O Pai Fundador da Economia Moderna: Richard Cantillon
A maioria das pessoas, tanto os economistas como os leigos, pensam que a economia surgiu, por assim dizer, da cabeça de Adam Smith, no final do século XVIII. O que ficou conhecido como o primeiro, ou período “clássico” do pensamento econômico moderno então desenvolvido, a partir de Smith, através de David Ricardo, incluindo uma abordagem agregativa, e uma teoria do custo-de-produção, ou mesmo uma teoria de valor-trabalho. Sabemos agora, no entanto, que esta atribuição é completamente incorreta. Para o pensamento econômico moderno, i.e., análise centrada na explicação da economia de mercado, foi desenvolvida meio século antes do Riqueza das Nações de Smith, não na Grã-Bretanha, mas na França. Mais significativamente, os escritores franceses, apesar da sua diversidade, não devem ser definidos como pré-ricardianos mas como proto-“austríacos”, ou seja, como precursores da abordagem individualista, micro, dedutiva, e subjetiva do valor que teve origem em Viena na década de 1870.
1. Cantillon, o homem
A honra de ser chamado de “pai da economia moderna” pertence, então, não ao seu destinatário habitual, Adam Smith, mas a um mercador, banqueiro e aventureiro irlandês galicizado, que escreveu o primeiro tratado sobre economia mais de quatro décadas antes da publicação do Riqueza das Nações. Richard Cantillon (c. início da década de 1680-1734) é uma das personalidades mais fascinantes da história do pensamento social ou econômico. Pouco se sabe sobre a vida de Cantillon, apesar do fato de que ele morreu multimilionário, mas as melhores investigações modernas mostram que ele nasceu na Irlanda, no condado de Kerry, de uma família de donos de terra irlandeses da gentry, que tinha sido despojada pelas depredações do invasor puritano inglês Oliver Cromwell. O primo de primeiro grau de Cantillon uma vez despojado, também chamado Richard, emigrou para Paris para se tornar um banqueiro de sucesso, perpetuando assim a tradição, nascida no século XVII, de exilados religiosos-políticos da Grã-Bretanha que emigraram para França.[1] Os Cantillons faziam parte da emigração católica, centrando-se, no final do século XVII, em torno do pretendente Stuart para o trono da Grã-Bretanha.
Richard Cantillon juntou-se à emigração para Paris em 1714, tornando-se rapidamente o assistente principal do seu primo no banco deste último. Além disso, o tio da mãe de Richard, Sir Daniel Arthur, era um proeminente banqueiro em Londres e em Paris, e Arthur tinha nomeado o primo de Richard como o correspondente parisiense de seu banco estabelecido em Londres.[2] Em dois anos, Cantillon estava em condições de comprar do primo a donidade do banco.
Richard Cantillon encontrava-se agora na importante posição de banqueiro para a corte dos Stuart no exílio, bem como para a maioria dos emigrantes britânicos e irlandeses em Paris. Mas seu coup mais importante veio da sua associação com o aventureiro e arqui-inflacionista escocês John Law (1671-1729), que tinha capturado a imaginação e a ganância do regente da França. A morte do velho Luís XIV em 1715 tinha inaugurado um regime mais frouxo e otimista, cujo controle tinha sido tomado pelo regente, o duque de Orleans. John Law persuadiu o regente de que a França poderia encontrar prosperidade permanente e não precisaria se preocupar mais com a dívida pública. O governo francês só precisa financiar déficits pesados através de uma infusão maciça do relativamente novo dispositivo do papel-moeda do governo. Tornando-se o principal financiador do governo francês, e mesmo o controlador-geral das finanças de França, Law desencadeou uma inflação desenfreada que gerou a bolha especulativa do Mississippi (1717-20). A bolha criou milionários instantâneos antes dela cair, deixando John Law na pobreza e na desgraça. De fato, a própria palavra “milionário” foi cunhada durante os anos agitados da bolha do Mississippi.[3]
Mas quando a poeira assentou, o astuto Richard Cantillon emergiu, depois de ser um dos principais parceiros nas especulações do Mississippi de John Law, como multimilionário. Diz a lenda que, no início da sua carreira meteórica conduzindo as finanças francesas, John Law tinha vindo a Cantillon e o avisou de que “Se estivéssemos na Inglaterra teríamos de fazer um acordo e resolver as questões, mas como estamos na França, posso enviar-vos esta noite à Bastilha, se não me derem a vossa palavra de deixar o reino dentro de vinte e quatro horas”. Ao qual Cantillon deveria ter respondido: “Espera, não irei e farei com que o teu sistema seja bem-sucedido”. Em qualquer caso, sabemos que Law, Cantillon, e o especulador inglês, Joseph Edward (“Beau”) Gage, formaram uma empresa privada em novembro de 1718. Gage era tão rico da especulação do papel no banco de Law de emissão de papel patrocinado pelo governo, a Companhia do Mississippi, que ele seriamente tentou, nesse período, comprar o reino da Polônia, de seu rei, Augusto.
