentes de tais entidades reais como valor, lucro, e as demais categorias econômicas. A crença em essências subjacentes inerentes às aparências superficiais é aristotélica, e Kauder apontou que Menger estudou e citou Aristóteles extensivamente em seu trabalho metodológico. Ele também notou as similaridades descobertas por Oskar Kraus entre as teorias de imputação austríaca e aristotélica. Kauder também destacou que Menger aplicou a distinção aristotélica fundamental entre matéria e forma à teoria econômica: a teoria econômica lida com a forma subjacente dos eventos, enquanto a história e a estatística lidam com a matéria concreta. Os casos históricos concretos são as exemplificações de regularidades gerais, a matéria aristotélica que contém potencialidades, enquanto as leis econômicas “são as formas aristotélicas que atualizam o potencial, isto é, fornecem as leis e conceitos válidos para todos os tempos e lugares”.[39]

Em segundo lugar, Menger sustentou, em contraste com Jevons e Walras, que as leis econômicas expressas em equações matemáticas são apenas declarações arbitrárias; pelo contrário, as leis econômicas genuínas são “exatas”, na terminologia de Menger, significando leis fixas que descrevem sequências invariáveis ao tempo e ao lugar. Assim, Menger e os austríacos constroem uma “estrutura eterna da economia […] despojada de todas as peculiaridades históricas”. Em suma, Menger e, depois dele, Böhm-Bawerk foram ontologistas sociais aristotélicos, mantendo a realidade absoluta e apodíctica das leis econômicas. Kauder observou perceptivelmente que na economia contemporânea, “apenas von Mises, o aluno mais fiel dos três pioneiros [marginalistas], mantém o caráter ontológico das leis econômicas. Sua teoria da ação humana é uma ‘reflexão sobre a essência da ação’. As leis econômicas fornecem ‘fatos ontológicos’”.[40]

Por fim, o método matemático de Jevons-Walras lida necessariamente com “funções de fenômenos interdependentes”, ao passo que, para Menger e os austríacos, as leis econômicas são genéticas e causais, procedendo da utilidade e da ação do consumidor ao resultado do mercado. Como coloca Kauder:

Para Marshall, valor e custo, oferta e demanda são fatores interdependentes cuja conexão funcional pode ser explicada em uma equação ou figura geométrica. Para Wieser, Menger e especialmente para Böhm-Bawerk, os quereres do consumidor são o início e o fim do nexo causal. O propósito e a causa da ação econômica são idênticos. Não há diferença entre causalidade e teleologia, afirma Böhm-Bawerk. Ele conhecia a origem aristotélica de seu argumento.[41]

Kauder também apontou que o método caracteristicamente austríaco de proceder com palavras de um modelo de Robinson Crusoé e então prosseguir passo a passo para uma economia totalmente desenvolvida está de acordo com o conceito aristotélico de enteléquia, em que “o movimento da potencialidade para a actualização não determina apenas a estrutura do sistema, mas também a apresentação dos pensamentos”.[42]

Na tentativa de explicar a escolha austríaca entre todos os marginalistas pelo realismo filosófico e pela ontologia social, Kauder apontou para as influências do final do século XIX no clima intelectual austríaco de Aristóteles, Tomás de Aquino e outras escolas de filosofia realista. O mais influente foi Aristóteles, que foi estudado cuidadosamente até meados do século XIX e que frequentemente era ensinado nas escolas secundárias da Áustria. E enquanto o realismo deu lugar ao empirismo na Escola Austríaca na virada do século XX, “o Schottengymnasium vienense, o berçário intelectual de muitos austríacos famosos, incluindo Wieser, exigia, mesmo depois de 1918, que os alunos lessem a metafísica de Aristóteles no grego original”.[43] Em contraste, é claro, a influência da filosofia aristotélica na Grã-Bretanha ou mesmo na França durante o século XIX foi praticamente nula.

Em décadas recentes, os estudiosos revisionistas têm claramente alterado nosso conhecimento da pré-história da Escola Austríaca de Economia. Vemos emergir uma longa e poderosa tradição de economia escolástica proto-austríaca, fundada em Aristóteles, continuando pela Idade Média e os posteriores escolásticos italianos e espanhóis, e então influenciando os economistas franceses e italianos antes e até os dias de Adam Smith. A conquista de Carl Menger e dos austríacos não foi tanto fundar um sistema totalmente novo no framework da economia política clássica britânica, mas sim reviver e elaborar a tradição mais antiga que havia sido deixada de lado pela Escola Clássica.


[1]Lewis H. Haney, History of Economic Thought, 4ª ed. (New York: Macmillan, 1949), pp. 106–08.

[2]R.H. Tawney, Religion and the Rise of Capitalism (New York: New American Library, 1954), pp. 38–39.

[3]Joseph A. Schumpeter, A History of Economic Analysis (New York: Oxford University Press, 1954).

[4]Marjorie Grice-Hutchinson, The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary Theory, 1544–1605 (Oxford: Clarendon Press, 1952).

[5]Ibid., p. 27.

[6]N.T.: No texto original os anos são (1325-1383).

[7]Luis Saravía de la Calle, Instrucción de mercaderes (1544), em Grice-Hutchinson, School of Salamanca, pp. 79–82.

[8]Ibid., p. 48.

[9]Francisco García, Tratado utilisimo y muy general de todos los contractos (1583), em Grice-Hutchinson, School of Salamanca, pp. 104–05.

[10]Martín de Azpilcueta Navarro, Comentario resolutorio de usuras (1556), em Grice-Hutchinson, School of Salamanca, pp. 94–95

[11]Domingo de Soto, De Justitia et Jure (1553), em Grice-Hutchinson, School of Salamanca, p. 55.

