Euclidianismo versus Hermenêutica: Uma reinterpretação do Apriorismo Misesiano

Tempo de Leitura: 26 minutos

Por Don Lavoie

[Traduzido por Vitor Gomes Calado]

Introdução

“Agora a determinação das quantidades econômicas, na medida em que isso é possível, é obviamente uma meta de qualquer teoria econômica e desse modo de qualquer teoria do mercado. Mas para um método de análise que também está preocupado com a interpretação do sentido da ação, essa determinação é somente o primeiro passo. A tarefa real é explicar como as relações entre quantidades derivam de atos mentais.”

Ludwig Lachmann (1977), p. 113)

Talvez o evento mais significativo que concerne o moderno reavivamento da economia Austríaca ou subjetivista nos Estados Unidos nos anos 70 foi a chegada de Ludwig Lachmann à Universidade de Nova York. Levado às ideias Austríacas inicialmente pelos escritos metodológicos de Ludwig von Mises na década de 30, Lachmann já mantinha uma dedicação vitalícia ao avanço do subjetivismo. Ainda assim sua chegada à NYU foi tumultuosa. Esse era um Austríaco de diferente estirpe. Muitos de nós inicialmente ficaram alarmados por sua crítica radical do que ele chamou de teoria neoclássica “formalística”, uma crítica que parecia chegar periculosamente perto de uma completa rejeição de qualquer teorização econômica, isto é, ao historicismo.[2] Ficamos confusos por sua injeção de nomes tais como Max Weber, Paul Davidson e George Shackle em nosso discurso, e continuamos a fazer querelas com ele sobre a natureza da contribuição de Keynes. Os seguidores americanos de Mises pareciam ter desenvolvido um ramo muito diferente de economia misesiana do que aquela trazida à Nova York pelo Professor Lachmann.[1]

Enquanto seria muito forte dizer que somos todos Lachmannianos agora, é claro que depois de dez anos de sua influência os Austríacos americanos nunca serão os mesmos novamente. Não que os medos de alguma tendência historicista na obra de Lachmann tenha sido de uma vez por todas expurgado. Mas ele nos desafiou de várias formas importantes que nos forçaram a melhorar nossa economia. Agora tomamos de forma mais sérias as dificuldades com a economia neoclássica à qual ele levou nossa atenção e isso nos levou a reexaminar muitos aspectos de nossas próprias teorias. Ele nos forçou a ir além de discussões teóricas do mercado e examinar instituições de mercado do mundo real. Ele nos fez nunca esquecer a importância das expectativas na economia. E talvez mais significantemente que tudo, ele dirigiu nossa atenção ao que eu acredito agora ser o principal obsctáculo para o progresso na economia contemporânea, o respeito superexaltado por modos formalísticos em detrimento de modos interpretativos de explicação.

Este artigo é oferecido ao Professor Lachmann como uma tentativa de estender este último tema, a crítica ao formalismo.  Creio que o antiformalismo de Lachmann, diferente do dos historicistas, não nega a necessidade por teoria sistemática. Aqui eu não irei, entretanto, tentar substanciar essa interpretação de Lachmann como um não-historicista. Em vez disso, tentarei mostrar que a literatura que levou Lachmann à economia, a obra metodológica de Mises, que tem sido geralmente interpretada como ela mesma um tipo de formalismo (que eu chamo de Euclidianíssimo), pode em vez disso ser visto como um tipo de antiformalismo ao longo de linhas amplamente Lachmannianas (que eu chamo de hermenêutica). Embora a evidência textual esteja misturada, há discerníveis, senão doravante quase complemente ignoradas, linhas antiformalísticas no pensamento metodológico de Mises que deveriam atrair os seguidores de Mises rumo a algumas das muitas direções metodológicas para as quais Lachmann tem apontado a nós.

Em vista do fato de que ambos os amigos e inimigos de Mises a Hayek a Hutchison tem concordado em ver sua metodologia como uma metodologia Euclidiana, alguma justificação parece apropriada para início deste exercício de reinterpretação. Há duas considerações gerais que sugerem que a interpretação estritamente Euclidiana pode ser uma visão incompleta do apriorismo de Mises. Primeiro, a distinção sobre a qual Mises vigorosamente insistiu, entre teoria e história, tem sido frequentemente mal-interpretada como uma dicotomização estrita que isola esses dois processos cognitivos completamente um do outro. Mas, em verdade, Mises não somente misturou observações históricas com todas as suas exposições teóricas, mas até explicitamente disse que a teoria e a história são absolutamente necessárias uma à outra. Elas são descritas como duas metades incompletas das ciências humanas. Há, é claro, uma diferença entre a intenção particularizante da história e a intenção sistematizadora e generalizante de nossos processos cognitivos. Mises chamou esses aspectos, respectivamente, compreensão e concepção. Tudo o que ele estava dizendo é que questões sobre “O que aconteceu?” não são a mesma coisa que perguntar: questões de “O que pode acontecer?”. Mas a teoria e a história são não obstante dois aspectos inescapáveis do que é em última instância um empenho intelectual integrado. Boa teoria não pode ser desenvolvida sem um plano de fundo de informação sobre “o que aconteceu”, assim como contar a história do que acontece requer traçar conclusões sobre o que é possível. Nós necessariamente construímos teoria sistemática através de um contínuo entretecimento para lá e para cá entre essas metades complementares de cognição. Quando essa complementaridade entre teoria e história é tida em mente, muitos aspectos de outro modo objetáveis do apriorismo de Mises parecem muito mais razoáveis. A história não pode refutar a teoria, Mises diz, mas então ele prossegue para apontar que é precisamente a história que nos mostra que partes de nossa teoria são aplicáveis ao mundo real. Assim, a teoria não é nem aproximadamente isolada dos “fatos” como alguns dos próprios pronunciamentos de Mises sugerem. Ademais, a descrição de Mises desse apriorismo enquanto “estritamente dedutivo”, levando à luz dessa complementaridade entre teoria e história, pode ser vista como uma resposta a historicistas. Mises pode não ter desejado essa “dedução estrita” para restringir processos cognitivos a uma forma linear e Euclidiana de argumento, mas em vez disso insistir no poder do processo conceitual, de raciocínio discursivo em seu sentido amplo enquanto oposto ao encontro empírico de fatos.