Enquanto a bolha do Mississippi seguiu em frente, Cantillon, um astuto analista de assuntos monetários, viu profundamente que a bolha estava fadada a estourar logo, e ele se preparou para fazer milhões da tolice de seus parceiros e clientes. Emprestando dinheiro para Gage e outros para comprar ações inflacionadas da Companhia do Mississippi, Cantillon silenciosamente vendeu todas as suas próprias ações, bem como as ações inflacionadas que seus emprestadores deixaram a ele como colaterais, trancou todos os seus papéis em uma caixa forte, pegou seus milhões acumulados e deixou a cidade e foi para a Itália para esperar em segurança “a tempestade financeira que ele podia ver se desenvolvendo”. Depois de Gage e de outros clientes de Cantillon quebrarem no crash de 1720, Cantillon os perseguiu para repagar seus empréstimos, para os quais eles tiveram alegremente de pagar uma taxa de interesse de até 55 por cento, a qual havia incorporado um grande acréscimo de inflação.
Richard Cantillon regressou a Paris multimilionário, embora impopular, com os seus primeiros associados e tomadores de empréstimo. Em breve casou-se com Mary Anne, filha do falecido Conde Daniel O’Mahony, um general irlandês. A sua sogra, Charlotte Bulkeley, era a cunhada de James Fitzjames, o duque de Berwick, marechal da França e filho natural do Rei inglês Jaime II; ele era, portanto, o pretendente Stuart, Jaime III. Cantillon casou assim com uma família irlandesa militar intimamente ligada aos Stuarts e à corte francesa.
Em algum momento do início da década de 1730, provavelmente por volta de 1730, este banqueiro e especulador de sucesso escreveu a sua grande obra, em francês, o Essai sur La nature du commerce en général. À moda da época, como resultado da censura daqueles tempos, esse tratado não foi publicado, mas circulou amplamente em manuscrito, em círculos literários e intelectuais, até ser finalmente publicado duas décadas mais tarde, em 1755.
