Sobre Capitalismo e os Fatos Históricos

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Introdução

 
Recentemente, a youtuber de opinião feminina Suavemente Comentado publicou um vídeo, no qual falava sobre capitalismo e defendia uma série de teses baseadas na análise de fatos históricos, a análise foi um tanto descompromissada, mas os preconceitos e a absolutização da pespectiva enunciada pela youtuber é algo compartilhado por várias pessoas. E o desconhecimento da perspectiva austríaca é algo que possui muito a agregar a discussão.

Em um determinado momento da formação humana, passamos a ter uma estrutura de linguagem complexa, uma linguagem sólida em que nós possuíamos termos não apenas para dar nomes a instrumentos, mas também a um conjunto abstrativo maior do que instrumentos, isto é, a um contexto.

Vale a pena começar aqui que um termo pode ter diversas acepções, diversos sentidos, qualquer definição que damos é sempre uma definição contextual. Estamos inseridos num contexto, isto é, num horizonte interpretativo, ao definirmos palavras, estamos inseridos num contexto no qual sabemos como nomear uma coisa, pois coisas podem assumir diferentes nomes pelos quais os membros da comunidade combinam entre si.

Desse modo, quando os sentidos são aferidos, começamos a enxergar de modo mais significativo a possibilidade de um contexto (Wittgenstein), isso é uma necessidade.

Se a grande questão é que estamos inseridos em contextos, e esses contextos precisam se referir a realidade, uma das consequências naturais da existência de contextos é justamente o fato de que não controlamos nosso contexto. Há uma distância minha e sua em relação ao contexto. Os elementos do contexto são maiores que os elementos eles mesmos.

Existem aqueles elementos que chamamos de elementos de consciência, que são elementos diretos, que é justamente aquilo do que você faz parte e descreve de forma ativa, é um pensamento em sua forma explícita. E existem aqueles elementos, aqueles pensamentos que você não fez ativamente, mas que estão inseridos no elemento de consciência, que é o elemento do horizonte histórico prévio dentro do qual você se situa, ou melhor, seu contexto, que te ajuda a interpretar o sentido de uma determinada palavra.

Uma das consequências disso, isto é, desse contexto e desse contexto ser maior que você, é a de que todas as realidades sociais que descrevêssemos seriam realidades que estariam postas em um sentido material. Para explicar melhor: analisamos nossa realidade material também pelo contexto, digamos, por exemplo, que fossemos colocados num deserto, e tenhamos vivido toda nossa vida numa situação de abundância, e quando vamos a um deserto nós pensamos “aqui é terrível!”, “esse calor de 40 graus é insuportável!”, “estou com muita sede!”, “esses insetos não param de me picar!”, e agora pensemos na situação de uma outra pessoa que tivesse vivido a vida toda no deserto e, ao invés de estar a 48 graus como de costume, está 40 graus, e ela está, ao contrário da pessoa que vivia em abundância, aliviada. Ela está feliz por finalmente o calor ter diminuído um pouco, está feliz por ter insetos, pois fazia alguns dias que ela não comia. Esses horizontes interpretativos fazem com que enxerguemos e analisemos de uma maneira diversa a própria possibilidade material e as condições materiais atuais nossas e de outros indivíduos.

A Crítica Histórica ao Capitalismo

E o que isso tem a ver com a definição de capitalismo? Tudo. Uma das críticas marxistas mais clássicas é a de que teria havido um grande contorno de um contexto negativo para uma determinada classe, a classe dos trabalhadores, e essa classe, em virtude de um dado contexto, teria aceitado e aceita até hoje coisas que seriam absurdas por si só; isto é, condições que um indivíduo que refletisse por si só não aceitaria. Então, o que é dito é: em virtude de estarmos inseridos numa estrutura de consumo, por estarmos inseridos numa estrutura de necessidade material de sermos alimentados, vestidos, termos moradia, etc., estamos dispostos a aceitar todo tipo de condição material em nome de uma estrutura de capital. Sendo o maior exemplo histórico disso o famoso Cercamento dos Campos.

Na situação do Cercamento dos Campos, no caso antes dele, tinha-se meios de produção individuais, o campesinato possui meios de produção individuais, mas numa certa hora o Estado, a Coroa Inglesa para ser mais específico, decretou que os possuidores de meios de produção individuais em determinadas terras não os possuíam mais, e delegou a terra e os meios de produção nela para propriedade de pessoa X, Y e Z. O Estado determinou de quem era a propriedade, sem um mecanismo efetivo de apropriação da terra. O que houve foi pura e simplesmente o uso da força para retirar as ferramentas e os meios de produção e de subsistência, e os que foram expropriados pelo Estado, desesperados sem recursos, para as grandes cidades, para os burgos.

Dentro disso, infere-se: as pessoas foram inseridas no mecanismo industrial em condições materiais pobres. Elas foram inseridas nas indústrias com fome. É como se as pessoas colocadas nesse mecanismo industrial não tivessem nenhum histórico de família, um histórico de indivíduo no qual ela mesma possa definir o seu bem ou seu mal, elas estão inseridas num sistema opressor, numa superestrutura que fará com que os indivíduos não possuam seus meios e tenham de aceitar qualquer coisa em virtude do contexto no qual estão inseridas.

A premissa central é: como indivíduos plenos, essas pessoas não aceitariam as condições das fábricas (ou enquanto indivíduos tal como eles eram antes no campo, eles não aceitariam as condições das fábricas) Era claro, obviamente, que eles não aceitariam as condições das fábricas, pois quando eles possuíam os meios de produção eles ganhavam mais do que ganhavam nas fábricas, em condições muitas vezes melhores, etc., fora o fato de terem sido expropriados forçosamente de seus meios de produção. É fato que no processo do capitalismo de fato houve esse processo. É um fato que, na história, o mercado foi sustentado por esse tipo de atividade, não foi uma escolha do mercado, foi a escolha de alguns grandes proprietários de terras que expulsavam os pequenos proprietários aos burgos. Os burgueses, donos das fábricas e, anteriormente, das manufaturas, portanto, foram favorecidos como uma consequência da expulsão dos campesinos de suas terras, mas o que era visado, antes de tudo, era o enriquecimento da aristocracia e não da burguesia.

