Por Murray Rothbard
[Retirado de História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Austríaca—Antes de Adam Smith, cap. 2, subcap. 8]
A primeira vitória na luta sobre os conceitos de direito de propriedade foi conquistada pelos Franciscanos, cuja teoria foi defendida por seu protetor, o Papa Nicolau III, em sua bula Exiit, emitida em 1279. Essa teoria dominante foi elaborada pelo primeiro grande crítico do Tomismo, o escolástico Franciscano Britânico João Duns Scotus (1265-1308), professor de teologia em Oxford e depois em Paris. Tomás sustentava que nem a propriedade privada nem a propriedade comunal eram características necessárias do estado da natureza, de modo que uma condição não era mais natural que a outra. Scotus, pelo contrário, sustentou ousadamente que em estado de inocência natural tanto a lei natural quanto a divina decretam que todos os recursos sejam mantidos em comum, de modo que não possa existir propriedade privada ou domínio. Nesse supostamente idílico comunismo primitivo, cada pessoa pode retirar o que precisa do estoque comum.
A teoria dos direitos dificilmente foi o único desvio Franciscano em relação ao Tomismo de linha principal. Como fideístas, os Franciscanos se remontam à tradição Cristã anterior, antes de ser substituída pelo racionalismo de São Tomás. Eles começaram, portanto, a depreciar a ideia de uma ética racional e, portanto, de uma lei natural.
Em matéria de teoria dos direitos, pelo menos, os franciscanos logo foram esmagados. Reagindo contra os Franciscanos, o Papa João XXII emitiu sua famosa bula Quia vir reprobus (1329). Quia afirmou com veemência que o domínio de Deus sobre a terra se refletia na propriedade ou domínio do homem sobre seus bens materiais. Os direitos de propriedade, portanto, não eram, como até mesmo Tomás acreditava, um produto de lei positiva ou convenção social; eles estavam enraizados na natureza do homem, criados pela lei divina. Os direitos de propriedade eram, portanto, naturais e coincidem com as ações do homem no mundo material. Os Franciscanos foram efetivamente derrotados nesse ponto; foi agora estabelecido, como diz Richard Tuck, que a propriedade “era um fato básico sobre os seres humanos, no qual seus conceitos sociais e políticos tinham de ser postulados”.[1]
Em questões mais estritamente econômicas, os Franciscanos poderiam aderir ou desviar-se do conceito Tomista de linha principal de preço justo. O próprio Scotus apresentou uma visão divergente. Em seu comentário sobre o livro Sentenças de Pedro Lombardo, Scotus elaborou uma visão minoritária que muitos historiadores atribuíram erroneamente ao escolasticismo como um todo: que o preço justo era o custo de produção do mercador mais a compensação pela indústria, trabalho e risco envolvidos na introdução de seu produto no mercado. A compensação, além disso, era para dar apoio adequado à família do mercador. Dessa forma, o trabalho mais despesas mais risco, anteriormente empregado para justificar quaisquer lucros que o comerciante pudesse obter, foi agora transformado no determinante do preço justo. Scotus fez desse custo de produção uma teoria de preço justo, em contraste com a visão escolástica tradicional de longa data de que o preço justo era o preço comum no mercado.
Embora um Franciscano, o escolástico Britânico da Universidade de Paris, Ricardo de Middleton (c. 1249-1306), seguiu a doutrina econômica de Tomás e enfatizou a necessidade e a utilidade como os determinantes do valor econômico. O preço justo, seguindo a linha escolástica principal, era equivalente ao preço comum de mercado determinado por essas necessidades. Middleton também sublinhou o conceito de vital importância de Tomás, segundo o qual ambas as partes se beneficiam de uma troca. Tornando-se mais preciso do que Tomás, Middleton apontou que, digamos, quando um cavalo é vendido por dinheiro, tanto o comprador quanto o vendedor ganham com a transação, já que o comprador demonstra que precisa mais do cavalo do que do dinheiro enquanto o vendedor prefere o dinheiro ao cavalo.