A saída de Richard Cantillon desta vida foi tão misteriosa e aventureira como toda a sua carreira. Em maio de 1734, enquanto vivia em Londres, numa das muitas casas que ele tinha nas principais cidades da Europa, Cantillon morreu num incêndio que queimou a sua casa até ao chão. Posteriormente descobriu-se que ele foi assassinado dentro de casa, sendo o fogo presumivelmente ateado para cobrir o assassinato. Três dos seus criados foram julgados pelo seu homicídio e considerados inocentes, enquanto o seu cozinheiro francês, que tinha sido despedido três semanas antes, fugiu para o exterior com uma quantidade considerável de objetos de valor. O cozinheiro fugitivo nunca foi encontrado. Earl Egmont, cujo irmão era vizinho de Cantillon, escreveu no seu diário que Cantillon “era um homem degenerado, e os seus servos de má reputação”. E assim terminou, em circunstâncias altamente misteriosas, o único economista de renome na história que perdeu a sua vida como vítima de homicídio.[4]
2. Metodologia
O Essai de Richard Cantillon foi justamente chamado, por W. Stanley Jevons, de “o primeiro tratado de economia”, e o historiador do pensamento econômico Charles Gide se referiu ao livro como o primeiro tratado sistemático de economia política. A melhor avaliação global é a de F. A. Hayek, o economista austríaco que fez um trabalho importante sobre história do pensamento econômico: “este talentoso observador independente, desfrutando de uma vantagem inigualável no meio da ação, coordenou o que ele viu com os olhos do teórico nato, e foi a primeira pessoa que teve sucesso em adentrar e nos apresentar quase todo o campo do que hoje chamamos de economia.”[5]
Os escolásticos haviam escrito tratados gerais sobre quase todo o conhecimento humano, nos quais as discussões sobre economia ou o mercado faziam um papel secundário; e na era mercantilista, os mercantilistas e seus críticos formaram, no máximo, ideias gerais inteligentes sobre tópicos em economia particular — geralmente política econômica. Mas Richard Cantillon foi o primeiro teórico a demarcar uma área independente de investigação — economia — e escrever um tratado geral sobre todos os seus aspectos.
Uma razão pela qual Cantillon foi o “primeiro dos modernos” é que ele emancipou a análise econômica de suas anteriores interseções com questões éticas e políticas. Os mercantilistas, dominantes no pensamento econômico por um ou dois séculos antes, eram pleiteantes especiais cujas migalhas de análise eram imprimidas a serviço de fins políticos, ou para subsidiar interesses particulares ou para aumentar o poder do estado. Os escolásticos medievais e do renascentismo, mesmo sendo incomparavelmente mais atenciosos e sistemáticos, mergulharam suas análises econômicas em um quadro moral e teológico. Para desencalhar do pântano mercantilista, era necessário dar um passo atrás, focar nos aspectos econômicos da ação humana e os analisar, abstraindo-as de todas as outras questões, por mais importantes que estas fossem. Separar a análise econômica da ética, política, ou mesmo de dados concretos, não significava que estas questões não são importantes ou não deveriam nunca mais ser suscitadas. Era impossível decidir a ética da vida econômica, ou o que o governo deveria ou não fazer, sem descobrir como o mercado funcionava, ou quais efeitos a intervenção poderia ter. Cantillon presumivelmente, ao menos vagamente, enxergou a necessidade desta emancipação, no mínimo temporária, da análise econômica.
Ademais, Cantillon foi um dos primeiros a usar ferramentas tão únicas de abstração econômica quanto as que Ludwig von Mises mais tarde identificaria como o método indispensável do pensamento econômico: o Gedanken-experiment (ou experimento pensado). A vida humana não é um laboratório, onde todas as variáveis podem ser isoladas pelo experimentador, e nada permanece constante. Mas o teórico pode analisar as relações de causa e efeito ao substituir o experimento de laboratório por abstrações mentais. Ele pode manter variáveis mentalmente isoladas (o método de assumir “todas as demais coisas permanecendo iguais”) e então raciocinar sobre os efeitos de permitir a mudança de uma variável. Ao começar com “modelos” simples e ir introduzindo complicações sucessivas conforme as mais simples são analisadas, o economista pode ao menos descobrir a natureza das operações da economia de mercado no mundo real. Por isso o economista pode validamente concluir de sua análise que, “todas as demais coisas permanecendo iguais (ceteris paribus), um aumento da demanda aumentará o preço”.
Na década de 1690, como vimos (Capítulo 9), um líder da oposição liberal clássica emergente ao estatismo e ao mercantilismo de Luís XIV, o juiz provincial Sieur de Boisguilbert introduziu na economia o método de abstração e aproximações sucessivas, começando com o modelo mais simples e procedendo em complexidade crescente. Ilustrando a natureza e as vantagens da especialização e das negociações, Boisguilbert havia começado com a troca hipotética mais simples: dois trabalhadores, um produzindo lã, o outro produzindo trigo, e então estendeu sua análise a uma cidade pequena, e finalmente ao mundo inteiro.
