Capitalismo versus Estatismo

Tempo de Leitura: 19 minutos

Por Murray Rothbard

[Retirado de Economic Controversies, seç. 5, cap. 35]

Desde o início, enfrentamos graves problemas com o termo “capitalismo”. Quando percebemos que a palavra foi cunhada pelo inimigo mais famoso do capitalismo, Karl Marx, não é surpreendente que um analista neutro ou pró “capitalista” possa achar o termo sem precisão. Pois o capitalismo tende a ser um um conceito abrangente que os marxistas aplicam a virtualmente todas as sociedades na face do globo, com exceção de alguns possíveis países “feudais” e as nações comunistas (embora, é claro, os chineses considerem a Iugoslávia e a Rússia “capitalistas”, enquanto muitos trotskistas incluiriam a China também). Os marxistas, por exemplo, consideram a Índia um país “capitalista”, mas a Índia, atormentada por uma vasta e monstruosa rede de restrições, castas, regulamentações estatais e privilégios de monopólio, está tão longe do capitalismo de livre mercado quanto se pode imaginar.[1]

Se quisermos manter o termo “capitalismo”, então, devemos distinguir entre “capitalismo de livre mercado” por um lado, e “capitalismo de estado” por outro. Os dois são tão diferentes quanto o dia e a noite em sua natureza e consequências. O capitalismo de livre mercado é uma rede de trocas livres e voluntárias em que os produtores trabalham, produzem e trocam seus produtos pelos produtos de outros por meio de preços voluntariamente alcançados. O capitalismo de Estado consiste em um ou mais grupos que fazem uso do aparato coercitivo do governo — o Estado — para acumular capital para si próprios ao expropriar a produção de outros pela força e violência.

Ao longo da história, os estados existiram como instrumentos de predação e exploração organizada. Não importa muito qual grupo de pessoas ganhe o controle do Estado em um determinado momento, sejam déspotas orientais, reis, senhores de terras, comerciantes privilegiados, oficiais do exército ou partidos comunistas. O resultado está em toda parte e é sempre a penalização coercitiva da massa dos produtores — na maioria dos séculos, é claro, principalmente do campesinato — por uma classe dominante de governantes e sua burocracia profissional contratada. Geralmente, o Estado tem seu início no banditismo flagrante e na conquista, após os conquistadores se estabelecem entre a população subjugada para exigir tributos permanentes e contínuos na forma de “impostos” e repartir as terras dos plebeus em grandes extensões para os senhores da guerra, que então procedem para extrair “aluguel”. Um paradigma moderno é a conquista espanhola da América Latina, quando a conquista militar do campesinato indígena nativo acarretou na divisão das terras indígenas às famílias espanholas e ao estabelecimento dos espanhóis como classe dominante permanente sobre o campesinato nativo.

Para tornar seu governo permanente, os governantes do Estado precisam induzir suas massas súditas a concordar com pelo menos a legitimidade de seu governo. Para tanto, o Estado sempre convocou um corpo de intelectuais para fazer apologia à sabedoria e à necessidade do sistema existente. A apologia difere ao longo dos séculos; às vezes é o sacerdócio usando mistério e ritual para dizer aos súditos que o rei é divino e deve ser obedecido; às vezes são os liberais keynesianos usando sua própria forma de mistério para dizer ao público que os gastos do governo, embora aparentemente improdutivos, ajudam a todos, aumentando o PIB e energizando o “multiplicador” keynesiano. Mas em todos os lugares o propósito é o mesmo — justificar o sistema existente de governo e exploração para a população subjugada; e em todos os lugares os meios são os mesmos — os governantes do estado compartilhando seu governo e uma parte de seu tesouro com seus intelectuais. No século XIX, os intelectuais, os “socialistas monárquicos” da Universidade de Berlim, orgulhosamente declararam que sua principal tarefa era servir como “guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern”. Esta sempre foi a função dos intelectuais da corte, do passado e do presente — servir como guarda-costas intelectual de sua classe dominante particular.