Além de desenvolver esse conceito crucial de benefício mútuo, Ricardo de Middleton foi o primeiro a aplicar esse conceito ao comércio internacional. O comércio internacional, assim como a troca individual, traz benefícios mútuos. Middleton ilustrou essa ideia postulando dois países: o país A, que tem uma superabundância de grãos, mas uma escassez de vinho, e o país B, que tem uma abundância de vinho, mas poucos grãos. Ambos os países se beneficiarão, então, trocando seus respectivos excedentes. Os mercadores também lucrarão transportando grãos do país A, onde é abundante e seu preço é, portanto, barato, para o país B, onde é escasso e demanda um alto preço. Os comerciantes também lucrarão com o tráfego reverso: enviando vinho do país B, onde seu preço é baixo, para A, onde seu preço é alto. Ao comprar e vender a preços de mercado atuais, os comerciantes estão negociando a preço justo e lucram sem explorar ninguém. Os comerciantes são justamente compensados pela execução de um serviço útil e por assumir problemas e riscos. O único ponto perdido por Middleton nessa análise sofisticada é que as ações dos vários comerciantes se moverão em direção à equalização de preços nos dois países.
Uma contribuição ainda mais deslumbrante ao pensamento econômico foi feita por um frade Franciscano Provençal, durante muitos anos orador em Florença, Pierre de Jean Olivi (1248-98), em dois tratados sobre contratos, um sobre usura e outro sobre compras e vendas, assinalou que o valor econômico era determinado por três fatores: escassez (raritas); utilidade (virtuositas); e desejabilidade ou desejo (complacibilitas). O efeito da escassez, ou o que agora chamamos de “oferta”, é claro: quanto mais escasso for um produto, mais valioso ele é e, portanto, mais alto o preço. Quanto mais abundante o produto (maior a oferta), por outro lado, menor o valor e o preço.
A notável contribuição de Olivi foi investigar o anteriormente vago conceito de necessidade ou utilidade. O estudante e discípulo de Tomás, o Dominicano Gil de Lessines, professor da Universidade de Paris, tinha levado o conceito de utilidade um passo adiante ao afirmar que os bens são mais ou menos valiosos no mercado de acordo com o grau de sua utilidade. Mas agora Olivi separou a utilidade em duas partes. Uma era a virtuositas, ou a utilidade objetiva de um bem, o poder objetivo que ele tem de satisfazer os desejos humanos. Mas, como explica Olivi, o fator importante na determinação do preço é a complacibilitas, ou utilidade subjetiva, o desejo subjetivo de um produto para os consumidores individuais.
Além disso, Olivi confrontou diretamente o “paradoxo do valor” que mais tarde confundiria Adam Smith e os economistas clássicos, e se saiu muito melhor do que eles em resolvê-lo. O “paradoxo do valor” é que um bem como a água ou o pão, essencial à vida e, portanto, de acordo com os economistas clássicos, tendo um alto “valor de uso”, deve ser muito barato e ter um baixo valor no mercado. Ao mesmo tempo, em contraste, ouro ou diamantes, luxos não essenciais e, portanto, de muito menor valor de uso, têm valores de troca muito mais altos no mercado. Os economistas clássicos dos séculos XVIII e XIX simplesmente cruzaram os braços a respeito desse paradoxo e insatisfatoriamente colocaram uma dicotomia acentuada entre o valor de uso e o valor de troca. Olivi, por outro lado, apontou a solução: a água, embora necessária à vida humana, é tão abundante e facilmente disponível que demanda um preço muito baixo no mercado, enquanto o ouro é muito mais escasso e, portanto, mais valioso. A utilidade, na determinação do preço, é relativa à oferta e não absoluta. A solução completa para o paradoxo do valor teve de esperar pela Escola Austríaca do final do século XIX: a “utilidade marginal” — o valor de cada unidade de um bem — diminui na medida em que sua oferta aumenta. Assim, um bem superabundante como o pão ou a água terá uma utilidade marginal baixa, enquanto um bem raro como o ouro terá uma utilidade marginal alta. O valor de um bem no mercado, e, portanto, seu preço, é determinado por sua utilidade marginal, não pela utilidade filosófica do bem como um todo ou em abstrato. Mas, é claro, antes dos Austríacos, faltava o conceito marginal.
