Não tenha medo da Guilhotina de Hume

Tempo de Leitura: 18 minutos

Isso é curioso. Você não sabe minha relação com esse texto, ou como ele surgiu. Mas, eu sei que o que você está dizendo, e por isso mesmo trata-se de uma aula, é que
você não consegue entender o texto que eu trouxe. E é por isso que eu vou explicar um pouco dele.

Vou primeiro falar de quando ele foi feito, ele foi feito numa discussão entre Daniel Miorim e Enzo Matheus com os Neoiluministas. Discussão essa que eu acompanhei de perto. Nela, algumas das bases dos dois ficam evidentes e por isso mesmo são relevantes para o caso.

Há a necessidade de sabermos que Daniel Miorim, fundador da Universidade Libertária, é um pragmático, defensor da existência de um certo nível de compreensão derivado não apenas das proposições, mas do próprio ato de expressar elas. Isso pode ser explicado com o exemplo do Navio Pirata. No navio pirata, aquele que levantar a mão e dizer “Avante” e que não for o capitão do Navio Pirata não poderá fazer a tripulação reagir da forma que pretende. Assim, surge um parâmetro existencial para as proposições, inclusive as proposições morais. Igualmente importante é entendermos a posição de Enzo Matheus, fundador do Paleolibertarianismo, que é inclusive muito semelhante à minha como um tomista e realista moderado, que acredita na existência real de características universais presentes em todos os objetos particulares que nos faria sermos capazes de catalogar e conhecer eles. Assim, há a presença de uma série de atributos de julgamento das categorias oriundas da existência concreta das coisas.

Veja, essas posições são explicitamente contrárias a dicotomia criada entre ideias e impressões por Hume que dirá que conhecemos as coisas pelas “impressões” que elas deixam em nós e que concatenamos essas impressões para que sejam criadas ideias. Os dois afirmarão que não é algo que foi deixado em nós, mas sim algo que existe na coisa (ou no caso pragmático algo que existe nas circunstâncias da coisa) que definirá a existência dela.

Entender essas duas dimensões permitirá que nós entendamos como o debate chegou a essa afirmação feita pelo texto: 

“A Guilhotina de Hume é a reivindicação de que não se pode derivar um corolário do tipo “dever ser” de uma premissa do tipo “ser”; nãose pode, ademais, derivar termos de ordem prescritiva ou valorativa daqueles de ordem descritiva.”

Para os dois, afirmar a guilhotina de Hume é afirmar que não existe nenhuma dimensão de adequação para a correção moral que advenha da própria existência concreta da coisa. É fundamentalmente negar que suas próprias epistemologias possam ser usadas no debate moral. Assim, é evidente que eles consideraram a coisa valiosa o suficiente para gerar um longo comentário com algumas distinções filosóficas. 

O primeiro comentário é em relação a Searle e segue muito da posição que acreditam:

“Searle, em “How to Derive ‘Ought’ From ‘Is’”, opõe à declaração humeana o seguinte exemplo: do fato de eu entabular uma promessa (premissa) segue-se, logicamente, que eu deva cumprir tal promessa (corolário). Searle estende seu exemplo para os fatos institucionais.”

Aqui ele está dizendo que a própria categorização de Searle, a definição de atributos sobre o que é uma promessa cria, para bem dizer prescreve, uma obrigação para o agente que a afirma. Aqui, tanto num sentido pragmático quanto num sentido realista conseguimos entender o porquê os dois consideraram válidas essas afirmações. O
primeiro porque vê num ato de fala uma dimensão existencial prescritiva e o segundo por ver na própria caracterização de uma promessa uma dimensão nomotética. A dimensão nomotética é uma dimensão interna, integrada aos compromissos afirmados por alguém ao afirmar algo. Por exemplo, pode-se dizer que há um compromisso nomotético com as cores ao chamar algo de preto ou branco.

E então o artigo continua:

Maclntyre demonstra, em seu magnífico “After Virtue”, que o bem e o mal de forma alguma se situam em categoria distinta. Em um exemplo didático, se uma tesoura não consegue cortar o papel, função para a qual foi criada, então, logicamente, essa tesoura deve ser considerada ruim.