Em um sentido profundo, o livre mercado enquanto método e a sociedade são “naturais” ao homem; ele pode surgir e, consequentemente, surge “naturalmente”, sem um elaborado sistema intelectual para explicá-lo e defendê-lo. O camponês iletrado conhece em seu âmago a diferença entre trabalho árduo e produção, de um lado, e predação e expropriação, do outro. Portanto, sem qualquer interferência, tende a crescer uma sociedade de agricultura e comércio onde cada homem trabalha na tarefa em que é mais adequado às condições da época, e então troca seu produto pelos produtos de outros. O camponês cultiva o trigo e troca-o pelo sal de outros produtores ou pelos sapatos do artesão local. Se surgirem disputas sobre propriedade ou contratos, os camponeses e aldeões levam seu problema aos sábios da área, às vezes os mais velhos da tribo, para arbitrar sua disputa.

Existem numerosos exemplos históricos do crescimento e desenvolvimento de uma sociedade de mercado puramente livre. Dois podem ser mencionados aqui. Uma delas é a feira de Champagne, que durante centenas de anos na Idade Média foi o maior centro de comércio internacional da Europa. Vendo a importância das feiras, os reis e barões deixaram-nas intactas, não tributadas e nem regulamentadas, e quaisquer disputas que surgiram nas feiras foram resolvidas em uma das muitas cortes voluntárias concorrentes, mantidas pela igreja, nobres e pelos próprios mercadores. Um exemplo mais abrangente e menos conhecido é a Irlanda celta, que por mil anos manteve uma florescente sociedade de livre mercado sem um Estado. A Irlanda foi finalmente conquistada pelo Estado Inglês no século XVII, mas a ausência de um Estado da Irlanda, a falta de um canal governamental para transmitir e fazer cumprir as ordens e ditames dos conquistadores, atrasou a conquista em séculos.[2]

As colônias americanas foram abençoadas com uma corrente de pensamento libertário individualista que conseguiu suplantar o autoritarismo calvinista, uma corrente de pensamento herdada dos radicais libertários e anti estatistas da revolução inglesa do século XVII. Essas ideias libertárias foram capazes de se firmar nos Estados Unidos em vez da metrópole, devido ao fato de que as colônias americanas eram em grande parte livres do monopólio feudal de terras que governava a Grã-Bretanha[3]. Mas, somado a essa ideologia, a ausência de um governo central efetivo em muitas das colônias permitiu o surgimento de uma sociedade de livre mercado “natural” e inconsciente, desprovida de qualquer governo político. Isso foi particularmente verdadeiro para três colônias. Uma foi Albemarle, no que mais tarde se tornou o nordeste da Carolina do Norte, onde nenhum governo existiu por décadas até que a Coroa inglesa concedeu a gigantesca concessão de terras para a Carolina em 1663. Outro exemplo, e mais proeminente, foi Rhode Island, originalmente uma série de assentamentos anarquistas fundados por grupos de refugiados da autocracia da Baía de Massachusetts. Finalmente, um conjunto peculiar de circunstâncias trouxe o anarquismo individualista efetivo para a Pensilvânia por cerca de uma década nas décadas de 1680 e 1690.[4]

Enquanto a sociedade puramente livre e de laissez-faire surge sem autoconsciência, onde as pessoas têm rédea solta para exercer suas energias criativas, o estatismo tem sido o princípio dominante ao longo da história. Onde o despotismo estatal já existe, então a liberdade só pode surgir de um movimento ideológico autoconsciente que trava uma luta prolongada contra o estatismo e revela à massa do público a falha grave em sua aceitação da propaganda das classes dominantes. O papel desse movimento “revolucionário” é mobilizar as várias categorias das massas oprimidas e dessacralizar e deslegitimar o domínio do Estado aos seus olhos.

É a glória da civilização ocidental que foi na Europa Ocidental, nos séculos XVII e XVIII, onde, pela primeira vez na história, um movimento autoconsciente em grande escala, determinado e pelo menos parcialmente bem-sucedido surgiu para libertar os homens das algemas restritivas do estatismo. À medida que a Europa Ocidental tornou-se progressivamente enredada em uma teia coercitiva de restrições feudais e corporativas, e de monopólios e privilégios estatais com o rei funcionando como senhor feudal, o movimento de libertação surgiu com o objetivo consciente de liberar as energias criativas do indivíduo, de possibilitar uma sociedade de homens livres para substituir a repressão congelada da velha ordem. Os Levellers e os homens da Commonwealth e John Locke na Inglaterra, os philosophes e os fisiocratas na França inauguraram a Revolução Moderna em pensamento e ação que finalmente culminou nas Revoluções Americana e Francesa do final do século XVIII.