O mercado para Olivi, então, era uma arena na qual os preços das mercadorias são formados a partir da interação de indivíduos com diferentes utilidades e valorações subjetivas do bem. Somente os preços de mercado, portanto, não são determinados por referência às qualidades objetivas do bem, mas pela interação de preferências subjetivas no mercado.
Além de sua monumental realização em ser o primeiro a descobrir a teoria da utilidade subjetiva, Olivi foi o primeiro a trazer para o pensamento econômico o conceito de capital (capitale) como um fundo de dinheiro investido em um empreendimento comercial. O termo “capital” apareceu em numerosos registros comerciais desde meados do século XII, mas essa foi a primeira vez que foi conceitualizado. O conceito de capital foi utilizado por Olivi para mostrar que era possível usar o dinheiro de uma maneira frutífera, para obter lucro. Olivi manteve a proibição da usura onde o capital foi investido sem ser alterado de alguma forma pelo trabalho e pela industriosidade do investidor. Entretanto, Olivi foi uma das minorias dos escolásticos a adotar a permissibilidade de Henrique de Óstia ao lucrum cessans — permitindo uma cobrança de juros sobre um empréstimo onde quer que o lucro sobre um investimento tenha sido perdido no processo. Infelizmente, Olivi continuou a cuidadosa limitação de Henrique de Óstia de confinar o lucrum cessans a empréstimos concedidos por caridade, de modo que as atividades de um emprestador profissional de dinheiro ainda não poderiam de forma alguma ser justificadas.
É uma ironia notável na história do pensamento econômico que o descobridor da teoria da utilidade subjetiva, um analista altamente sofisticado de como a economia de mercado funcionava, um crente no preço justo como o preço de mercado comum, o iniciador do conceito de capital, e um defensor, pelo menos, do uso parcial do lucrum cessans como forma de justificar os juros: que esse grande pensador de mercado deveria ter sido o líder da ala rigorosa da ordem Franciscana que acreditava em viver em extrema pobreza. Talvez uma explicação seja que Olivi nasceu na importantíssima cidade mercantil de Narbonne. Ele foi o principal líder intelectual dos Franciscanos Espirituais, que acreditavam devotamente em seguir fielmente a regra da pobreza total estabelecida pelo fundador da ordem, São Francisco de Assis (1182-1226). É mais uma ironia que os opositores de Olivi, os Franciscanos Conventuais, que acreditavam em uma interpretação muito mais frouxa da regra, lançaram anátemas em Olivi e outros Espirituais e conseguiram destruir muitos traços físicos e intelectuais da obra de Olivi. Em 1304, seis anos após sua morte, um capitular geral da Ordem Franciscana ordenou a destruição de todas as obras de Olivi, e 14 anos depois, o corpo do desafortunado Olivi foi desenterrado e seus ossos espalhados.
Não apenas muitas cópias físicas dos escritos de Olivi foram destruídas, mas tornou-se insalubre para os Franciscanos, pelo menos, referir-se às suas obras. Como resultado, quando, quase um século e meio depois, a obra esquecida de Olivi foi redescoberta pelo grande santo Franciscano São Bernadino de Siena, Bernadino achou prudente não se referir sequer ao herege Olivi, embora ele usasse a teoria da utilidade deste último praticamente palavra por palavra em sua própria obra. Esta reticência era necessária porque Bernadino pertencia à rigorosa ala Observadora dos Franciscanos, de certa forma descendentes dos Espirituais de Olivi. De fato, só a partir dos anos 1950 é que os esclarecedores escritos econômicos de Olivi, e sua apropriação por San Bernadino, vieram à luz.