A segunda consideração geral que levanta alguma dúvida sobre a interpretação estritamente Euclidiana é a ambiguidade que cerca o uso por parte de Mises das duas palavras praxiologia e apriorismo. A primeira palavra vou cunhada para substituir por seu uso anterior da palavra sociologia, que ele acreditou que veio a ser muito contaminada com positivismo e Marxismo. Ele pegou emprestado a segunda dos filósofos neo-Kantianos mas a colocou a seu próprio uso. A maioria dos intérpretes assumiram que Mises intencionou essas palavras estritamente para se referir a seu próprio ramo da economia, em cujo caso uma afirmação como “toda a economia precisa ser apriorística e praxiológica” é tomada como um preconceito exclusivístico. Veremos, entretanto, que em alguns contextos Mises usa essas palavras em um sentido muito mais amplo, para se referir não a como ele pensou que a economia deveria ser, mas como ela é e tem sido, ao longo da história da ciência. Muitas das passagens mais Euclidianas de Mises tomam então todo um novo sentido de essas duas considerações são levadas em conta.

Se eu estiver correto de que há uma via hermenêutica de se ler o apriorismo misesiano, então muitas das críticas mais duras da metodologia de Mises se torna problemática. O dogmatismo e rigidez, o antagonismo ao trabalho empírico, e o confiante ar de completude e certeza apodítica que tem infectado alguns de seus seguidores admiradores e enchido de fúria alguns de seus mais fervorosos inimigos são todos sintomas do estilo de pensamento Euclidiano. À medida que o apriorismo de Mises possa ser reformulado como hermenêutico em vez disso, nessa medida, creio eu, sua metodologia toma uma potência e eloquência para hoje. E, a propósito, o ramo distintamente hermenêutico da economia de Lachmann correspondentemente toma uma nova significância para os seguidores americanos de Mises que acharam a obra de Lachmann tão estrangeira uma década atrás.

Rumo a um Modelo Não-Euclidiano de Sistematização Cognitiva

“Desde os dias de Aristóteles até a Era da Razão – e bem além – pensou-se que tudo de nosso conhecimento do mundo observável poderia eventualmente ser organizado em um vasto sistema único dedutivo conforme as linhas previstas pelo modelo Euclidiano. […] Nos tempos modernos, essa figuração Euclidiana da cognição científica foi seriamente questionada pela primeira vez no alvorecer da era do Romantismo por aqueles que visaram defender a existência de metodologias científicas distintas, diferindo como entre as ciências do homem e as ciências da natureza (extra-humana). […] Os participantes alemães nessa Methodenstreit como Wilhelm Dilthey, Wilhelm Wildelband e Heinrich Rickert sustentaram com efeito que as Naturwissenschaften [ciências naturais] ahistóricas, analíticas e não-valorativas estão comprometidas com um modelo Euclidiano de sistematização, de modo que as Geistewissenschaften [“ciências do espírito”/humanas], históricas, sintéticas e valorativas, exigiram algo seguindo as linhas de um modelo de uma teia.”

Nicholas Rescher (1979), pp. 56-7.

Muitos dos seguidores subjetivistas de Ludwig von Mises, incluindo o Professor Lachmann e a maioria dos críticos metodológicos de Mises, expressaram uma certa insatisfação com a linguagem na qual Mises canalizou seu método para uma ciência geral da ação. Mises às vezes apresenta sua ciência a priori como aquilo que Imre Lakatos chamou de um sistema Euclidiano, uma categoria privilegiada do conhecimento, unicamente certeira e imune a toda crítica. Foi construída a partir de um conjunto de axiomas evidentes em si mesmos dos quais argumentos estritamente dedutivos podem ser desdobrados mecanicamente, Mises e seus seguidores gostam de insistir que visto que na economia qualquer investigação de fatos históricos necessariamente pressuponha uma teoria que é capaz de fazer sentido desses fatos, portanto, a teoria é anterior a, em vez de testada pela história. Uma abordagem a priori é distinguível de uma a posteriori pois enquanto a primeira primariamente busca testar a inteligibilidade de um registro conjectural histórico contra teorias acreditadas, aquela última busca primariamente testar a aplicabilidade de teorias conjecturais contra fatos acreditados. Proponentes sofisticados de cada uma podem admitir que as teorias e os fatos testam um aos outros em diferentes fases da pesquisa científica. Mas houve um tempo em que a versão ingênua de aposteriorismo dominou as ciências naturais. O aposteriorismo ingênuo sustenta que teorias são estritamente subsidiárias aos fatos que nem deveriam, nem precisam, ser carregados por teorias.

Foi nesse ambiente, no qual as bem-sucedidas ciências foram pensadas a construir suas teorias a partir de uma acumulação neutra de fatos, que Mises declarou que sua economia é a priori. O argumento que ele usou para apoiar essa afirmação – que todos os fatos em sua disciplina são carregados de teorias – é hoje amplamente aceito a ser verdade dos fatos nas ciências naturais também. Nesse sentido podemos quase dizer que somos todos aprioristas agora.