Esta revolução foi um movimento em nome da liberdade individual, e todas as suas facetas eram essencialmente derivações desse axioma fundamental. Na religião, o movimento enfatizou a separação entre Igreja e Estado, ou seja, o fim da tirania teocrática e o advento da liberdade religiosa. Nas relações exteriores, esta foi uma revolução em nome da paz internacional e o fim das guerras incessantes em nome da conquista do Estado e da glória para a elite dominante. Politicamente, foi um movimento para despojar a classe dominante de seu poder absoluto, para reduzir totalmente o escopo do governo e colocar todo o governo remanescente sob o controle da escolha democrática e de eleições frequentes. Economicamente, o movimento enfatizou a liberação das energias produtivas do homem dos grilhões governamentais, para que os homens pudessem trabalhar, investir, produzir e trocar onde desejassem. O famoso grito ao poder foi o laissez faire: deixem-nos em paz, trabalhar, produzir, comercializar, mover de uma jurisdição ou país para outro. Deixem-nos viver, trabalhar e produzir sem sermos impedidos de impostos, controle, regulações ou privilégios de monopólio. Adam Smith e os economistas clássicos foram apenas o grupo economicamente mais especializado desse amplo movimento de libertação.

Foi o sucesso parcial desse movimento que libertou a economia de mercado e, assim, deu origem à Revolução Industrial, provavelmente o evento mais decisivo e mais libertador dos tempos modernos. Não foi por acaso que a Revolução Industrial na Inglaterra surgiu, não na Londres dominada por corporações de ofício e controlada pelo Estado, mas nas novas cidades e áreas industriais que surgiram no antes rural e, portanto, não regulamentado norte da Inglaterra. A Revolução Industrial não poderia chegar à França até que a Revolução Francesa libertasse a economia dos grilhões do senhorio feudal e das inúmeras restrições locais ao comércio e à produção. A Revolução Industrial libertou as massas humanas de sua pobreza e desesperança abjeta — uma pobreza agravada por uma população crescente que não conseguia encontrar emprego na economia congelada da Europa pré-industrial. A Revolução Industrial, a conquista do capitalismo de livre mercado, significou uma melhoria contínua e rápida nas condições de vida e na qualidade de vida para as grandes massas, tanto para trabalhadores quanto para consumidores, onde quer que o impacto do mercado fosse sentido.

Uma área subdesenvolvida e escassamente povoada originalmente, a América não começou como o principal país capitalista. Mas depois de um século de independência alcançou essa eminência, e por quê? Não, como diz o mito comum, por causa de recursos naturais superiores. Os recursos do Brasil, da África, da Ásia, são no mínimo tão abundantes quanto os da América. A diferença veio por causa da relativa liberdade nos Estados Unidos, porque foi aqui que a economia de livre mercado, mais do que em qualquer outro país, tomou corpo. Começamos livres de uma classe de senhores feudais ou monopolistas, e começamos com uma ideologia fortemente individualista que permeava grande parte da população. Obviamente, o mercado nos Estados Unidos nunca foi completamente livre ou desimpedido, mas sua liberdade relativamente maior (em relação a outros países ou séculos) resultou na enorme liberação de energias produtivas, o equipamento de capital massivo e o alto padrão de vida sem precedentes que a massa dos americanos não apenas desfruta, mas considera como algo natural. Vivendo no colo de um luxo que não poderia ter sido sonhado pelo mais rico imperador do passado, estamos todos agindo cada vez mais como o homem que matou a galinha dos ovos de ouro.

E assim temos uma massa de intelectuais que habitualmente zombam do “materialismo” e dos “valores materiais”, que proclamam absurdamente que estamos vivendo em uma “era pós-escassez” que permite uma cornucópia ilimitada de produção sem exigir que ninguém trabalhe ou produza, que atacam nossa riqueza indevida como algo pecaminoso em uma recriação perversa de uma nova forma de puritanismo. A ideia de que nossa máquina de capital é automática e autoperpetuadora, de que tudo o que é feito ou não feito para ela não importa porque continuará perpetuamente — este é o fazendeiro destruindo cegamente a galinha dos ovos de ouro. Já começamos a sofrer com a degradação dos equipamentos de capital, com as restrições e impostos e privilégios especiais cada vez mais impostos à máquina industrial nas últimas décadas.