A perspectiva austríaca

Ao se depararem com a crítica marxista, a de que em virtude de um processo histórico no qual o Estado interferiu tivemos um elemento contextual de indivíduos que passaram a ser explorados, pois não contribuíram para esse fato, senão que foram socialmente determinados pelo Estado. A situação que foi criada foi essa: o Estado criou condições de pobreza nas quais os indivíduos tiveram de trabalhar pelo que numa situação ordinária não trabalhariam. Veja que os trabalhadores aceitaram trabalhar, mas não foi uma plena aceitação, mas sim uma aceitação ou escolha tendenciosa.

Analisando esse fato histórico do cercamento dos campos, disseram os austríacos, constatou-se que aquilo não era o mercado. Historicamente, o que houve foi um ente, o Estado, interferindo de forma artificial nas operações humanas, e o Estado não é um ente natural, ele não é propriamente uma instituição, ele é artificial, ele não surgiu de um conjunto de interações implícitas dos indivíduos, mas sim surgiu artificialmente para representar o conjunto de interesses de uma minoria organizada, este, senhores, é o Estado.[1]

A própria ideia de capital (raíz de “capitalismo”) se vê muito anterior à Revolução Industrial (sécs. XVI-XVIII) e também da época do crescimento desenfreado do poder estatal que levou ao absolutismo e na qual se desenvolveu o mercantilismo, ela foi conceitualizada inicialmente por Pierre de Jean Olivi (1248-1298), um frade franciscano:

Olivi foi o primeiro a trazer para o pensamento econômico o conceito de capital (capitale) como um fundo de dinheiro investido em um empreendimento comercial. O termo “capital” apareceu em numerosos registros comerciais desde meados do século XII, mas essa foi a primeira vez que foi conceitualizado.[2]

Desse modo, em virtude desse tipo de escolha enviesada, os austríacos veem isso e não veem o mercado, mas o que é, afinal, o mercado? O mercado é algo que ocorreu antes disso, historicamente antes disso, nos burgos, havia um mercado em atividade, que ocorria de forma voluntária. Historicamente* isso, para os austríacos, é capitalismo, e, historicamente, a definição austríaca de mercado precede a marxista. Pois foi necessário antes haver acumulação de capital para haver as manufaturas e as fábricas, historicamente, a definição austríaca, portanto, seria melhor. Capitalismo é trocas voluntárias, o mercado é feito de trocas voluntárias, estas que, por si, não possuem necessariamente um mecanismo de escolha enviesada.

A Raíz do Cercamento dos Campos: A Política Mercantilista

Os termos “capitalismo” e “produção capitalista” […] só precisam ser pronunciados para evocar uma imagem da exploração implacável de escravos assalariados pelos ricos impiedosos. Quase nunca são usados, exceto para sugerir uma doença no corpo político. Do ponto de vista científico, são tão obscuros e ambíguos que não têm valor algum. Seus usuários concordam apenas nisso, que indicam as características do sistema econômico moderno. Mas, em que consistem essas características é sempre uma questão disputada.[3] (ênfase adicionada)

A tarefa agora é a de desambiguar “capitalismo” em sua acepção histórica, e de como que a gênese do sistema de trocas voluntárias — que implícita e necessariamente, já possui a noção de propriedade privada e de busca por satisfação de necessidades[4] — a) não necessita de um estado ou de intervenções do Estado e b) O Estado funcionou mais como um empecilho do que um propulsor.

O Estado aplica a doutrina mercantilista: dirige a economia no interesse de todos. O país deve tornar-se auto-suficiente ao máximo: comprar o menos possível e vender a maior quantidade que puder. Uma balança comercial favorável […] O Estado age por meio de suas leis, seus regulamentos e sua política. […] O Estado pratica a guerra ou a paz, segundo as necessidades do comércio; as vitórias sobre a França constituem outros tantos triunfos comerciais a tiro de canhão.[5]

Dentro da questão do mercantilismo, vê-se como fator significativo a intervenção do Estado, a concessão de monopólios e a regulação frequente do Estado na economia, além de noções puramente teóricas como a de a economia ser um jogo de soma-zero, ou a ideologia do absolutismo real. Concentremo-nos na questão dos monopólios para então retomar a questão do mercantilismo considerado em si mesmo.

Sobre a concessão de monopólios, a expansão comercial e o livre mercado

Muitos historiadores caíram sob a magia da interpretação dos historiadores econômicos alemães do final do século XIX (por exemplo, Schmoller, Bucher, Ehrenberg): de que o desenvolvimento de um estado-nação forte e centralizado era requisito para o desenvolvimento do capitalismo no início do período moderno. Essa tese não somente é refutada pelo florescimento do capitalismo comercial na Idade Média nas cidades locais e não centralizadas da Itália, a Liga Hanseática, e as feiras de Champagne. É também refutada pelo incrível crescimento da economia capitalista na livre Antuérpia localizada na Holanda nos séculos XVI e XVII.[6]

A expansão comercial é o nome que se dá convencionalmente aos esforços das coroas europeias pela descoberta de novas rotas comerciais para acessar as especiarias, esse período de grande expansão e que resultou na descoberta de novos continentes, começou por volta da segunda metade do século XV, com a consolidação do poder turco-otomano na região que compreende hoje diversos países do Oriente Médio:

Império Otomano por volta de 1481 (imagem original aqui)

Império Otomano por volta de 1520 (imagem original aqui)