Mas há, por assim dizer, tanto mais quanto menos para o apriorismo de Mises do que essa visão mais incontroversa de que fatos são carregados de teorias. O “menos” é uma implicação que Mises deixa (que eu chamarei de Euclidianismo) que nenhum registro histórico pode nem sequer nos causar a voltar e a reconsiderar nossa teoria Apriori, assim sugerindo que teorias são de algum modo epistemicamente privilegiadas e seguramente dicotomizada da história. Essa visão faz a economia parecer muito diferente das ciências naturais. O “mais” é a visão (que eu chamarei de hermenêutica) que para qualquer explicação econômica ser aceitável ela deve se relacionar aos fenômenos observáveis para seu sentido subjacente em termos de propósitos individuais cujas interações constituem um sistema econômico. Isto é, as ciências sociais como a economia precisam não somente explicar o que acontece, assim como um físico pode explicar o movimento de um planeta, eles precisam também compreender o sentido do que acontece para aqueles aos quais isso acontece. Essa visão mostra em quais aspectos há diferenças genuínas ao menos em grau, entre as ciências naturais e ciências sociais.

Infelizmente enquanto os aspectos euclidianos do apriorismo de Mises tenham sido bem documentados e apropriadamente criticados, os mais promissores aspectos hermenêuticos não o foram. Como resultado, toda a contribuição metodológica de Mises é desconsiderada em virtude de seus vícios Euclidianos sem qualquer reconhecimento de que suas virtudes hermenêuticas existem. Assim, muito depende de como as evidências textuais se acumulam em relação a essas leituras alternativas do apriorismo de Mises. Mas antes de examinar essa evidência textual, é necessário afirmar de algum modo mais direto se talvez um pouco simplisticamente, exatamente o que se compreende no que essas alternativas implicam.

O Euclidianismo e a hermenêutica podem ser vistos não tanto como métodos alternativos, mas como duas visões contrastantes da relação entre metodologia e ciência, e mais amplamente como estilos de pensamento contrastantes. O Euclidianismo é uma metodologia mais prescritiva, enquanto a hermenêutica é mais descritiva. O Euclidianismo é representado como uma estrutura dedutiva fixa na qual os economistas são informados sobre o que eles devem encaixar em seus argumentos, a fim de acompanhar os padrões filosóficos da verdadeira objetividade científica. Hermenêutica é mais aquilo que Rescher chama de modelo de teia, uma abordagem que baseia sua avaliação do que é científico por uma dependência dos juízos pragmáticos de sistematicidade, coerência, clareza, etc., por membros da comunidade científica. Aqui o que é aceitável não é o que atende aos critérios epistemológicos pré-estabelecidos dos metodólogos, mas simplesmente o que funciona, ou seja, o que persuade efetivamente.

A diferença entre esses estilos de sistematização não é simplesmente que o Euclidianismo ousa recomendar métodos enquanto a hermenêutica timidamente se abstém de fazê-lo. A diferença é que a prescrição metodológica euclidiana é lógica (de uma mente), ahistórica e confinante, enquanto a hermenêutica é dialógica (da comunidade científica como um todo), histórica e aberta. A hermenêutica deriva seus padrões da examinação da história do pensamento e da “conversa” viva que é a ciência, enquanto o Euclidianismo busca permanecer acima do cientista praticante e julgar seu trabalho por padrões extrahistónicos e lógicos.

Se o Euclidianismo toma seu modelo como sendo uma geometria axiomática, qual é o modelo contrário da hermenêutica? A tradição Dilthey/Weber é uma extensão das ciências sociais dos métodos de interpretação textual, principalmente exegese bíblica e jurídica e tradução linguística, que remontam aos tempos antigos. Seu renascimento moderno, nas mãos de escritores como Clifford Geertz, Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur, transformou essa abordagem interpretativa de explicação nas ciências sociais em uma escola filosófica extremamente poderosa com importantes implicações para a economia contemporânea.[3] Assim, este artigo, uma reinterpretação textual de Mises, é tanto sobre quanto um exemplo do método hermenêutico. Entender o sentido de um texto escrito muitas vezes requer um esforço sustentado; uma formulação provisória do sentido do todo (digamos, da obra de vida de Mises) é verificada em relação ao sentido de partes específicas (digamos, seus capítulos metodológicos no início do Human Action, ou a frase de abertura desse livro). A revisão do sentido dessas partes requer, então, uma nova hipótese sobre o significado do todo, e o processo dialógico continua.

Sustentar a necessidade de uma teoria sistemática na cognição dos fenômenos sociais não precisa, então, exigir um procedimento Euclidiano para estabelecer a sistematização. Em seu livro Cognitive Systematization, Nicholas Rescher apresenta um caso geral por procedimentos não-euclidianos para garantir, na medida do possível, que nossas explicações científicas sejam sistemas de conhecimento integrados e coerentes. O Euclidianismo toma como ideal um sistema totalmente axiomatizado e linearmente construído de estrita dedução seguindo as linhas da geometria de Euclides. O que Rescher chama de “modelo de teia”, embora também se esforce para sustentar o conhecimento como um sistema integrado e coerente, constitui um caminho fundamentalmente diferente para a sistematização cognitiva. Ele se refere (1979, p. 46) a três pontos críticos de diferença entre esses dois modelos de sistematização.

(1) O modelo de teia dispensa completamente a necessidade de uma categoria de teses fundamentais básicas (evidentes em si mesmas ou auto-validadoras) ou “protocolares” capazes de desempenhar o papel de suportes axiomáticos para toda a estrutura.

(2) A estrutura do arranjo das teses no âmbito do modelo de rede não precisa ser geológica: não é solicitada a estratificação das teses em níveis de maior ou menor fundamentalidade.  […]

(3) O modelo de teia, portanto, abandona a concepção de prioridade ou fundamentalidade em seu arranjo de teses. Substitui tal fundamentalidade por uma concepção de inimizade em termos entrelaçados da multiplicidade de ligações e os padrões de inter-conexão [inter-conectedness] com outras partes da teia.