Infelizmente, tornamos cada vez mais relevante a terrível advertência do filósofo espanhol Ortega y Gasset, que analisou o homem moderno como:

encontrando-se em um mundo tão excelente, técnica e socialmente, ele acredita que foi produzido pela natureza, e nunca pensa nos esforços pessoais de indivíduos altamente dotados que a criação deste novo mundo pressupôs. Ainda menos admitirá a noção de que todas essas instalações ainda requerem o apoio de certas virtudes humanas difíceis, a menor falha das quais causaria o rápido desaparecimento de todo o magnífico edifício.

Ortega afirmava que o “homem-massa” tinha uma característica fundamental: “sua ingratidão radical para com tudo o que tornou possível a facilidade de sua existência”. Essa ingratidão é o ingrediente básico na “psicologia da criança mimada”. Como Ortega declara:

Herdeiro de um passado amplo e generoso […] a nova comunalidade foi mimada pelo mundo ao seu redor . . . as novas massas se encontram diante de um prospecto repleto de possibilidades e, além disso, bastante seguras, com tudo à sua disposição, independentemente de qualquer esforço anterior de sua parte, assim como encontramos o sol nos céus. […] E essas massas mimadas são estúpidas o suficiente para acreditar que a organização material e social, colocada à sua disposição como o ar, é da mesma origem, visto que aparentemente nunca lhes falha e é quase tão perfeita quanto o esquema natural das coisas. . . .

Como não vêem, por trás dos benefícios da civilização, maravilhas de invenção e construção que só podem ser mantidas com muito esforço e visão, imaginam que seu papel se limita a exigir esses benefícios peremptoriamente, como se fossem direitos naturais. Nos distúrbios causados ​​pela escassez de alimentos, a turba sai em busca de pão e o meio que emprega geralmente é o de destruir as padarias. Isso pode servir como um símbolo da atitude adotada, em uma escala maior e mais complicada, pelas massas de hoje em relação à civilização que as sustenta.[5]

Em uma época em que incontáveis números de intelectuais irresponsáveis clamam pela destruição da tecnologia e o retorno a uma “natureza” primitiva que só poderia resultar na morte por inanição da esmagadora maior parte da população mundial, é instrutivo relembrar a conclusão de Ortega:

A civilização não está “apenas lá”, não é autossustentável. É artificial e exige do artista ou do artesão. Se você deseja aproveitar as vantagens da civilização, mas não está preparado para se preocupar em mantê-la—você está acabado. Em um instante, você se encontra sem civilização. . . . A floresta primitiva aparece em seu estado nativo, como se as cortinas que cobriam a natureza pura tivessem sido abertas.[6]

O declínio constante nos alicerces de nossa civilização começou no final do século XIX e se acelerou durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e na década de 1930. O declínio consistiu em um recuo acelerado da Revolução e em uma mudança de volta à velha ordem de mercantilismo, estatismo e guerra internacional. Na Inglaterra, o capitalismo laissez-faire de Price e Priestly, dos Radicais e de Cobden e Bright e a escola de Manchester foi substituído por um estatismo Tory que conduzia ao Império agressivo e à guerra contra outras potências imperiais. Nos Estados Unidos, a história era a mesma, à medida que os empresários recorriam cada vez mais ao governo para impor cartéis, monopólios, subsídios e privilégios especiais. Aqui, como na Europa Ocidental, o advento da Primeira Guerra Mundial foi o grande ponto de inflexão — no agravamento da imposição do militarismo e do governo —, planejamento econômico de negócios domésticos e expansão imperial e intervenção no exterior. As guildas medievais foram restabelecidas em uma nova forma — a dos sindicatos com sua rede de restrições e seu papel como parceiros menores do governo e da indústria no novo mercantilismo. Todas as armadilhas despóticas da velha ordem voltaram em uma nova forma. Em vez do monarca absoluto, temos o Presidente dos Estados Unidos, com muito mais poder do que qualquer monarca do passado. Em vez de uma nobreza constituída, temos um Establishment de riqueza e poder que continua a nos governar, independentemente de qual partido político está tecnicamente no poder. O crescimento de um serviço civil bipartidário, de uma política interna e externa bipartidária, o advento de técnicos de poder que parecem ocupar cargos de comando independentemente de como votamos (os Achesons, os Bundys, os Baruchs, os McCloys, os J. Edgar Hoovers), todos ressaltam nosso crescente domínio por uma elite que fica cada vez mais gorda e mais privilegiada com os impostos que conseguem arrancar da pele da população.