Com a expansão do Império Otomano, houve uma grande dificultação da obtenção de especiarias, tanto com o encarecimento delas ocorrido na época quanto por impedimento físico de fato, as relações do ocidente europeu com o oriente, desde a ascensão do islã nunca foram fáceis. Ademais, motivos econômicos aqui não podem ser tomados como os únicos que motivaram as grandes navegações, mas também motivos políticos e religiosos, além das contingências às quais cada nação estava sujeita. As motivações dos soberanos portugueses, por exemplo, envolveram noções políticas e religiosas, algumas míticas, ao se definir tudo em questão de termos econômicos, toda a cultura se esvai, e a realidade passa a ser caricatura:

O Príncipe Henrique, o Navegador (1394-1460), desejou explorar as costas da África ao sul do Marrocos, para descobrir um reino cristão fabuloso, o do Prestes João, e surpreender pela retaguarda os muçulmanos do Marrocos. Era um prolongamento das cruzadas. Dom Henrique instituiu em Sagres […] uma verdadeira escola de navegação, para onde atraiu marinheiros genoveses e florentinos e astrônomos alemães […] A ideia de surpreender o islã pela retaguarda também não foi estranha à entrada em cena dos espanhóis […] Enfim, a todos animava o ardor apostólico, a vontade de converter à “verdadeira religião” os povos longínquos e desconhecidos.[7]

Outro motivo econômico, para além da expansão turca que encareceu as especiarias, foi uma relativa escassez de metais para cunhagem, o que também motivou uma série de narrativas fantásticas sobre reinos na África abundantes em ouro, e nisso envolveu-se todo um elemento de mitos e moveu diversos ímpetos por navegações, tanto por aqueles que eram apaixonados pela navegação quanto pelos aventureiros querendo ganhar sua vida em busca de novas terras, e para isso buscavam apoio financeiro das coroas e banqueiros italianos.

Isso de modo nenhum quer dizer que tudo o que tenha havido na Europa historicamente no que na historiografia convencional se chama de Idade Moderna tenha sido somente mercantilismo — o mercantilismo, como supracitado, é justamente um sistema que reside na intervenção estatal nos mercados, e na manipulação ativa dos estados sobre os mercados — o sistema econômico-político na Europa, considerando a heterogeneidade do continente europeu, seja em fatores geográficos ou humanos. Não se pode dizer, portanto, que o capitalismo deixou de existir — pode-se no máximo dizer que onde há mercantilismo não há capitalismo em seu modo propriamente dito –, “o capitalismo moderno, em qualquer sentido significativo, começa não com a revolução industrial dos séculos XVIII e XIX, mas, como vimos, na idade média e particularmente nas cidades-estado italianas”:

Exemplos de racionalidade capitalista, como método de partida-dobrada e variadas técnicas financeiras, também começam nessas cidades-estado italianas. […] De fato, é no livro de contabilidade de Florentina de 1253 que a clássica fórmula pró-capitalista é encontrada pela primeira vez: “em nome de Deus e do lucro”.[8]

Seguindo quase o mesmo ritmo de Rothbard, o historiador francês do século XX Maurice Crouzet nos relata:

Com efeito, o capitalismo comercial fundado sobre a letra de câmbio foi criado após o final do século XIII, na Itália, em Florença, Gênova, Veneza, e os processos comerciais, coparticipação, comandita, partidas dobradas, letra de câmbio, essa última sobretudo nesse momento instrumento de crédito e de troca internacional.[9]

Isso tudo sem a presença ativa de um estado, e muito menos daquilo que é chamado de Estado Moderno, que é um fenômeno propriamente recente.[10] As legislações dos reis medievais, como relata Rothbard, serviu muito mais como uma obstrução do que um propulsor do crescimento do comércio e do capitalismo:

A grande depressão secular do século XIV e da metade do século XV começou a dar caminho para a recuperação econômica na segunda metade do século XV. O comércio terrestre do Mediterrâneo ao norte da Europa, interrompido pelas depredações do rei francês contra as feiras de Champagne, foi cada vez mais substituído pelo comércio marítimo na costa Atlântica. Embarcações agora atravessavam o Estreito de Gibraltar e subiam a costa, navegando cada vez mais para Antuérpia e fazendo daquela cidade o grande centro comercial do norte da Europa durante o século XVI. O comércio se afastou das restrições e da alta tributação da Bruges flamenga, e moveu-se e expandiu-se para o livre mercado da Antuérpia, onde negócios e trocas poderiam florescer livres de legislação obstrutiva, privilégios e altos impostos.[11]

Em períodos ainda antecedentes a expansão comercial, vê-se também o estado como um fator importante na causação de crises:

O foco na devastação causada pelos surtos de Peste Negra em meados do século XIV é parcialmente correto, porém superficial, pois esses surtos foram causados, em parte, por um colapso econômico e uma queda do nível de vida que começou no início do século. As causas da grande depressão da Europa Ocidental podem ser resumidas numa frase dura: o recém-imposto domínio do estado. Durante a síntese medieval da alta Idade Média houve um equilíbrio entre o poder da igreja e do estado, com a Igreja sendo um pouco mais poderosa. No século XIV esse equilíbrio foi quebrado, e o estado-nação passou a dominar, quebrando o poder da Igreja, cobrando impostos, regulando, controlando e causando devastação através de guerras praticamente contínuas por mais de um século (a Guerra dos Cem Anos, de 1337 a 1453).

Em mais detalhe:

O primeiro e mais importante passo crítico na ascensão do poder do estado em detrimento da economia foi a destruição das Feiras de Champagne. Durante a alta Idade Média, as Feiras de Champagne eram o principal mercado para o comércio internacional, e o centro do comércio local e internacional. Essas feiras tinham sido cuidadosamente alimentadas por serem feitas como zonas francas, não tributadas ou não reguladas pelos reis ou nobres franceses, enquanto a justiça era aplicada de forma rápida e eficiente por tribunais concorrentes privados e de mercadores. As Feiras de Champagne atingiram seu ápice no século XIII, e providenciaram o centro para o comércio terrestre nos Alpes do Norte da Itália, trazendo bens de longe.