O modelo euclidiano tem requisitos extremamente rigorosos que têm dificultado cada vez mais a manutenção, mesmo em seu domínio da geometria. Requer uma construção linear dos axiomas mais fundamentais em direção à derivação menos fundamental, como diz Rescher (1979, p. 52), “Nada do que acontecer nos estágios epistemicamente posteriores da análise pode afetar o ponto de partida das verdades básicas”. Esses axiomas básicos são, portanto, completamente “isentos de qualquer reavaliação retrospectiva à luz de novas informações ou insights”. Em contrapartida, o modelo de teia de sistematização cognitiva permite um movimento recursivo entre suas partes, nenhuma das quais precisa ter qualquer prioridade epistêmica absoluta sobre qualquer outro. Diante de uma variedade de críticas devastadoras da filosofia, matemática e ciência cognitiva, o Euclidianismo, outrora o modelo dominante da ciência, foi derrotado em praticamente todos os campos do pensamento. Lakatos (1978, p. 90) mostra que o Euclidianismo mesmo na matemática trunca o processo crítico ao artificialmente injetar ” primeiros princípios indubitáveis e intuitivos” e “fatos” perfeitos raciocinados sobre a ciência à qual somente conjecturas mais ou menos provisórias pertencem apropriadamente.³  Mantém uma base, como Imre Lakatos apontou, apenas na matemática (onde parece ser apenas uma visão minoritária) e “naqueles assuntos não desenvolvidos, onde o conhecimento ainda é trivial,  como ética, economia, etc.”[4]

Lakatos refere-se a Ludwig von Mises (juntamente com um seguidor metodológico de Mises, Lionel Robbins) como seu exemplo de um economista euclidiano.[5] De fato, o estimado historiador da economia, T. W. Hutchison, mostrou que muitas das próprias declarações de Mises sobre sua metodologia dão um apoio bem forte à interpretação de Lakatos.[6]

A tese deste artigo é que, Hutchison e Lakatos, pelo contrário, a metodologia de Ludwig von Mises, não obstante, pode pelo menos ser interpretada tão facilmente como uma teia quanto como um modelo euclidiano de sistematização cognitiva. Em particular, uma influência direta sobre o pensamento de Mises pode ser encontrada a partir da tradição continental da hermenêutica que Rescher chama de a primeira a questionar seriamente o Euclidianismo. As evidências textuais de Hutchison para o Euclidianismo de Mises não podem ser levemente descartadas, nem se pode argumentar que as próprias descrições explícitas de Mises de sua metodologia estão livres de alguma “contaminação” Euclidiana. Quando, entretanto, na próxima seção o caso textual de Hutchison for examinado de perto e colocado contra outras evidências textuais, ele está longe de ser conclusivo.

Este é um artigo cujo propósito principal é “meramente” exegético. Eu faço a pergunta doutrinária sobre o que Mises “realmente quis dizer” quando ele chamou a economia de apriorística. Hoje, essas questões aparentemente retrógradas são consideradas bastante secundárias a visão do desenvolvimento futuro da teoria econômica. Portanto, devo esclarecer, antes de começar com a exegese, que não aceito essa visão revelada de natureza secundária dos exercícios na história do pensamento. Vejo a história doutrinária como paradoxalmente tendo uma visão rumo ao desenvolvimento no sentido de que seu objetivo adequado não é o dos historicistas de alcançar uma compreensão empática do que estava na cabeça de alguém no passado, mas sim reformular o significado latente de um texto em termos de sua relevância para hoje. Meu objetivo é ver como a metodologia de Mises “fala conosco” como dizem os filósofos hermenêuticos, e o que pode ser feito no futuro com vários insights.

Evidência Textual para a Interpretação Euclidiana

“Os teoremas alcançados pelo raciocínio praxiológico correto não são apenas perfeitamente certeiros e incontestáveis, como os teoremas corretos da matemática. Eles se referem, ademais, com a total rigidez de sua certeza apodítica e instabilidade à realidade da ação como ela aparece na vida e na história. A praxiologia transmite conhecimento exato e preciso de coisas reais.”

Ludwig von Mises (1966, p. 39)

A evidência da interpretação Euclidiana de Mises não é superficial. A metodologia da ciência da ação humana que Mises explicitamente formulou em seu tratado econômico com esse nome, foi lançada em termos kantianos e muitas vezes descrita como uma categoria especial de conhecimento que estava inerentemente para além de qualquer crítica. É audaciosamente apresentada como se representasse uma categoria completamente única de conhecimento. Em seu caráter puramente formal e dedutivo, a praxiologia é descrita como semelhante à lógica e à matemática; ela é até mesmo diretamente comparada com a geometria euclidiana. Nas passagens que certamente fornecem a melhor evidência para as interpretações euclidianas de seu método, Mises escreve

“O raciocínio apriorístico é puramente conceitual e dedutivo. Não pode produzir nada além de tautologias e juízos analíticos. Todas as suas implicações são logicamente derivadas das premissas e já estavam contidas nelas. Portanto, de acordo com uma objeção popular, ele não pode acrescentar nada ao nosso conhecimento.”

Todos os teoremas geométricos já estão implícitos nos axiomas. O conceito de um triângulo-retângulo já implica no teorema de Pitágoras. Este teorema é uma tautologia, sua dedução resulta em um juízo analítico. No entanto, ninguém diria que geometria em geral e o teorema de Pitágoras em particular não ampliam nosso conhecimento (1966, p. 38).