O resultado do entrelaçamento agravado de fardos e restrições mercantilistas tem sido colocar nossa economia sob pressão cada vez maior. Altos impostos pesam sobre todos nós, e o complexo militar-industrial significa um enorme desvio de recursos, de capital, tecnologia e de cientistas e engenheiros, de usos produtivos para o desperdício exagerado da máquina militar. Indústria após indústria foi regulamentada e cartelizada até o declínio: ferrovias, energia elétrica, gás natural e telefonia são os exemplos mais óbvios. A habitação e a construção foram afetadas pela praga dos altos impostos sobre a propriedade, restrições de zoneamento, códigos de construção, controles de aluguel e proteção sindical. À medida que o capitalismo de livre mercado foi substituído pelo capitalismo de estado, mais e mais nossa economia começou a decair e nossas liberdades a se erodir.

Na verdade, é instrutivo fazer uma lista das áreas problemáticas universalmente reconhecidas de nossa economia e nossa sociedade, e descobriremos, percorrendo essa lista, um leitmotiv flagrantemente comum: o governo. Em todas as áreas altamente problemáticas, a operação ou controle do governo tem sido especialmente visível.

Consideremos:

Política externa e guerra: Exclusivamente governamental.

Conscrição: exclusivamente governamental.

Crime nas ruas: a polícia e os juízes são monopólio do governo, assim como as ruas.

Sistema de bem-estar: O problema está no bem-estar do governo; não há nenhum problema especial nas agências de previdência privada.

Poluição da água: o lixo municipal é despejado nos rios e oceanos do governo. Serviço postal: as falhas estão nos Correios de propriedade do governo, não, por exemplo, entre concorrentes privados de grande sucesso como pacotes entregues em ônibus e o Sistema Postal Independente da América, para correio de terceira classe.

O complexo militar-industrial: baseia-se inteiramente em contratos governamentais. Ferrovias: subsidiadas e fortemente regulamentadas pelo governo por um século. Telefonia: um monopólio privilegiado pelo governo.

Gás e eletricidade: um monopólio privilegiado pelo governo.

Moradia: prejudicada por controles de aluguel, impostos de propriedade, leis de zoneamento e programas de renovação urbana (todos governamentais).

Excesso de rodovias: todas construídas e pertencentes ao governo.

Restrições e greves sindicais: O resultado do privilégio do governo, notadamente no  Wagner Act de 1935.

Tributação elevada: Exclusivamente governamental.

As escolas: quase todas governamentais, ou se não diretamente, fortemente subsidiadas e regulamentadas pelo governo.

Escutas telefônicas e invasão das liberdades civis: quase todas feitas pelo governo. Dinheiro e inflação: o sistema monetário e bancário está totalmente sob controle e manipulação do governo.

Examine as áreas problemáticas e, em toda parte, como um fio vermelho, está a mancha arrogante do governo. Em contraste, considere a indústria do frisbee. Frisbees são produzidos, vendidos e comprados sem dores de cabeça, sem tumulto, sem avarias em massa ou protestos. Como uma indústria relativamente livre, o pacífico e produtivo negócio de frisbee é um modelo do que a economia americana já foi e pode ser novamente — se for libertada das algemas repressivas do grande governo.