Em seguida, no início do século XIV, Filipe IV, O Belo, rei da França (1285-1314), passou a tributar, saquear e efetivamente destruir as vitais e importantes feiras de Champagne. Para financiar suas guerras dinásticas perpétuas, Filipe cobrava impostos sobre as vendas nas feiras de Champagne. Ele também destruiu o capital interno e as finanças através de repetidas contribuições obrigatórias sobre determinados grupos ou organizações que tinham dinheiro. Em 1308, ele destruiu a rica Ordem dos Templários, confiscando seus fundos para o tesouro real. Filipe então tornou a impor uma série de taxas incapacitantes e confiscos sobre os judeus e italianos do norte (“lombardos”), que eram proeminentes nas feiras em 1306, 1311, 1315, 1320 e 1321. Além disso, em guerra com os flamengos, Filipe quebrou o costume de longa data de que todos os mercadores eram bem-vindos nas feiras, e decretou a exclusão dos flamengos. O resultado dessas medidas foi o declínio rápido e permanente das feiras e rotas de comércio pelos Alpes. Desesperadamente, cidades-estados italianas começaram a reconstruir rotas comerciais e a navegar em torno do Estreito de Gibraltar para Bruges, que começou a florescer mesmo que o resto de Flandres estivesse em decadência.

Era especialmente fatídico que Felipe, o Belo, inaugurasse o sistema de tributação regular na França. Antes disso, não havia impostos regulares. Na Era Medieval, enquanto o rei deveria ser todo-poderoso na sua própria esfera, essa esfera estava restringida pela santidade da propriedade privada. O rei deveria ser um armado executor e defensor da lei, e suas receitas deveriam derivar de aluguéis em terras reais, dívidas feudais e portagens. Não havia nada que poderíamos chamar de tributação regular. Em uma emergência, como uma invasão ou uma cruzada, o príncipe, além de invocar o dever feudal de lutar em seu nome, poderia pedir a seus vassalos um subsídio; mas esse auxílio seria solicitado em vez de ordenado, e seria limitado a duração do período de emergência. As guerras perpétuas do século XIV e da primeira metade do século XV começaram na década de 1290, quando Felipe, O Belo, aproveitando-se da guerra do rei Eduardo I da Inglaterra com a Escócia e Gales, tomou a província da Gasconha da Inglaterra. Isso fomentou uma guerra contínua entre a Inglaterra e Flandres de um lado, e a França do outro, o que levou a uma desesperada necessidade de fundos, tanto para a Coroa Inglesa quanto para a Francesa.[12]

Como relatado, portanto, antecedente à grande expansão comercial dos séculos XV e XVI, o poder dos estados se mostrou muito mais como um empecilho do que como um propulsor e colaborador com uma economia de livre mercado, favoreceu mais seus próprios interesses e de seus privilegiados do que os interesses daqueles que desejam comercializar de fato, daqueles que desejam de fato trocar. O Estado, em sua própria gênese, é esse mecanismo de coerção, artificial, compulsório, cujos membros impõem seus anseios sobre os outros, é uma organização propriamente anti-trocas, suas concessões de monopólios, pelo próprio termo, destroem concorrência, impedem a inovação e o livre empreendimento e satisfação de demandas de compradores através do ofertamento de produtos a serem comprados, buscando satisfazer tanto uma demanda por outros produtos ou dinheiro por parte do comprador (J.B. Say), quanto dos próprios compradores, tudo isso visando seu interesse próprio (Adam Smith).[13]

As Concessões de Monopólio

Dedicarei essa pequena parte em especial para se falar sobre a expansão comercial ocorrida na Holanda no século XVIII: a expansão comercial foi acompanhada de expansão colonial, motivada pelos recém formados estados-nação que financiavam expedições rumo a terras distantes para chegarem à Índia, conforme novas rotas para a Índia eram descobertas, surgiam as Companhias das Índias Orientais, que eram concessões de privilégios de monopólios a companhias antes privadas, essas companhias eram também chamadas de companhias majestáticas, em contraste aos empreendimentos mercantis de navegação que havia anteriormente na Europa com os mercadores italianos por exemplo. A Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) era uma dessas companhias majestáticas, formada nos turbulentos Países Baixos, que só se unificaram pelo final do século XVII, até então o que havia era uma série de províncias independentes ou sujeitas a reinos maiores como o da Borgonha, e, como foi pouco antes de sua independência e unificação, da Espanha.

Mapa dos diversos domínios independentes que compunham a região dos Países Baixos (imagem original aqui)

Com os Países Baixos unificados, foi formada uma federação de várias províncias, a forma de governo dessa região era de estados-gerais, uma assembleia geral formada por dois “partidos”, os orangistas e os republicanos, sob domínio dos republicanos. Os orangistas, calvinistas tradicionais, eram orientados ao mercantilismo, defendiam políticas bélicas e a monarquia da dinastia Orange. Os republicanos eram arminianos, e defendiam abertura comercial, uma maior independência das províncias. Sob a regra dos republicanos, no século XVII, “a questão se pôs de modo que o país mais próspero na Europa que também era o mais livre — em economia, liberdades civis, numa política descentralizada e numa abstenção de aventuras imperiais — era a Holanda protestante”.[14],[15]

Os mercadores holandeses desejavam paz para findar a ameaça de ditadura militar e o fardo dos impostos, e para ganharem acesso aos mercados mundiais através de negociações livres e pacíficas. Esses mercadores formaram a base do partido Republicano, defendendo princípios liberais de paz, livres negociações, liberdade, e, em particular, a manutenção da original confederação holandesa de cidades e províncias. Nessa confederação, cada nível de poder governamental era estritamente limitado pela aplicação de um princípio virtual de unanimidade.