Talvez outra razão para a histeria com que os principais Franciscanos saudaram as opiniões religiosas de Pierre Olivi tenha sido seu contínuo flerte com a heresia Joaquimita. Um dos fundadores do messianismo Cristão místico foi o eremita Calabriano e Abade Joaquim de Fiore (1145-1202). No início dos anos 1190, Joaquim adotou a tese de que havia na história não apenas duas eras (pré-Cristã e pós-Cristã), mas uma terceira era, da qual ele mesmo era o profeta. A época pré-Cristã era a era do Pai, do Antigo Testamento; a era cristã, a era do Filho, do Novo Testamento. E agora vinha o cumprimento, a nova terceira era, a era apocalíptica do Espírito Santo, na qual a história logo terminaria. A terceira era, que para Joaquim deveria ser inaugurada durante o próximo meio século, no início ou meados do século XIII, deveria ser uma era de puro amor e livridade. O conhecimento de Deus seria revelado diretamente a todos os homens e não haveria trabalho ou propriedade, pois os seres humanos possuiriam apenas corpos espirituais, tendo seus corpos materiais desaparecido. Não haveria Igreja ou Bíblia ou estado, mas apenas uma comunidade livre de seres espirituais perfeitos que passariam todo o seu tempo em êxtase místico louvando a Deus até esse milenar Reino dos Santos inaugurar nos Últimos Dias, os dias do Juízo Final.
As divergências aparentemente minúsculas nas premissas têm muitas vezes graves consequências sociais e políticas, e isso se aplicava às divergências entre os Cristãos sobre a questão aparentemente recôndita da escatologia, da ciência ou da disciplina dos Últimos Dias. Desde Santo Agostinho, a visão Cristã ortodoxa tem sido amilenarista, ou seja, que não existe nenhum milênio especial ou Reino de Deus na história humana, exceto a vida de Jesus e o estabelecimento da Igreja Cristã. Essa é a opinião dos católicos, dos Luteranos, e provavelmente do próprio Calvino. A conclusão ideológica ou social é que Jesus voltará a inaugurar o Juízo Final e o fim da história em Seu próprio tempo, de modo que não há nada que os seres humanos possam fazer para acelerar os Últimos Dias. Uma variante dessa doutrina é que após o retorno de Jesus, Ele inaugurará mil anos do Reino de Deus na Terra antes do Juízo Final; em termos práticos, porém, há pouca diferença significativa aqui, uma vez que o Cristianismo permanece em vigor, e ainda não há nada que o homem possa fazer para guiar ao milênio.
A diferença crucial vem com as ideias quiliásticas, como as de Joaquim de Fiore, onde não só o mundo estava terminando em breve, mas o homem deve fazer certas coisas para inaugurar os Últimos Dias, para preparar o caminho para o Juízo Final. Todas estas são doutrinas pós-milenares, ou seja, que o homem deve primeiro estabelecer um Reino de Deus na Terra como condição necessária para o retorno de Jesus ou para o Juízo Final. Geralmente, como veremos mais adiante na Reforma Protestante, visões pós-milenares levam a alguma forma de coerção teocrática da sociedade para pavimentar o caminho para a culminação da história.
Para Joaquim de Fiore o caminho para os Últimos Dias seria aberto por uma nova ordem de monges altamente espirituais, dos quais viriam 12 patriarcas encabeçados por um professor supremo, que converteria os Judeus ao cristianismo, como predito nas Revelações, e conduziria toda a humanidade para longe do material e em direção ao amor das coisas do espírito. Então, por um breve período de três anos e meio, um rei secular, o Anticristo, iria castigar e destruir a corrupta Igreja Cristã. A rápida derrubada do Anticristo guiaria então para a total era do Espírito.
Tendo em vista a natureza radical e potencialmente explosiva da heresia de Joaquim, é notável que nada menos que três papas contemporâneos expressaram grande interesse em sua doutrina. Em meados do século XIII, porém, o Joaquimismo foi negligenciado e pouco conhecido. É uma pequena maravilha que a heresia Joaquimita tenha sido reavivada pelos Franciscanos Espirituais, que foram tentados a ver em sua própria e próspera nova ordem, e em sua devoção à pobreza, a própria ordem monástica que tinha sido predita por Joaquim para realizar os Últimos Dias.
[1] Ibid., p. 24.