No The Affluent Society, escrito no final da década de 1950, John Kenneth Galbraith apontou o fato de que as áreas governamentais são nossas áreas problemáticas. Mas sua explicação foi que “esfomeamos” o setor público e, portanto, deveríamos ser tributados mais pesadamente para ampliar ainda mais o setor público às custas do privado. Mas Galbraith ignorou o fato gritante de que a proporção da renda nacional e dos recursos dedicados ao governo tem se expandido enormemente desde a virada do século. Se os problemas não surgiram antes, e têm aparecido cada vez mais precisamente no setor governamental ampliado, os criteriosos podem muito bem concluir que talvez o problema esteja no próprio setor público. E essa é precisamente a afirmação do libertário de livre mercado. Problemas e panes são inerentes às operações do setor público e do governo em geral. Privada de um teste de lucros e perdas para medir a produtividade e a eficiência, a esfera do governo transfere o poder de tomada de decisão das mãos de cada indivíduo e grupo cooperante e coloca esse poder nas mãos de uma máquina governamental geral. Essa máquina não é apenas coercitiva e ineficiente; é necessariamente ditatorial porque, qualquer que seja a decisão que tome, sempre há minorias ou maiorias cujos desejos e escolhas foram anulados. Uma escola pública deve tomar uma decisão em cada área: deve decidir se é disciplinada ou progressiva ou uma combinação das duas; seja pró-capitalista, pró-socialista ou neutra; seja integrada ou segregada, elitista ou igualitária, e assim por diante. Seja o que for que decida, há cidadãos que estão permanentemente privados. Mas no livre mercado, os pais são livres para patrocinar quaisquer escolas privadas ou voluntárias que desejarem, e diferentes grupos de pais poderão então exercer sua escolha sem entraves. O livre mercado permite que cada indivíduo e grupo maximize sua gama de opções, tome suas próprias decisões e escolhas e as coloque em prática.

É irônico que o professor Galbraith não pareça estar muito feliz com a forma que o setor público tem se manifestado recentemente: no complexo militar-industrial, na guerra do Vietnã, no que o próprio Galbraith ridicularizou apropriadamente como o “Grande Socialismo Empresarial” do presidente Nixon. Mas se o glorioso setor público, se o governo expandido, nos trouxe a esse belo momento, talvez a resposta seja fazer o governo retroceder, retornar ao caminho verdadeiramente revolucionário de desmantelar o Grande Estado.

Na verdade, os liberais americanos — que por décadas foram os principais arautos e apologistas do grande governo e do Estado de bem-estar — estão cada vez mais infelizes com os resultados de seus próprios esforços. Pois, assim como nos dias do despotismo oriental, o governo do estado não pode durar muito tempo sem um corpo de intelectuais para girar os argumentos e a justificativa para ganhar o apoio e o senso de legitimidade entre o público, e os liberais (a esmagadora maioria dos intelectuais americanos ) têm servido desde o New Deal como os celebrantes do grande governo e do Estado de bem-estar. Mas muitos liberais estão começando a perceber que estiveram no poder, moldaram a sociedade americana por quatro décadas, e está claro para eles que algo deu radicalmente errado. Após quatro décadas de estado de bem-estar em casa e “segurança coletiva” no exterior, as consequências do liberalismo do New Deal viram claramente colapsos e conflitos agravados em casa e guerra perpétua e intervenção no exterior. Lyndon Johnson, com quem os liberais ficaram extremamente infelizes, referiu-se corretamente a Franklin Roosevelt como seu “Big Daddy” — e a linhagem em todas as frentes estrangeiras e domésticas era bastante clara. Richard Nixon dificilmente se distingue de seu antecessor. Se muitos liberais se tornaram estranhos e temerosos em um mundo que criaram, então talvez a falha esteja precisamente no próprio liberalismo.

Se, então, deve haver um retrocesso do estatismo, terá de haver outra revolução ideológica que corresponda à ascensão dos radicais clássicos dos séculos XVII e XVIII. Os intelectuais terão que mudar, em grande parte, de seu papel de apologistas do Estado para retomar sua função de defensor dos padrões da verdade e da razão em oposição ao status quo. Nos últimos anos, houve sinais de desencanto por parte dos intelectuais, mas a mudança foi em grande parte baseada em ideias inadequadas. Como resultado, na atual divisão entre liberais e radicais em meio a intelligentsia, nenhum dos lados nos fornece os requisitos de civilização, com os requisitos para manter uma ordem industrial próspera e livre. Os liberais nos ofereceram a racionalidade espúria do serviço tecnocrático ao Estado Leviatã de se encaixar como engrenagens manipuladas na máquina industrial governamental burocrática. A solução do liberalismo para todos os problemas internos é taxar e inflacionar mais e alocar mais fundos federais; sua solução para as crises externas é “enviar fuzileiros navais” (acompanhados, é claro, de planejadores político-econômicos para aliviar a destruição que os fuzileiros navais causam). Certamente não podemos continuar a aceitar as soluções propostas por um liberalismo que fracassou manifestamente. Mas a tragédia é que os radicais tomaram os liberais pelo seu valor nominal: identificando a razão, a tecnologia e a indústria com a atual ordem liberal-mercantilista, os radicais, a fim de rejeitar o sistema atual, também viraram as costas às virtudes necessárias do passado..