A posição do apriorismo como conhecimento que é unicamente inquestionável ou como Mises gostava de dizer, “apoditicamente certeiro”, é a posição que Hutchison considera tão ofensiva às sensibilidades dos metodólogos contemporâneos. No mínimo, é preciso admitir que Mises é um pouco livre com seus pronunciamentos de teoremas econômicos que são “perfeitamente certeiros e incontestáveis, como os teoremas matemáticos corretos”.

Ademais, ele parece estar afirmando não apenas a singularidade, mas também uma exclusividade para sua abordagem, como quando ele declara que “Para a compreensão da ação há apenas um esquema de interpretação e análise disponível, ou seja, que fornecido pela cognição e análise do nosso comportamento propositado” (1966, p. 26). Tal exclusividade sugeriria um isolamento da crítica que, lembra-nos com razão Hutchison, certamente violaria a literatura growth of knowledge.[7]

Hutchison diz que Mises “traça a impossibilidade de questionar os juízos a priori de volta à introspecção”, pelo qual Hutchison quer dizer algum tipo de conhecimento puramente privado que está essencialmente além da crítica. Para mostrar que este era o sentido de Mises, Hutchison fornece uma citação onde Mises usa a palavra introspecção e enfaticamente insiste na inquestionabilidade única do conhecimento praxeológico:

“O que sabemos sobre nossas próprias ações e sobre aquelas de outras pessoas écondicionado por nossa familiaridade com a categoria de ação que nós devemos a um processo de examinação de si mesmo e introspecção, bem como de compreensão da conduta das outras pessoas. Questionar essa visão é não menos impossível que questionar o fato de que estamos vivos”.[8]

Além disso, Hutchison diz que Mises “rejeita completamente” o princípio de demarcação de Karl Popper entre ciência e não-ciência, e Hutchison apóia essa acusação em outra citação bastante enfática:

Se alguém aceita a terminologia do positivismo lógico e especialmente a de Popper, uma teoria ou hipótese é “não científica” se, em princípio, não pode ser refutada pela experiência. Consequentemente, todas as teorias a priori, incluindo matemática e praxiologia, são “não-científicas”. Isso é apenas uma querela verbal. Nenhum homem sério perde seu tempo discutindo tal questão terminológica. A praxiologia e a economia manterão sua significância primordial para a vida e ação humanas, no entanto, as pessoas podem classificá-las e descrevê-las.[9]

Além de erroneamente colocar erroneamente a praxeologia e a matemática em conjunto, Mises pode ser acusado aqui de tratar o ponto de Popper com menos respeito do que merece. Há, afinal, coisas como sistemas dogmáticos de pensamento que podem explicar tudo o que pode imaginavelmente ocorrer e, portanto, pode realmente explicar nada. A maioria dos ramos do marxismo/leninismo seriam, sem dúvida, classificados por Mises e Popper como não científicos nesse sentido. Toda ciência empírica merecedora do nome precisa estar pronta para negar a possibilidade no mundo real de alguns estados de coisas imagináveis.[10]

Além disso, a visão de Mises sobre as ciências naturais parece ser um tanto ingênua aos olhos modernos, como quando ele observa que a história das ciências naturais, ao contrário da das ciências humanas, “é um registro de teorias e hipóteses descartadas porque foram refutadas pela experiência” (1966, p. 41). Essa interpretação das ciências naturais levou-o, em geral, a exagerar as diferenças entre essas e as ciências humanas, e, em particular, admitir que as ciências naturais “não têm uso para compreensão” (1966, p. 61), que é “a ferramenta mental específica da história” (1966, p. 51). À luz dos escritos de filósofos das ciências naturais como Popper, Lakatos e Michael Polanyi, esta concessão ao positivismo para as ciências naturais não pode mais ser aceita.

Mises também poderia ser acusado de exagerar a diferença entre desentendimentos entre cientistas, por um lado, que ele achava estar ‘aberto a um acordo por raciocínio ‘objetivo’”, e, por outro lado, discordâncias entre historiadores. Neste último, na medida em que o argumento é sobre “julgamentos de relevância”, ele diz, “É impossível encontrar uma solução que todos os homens sãos precisem aceitar” (1966, p. 58). Embora tenha reconhecido que a “compreensão do historiador é sempre tingida com as marcas de sua personalidade” e “reflete a mente de seu autor”, ele estava sob a ilusão de que o conhecimento nas ciências naturais e sociais era categoricamente diferente, puramente aposteriorista ou apriorístico, e imaculado com tais tinges pessoais. Parece-me que Michael Polanyi (1958a; 1958b) já demonstrou, além de qualquer dúvida, que todo o conhecimento é inevitavelmente tingido com um componente pessoal.

Em todos esses aspectos, na medida em que a praxeologia é apresentada como um conhecimento inquestionável, Mises, em minha opinião, deixa-se aberto à acusação de Hutchison de dogmatismo. Se a praxeologia é para ser uma ciência, ela deve rejeitar o Euclidianismo e permitir que seus primeiros princípios, suas cadeias de raciocínio dedutivo, e seus modos de aplicação ao mundo real, sejam desafiados por críticas sérias. Se a insistência de Mises na certeza dos axiomas e conclusões derivados da praxiologia é um dispositivo excludente, empregado para remover suas ideias da ameaça dos desafiantes, então a comunidade científica não tem responsabilidade de levá-la a sério.

Evidência Textual para a Interpretação Hermenêutica

“O raciocínio e a investigação científica nunca pode trazer total paz de espírito, certeza apodítica e conhecimento perfeito de todas as coisas”

Ludwig von Mises (1966, p. 25)

Mas será que esse Euclidianismo é realmente o que o apriorismo de Mises deveria ser? Mesmo nas evidências logo anteriormente fornecidas para a interpretação Euclidiana, há indicações de que uma leitura completamente diferente de Mises é possível.