Aqui, temos uma explicitação teleológica que se aplica bem ao contexto porque deriva justamente da nota de rodapé que eu lhe demonstrei, para usar a versão em português do Ética da Liberdade:

“Para algumas questões duvidosas sobre se o próprio Hume pretendeu afirmar a dicotomia fato-valor, veja A.C. Maclntyre, Hume on “Is” and “Ought” em W.D. Hudson, ed., The Is-Ought Question (London: Macmillan, 1969), págs. 35 — 50.”

Maclntyre nesse artigo (até melhor do que no livro citado, embora esse artigo vá te dar uma posição mais justa:) vai lidar com alguma das questões que são importantes para nós e eu vou traduzir alguns trechos para se entender melhor a escolha proposital de usar o Maclntyre para essa empreitada:

“Costumeiramente alegam que Hume estava apenas fazendo um ponto puramente formal sobre “dever e ser” e o tipo de abordagem da ética que faz tais o âmago dessas análises formais tender a levar para um resultado desconcertante. A conexão entre a moralidade e a felicidade parece ser apenas puramente acidental e contingente. “Alguém deve” é tratado com uma fórmula onde o espaço em branco pode ser completado por praticamente qualquer verbo que faça sentido gramatical. “Alguém deveria matar pessoas ocasionalmente” ou “alguém deveria dizer o que não é verdade” não são exemplos de preceitos morais por mais que a razão pela qual eles estão em desacordo com os preceitos que a maioria de nós decidiu seguir. Apesar disso, se a ética fosse um estudo puramente formal então qualquer tipo de enunciado do tipo “deve” serviria. Se um filósofo sente que a conexão entre moralidade e felicidade é de alguma forma uma conexão necessária, ele está mais inclinado a cometer, ou ao menos de ser acusado da falácia naturalista de definir palavras morais em termos factuais. E é óbvio porque filósofos devem estar dispostos a enfrentar a alternativa de ou cometer a falácia naturalista ou fazer a conexão entre moralidade e felicidade ser apenas contingente e acidental. A alternativa é baseada na crença de que as conexões entre os enunciados morais e as afirmações factuais precisem ser implicativasou nada. E essa crença advém de aceitar o cálculo formal como modelos de argumentos e então ver as relações implicativas no discurso informal. 

Em segundo lugar, a reinterpretação dessa passagem do Hume permite que nós encaremos toda a questão sobre a razoabilidade prática de uma forma muito mais frutífera do que a tradição formalista da ética permitiria. Se alguém diz que nós não podemos fazer inferências válidas de um “É” para um “Deve”, eu estaria disposto a oferecer a ele o seguinte contraexemplo; “Se eu acertar uma faca em Smith, eles me mandarão para a cadeia; mas eu não quero ir para a cadeia; então eu devo não (seria melhor não) acertar uma faca nele”. A resposta para isso seria que não há dúvidas que essa é uma inferência válida (eu não sei como isso poderia ser negado) mas essa é uma implicação perfeitamente comum que depende da seguinte premissa maior “Se é simultaneamente o caso que se eu fizer X, o resultado será Y, então se eu não quero que Y aconteça, eu não devo fazer X. Isso irá certamente fazer o argumento em questão ser uma implicação, mas parece haver três boas razões para não tratar o argumento dessa forma. Primeiro, argumentos indutivos podem ser tornados dedutivos dessa forma, mas como já vimos, apenas um devoto supersticioso da implicação poderia querer apresentar argumentos assim Que outra razão haveria no caso dos argumentos morais que não estivesse presente no caso de argumentos indutivos? Mais ainda, uma razão parente para não agir dessa forma é que argumentos indutivos podem ser apresentados dessa forma, nomeadamente, que nós poderíamos ter feito o nosso argumento ser uma implicação ao adicionar a premissa maior, mas nós reproduzimos o argumento em sua forma não implicativa assim a premissa, e qualquer coisa questionável no argumento original permanece inquestionado dentro da premissa maior. Que a premissa em si é um argumento e de um tipo que não é uma implicação, para fazer tal implicação nós precisaremos adicionar uma premissa adicional que passará pela mesma dificuldade. Então, nossa inferência se mantendo de pé ou falhando, ela não cairá comouma implicação com uma premissa suprimida. Mas, há uma terceira e ainda mais importante razão para não tratar a transição feita nessa inferência como uma implicação. Fazer tal coisa é obscurer a forma que pela qual a transição dela pelo argumento foi de fato feita. A transição nesse caso de “É” para “Deve” foi feita nessa inferência pela noção de “querer” E isso não é um acidente. Os exemplos aristotélicos de silogismos práticos têm uma premissa que inclui tais termos como “adequar” ou “satisfazer”. nós podemos dar uma longa lista de conceitos que podem formar noções de pontes entre “É” e “Deve”: querer, precisar, desejar, felicidade, alegria, saúde, para citar apenas alguns. Eu acredito que há um caso forte para afirmar que as noções morais são ininteligíveis isolados de conceitos como esses. O filósofo que obscureceu esse problema foi Kant cuja classificação de imperativos entre categóricos e hipotéticos removeu qualquer link entre o que é bom e justo e o que é necessário e desejado por alguém. Mas, está fora do meu escopo aqui argumentar contra Kant: tudo que eu quero fazer é prevenir que Hume seja classificado como parte do problema junto com ele.