Em suma, os radicais, sentindo-se forçados a uma rejeição visceral do mundo do liberalismo, do Vietnã e dos sistemas de escolas públicas, adotaram a própria identificação dos liberais de seu próprio sistema com a razão, a indústria e a tecnologia. Daí os radicais levantam o grito de rejeição da razão em nome das emoções e do misticismo vago, da racionalidade para a espontaneidade incipiente e caprichosa, do trabalho e da previsão para o hedonismo e abandono, da tecnologia e da indústria para o retorno à “natureza” e a tribo primitiva. Ao fazer isso, ao adotar esse niilismo generalizado, os radicais estão nos oferecendo uma solução ainda menos viável do que seus inimigos liberais. Para o assassinato de milhões no Vietnã, eles iriam, na verdade, substituir a morte por fome da grande maioria da população mundial. A visão dos radicais não pode ser aceita por povos sãos e a maior parte dos americanos, sua ignorância ou erros de outra forma, são astutos o suficiente para reconhecer esse fato e tornar sonora, clara e às vezes brutal sua rejeição aos radicais e sua ética, sociedade, e estilo de vida alternativos.

O objetivo deste ensaio é que o público não precise ser forçado a escolher entre a alternativa opressiva e sufocante do liberalismo monopolista de estado de guerra, por um lado, ou o retorno irracional e niilista ao primitivismo tribal, por outro lado. A alternativa radical evidentemente não é compatível com uma vida próspera e civilização industrial; isso é muito claro. Mas menos claro é o fato de que o liberalismo estatal corporativo também não é compatível com uma civilização industrial a longo prazo. Uma rota oferece à nossa sociedade um suicídio rápido; a outra, um assassinato lento e duradouro.

Existe, então, uma terceira alternativa — uma que ainda não foi observada em meio ao grande debate entre liberais e radicais. Essa alternativa é retornar aos ideais e à estrutura que gerou nossa ordem industrial e que é necessária para sua sobrevivência a longo prazo — retornar ao sistema que nos trará indústria, tecnologia e prosperidade que avança rapidamente sem guerra, militarismo, ou a sufocante burocracia governamental. Esse sistema é o capitalismo laissez-faire, o que Adam Smith chamou de “o sistema natural de liberdade”, um sistema que se baseia em uma ética que incentiva a razão, o propósito e a realização individuais. Os teóricos libertários do século XIX — homens como os franceses da era da Restauração, Charles Comte e Charles Dunoyer, e o inglês Herbert Spencer — viram claramente que o militarismo e o estatismo são relíquias e retrocessos do passado, que são incompatíveis com o funcionamento de uma civilização industrial. É por isso que Spencer e os outros contrastaram o princípio “militar” com o “industrial” e julgaram que um ou outro teria que prevalecer.

O que estou sugerindo, em suma, nas categorias super simplificadas tornadas populares por Charles Reich, é um retorno à “Consciência I” — uma Consciência que é bruscamente rejeitada por Reich e seus leitores à medida que passam a tomar partido no grande debate entre Consciência II e III. Para Reich, a Consciência I se tornou obsoleta com o crescimento da tecnologia moderna e da produção em massa, o que tornou inevitável a mudança para o estado corporativo. Mas aqui Reich não está sendo radical o suficiente; ele está simplesmente adotando a historiografia liberal convencional de que o grande governo se tornou necessário devido ao crescimento da indústria em grande escala. Se estivesse familiarizado com economia, Reich perceberia que são precisamente as economias industriais avançadas que requerem um mercado livre para sobreviver e florescer; pelo contrário, uma sociedade agrícola pode caminhar indefinidamente sob o despotismo, desde que os camponeses tenham o suficiente de sua produção para sobreviver. Os países comunistas da Europa Oriental descobriram esse fato nos últimos anos; portanto, quanto mais se industrializam, maior e mais inexorável é seu movimento de afastamento do socialismo e do planejamento central em direção a uma economia de livre mercado. A rápida mudança dos países do Leste Europeu em direção ao livre mercado é um dos desenvolvimentos mais estimulantes e dramáticos das últimas duas décadas; no entanto, a tendência passou quase despercebida, pois a esquerda considera o afastamento do estatismo e igualitarismo na Iugoslávia e em outros países do Leste Europeu extremamente embaraçoso, enquanto os conservadores relutam em admitir que possa haver algo de esperançoso sobre as nações comunistas.