[…] A oposição às negociações de paz […] era centralizada no Partido Orange, composto amplamente da pequena nobreza dependente de suas lucrativas e poderosas posições militares e cujo líder era o Príncipe de Orange, o comandante militar dos Países Baixos. O Partido Orange visava grandes poderes para o governo central, um poderoso exército permanente, e, finalmente, a substituição da confederação republicana pela monarquia de Orange.[16]

Desde o fim da guerra contra a Espanha, durante a regra dos republicanos, diversos mercadores independentes frequentaram, em seus pequenos navios, os mais diversos mercados europeus, ofertando principalmente tecidos, não havia até então monopólio de comércio na Holanda, e o que havia em Antuérpia especialmente era um rico centro comercial internacional, onde indivíduos das mais diversas nacionalidades negociavam pacificamente, sem o fardo dos impostos.

Entre 1613 e 1614, diversos grupos de mercadores holandeses se moviam para a América, pois lá havia grande demanda por tecidos, em 1614, treze mercadores de Amsterdã se juntaram e tentaram assegurar um monopólio dentro das províncias da Holanda e da Frísia um monopólio de todas as negociações durante seis expedições. Pouco depois disso, eles formaram a New Netherland Company e obtiveram dos estados-gerais, apoiados pelos orangistas, um monopólio de três anos de todo o comércio com a América na área entre a Nova França no norte e o Rio Delaware.

Em 1618, a New Netherland Company tentou renovar seu monopólio, mas a fervorosa oposição pelos mercadores concorrentes que foram excluídos com o monopólio a impediu de renovar seu monopólio, enfim o comércio com as Américas fora aberto de novo.

Todavia, a essa altura do campeonato, os orangistas já eram maioria nos estados-gerais, e, utilizando-se de suas desavenças teológicas com os republicanos e sua maioria nos estados-gerais (baseado em seu controle das províncias rurais calvinistas), tentaram empreender um golpe e derrubar a constituição. Eles haviam convocado um sínodo da Igreja Holandesa Reformada, e, quando o sínodo condenou e ordenou a perseguição aos arminianos, o estado da Holanda não aprovou essa perseguição e, a esse ponto, o Príncipe de Orange e seu exército atacaram a província de Holanda e prenderam vários líderes republicanos.

Império Colonial Neerlandês por volta do século XVII. Em verde claro são as posses Companhia Holandesa das Índias Orientais, e as em verde escuro são da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. (Imagem original aqui).

Com a hegemonia dos orangistas por volta de 1621, foi criada a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, uma criação puramente da monarquia e dedicada a estabelecer colônias na América. A companhia estava sob controle dos orangistas, e visava pilhar e conquistar as colônias portuguesas e espanholas, bem como monopolizar o comércio de escravos. Nessa data também foi concedido à Companhia Holandesa das Índias Orientais um monopólio de cerca de 21 anos sobre o comércio de especiarias com a Índia.

Vale ressaltar que a VOC (sigla em neerlandês para Companhia Holandesa das Índias Orientais), antes de a ela ser concedido um monopólio, era uma organização de mercadores holandeses independentes, assim como a New  Netherland Company.

A VOC é muitas vezes utilizada como exemplo de como o “capitalismo mata”, e de como a expansão do capitalismo também teria precisado da ação estatal para ter sucesso, assim como se utilizar de aparatos coercitivos e de dominação de povos para conseguir ter sucesso, isso, como foi mostrado, é algo falso. Essa falsidade é demonstrada a partir dos fatos da história aqui enunciados: a VOC e a WGC (sigla em neerlandês para Companhia Holandesa das Índias Ocidentais) tiveram, em sua expansão, um monopólio concedido pelo estado holandês do comércio de diversos produtos e com diversas regiões, e a elas foi concedido uma série de privilégios, políticas anticoncorrência, antipropriedade e, portanto, prejudiciais a liberdade de negociações e do livre mercado. A liberdade de mercado, como já foi notado, não somente é hoje, mas foi prejudicada pela intervenção do estado.

O Mercantilismo Considerado em si mesmo

Em sua História do Pensamento Econômico, Rothbard descreve o mercantilismo como o aspecto econômico do absolutismo, este que emergira vitorioso por toda a Europa. “[…] um rei (ou, no caso das cidades-estado italianas, algum príncipe menor ou governante) não consegue governar tudo por si só”. Ele precisa da ajuda de uma burocracia e através dela governar. Este é um sistema criado através de uma série de aliança dos reis com os nobres restantes e vários mercadores de larga escala (veja que, logicamente, para existir mercadores em conluio com um rei deveria antes haver um mercado):

O “mercantilismo” é o nome dado pelos historiadores do final do século XIX ao sistema político econômico do estado absoluto de aproximadamente do século XVI ao século XVIII. O mercantilismo foi chamado por vários historiadores ou observadores de um “sistema de Poder ou de consolidação-do-estado” (Eli Heckscher), um sistema de privilégios estatais sistematizados, particularmente sobre restringir importações ou subsidiar exportações (Adam Smith), ou um conjunto defeituoso de teorias econômicas, incluindo protecionismo e a alegada necessidade de acumular ouro e prata em um país. De fato, o mercantilismo era todas essas coisas; era um sistema abrangente de construção-do-estado, de privilégio de estado e o que poderia ser chamado de “capitalismo de monopólio estatal”.[17]

Agora a instrumentalização do mercado feita pelo Estado recebe um nome: capitalismo de monopólio estatal, pensemos objetivamente, os monopólios facilitam que trocas? O termo “monopólio” se aplica propriamente somente a garantias de privilégios governamentais, sejam elas diretas ou indiretas, a um só empreendimento (no caso de mais de um chamamos isso de oligopólio), e qualquer um que ouse competir com esse monopólio entrando no mesmo ramo será barrado pela violência.[18] Monopólios e oligopólios, portanto, restringem a liberdade comercial, e é justamente esse um dos motivos pelos quais Frédéric Bastiat, o mais proeminente liberal francês, repudiava as políticas monopolistas e protecionistas e as comparava com o comunismo:

[…] Em primeiro lugar, o que queremos dizer com comunismo? Existem várias maneiras de alcançar a comunidade de bens, ou pelo menos tentar de alcançá-la. […] acredito que todos eles podem cair em três categorias gerais, apenas uma das quais, em minha opinião, oferece perigos reais. […]