Então agora nós estamos em posição de esclarecer qual a posição que Hume está realmente estabelecendo em sua passagem de “É” para “Deve”. Ele está primeiramente clamando que tomemos nota do ponto chave em que passamos do “é” para o “deve” e argumentando que essa é uma transição difícil. Na próxima parte do Tratado ele nos mostra como pode ser feita; claramente na passagem ele está preocupado em nos avisar contra aqueles que fazem essa transição de uma forma ilegítima. Contra quem Hume está nos alertando? O próprio Hume identifica a posição que ele está criticando por dizer que a atenção ao ponto que ele está fazendo “subverteria todos os sistemas vulgares de moralidade”. Ao que ele está se referindo ao usar essa frase? O uso ordinário do século 18 de regras “vulgares” carece de referência a outros filósofos e mais particularmente a Wollaston. Hume deve estar se referindo aos sistemas comumente aceitos de moralidade. Não há nenhuma base para supor que Hume não estava valendo-se douso padrão do século dezoito nesse ponto. Em outro lugar no Tratado tem uma passagem em que ele usa intercambiavelmente as expressões “o vulgar” e “a generalidade da humanidade”. Então é contra a moralidade ordinária que Hume está empreitando uma cruzada. E a moralidade ordinária do século dezoito é a moralidade religiosa. Hume está de fato repudiando uma fundação religiosa para a moralidade e colocando em seu lugar uma base nas necessidades morais, interesses, desejos e na felicidade. Essa interpretação pode ser mais apoiada?

A única forma de trazer mais força para essa visão seria mostrar que havia posições morais específicas que Hume tinha razões para escrever e que contém argumentos que se enquadrem a descrição que ele está dando da passagem de “É” para “Deve”. Agora isso pode ser mostrado. Hume foi criado em uma família presbiteriana e ele próprio teve uma educação presbiteriana. Boswell registra Hume da seguinte forma: “Perguntei-lhe se ele não era religioso quando jovem. Ele disse que era e que ele costumava ler o The Whole Duty of Man; que ele fez um resumo do catálogo de vícios no final dele, deixando o assassinato e o roubo de lado e vícios que ele acreditava não ter chance de cometer, por não ter inclinação de os cometer. The Whole Duty of Man provavelmente foi escrito por Richard Allestree, e foi ao mesmo tempo uma obra típica e popular da piedade protestante, e abunda em argumentos do tipo em discussão. Considere, por exemplo, o seguinte: “quem estiver em aflição por qualquer coisa, com a qual eu possa supri-lo, essa angústia dele faz com que seja um dever para eu o suprir e isso em todos os tipos de eventos. O que faz disso um dever é que Deus deu aos homens habilidades não apenas para seu próprio uso, mas para a vantagem e benefício de outros, e, portanto, o que é dado para seu uso, torna-se uma dívida para com eles sempre que sua necessidade o exigir. . . . Este é precisamente um argumento que vai do “ser de um Deus” ou “observações sobre os assuntos humanos” em afirmações de dever. E se depara com a dificuldade que Hume discute na seção que precede a passagem “é” e “deveria”, que o que émeramente uma questão de fato não pode nos fornecer uma razão para agir – a menos que seja uma questão daqueles fatos que Hume chama de as paixões, isto é, de nossas necessidades, desejos e afins. Curiosamente, há outras passagens em que Allestree fornece a seus argumentos um suporte que se refere exatamente a esse tipo de assunto. “Um segundo motivo para cuidarmos de qualquer coisa é a utilidade dela para nós, ou o grande mal que teremos pela perda dela… É verdade que não podemos perder nossas almas, em certo sentido, isso é perder no sentido de elas deixarem de ser; mas podemos perdê-los em outro… Em uma palavra, podemos perdê-los no inferno… Ou seja, passamos do que Deus ordena para o que devemos fazer por meio do medo do inferno. Que isso possa fornecer um motivo Hume nega no ensaio “Of Suicide”: obviamente, embora ele não diga isso de forma muito direta, porque ele acredita que não existe tal lugar. 