Além disso, Reich está claramente inconsciente das descobertas de Gabriel Kolko e outros historiadores recentes que revisam completamente nosso quadro das origens do atual estado de bem-estar e de guerra. Longe de a indústria em grande escala forçar o conhecimento de que a regulamentação e o grande governo eram inevitáveis, foi precisamente a eficácia da competição de livre mercado que levou os grandes empresários em busca do monopólio a recorrer ao governo para fornecer tais privilégios. Não havia nada na economia que objetivamente exigisse uma mudança da Consciência I para a Consciência II: apenas o antigo desejo dos homens por subsídio e privilégio especial criou a “contra-revolução” do estatismo. Na verdade, como vimos, esse desenvolvimento apenas prejudica e atrapalha o funcionamento da indústria moderna; a realidade objetiva exigiria um retorno à Consciência I. Neste mundo de mudanças notavelmente rápidas em valores e ideologias, tal mudança na consciência não pode ser descartada como impossível; coisas muito mais estranhas têm acontecido.

Em certo sentido, a adoção de valores e instituições libertárias seria um retorno; em outro sentido, seria um avanço profundo e radical. Pois, embora os libertários mais antigos fossem essencialmente revolucionários, eles permitiram que sucessos parciais se transformassem estrategicamente e taticamente em aparentes defensores do status quo, meros resistentes à mudança. Ao adotar essa postura, os primeiros libertários perderam sua perspectiva radical; pois o libertarianismo nunca chegou a existir totalmente. O que eles devem fazer é se tornar “radicais” mais uma vez, como Jefferson e Price e Cobden e Thoreau foram antes deles. Para fazer isso, eles devem erguer a bandeira de seu objetivo final, o triunfo final da lógica milenar dos conceitos de livre mercado, liberdade e direitos de propriedade privada. Esse objetivo final é a dissolução do Estado em organismo social, a privatização do setor público. Em contraste com a visão disfuncional da Nova Esquerda, essa é uma meta totalmente compatível com o funcionamento de uma sociedade industrial — e também com paz e liberdade. Muitos dos libertários mais antigos careciam de coragem intelectual para prosseguir — para clamar pela vitória total em vez de se contentar com o triunfo parcial — na aplicação de seus princípios aos campos do dinheiro, polícia, tribunais e o próprio Estado. Eles falharam em acatar a injunção de William Lloyd Garrison de que “gradualismo na teoria é perpetuidade na prática”. Pois, se a teoria pura nunca é sustentada, como pode ser alcançada?


[1]Para uma visão da Índia por economistas de livre mercado, consulte Peter T. Bauer, United States Aid and Indian Economic Development (Washington, D.C .: American Enterprise Association, 1959) e B.R. Shenoy, Indian Planning and Economic Development (Bombay and New York Asia Publishing House, 1963).

[2] De maneira semelhante, os britânicos no final do século XIX tiveram grande dificuldade em estabelecer seu domínio sobre a tribo sem Estado e de livre mercado dos Ibos da África Ocidental. Sobre a Irlanda, consulte Joseph R. Peden, “Stateless Societies: Ancient Ireland”, The Libertarian Forum (abril de 1971) e as referências nele contidas.

[3] Sobre a herança ideológica da Grã-Bretanha, ver Bernard Bailyn, The Ideological Origins of the American Revolution (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1967).

[4]Veja Murray N. Rothbard, “Individualist Anarchism in the United States: The Origins”, Libertarian Analysis (Inverno de 1970): 14-28.

[5] José Ortega y Gasset, The Revolt of the Masses (Nova York: W.W. Norton, 1932), pp. 63-65.

[6] lbid., p. 97.

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