Tome, por exemplo, as duas citações iniciais para essas seções onde Mises primeiro se refere a teoremas praxiológicos como apoditicamente certeiros e, em seguida, nega que qualquer processo científico pode produzir certeza apoditica. Embora não haja dúvida, mas que a primeira citação tem um tom claramente euclidiano, Mises apenas diz explicitamente aqui que os verdadeiros teoremas da praxiologia são apodíticos, deixando sem resposta a pergunta: Como sabemos com certeza que qualquer teorema praxiológico é verdadeiro? Talvez isso soe como descabelamento, e talvez neste caso nós simplesmente temos Mises se contradizendo. Mas parece concebível que Mises estava tentando insistir enfaticamente na possibilidade de conhecimento verdadeiro a partir do raciocínio praxiológico contra essas formas de historicismo que não deixam espaço para essa possibilidade, não para afirmar uma não-criticabilidade euclidiana e única para os produtos de tal raciocínio. Os teoremas verdadeiros da matemática são adições genuínas ao conhecimento humano, embora venham de dentro da mente como um produto do esforço dedutivo e não sem a mente como produto da observação empírica. Talvez o objetivo de Mises fosse abrir seus leitores para a possibilidade de tal conhecimento por dentro no caso da praxiologia, não fechá-la, à moda Euclidiana, de críticas racionais.

Quando Mises disse que há “apenas um esquema de interpretação” aberto ao estudo da ação humana, o esquema que a trata “como um comportamento dotado de sentido e proposital”– ele pode não ter afirmado exclusividade para sua economia particular. Ele pode ter apenas apontado o que Dilthey, Weber e Schutz haviam enfatizado, que é impossível “compreender a ação humana intelectualmente […] sem entrar no sentido que as partes atuando atribuem à situação” (1966, p. 26). A maneira como Mises descreve a primeira percepção de que há regularidades nos fenômenos econômicos é que as pessoas descobriram que “há outro aspecto a partir do qual as ações humanas podem ser vistas do que a do bem e do mal, adequado e inadequado, de justo e injusto” (1966, p. 2).

Isso sugere que Mises enxerga a teoria econômica como nos fornecendo um esquema viável para a interpretação subjetiva da conduta humana, uma interpretação que não é a única perspectiva possível.

Quando Mises fala sobre introspecção ou “conhecimento por dentro” é apresentado não como conhecimento privado, mas como o que os filósofos hermenêuticos chamam de “intersubjetivo”. O campo do intersubjetivo não é, para a hermenêutica, definitivamente, isolado da crítica racional. Mises, ademais, não traça a suposta certeza de seus axiomas a priori somente à introspecção, mas acrescenta a frase “exame de si mesmo e compreensão […] conduta de outras pessoas”, sugerindo que ele pode ter querido dizer por a priori o que na literatura hermenêutica também é chamado de “conhecimento por dentro”. E quando Mises afirma que questionar os a priori “não é menos impossível do que questionar o fato de que estamos vivos” ele pode ser lido dizendo não mais que isso, como os contribuintes da literatura hermenêutica tais como Schutz argumentaram, aqueles que tentam suspender os juízos sobre se outras mentes são inteligentes, em qualquer caso, contradizem-se na prática argumentando por seu caso behaviorista para outras “mentes” na comunidade científica. O nível de raciocínio prático e comum nos assuntos cotidianos dos homens, o nível de sentido do senso-comum já existente que alguns escritores da tradição hermenêutica chama de “mundo da vida intersubjetivo”, é tomado como garantido por todos os cientistas ativos quando tentam persuadir uns aos outros. No sentido de que é a priori, mas não é imune à crítica. A fundação de todo nosso conhecimento científico reside no fato de que quando aprendemos a falar todos entramos nesse mundo da vida e aprendemos a compartilhar seus sentidos tácitos, mas a ciência começa com um questionamento e refinamento do nosso senso comum. O a priori hermenêutico, ao contrário do Euclidiano, não é uma lista de axiomas intrasubjetivos explícitos e evidentes em si mesmos dos quais uma ciência é deduzida, mas um nível de intersubjetividade pré-dada, de compreensão comum que precede e sustenta a ciência.

Quanto à rejeição do critério de falseabilidade de Popper, é notável que Mises vê esse critério não tanto como incorreto, mas como insignificante. É só uma querela verbal. Essa observação reconhecidamente sucinta pode ser lida como se referindo à distinção entre teoria e história. É verdade que a praxiologia, a metade teórica incompleta da ciência da ação humana, é infalseável por qualquer evento histórico particular. O elemento empírico da ciência simplesmente vem com a outra metade, sua aplicação na história, quando o economista aplicado decide quais partes da teoria são relevantes para o caso em questão. Nesse sentido, parece uma querela verbal chamar a metade teórica das ciências humanas de não científicas, pois seria reclamar que o teorema pitagórico não pode ser falsificado por qualquer instância de triângulos do mundo real. Na física perguntamos qual das várias geometrias válidas é relevante para o nosso espaço. Onde a geometria euclidiana é relevante, os teoremas nela são verdadeiros e aplicáveis. Da mesma forma, nas ciências humanas perguntamos qual dos vários esquemas ou teorias interpretativas é mais aplicável à compreensão de um episódio da história.

Reconhecidamente, os comentários citados de Mises sobre as ciências naturais mostram um verdadeiro mal-entendido dessas disciplinas por sua parte, do qual nenhum esforço de reinterpretação pode resgatá-lo. A tradição growth of knowledge mostrou que Mises, juntamente com quase todos os outros de sua época, tinha uma imagem seriamente falha das ciências naturais. Mas, afinal, as ciências naturais não eram a preocupação dos escritos metodológicos de Mises, exceto como uma ilustração do que as ciências humanas não eram. A crença de que as ciências naturais estão livres de qualquer tonalidade pessoal parece hoje injustificada, mas deve-se notar que Mises não viu essas tonalidades como abrindo a porta para o relativismo na história. “No exercício da compreensão”, escreveu ele, “não há espaço para arbitrariedade e capricho” (1966, p. 57).