Primeiro, dois ou mais homens podem se imaginar combinando seu trabalho e suas vidas, desde que não busquem perturbar a segurança, restringir a liberdade ou usurpar a propriedade de terceiros, direta ou indiretamente. Se fizerem o mal, farão somente a si mesmos.
Outra forma de comunismo, e sem dúvida a mais brutal, é esta: fazer uma massa de todos os bens e riquezas existentes e compartilhá- los como iguais. A espoliação se torna a regra dominante e universal. É a destruição não só da propriedade, mas também do trabalho e do próprio motivo que influencia o homem a trabalhar. Este comunismo é tão violento, tão absurdo, tão monstruoso, que na verdade não posso acreditar que seja perigoso. Isso é aquilo que eu disse há algum tempo, diante de uma grande assembleia de eleitores, principalmente das classes sofredoras. Uma explosão de murmúrios saudou minhas palavras
[…] não, o comunismo não é perigoso quando se mostra em sua forma mais ingênua, de pilhagem pura e simples; não é perigoso, pois é aterrorizante.
Por fim, o comunismo poder assumir uma terceira forma:
Dar ao Estado a responsabilidade de equilibrar os lucros e as fortunas, tirando de alguns, sem consentimento, para dar a outros, sem merecimento. Encarregar o Estado de realizar os trabalhos de nivelamento por meio de espoliação. Certamente isso é comunismo.
Os procedimentos empregados pelo Estado, servindo essa finalidade, se tornam não mais que belos nomes e, no fim, nada fazem. Que busque sua realização por meios diretos ou indiretos, por restrição ou por impostos, por tarifas ou pelo direito ao trabalho; que o coloque sob a invocação da igualdade, da solidariedade ou da fraternidade; isso não muda a natureza das coisas. Roubo é roubo, não importa se é feito com regularidade, ordem, sistematicidade e autorização legislativa. Acrescento que é agora, em nossa época, que existe o verdadeiro comunismo perigoso. Por que? Porque é sob a atual forma que ele assume que nós o vemos, sem cessar, quase tudo invadir.[19]

Eis o porquê de não se chamar o mercantilismo simplesmente de “capitalismo”, mas sim de adicionar a ele uma série de diferenças específicas em relação a outros sistemas, e como que a intervenção do estado é algo muito mais correlato a uma repudiação do capitalismo do que de um fortalecimento do mesmo, tendo sido igualado ao comunismo também por outros autores além de Bastiat, como, por exemplo, Ludwig von Mises, quase 100 anos depois de Bastiat:

Muitos defensores do intervencionismo ficam perplexos quando alguém lhes diz que, ao recomendar o intervencionismo, eles próprios estão promovendo tendências antidemocráticas e ditatoriais e o estabelecimento do socialismo totalitário. Eles protestam que são crentes sinceros e se opõem à tirania e ao socialismo. O que eles visam é apenas a melhoria das condições dos pobres. Eles dizem que são movidos por considerações de justiça social e favorecem uma distribuição de renda mais justa, precisamente porque pretendem preservar o capitalismo e seu corolário político ou superestrutura, a saber, o governo democrático.
O que essas pessoas não percebem é que as várias medidas que sugerem não são capazes de produzir os resultados benéficos almejados. Pelo contrário, elas produzem um estado de coisas que, do ponto de vista de seus defensores, é pior do que o estado anterior que eles pretendiam alterar. Se o governo, diante do fracasso de sua primeira intervenção, não está preparado para desfazer sua interferência no mercado e retornar a uma economia livre, precisa adicionar à sua primeira medida cada vez mais regulamentações e restrições. Prosseguindo passo a passo nesse caminho, finalmente chega-se a um ponto em que toda a liberdade econômica dos indivíduos desapareceu. Então surge o socialismo de padrão alemão, a Zwangswirtschaft dos nazistas.[20]

Notavelmente, embora esta última declaração de Mises no contexto no qual aqui a utilizo possa parecer anacrônica, ela seria tão anacrônica quanto a daqueles que buscam definir o capitalismo a partir do fenômeno econômico do mercantilismo, na medida em que os elementos mais primários, a existência de trocas (não confundir com escambo!) e, portanto, de propriedade privada, são historicamente anteriores ao mercantilismo.

Entrando mais a fundo: propriedade, trocas, e o Estado

Mas, e a questão da propriedade privada? Ela não precisaria do Estado, isto é, de um monopólio da coerção em um dado território, para se manter? Essas questões podem já estar implicitamente respondidas na análise aqui feita, ou pelo menos algumas justificativas para a propriedade ter de ser manutenida pelo Estado.

Estabelecer essas noções é, antes de tudo, algo essencial para se entender a história de um ponto de vista austríaco, ao nos depararmos com a crítica marxista, têm-se por trás (e isso não só por trás da abordagem marxista, mas de qualquer leitura da história) um horizonte interpretativo dentro do qual esse fato histórico entra ao tratarmos dele, como foi dito anteriormente (introdução).

Propriedade privada e trocas

A propriedade privada, na acepção dos diversos historiadores, acaba por ser reduzida muitas vezes a uma noção puramente jurídica, como um direito de controle exclusivo sobre algo, essa noção não é errônea, mas reduzir a propriedade somente a isso é algo contestável, e essa pressuposição da propriedade como sendo um conceito puramente jurídico é utilizada justamente para se estabelecer uma teoria de uma gênese da propriedade privada como sendo um desenvolvimento recente, advindo com a Revolução Industrial segundo diversos moldes e se desenvolvendo mais ou menos simultaneamente com o processo do cercamento dos campos: a propriedade privada teria sido aquilo que a coroa alegou que os grandes nobres tinham sobre as terras das quais o campesinato havia sido expropriado.