A interpretação da passagem “é” e “deveria” que estou oferecendo agora pode ser apresentada de forma resumida. Hume não está nesta passagem afirmando a autonomia da moral – pois ele não acreditava nela; e ele não está fazendo questão de implicação – pois ele não a menciona. Ele está afirmando que a questão de como a base factual da moralidade está relacionada à moralidade é uma questão lógica crucial, cuja reflexão permitirá perceber como há maneiras pelas quais essa transição pode ser feita e maneiras pelas quais ela não pode. É preciso ir além da própria passagem para ver quais maneiras são; mas se o fizermos, é claro que só podemos ligar os fatos da situação com o que devemos fazer por meio de um daqueles conceitos que Hume trata sob o título das paixões e que indiquei por exemplos como querer, precisar, e assim por diante. Hume não está, como Prior parece indicar, tentando dizer que a moralidade carece de base; ele está tentando apontar a natureza dessa base.”

Essas 4 passagens são suficientes para entendermos o ponto do Maclntyre e estão conectadas intrinsecamente com o que eu afirmei mais cedo sobre o ataque ser a determinado grupo de pessoas que estão de alguma forma utilizando parâmetrosnaturalistas num sentido místico ou sobrenatural, coisa que não poderia se aplicar ao Rothbard, um agnóstico. 

O artigo segue para uma visão que funciona tanto no sentido pragmático quanto no sentido tomista: 

Arthur Prior, em exemplo mais didático ainda, diz que do fato de eu ver um capitão, segue-se logicamente que ele deve agir como um capitão, de acordo com o que se obriga nessa condição.”

Nesse caso, está se estabelecendo que o próprio definir de um capitão implica estados de coisas, seja no sentido existencial pragmático seja no sentido de um componente nomotético. Os dois concordam pacificamente com esse exemplo porque Prior foi tanto uma referência e tanto para neotomistas quanto foi uma referência para a própria formação da escola pragmática, o exemplo dele lembrando profundamente o livro “Como fazer Coisas com Palavras” do Austin, que Daniel Miorim cita com certa frequência.

E então o artigo continua no tom característico do Enzo: “Hilary Putnam, um analítico para quem um desses efebos acende velas em devoção patológica e ridícula, já pôs abaixo a “mera” distinção entre fato e valor em seu clássico “The Collapse of fact/value Dichotomy”, quando então sustenta que são duas coisas intercambiáveis e interdependentes, porque a própria ideia de “distinção”, “discriminação” etc. já implica um valor e constitui aquilo que ele chama de “entanglement”. Estes são apenas os exemplares mais eloquentes e conhecidos.”

Aqui, teremos que parar um pouco para especificar o que é exatamente uma vinculação no sentido que eles estão usando casualmente na discussão. Para isso, a melhor forma de entrar na discussão é por meio de algumas considerações sobre o ponto pragmático e como ele funciona. Para isso, vou me permitir traduzir alguns trechos específicos:

A preocupação que está obviamente conectada com os valores que nos guiam para escolher entre hipóteses (coerência, simplicidade, preservação da doutrina passada, e coisas do tipo) é a preocupaçãocom a “descrição certa do mundo” e para muitos isso pareceu ser a mesma coisa que objetividade. Se isso estivesse certo, então os valores éticos não apenas estariam conectados a preocupações diferentes do que os valores epistêmicos, eles não estariam conectados como um todo com a objetividade. Mas esse é um erro.