Uma dificuldade mais séria surge com a linguagem de axiomas e teoremas em que a teoria de Mises é moldada. O leitor pode facilmente ter a impressão de que Mises pretendia que a teoria econômica fosse forçada a uma estrutura fixa, hierarquicamente dedutiva, como os teoremas da geometria. No entanto, mesmo aqui, a interpretação Euclidiana não é de forma alguma a única leitura possível de Mises. Embora pensasse na praxiologia e na geometria como semelhantes no sentido de que todos os seus “teoremas” estão “já implícitos nos axiomas” (1966, p. 38), ele também afirmou explicitamente que “a economia não segue o procedimento da lógica e da matemática” (1966, p. 38).

Elas são diferentes, em primeiro lugar, no sentido de que “O ponto de partida da praxiologia não é uma escolha de axiomas e decisão sobre métodos de procedimento, mas reflexão sobre a essência da ação” (1966, p. 39). Em segundo lugar, ao contrário da geometria, a praxiologia “não apresenta um sistema integrado de razão apriorística pura, cortado de qualquer referência à realidade”. Em vez disso, adota “uma forma na qual a teoria apriorística e a interpretação de fenômenos históricos estão entrelaçadas” (1966, p. 66).

Cada uma das diferenças entre praxeologia e Euclidianismo pode ser vista ligando Mises à tradição da hermenêutica. O fato de que o ponto de partida para a praxiologia é a reflexão sobre a essência da ação lembra os pontos de partida de Dilthey, Weber e Schutz para sua “sociologia interpretativa” muito mais do que as formalizações matemáticas de Russell ou Hildreth ou, nesse caso, da economia de Debreu. E o entrelaçamento de Mises da teoria com a história de tal forma a ver a teoria não como uma construção elegante da beleza formal, intelectual, como a matemática, mas como um dispositivo prático através do qual os fatos da história devem ser interpretados, soa muito mais como a variação hermenêutica do que a variação Euclidiana do apriorismo.

A linguagem que Mises usa nas seguintes passagens para explicar o caráter “apriori” e “dedutivo” da praxiologia sugere mais uma forma de raciocínio pragmática, aberta e reflexiva do que qualquer tipo de estrutura dedutiva estritamente linear do Euclidianismo:

“O escopo da praxiologia é a explicação da categoria de ação humana. Tudo o que é necessário para a dedução de todos os teoremas praxiológicos é o conhecimento da essência da ação humana. É um conhecimento que é nosso porque somos homens […] O único caminho para uma cognição desses teoremas é a análise lógica do nosso conhecimento inerente à categoria de ação (1966, p. 64).”

Ao chamar seu método de apriorístico, Mises usa a linguagem dos filósofos kantianos, mas ele não tenta fornecer qualquer tipo de metafísica ou argumento ontológico para o apriorismo. Em vez disso, ele se baseia em um argumento pragmático, dizendo simplesmente que as circunstâncias nos ancoram não um apriorismo metafísico, mas um apriorismo metodológico (1966, p. 35):

“Todos em seu comportamento diário de novo e de novo testemunham a imutabilidade e universalidade das categorias de pensamento e ação. Aquele que se dirige ao próximo, que querem informá-los e convencê-los, que fazem perguntas e responde às perguntas dos outros, só pode proceder dessa forma porque ele pode apelar para algo comum a todos os homens […] (1966, p. 36).”

Devemos também aceitar não apenas a existência, mas também a significância do mundo da vida já interpretado ou nos envolvemos em auto-contradicção. Aceitamos a suposição de que compartilhamos uma intersubjetividade entre si não por causa de fundamentos filosóficos firmes, mas porque esse procedimento funciona no cotidiano e na ciência. Mises diz que o vazio do positivismo se manifesta “precisamente quando aceitamos esse ponto de vista pragmático” (1966, p. 24).

Em uma passagem na qual uma referência a Schütz (1932) está anexada, Mises mostra que sua defesa da validade dos a priori é que, praticamente falando, todos nós já estamos tomando o mundo da vida como garantido. Proposições a priori, como a de que todos os seres humanos compartilham a mesma lógica do senso comum, devem ser empregadas porque já estão em uso extensivo e “trabalham na prática e na ciência”:

[O] positivista não deve ignorar o fato de que ao abordar seus semelhantes ele pressupõe –tacitamente e implicitamente — a validade intersubjetiva da lógica e, assim, a realidade do pensamento e ação do alter Ego, de seu eminente caráter humano (1966, p. 24).

Se Mises tivesse feito com que sua praxiologia fosse uma variedade de Euclidianismo, seria difícil entender sua afirmação de que “Ao afirmar o caráter a priori da praxiologia, não estamos elaborando um plano para uma nova ciência futura diferente das ciências tradicionais da ação humana” (1966, p. 40). A economia tradicional, a sociologia e a história podem ser ditas como hermeneuticamente aprioristas, pois toma o mundo da vida já interpretado como objeto pré-dado de suas investigações, mas dificilmente poderiam ser chamados de Euclidianos. Mesmo “cidadãos comuns ansiosos por compreender mudanças que ocorrem” recorrem a uma abordagem apriorística nesse sentido. Se Mises tivesse querido dizer ao raciocinar o tipo de dedução estritamente linear favorecida pelo Euclidianismo, essa afirmação teria de refletir um equívoco peculiar sobre a parte de Mises da natureza do raciocínio mundano do homem comum.