Uma das alternativas a esse problema é a de Mises, ao tratar da natureza da propriedade, que faz uma separação entre a noção sociológica de propriedade privada e a noção jurídica. “Considerada como uma categoria sociológica, a propriedade aparece como o poder de usar bens econômicos. O proprietário é aquele que dispõe de um bem econômico.”[21] Dentro dessa separação há dois conceitos dignos de nota: “bem” e “bem econômico”, um “bem”, de forma resumida, é toda coisa na qual é reconhecida um nexo causal dessa coisa com a satisfação da necessidade de um sujeito, e um “bem econômico” seria justamente um bem cuja disponibilidade em dados locais e em dadas condições é inferior à procura que se tem por tais bens, em economiquês: é um bem cuja oferta é menor que sua demanda,[22] e isso implica no que chamamos de escassez, e a escassez é algo que pode gerar conflitos: imagine que existam dois sujeitos, A e B, e um dado bem G, A deseja fazer X com G, e B deseja fazer Y com G, para resolver esse conflito de interesses, elenca Rothbard, há dois princípios de ação segundo os quais podemos resolver: seguimos ou o princípio hegemônico ou o princípio mercadológico.[23] Dentro do princípio hegemônico, o que há é a homogeneidade de uma das partes ou grupos dentro da sociedade, há uma imposição de vontades de um(ns) indivíduo(s) sobre outro(s), e a relação que se desenvolve a partir disso é denominada escravidão. Dentro do princípio mercadológico ou de cooperação, entretanto, o que há é justamente o respeito às vontades das partes envolvidas numa relação interpessoal, isso é, antes de tudo, uma interação pacífica entre indivíduos, que se traduz de modo mais palpável no que chamados de trocas, que surgem justamente pelo ímpeto de se adquirir bens econômicos que, ao serem dirigidos para a troca, são denominados mercadoria. Uma troca é justamente uma relação entre indivíduos que surge em virtude de um indivíduo desejar um bem alheio, é um modo de adquiri-lo por meio do oferecimento de outro bem, que, numa economia monetária, pode ser dinheiro (um bem que serve de meio de troca) ou, numa economia de escambo, algum outro bem que também seja desejável pela outra parte da troca.[24]

Aqui, então, temos toda uma conexão a que conceitos está atrelada a noção de propriedade: escassez (recursos limitados), satisfação de necessidades, relações interpessoais. A propriedade privada é, antes de tudo, condição necessária para a existência de quaisquer trocas, a solução seguindo o princípio mercadológico para se resolver o conflito enunciado no parágrafo anterior é justamente a propriedade privada, o reconhecimento mútuo por parte dos indivíduos de uma comunidade de que um bem econômico possui um dono:

Do ponto de vista sociológico e econômico, propriedade é ter os bens que os objetivos econômicos dos homens requerem. Este ter pode ser chamado de posse natural ou original, como é puramente uma relação física do homem aos bens, independente das relações sociais entre homens ou de uma ordem jurídica. O significado do conceito legal de propriedade repousa justamente nisso — no que diferencia o aspecto físico de ter e o aspecto legal de dever ter.[25]

O Estado

Os homens não vivem em harmonia perfeita uns com os outros. Assim, de novo e de novo, conflitos surgem. A gênese desses conflitos é pelo menos quase sempre a mesma: a escassez de bens. Eu quero fazer X com um dado bem G e você quer simultaneamente fazer Y com o mesmíssimo bem. Porque é impossível que você e eu façamos simultaneamente X e Y com G, você e eu precisamos entrar em conflito. Se uma superabundância de bens existisse, isto é, se, por exemplo, G estivesse disponível em oferta infinita, nosso conflito poderia ser evitado. Poderíamos nós dois simultaneamente fazermos “nossas coisas” com G. Mas muitos bens não existem em superabundância.

Ausente uma perfeita harmonia de todos os interesses humanos e dada a condição humana permanente de escassez, então, conflitos interpessoais são uma parte inescapável da vida humana e uma constante ameaça à paz.

Confrontado com conflitos que dizem respeito a bens escassos. mas também dotado da capacidade de se comunicar, de discutir e de argumentar uns com os outros, a humanidade tem sido, e sempre será, encarada com a questão de como é possível evitar esses conflitos e como pacificamente resolvê-los, esse é propriamente o objeto do que chamam de ciência da ética.

Assuma agora um grupo de pessoas conscientes da realidade dos conflitos interpessoais e em busca de um modo de sair desse apuro. E assuma que um grupo então proponha o seguinte como uma solução: em todo conflito, incluindo conflitos nos quais o próprio grupo está envolvido, os membros desse grupo têm a palavra última e final. Eles serão os juízes supremos sobre quem é dono do quê e quando e quem está certo ou errado em qualquer disputa que diz respeito a recursos escassos. Desse modo, todos os conflitos podem ser evitados e suavemente resolvidos.

Sob essa proposta, você precisa literalmente temer por sua vida e propriedade. Porque essa solução permitiria-lhes causar ou provocar um conflito com você e então decidir esse conflito em meu próprio favor. Sob esse tipo de regime você essencialmente desistiria de seu direito à vida e a propriedade ou até mesmo a qualquer pretensão de tal direito. Você tem direito à vida e a propriedade apenas na medida em que eu garanto tal direito, i.e., na medida em que eu decido deixar você viver e manter o que quer que você considere seu. Em última instância, somente os membros desse grupo têm direito à vida em sentido absoluto e somente os membros desse, em última instância, são donos de todos os bens.

Isso pode parecer maluco, mas essa é também a realidade, essa é a realidade do que de fato é o Estado, o Estado é, ou ao menos reivindica ser, o juiz supremo em todo caso de conflito. Não há apelo para além de seus vereditos, de suas constituições. Se você entrar em conflito com o Estado, com seus agentes, é o Estado e seus agentes que decidem quem está certo e quem está errado.