Para ver a natureza desse erro, é preciso, antes de tudo, ser claro em que significa e o que não significa dizer que valores epistêmicos nos guiam na busca de descrições corretas do mundo. Como Roderick Firth apontou vinte anos atrás, não é como se nós tivéssemos algum jeito de dizer que nós chegamos na verdade independente dos nossos valores epistêmicos e que possamos, por assim dizer, executar um teste para ver com que frequência escolher a teoria mais coerente, a mais simples, e assim em diante, nos levaria a verdade sem pressupor esses mesmíssimos padrões de crenças empíricas justificadas. A alegação de que no todo nós ficamos mais próximos da verdade sobre o mundo ao escolher teorias que exibam coerência, simplicidade, sucesso em prever no passado, e por aí em diante, e até mesmo a alegação de que nós teremos feito alegações mais bem sucedidas do que nós obteríamos ao confiar no pastor, ou no padre, ou no rabino, ou simplesmente confiando na autoridade da tradição, ou na autoridade de algum partido marxista-leninista são elas mesmas hipóteses empíricas complexas que nós escolhemos (ou que aqueles de nós que escolhem, optam por escolher) porque nós fomos guiados pelos mesmos valores em questão em nossas reflexões sobre o histórico e os testemunhos a respeito de investigações passadas não acerca, é claro, das histórias e dos mitos que estavam no mundo no passado, mas em histórico e testemunhos que nós temos boas razões para acreditar pelo mesmíssimo critério de “boas razões”.

Dizer isso não é expressar nenhum tipo de ceticismo sobre a superioridade desses critérios providos pelos (como Peirce os chamava) Métodos da Autoridade e o Método do Concordável com a Razão. Se essa é uma justificação circular, ainda é uma justificação boa o suficiente para a maioria de nós. Mas é dizer que se esses valores epistêmicos nos permitem descrever corretamente o mundo (ou descrever ele mais corretamente do que qualquer outro tipo de valores epistêmicos alternativos nos faria compreender), é justamente pela lente desses mesmíssimos valores. Não significa que esses valores admitem uma justificativa externa.

E sobre a ideia de que a descrição correta do mundo é a mesma que objetividade? Essa ideia repousa, de forma clara, na suposição de que “objetividade” significa correspondência para com os objetos (uma ideia que corresponde a etimologia da palavra, claro). Mas não são apenas verdades normativas tais como “matar é errado” que apresentam contraexemplos para essa ideia, como eu argumentei em outros lugares, as verdades matemáticas e lógicas são exemplos similares de “objetividade sem objetos” Para ser mais exato, muitos filósofos nos dizem que nós temos que supor objetos peculiares (também chamadas de entidades abstratas) para possibilitar a verdade matemática, mas isso não nos ajuda em nada, como nós podemos fazer ao perguntar; “A matemática funcionaria um pouco pior se esses objetos divertidos cessassem de existir?”. Aquele que postula “entidades abstratas” para possibilitar o sucesso da matemática não clama que nós (ou qualquer outro objeto do mundo empírico) interagimos com essas entidades abstratas. Mas se essas entidades não interagem de nenhuma forma conosco e com o mundo real, então não se segue que o mundo seria o mesmo se elas não existissem? No caso da verdade lógica, estruturas ontológicas incorrem nas mesmas dificuldades conhecidas, dificuldades conectadas com a noção lógica central de validade.

O que eu estou dizendo é que é tempo de nós pararmos de igualar objetividade com descrição. Tem muitos tipos de enunciados, genuínos enunciados, aqueles que usam termos como “corretos”, “incorretos”, “verdadeiro”, “falso”, “justificado” e “injustificado”, que não são descrições, mas que estão sobre o controle da racionalidade, governados por padrões apropriados para suas funções particulares e contextos. Permitir que possamos descrever o mundo é uma funçãoextremamente importante da linguagem, mas não é sua única função, nem é a única função para as quais questões como, “Esse jeito de alcançar essa função é razoável ou irrazoável? Racional ou Irracional? Justificável ou Injustificável?” se aplicam.