[12]Luís de Molina, Disputationes de Contractibus (1601), em Grice-Hutchinson, School of Salamanca, pp. 113–14; Tomás de Mercado, Tratos y contratos de mercaderes (1569), ibid., pp. 57–58 e Domingo de Bañez, De Justitia et Jure (1594), ibid., pp. 96–103.

[13]Raymond de Roover, “Scholastic Economics: Survival and Lasting Influence from the Sixteenth Century to Adam Smith”, Quarterly Journal of Economics 69 (May 1955): 161–90; reimpresso em de Roover, Business, Banking, and Economic Thought (Chicago: University of Chicago Press, 1974), pp.306–35.

[14]Ibid., p. 309.

[15]Raymond de Roover“, Joseph A. Schumpeter and Scholastic Economics”, Kyklos 10 (1957): 128. De Roover rastreou o conceito de benefício mútuo como exibido na troca a Aquino, que escreveu que “comprar e vender parecem ter sido instituídos pela vantagem mútua de ambas partes, uma vez que um precisa de algo que pertence ao outro, e ao contrário” (ibid.).

[16]De Roover, Business, Banking, and Economic Thought, pp. 312–14. Em outro lugar, de Roover apontou que os scotistas eram uma pequena minoria entre os escolásticos medievais e tardios, enquanto os escolásticos discutidos aqui estavam no mainstream da tradição tomista.

[17]Raymond de Roover, “The Concept of the Just Price: Theory and Economic Policy”, Journal of Economic History 18 (December 1958): 422–23.

[18]Ibid., p. 424.

[19]Ibid., p. 426.

[20]David Herlihy, “The Concept of the Just Price: Discussion”, Journal of Economic History 18 (December 1958): 437

[21]John W. Baldwin, “The Medieval Theories of the Just Price”, Transactions of the American Philosophical Society (Philadelphia: July 1959); veja também a crítica a Baldwin por A.R. Bridbury, Economic History Review 12 (April 1960): 512–14.

[22]Em particular, os teólogos no grande centro da Universidade de Paris no início do século XIII: Alexandre de Hales e o professor de Aquino, Alberto Magno (ibid., p. 71). Baldwin ainda apontou que a abordagem teológica de tais questões práticas como o justo preço na Idade Média, apenas começou com o desenvolvimento de centros universitários no final do século XII (ibid., p. 9).

[23]Raymond de Roover, “The Scholastic Attitude toward Trade and Entrepreneurship”, Explorations in Entrepreneurial History 2 (1963): 76–87; reimpresso em de Roover, Business, Banking, and Economic Thought, pp.336–45.

[24]De Roover, aqui e em seus outros escritos, apontou a grande deficiência na análise escolástica do mercado: a crença de que qualquer juros sobre um empréstimo puro (um mutuum) constitui o pecado de usura. A razão é que, enquanto os escolásticos entendiam as funções econômicas de risco e de custo de oportunidade, eles nunca chegaram ao conceito de preferência temporal. Sobre os escolásticos e a usura, veja o trabalho magistral de John T. Noonan, Jr., The Scholastic Analysis of Usury (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1957); veja também Raymond de Roover, “The Scholastics, Usury, and Foreign Exchange”, Business History Review 4 (1967): 257-71.

[25]Raymond de Roover, San Bernardino of Siena and Sant’ Antonino of Florence: The Two Great Economic Thinkers of the Middle Ages (Boston: Kress Library of Business and Economics, 1967).

[26]Ibid., p. 17.

[27]Sobre a originalidade de Olivi veja ibid., p 19.

[28]Ibid., p. 20.

[29]Ibid., pp. 23-24.

[30]Sobre a influência posteriores dos escolásticos, veja Schumpeter, History of Economic Analysis, pp. 94–106; Grice-Hutchinson, School of Salamanca, pp. 59–78; de Roover, Business, Banking, and Economic Thought, pp. 330–35; e de Roover, “Joseph A. Schumpeter and Scholastic Economics”, pp. 128–29.

[31]Emil Kauder, “Genesis of the Marginal Utility Theory: From Aristotle to the End of the Eighteenth Century”, Economic Journal 63 (Setembro de 1953): 638–50.

[32]Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 300.

[33]Kauder, “Genesis of the Marginal Utility Theory,” p. 645.

[34]Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 249, see also ibid., pp. 259–61, 332–33.

[35]Emil Kauder, “Genesis of the Marginal Utility Theory”, p. 647. Kauder e Schumpeter também notaram o matemático francês do início do século XVIII, Daniel Bernoulli (1738), que fora da corrente de pensamento econômica desenvolveu uma versão matemática da utilidade marginal decrescente do dinheiro (ibid., pp. 647-50; Schumpeter, History of Economic Analysis, pp. 302-05).

[36]Emil Kauder, “The Retarded Acceptance of the Marginal Utility Theory”, Quarterly Journal of Economics 67 (November 1953): 564–75.

[37]Ibid., p. 569.

[38]Ibid., pp. 570-71. Esses dois artigos estão essencialmente reimpressos em Emil Kaude, A History of Marginal Utility Theory (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1965), pp. 3-29.

[39]Emil Kauder, “Intellectual and Political Roots of the Older Austrian School”, Zeitschrift für Nationalökonomie 17 (Dezembro de 1957): 411–25.

[40]Ibid., p. 417.

[41]Ibid., p. 418.

[42]Ibid.

[43]Ibid., p. 420; veja também Kauder, History of Marginal Utility, pp. 90–100. Sobre Menger como aristotélico, também veja Terence W. Hutchinson, “Some Themes from Investigations into Method”, em Carl Menger and the Austrian School of Economics, J.R. Hicks e Wilhelm Weber, eds. (Oxford: Clarendon Press, 1973), pp. 17–20.

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