O chamado raciocínio “puramente dedutivo” do apriorismo misesiano pode ser lido como fundamentalmente diferente daquele do Euclidianismo. Este último visa alcançar uma estrutura dedutiva composta de uma sequência de passos puramente lógicos que poderiam ter sido alcançados por uma máquina de Turing. Para Mises, no entanto, “A cognição do raciocínio puramente dedutivo também é criativa e abre para nossa mente o acesso a esferas anteriormente barradas”. A tarefa do “raciocínio apriorístico”, diz ele, é “tornar manifesto e óbvio o que era oculto e desconhecido antes” (1966, p. 38). Além disso, ao contrário das aspirações Euclidianas de conclusividade e completude (e alguns de seus próprios pronunciamentos), Mises admite que a ciência “nunca pode trazer total paz de espírito” e que “Tudo o que aquele homem pode fazer é submeter todas as suas teorias repetidamente ao reexame mais crítico” (1966, pp. 25, 68).

A única maneira de escolher entre teorias interpretativas concorrentes é tentar ver a realidade através delas, uma a uma, para tentar debater onde as discordâncias parecem cruciais e, em última instância, fazer um julgamento sobre qual perspectiva capta melhor o fluxo dos eventos. Ao argumentar pelo método apriorístico, Mises pode não ter reivindicado validade especial ao seu próprio desenvolvimento particular da teoria apriorística, muito menos sua própria compreensão da história, mas pode ter tentado apenas ecoar o ponto dos hermenêuticos de que todos os teóricos sociais na prática e cada um de nós em nossas vidas cotidianas vêem fenômenos sociais como já interpretados, ou por dentro. Embora enfatizasse as diferenças entre teoria e história, ele não queria, e não criou uma dicotomia. Insistiu, assim como a literatura hermenêutica, que a teoria é um marco para a interpretação dos fatos da história, mais do que uma hipótese a ser testada por esses fatos. Não obstante, não há como ter certeza nesta vida de que a própria perspectiva interpretativa é a melhor. Isso não precisa implicar um recuo a um historicismo sem teoria, mas apenas reforça o fato de que nossa única maneira de eliminar erros é, como Mises disse, submeter o nosso trabalho e nossos companheiros ao reexame mais crítico.

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Notas

[1]           Eu esbocei mais sobre o sentido e significância para a economia desta literatura hermenêutica moderna no meu artigo “A Dimensão Interpretativa da Economia: Ciência, hermenêutica e praxiologia” (1985) a partir do qual algumas passagens neste artigo foram emprestadas. Algumas outras tentativas de relacionar a literatura da hermenêutica com a da economia incluem Lachmann (1971), Grinder (1977), Langlois e Koppl (1984), Ebeling (1985), e O’Driscoll e Rizzo (1985).

[2]           George Selgin (1985, p. 1) critica Lachmann e Shackle, ele os interpreta como historicistas, aponta que desde que a escola austríaca começou com as críticas devastadoras de Menger aos historicistas de sua época, seria lamentável se os austríacos contemporâneos voltassem a essa postura antiteórica. Embora eu concorde com grande parte desta crítica, não estou convencido de que Lachmann seja um exemplo de historicismo.

[3]           No entanto, no alvorecer da obra de matemáticos como Gödel, Church, Cohen, Lowenheim e Skolem, o Euclidianismo parece condenado até mesmo em matemática. Veja Lakatos (1978) e Kline (1980). Como Kline (1980, p. 271) apontou, “o teorema de Lowenheim-Skolem nos diz que um conjunto de axiomas permite muitas interpretações mais essencialmente diferentes do que a pretendida.” A escolha entre tais interpretações deve ser feita por procedimentos não especificados dentro do sistema axiomático. Portanto, mesmo os sistemas Euclidianos precisam ser defendidos por argumentos não euclidianos.

[4]           Lakatos (1978, p. 10) exibe aqui um pouco da atitude mais sã de muitos filósofos das ciências naturais. Em resposta a tais afirmações de que o raciocínio econômico é trivial, Mises responde que a economia, embora “tautológica”, ainda assim “transforma, desenvolve e desdobra” nossa compreensão da realidade, nos dizendo coisas que sem esse esforço permaneceriam desconhecidas. Antes do desenvolvimento da economia sistemática, Mises aponta: “Uma longa linha de tentativas frustradas de resolver os problemas em questão mostra que certamente não era fácil atingir o presente estágio de conhecimento” (1966, p. 38).

[5]           Pode-se argumentar que a análise matemática do teórico do equilíbrio geral Gerard Debreu representa um exemplo menos ambíguo na economia do que Lakatos chama de Euclidianismo do que o apriorismo de Mises.

[6]           Veja especialmente Hutchison (1981, pp. 203-32; 266-307).

[7]           Nota do tradutor: por “literatura growth of knowledge”, este último termo sendo comumente traduzido como “aquisição de conhecimento, é toda a literatura que cresceu a partir dos escritos de autores como Imre Lakatos, Karl Popper, Thomas Kuhn, Fayerabend, etc.

[8]           De Mises (1978, p. 71), citado por Hutchison (1981, p. 210).

[9]           De Mises (1978, p. 70), citado por Hutchison (1981, p. 210).

[10]         A esse respeito, é digno de nota que a magnum opus de Mises termina enfatizando dramaticamente que a praxeologia proíbe alguns estados de coisas concebíveis: “A liberdade do homem de escolher e agir é restrita de uma maneira tripla. deve ajustar sua conduta se quiser viver. Em segundo lugar, as características e disposições constituintes inatas do indivíduo e a operação dos fatores ambientais; […] Há, finalmente, a regularidade dos fenômenos no que diz respeito à interconexão de meios e fins, a saber, a lei praxeológica como distinta da lei física e da lei fisiológica […]”

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