CONCEITOS ÉTICOS ESPESSOS

O entrelaçamento de fatos e valores não é limitado aos tipos de fatos que os positivistas lógicos reconheceram, e valores epistêmicos. O fato é que embora os positivistas lógicos pensassem que o que eles chamam de linguagem da ciência era a totalidade da linguagem “cognitivamente dotada de sentido”, a visão deles estava profundamente errada, como eu argumentei no capítulo anterior – de fato, é até mesmo refutada em si mesma. É algo refutado em si mesmo porque seus termos filosóficos chave, “cognitivamente dotado de sentido” e “nonsense” não são termos de observação, não são “termos teóricos” de uma teoria física e não são termos lógicos/matemáticos, e esses são os únicos tipos de termos que a linguagem da ciência deles era permitida a possuir. “Se olharmos ao vocábulo de nossa linguagem como um todo, e não uma pequena parte que era suposta pelos positivistas lógicos como sendo suficientes para a descrição de fatos, “acharemos um entrelaçamento muito mais profundo de fato e valor (incluindo ético e estético e todo outro tipo de valor) até a nível de predicados individuais. O tipo de entrelaçamento que eu tenho em mente se torna óbvio quando estudamos palavras como “cruel”. A palavra “cruel” obviamente – ou ao menos é óbvio para a maioria das pessoas, mesmo se ela for negada por alguns famosos defensores da dicotomia fato/valor – possui usos normativos e, de fato, éticos. Se alguém perguntar qual tipo de pessoa o professor de meu filho é, e eu digo “Ele é muito cruel”, eu tanto o critiquei como um professor quanto o critiquei como um homem. Eu não tenho de acrescentar “ele não é um bom professor”, ou “ele não é um bom homem”. Eu posso, de fato, dizer “Quando ele não está manifestando sua crueldade ele é um professor muito bom”, mas eu não posso simplesmente, sem distinguir os aspectos nos quais ou as ocasiões nas quais ele é um bomprofessor e os aspectos nos quais ou as ocasiões nas quais ele é muito cruel, dizer “ele é uma pessoa muito cruel e um bom professor.” Similarmente, não posso simplesmente dizer “ele é uma pessoa muito cruel e um bom homem”, e ser entendido. Ainda assim, “cruel” pode também ser usado puramente de forma descritiva como quando um historiador escreve que um certo monarca fosse excepcionalmente cruel, ou que as crueldades do regime provocaram um número de rebeliões. “Cruel” simplesmente ignora a suposta dicotomia fator/valor e animadamente permite a si mesma a ser usada algumas vezes para um propósito normativo e às vezes como um termo descritivo. (De fato, o mesmo é verdade dos termos “crime”. Na literatura, tais conceitos são frequentemente referidos como “conceitos éticos espessos”.

Que os conceitos éticos espessos são contraexemplos para a ideia de que existe uma dicotomia absoluta entre fatos e valores foi apontado a muito, e os defensores dessa dicotomia ofereceram três principais respostas. (A discussão resultante culminou no que eu penso ser uma das melhores discussões éticas/metaéticas do último século, incluindo artigos e livros fora de série por Philippa Foot, Iris Murdoch, John McDowell, and David Wiggins criticando a dicotomia e réplicas de Hare e John Mackie, entre outros.)” Uma resposta estava contida na pergunta retórica de Hume: Onde está aquele conjunto de fatos que nós chamamos de crime?” Hume significava crime como “erro grave” – e daí vinha sua negação que alguém poderia apontar qualquer “conjunto de fatos”. Aceitar essa resposta seria banir todos os conceitos éticos espessos para o mesmo limbo dos “emotivos” ou “não-cognitivos” que as palavras éticas (ou conceitos finos) (“bom,” “deve” “justo,” e seus opostos “mau” “não-deve” “errado” assim como “virtude,” “vícios” “dever” “obrigação,” e por aí vai) foram banidas por Hume e seus sucessores. Mas o número de tais palavras é tão grande que há uma obvia relutância em seguir Hume até mesmo por parte de não cognitivistas (e seus parentes, os assim chamados “teóricos do erro”).” Nem mesmo David Hume estaria ansioso paraclassificar, por exemplo, “generoso”, “elegante”, “habilidoso”, “forte”, “desajeitado”, “fraco” ou “vulgar” como conceitos para os quais nenhum fato corresponde.