É notável aqui, com toda a série de eventos históricos narrados até agora, e com a descrição da essência de um Estado aqui dada, que ele seja naturalmente um aparato coercitivo, que expropria, colocar tal aparato como um protetor de propriedade, nas palavras de Hermann Hoppe, é uma contradição em termos, pois se está falando de um protetor expropriador de propriedade.[26] Sendo, antes de tudo, uma organização prejudicial ao mercado.

Conclusão: Capitalismo na História

O capitalismo, segundo o olhar dos economistas austríacos, é algo historicamente desenvolvido em conjunto com o desenvolvimento das civilizações: trocas voluntárias são feitas entre os indivíduos. Em todos os lugares na história em momentos onde houve civilização, houve propriedade, houve bens e houve trocas voluntárias, a sociedade é um desenvolvimento da vontade humana, de todos os processos interativos entre os seres humanos, segundo o princípio de cooperação. Não se abordou aqui a ampla gama de problemáticas econômicas que foram abordadas pelos gregos, nem as rotas comerciais da Antiguidade.[27] A história, antes de tudo, não é uma “marcha para cima”, um movimento puramente progressivo, retrocessos, progressos e estagnações ocorrem de forma simultânea ou não em diversas épocas, e em diversos locais, sendo o próprio estudo da história algo que com frequência precisa se atualizar. A história, na perspectiva austríaca é, tal como as relações humanas, dinâmica, com os indivíduos humanos lidando com a incerteza sobre o futuro, em meio ao dinamismo do tempo, as relações com outros indivíduos, buscando atingir seus anseios, sejam aqueles iniciais por sobrevivência, sejam aqueles que são sonhos mais distantes.

A diferenciação entre Estado e mercado é justamente essa, o mercado é formado antes de tudo por relações voluntárias entre os indivíduos, ele não é nenhuma instituição ou um “espírito” superior às pessoas que supostamente manipularia todos os aspectos de nossas, mas sim o nome que é dado a todo o conjunto de relações voluntárias e econômicas entre os indivíduos, e o Estado é um construto que representa o interesse de determinados indivíduos de determinados grupos, o Estado é uma instituição privilegiada na medida em que ela possui o monopólio da força em uma determinada região geográfica.

O Estado é precisamente isso, uma sistematização da coerção, o Estado não é uma instituição oriunda da simples cooperação, mas sim da imposição, da guerra, da hegemonia, e, historicamente e também em sua própria essência, não é algo do qual depende o mercado.

Notas e Referências


* Para mais, confira este artigo sobre a questão da história do termo “capitalismo”.


[1] Hoppe, Hans-Hermann, O Mito da Defesa Nacional: Ensaios sobre a Teoria e História da Produção de Segurança (São Paulo, Editora Konkin, 2022). Cap. 1.

[2] Rothbard, Murray M., História do Pensamento Econômico: Uma perspectiva Austríaca – Antes de Adam Smith, (São Paulo, Editora Konkin, 2022).

[3] Mises, Ludwig von, Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica, (São Paulo, Editora Konkin, 2022), p.120.

[4] Para análises mais densas sobre as relações de trocas voluntárias e seus fundamentos, bem como uma exposição e demonstração mais refinada dos pontos aqui colocados consulte Rothbard, Murray N., Homem, Economia e Estado (Editora Konkin). Para uma análise cheia de exemplos históricos, veja Menger, Carl, Princípios de Economia Política (Abril Cultural), em especial os capítulos 4, 5 e 8.

[5] Crouzet, Maurice, História Geral das Civilizações, Vol. 11, (Bertrand Brasil) p. 281.

[6] Rothbard, Conceived in Liberty, Vol. I, p. 22.

[7] Crouzet, Maurice, História Geral das Civilizações, Vol. 10, p. 24-25.

[8] Citações tiradas de Rothbard, Murray N., História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Austríaca – Antes de Adam Smith (São Paulo, Editora Konkin, 2022), p. 192 et seq. Confira também pp. 57-139

[9] Crouzet, Maurice, História Geral das Civilizações, Vol. 9,p. 142 et seq.

[10] Cf., Hoppe, Hans-Hermann, O Mito da Defesa Nacional (São Paulo, Editora Konkin, 2022), pp. 29-45.

[11] Rothbard, op. cit., p. 139.

[12] As últimas três citações estão em Ibid., pp. 101-3

[13] Cf., Hans Hoppe, op. cit., caps. 1, 3 e 5, e Rothbard, Homem, Economia e Estado, caps 1 e 2.

[14] Rothbard, op. cit., p. 405.

[15] Cf.Rothbard, Conceived in Liberty, Vol.I, Parte IV.

[16] Ibid., p. 284.

[17] Ibid., p. 278.

[18] Para uma investigação mais profunda, confira Rothbard, Murray N., Homem, Economia e Estado com Poder e Mercado, pp. 1105-1161.

[19] Essas citações foram retiradas de Bastiat ainda Invicto, compilado e traduzido por Gabriel de Almeida Orlando, (Barbacena, Editora Konkin, 2022), p. 77-79.

[20] Mises, op. cit., p. 529 et seq.

[21] Mises, op. cit., p. 35.

[22] Para uma análise mais aprofundada, veja, Menger, Princípios de Economia Política (Abril Cultural), Cap. 1.

[23] Rothbard, Homem, Economia e Estado (São Paulo, Editora Konkin, 2022), p. 77-92.

[24] Um corolário disso é que, nas trocas voluntárias, não se sai perdendo, pois as trocas só decorrem da satisfação de necessidades de ambas as partes envolvidas numa troca, onde cada qual obtém o que deseja de forma pacífica e não impositiva.

[25] Mises, op. cit., p. 35.

[26] Cf, Hoppe, From Aristocracy to Monarchy to Democracy e O Mito da Defesa Nacional, Introdução.

[27] Cf., Rothbard, História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Austríaca – Antes de Adam Smith, especialmente Introdução e caps, 1-2.


Gostou do artigo? Sobre esse tema, leia o maravilhoso livro de Murray Rothbard: Homem, Economia e Estado.

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