Assim, os termos aos quais Putnam faz menção como estando “entrelaçados” são termos que possuem um duplo caráter, descritivo e prescritivo, que vinculam de tal forma o estado de coisas que ao fazer uma distinção entre eles já estamos estabelecendo uma prescrição em si mesma. Os chamados conceitos éticos “espessos”.

O artigo continua para outra das minhas respostas sobre a questão humeana, a diferença fundamental entre ideias e impressões e um deslize humeano que faria a sua tese ser considerada já superada pelo sua própria forma de fazer ética.

Um dos maiores desses deslizes apontados por Baier exige uma releitura do Tratado. Ei-la. Hume sustenta que todo o nosso entendimento decorre de percepções, que, por sua vez, dividem-se entre “impressões” (as mais fortes e de primeiro impacto) e “ideias” (uma cópia tênue daquelas). É com essa dicotomia que ele inaugura o livro acerca da Moral. Para Hume, todas as dificuldades de ordem moral são elididas pela resposta afirmativa à seguinte pergunta: “é por meio de nossas impressões que discriminamos vício e virtude? (…) para julgar estes sistemas (morais), temos de considerar se é possível, só pela razão, distinguir entre o bem e o mal (…)”. A tese de Hume é de que nossa razão, somente, é incapaz de fazer essas distinções; essas distinções só são possíveis pelo que ele chama de “senso moral”. Esse senso moral, todavia, constitui-se precisamente dessas impressões, desse primeiro impacto vivaz que ou nos proporciona prazer ou repulsa. Não sem razão diz Hume que “é evidente que as nossas paixões, volições e ações não são suscetíveis de tal acordo ou desacordo, pois são FATOS E REALIDADES ORIGINAIS, COMPLETOS EM SI MESMOS, e sem implicarem referência a outras paixões, volições e ações”. Hume mesmo sublinha que essas paixões, volições e ações são FATOS, fatos constituintes de nosso senso moral (dever ser).

Isso não é tudo. Hume sustenta que a moralidade não surge do direito instituído, mas de uma fonte moral anterior que o respalda. Nesse caso, o roubo (fato) não é imoral apenas porque está no direito (dever ser), mas por originar-se de uma contrariedade a um senso moral nos termos em que ele apresenta. Aparentemente, o exemplo dele parece concordar com o preceito da Guilhotina. Ocorre, contudo, que o senso moral precisa ser sentido, experimentado, ao passo que a regra jurídica surge da repulsa que sentimos pelo roubo. Mas sentir, experimentar, perceber, presenciar ou testemunhar um roubo, sustenta Annette, é precisamente um fato, e é desse fato (premissa) que Hume deriva um dever ser (corolário).

Aqui, mostra-se que Hume, de forma contraditória com o que intenta fazer na sua própria guilhotina, estabelece que existem fatos que são relevantes moralmente para a afirmação de um dever ser. Entender isso é entender (mais uma vez) de que forma Hume poderia concordar com Rothbard, ao afirmar que o senso moral deve ser derivado justamente da existência de um “espírito” humano que torna a nossa agência maior do que apenas consequências biológicas e físicas de fenômenos anteriores.

Mais do que isso, ele estabelece uma série de relações causais factuais entre o que Maclntyre chamaria de premissas maiores e enunciados morais, descrevendo um tipo entre o conjunto de fatos que se estabelecem como capazes de iniciar de fato uma sequência moral adequada para se criar uma sentença moral.

Quanto ao trecho final que se segue:

É sintomático que Hume negligencie, voluntária ou involuntariamente, aspectos que ele diz ser da maior relevância para a constituição de sistemas morais. É sintomático porque Hume parte de Hobbes para ensejar o utilitarismo (ele mesmo escreve um livro em termos utilitários antes mesmo que Bentham dê nome aos bois), aí abrindo caminho para o relativismo moral de que todos sofremos hoje.

É sintomático, também, que todas as declarações laudatórias acerca de Hume partam da leitura isolada de 10 linhas (sim, a Guilhotina de Hume se perfaz em 10 linhas) de uma obra que contempla mais de 700 páginas. Isso explica por que diabos os efebos acreditam que a Guilhotina de Hume é um mero preceito de lógica, que nada tem a ver com sistema de valores, muito embora Hume tenha sugerido essa diferenciação lógica precisamente no livro Da Moral, em que ele rejeita, porque despreza, todos os sistemas morais anteriores, fato facilmente atestado por várias passagens em que ele faz referência aos escolásticos e racionalistas em tom de blague e menoscabo. Isso explica sua tentativa (valorativa) de dar novos fundamentos à Filosofia — fundamentos esses que ele busca da leitura de Newton, Pierre Bayle e Samuel Clarke, por exemplo, todos empiristas.

Não se entende a concepção inteira de um filósofo a partir da leitura isolada, deslocada e, muitas vezes, mal traduzida de uma passagem qualquer de algum livro. Para entendê-lo, deve-se lê-lo em conjuntura — de preferência acompanhado com comentadores -, ou seja, a partir dos problemas com os quais ele inicia sua elucubração. De regra, isso quer dizer que, além do autor em si, deve-se ler também os autores anteriores e contemporâneos. Quer dizer, também, que toda obra filosófica se articula sobre problemas (status quaestionis), a partir dos quais, e só a partir dos quais, as respostas são possíveis. Passagens de 10 linhas só podem ser entendidas de fato se inseridas, portanto, na conjuntura da obra de um autor, o que engloba suas influências, o problema de que parte, a conclusão a que chega e as repercussões dos argumentos que sustentam a passagem do problema à conclusão.

Em suma, a Guilhotina de Hume só tem valor casuístico (portanto não universal), ou seja, quando se situa, para usar termo do próprio Hume, nas “regras de bom raciocínio”. Em outras palavras, a Guilhotina só tem valor se estiver de acordo com as regras lógicas elementares, consagradas muito antes dele, no Organon aristotélico. Ela só tem valor se demonstrar que de uma premissa não se segue uma conclusão. A Lógica lida com a coerência e a validade internas do discurso; disso não se segue — e estou usando a lógica aqui — que todas as derivações do tipo “dever ser” de postulados “ser” sejam inválidas (os exemplos acima, e muitos outros, mostram o contrário). Disso não se segue, também, que a Guilhotina de Hume seja hábil a ferir de morte qualquer sistema que seja (a validade não alcança a veracidade). Falando em morte, quem não percebe isso já está morto. Intelectualmente morto.

Não tenho muito a adicionar aqui, mas gostaria de salientar que além da proximidade de Hume com os empiristas temos no Maclntyre uma série de argumentos voltados a explicitar a origem revanchista com perspectivas religiosas num próprio componente da vida de David Hume (e também não abordei aqui as outras duas objeções que ele faz na parte anterior do texto citado). Uma série de argumentos do próprio Rothbard sobre David Hume no História do Pensamento Econômico, o próprio texto comentado mais cedo no Ética da liberdade do Rothbard sobre contradições do David Hume, longos comentários sobre a validade do argumento rothbardiano no início desse mesmo livro pronunciados por Hans Hermann Hoppe, argumentos nessa tese de doutorado que data de 1990 que explicita (página 123) como a discussão era justamente que era considerado impossível derivar da praxiologia qualquer valor ético e por último o maravilhoso livro “A Filosofia a partir de seus problemas” de Mario Ariel Gonzáles Porta.

Dado o conjunto tão explícito e integrado de verdades na obra Rothbardiana, um pragmático e um tomista puderam resistir lado a lado contra as acusações kantianas vazias, demonstrar como a guilhotina não tinha sentido aparente e de novo se colocarem contra aqueles que repetem constantemente que Rothbard cai na “falácia naturalista”, “guilhotina de Hume” ou qualquer outro modelo de navalha lógica que intente derrubar sistemas morais sofisticados.

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