Richard Cantillon desenvolveu grandemente seu método sistemático de abstrações e aproximações sucessivas. Ele usou o método ceteris paribus generosamente. Através de seu método analítico, descobriu relações de causa e efeito “naturais” na economia de mercado. A França da época de Cantillon era um país de estados feudais com grandes quantidades de terra, o resultado da conquista de séculos passados. E então Cantillon brilhantemente começou a análise econômica em seu Essai com o pressuposto de que o mundo todo consiste em um estado gigante. Nesse construto admitidamente “não realista”, mas iluminador, toda produção é dependente dos desejos e das vontades do possuidor do monopólio, que simplesmente diz a todos o que fazer. Ou seja: a produção depende da demanda, e, no entanto, só há aqui um único demandador, o proprietário fundiário do monopólio.
Cantillon então faz uma mudança simples e realista em seu modelo. O proprietário cultivou a terra para vários produtores de todos os tipos. Mas assim que isto acontece, a economia não pode continuar com somente um homem dando ordens. Os produtores individuais devem trocar seus produtos por sua operação contínua, e uma economia de livre mercado vem a ser, com sua correspondente competição, comércio e sistema de preços. Ademais, o dinheiro surge desta troca como uma mercadoria servindo como um meio necessário de troca e de “medida” dos valores.
3. Valor e preço
Cantillon participou da primeira análise moderna sofisticada dos preços de mercado, mostrando em detalhe como a demanda interage com um estoque existente para formar os preços. Em contraste com os posteriores classicistas Smith-Ricardo, e prefigurando os austríacos, Cantillon estava fortemente interessado na formação de preços no mundo real, isto é, o verdadeiro preço de mercado, ao invés de na quimera de longo prazo do preço “normal”. Uma recente importante permuta sobre Cantillon, o professor Vincent Tarascio o interpreta como um classicista ou neoclassicista, pelo menos o suficiente para sustentar que os preços de mercado tendem, no longo prazo, aproximam-se do “valor intrínseco” de um bem, isto é, do custo de produção, em termos de investimento de terra e trabalho do produto. Esta era a teoria do equilíbrio na precificação de Smith-Ricardo, que foi basicamente expandida para se tornar a teoria do “equilíbrio geral” Walrasiana.
Mas enquanto há passagens em Cantillon justificando essa abordagem, e o termo “valor intrínseco” seja certamente infeliz, o professor David O’Mahony, em um comentário perceptivo sobre o artigo de Tarascio, aponta que a abordagem de Cantillon era, na realidade, pré-austríaco. Primeiro, O’Mahony mostra que a análise do preço de mercado de Cantillon era idêntica à análise austríaca de um dado estoque de um bem valorado e demandado por consumidores.
Citando de Cantillon: “Está claro que a quantidade do produto ou de uma mercadoria oferecida à venda, em proporção à demanda ou número de compradores, é a base sobre a qual sempre estão fixados, ou supostos a estarem fixados, os preços verdadeiros de mercado […]”. A demanda, por sua vez, é subjetiva, dependendo dos “humores, caprichos e do estilo de vida”, etc. Essas valorações subjetivas são o que dá valor aos produtos oferecidos à venda. É o “consenso da humanidade”, diz Cantillon, que dá valor “à renda, ao linho, aos tecidos finos, ao cobre e a outros metais”. Para Cantillon, os verdadeiros preços de mercado são determinados pela demanda: “frequentemente acontece que muitas coisas que na verdade tem esse valor intrínseco não são vendidas no mercado por esse valor: isto dependerá dos humores e dos caprichos dos homens, e também de seu consumo”. Então, o valor dos produtos é dado pela valoração do consumidor: uma crucial ideia proto-austríaca derivada dos escolásticos medievais e espanhóis tardios. Por séculos, na verdade, a posição escolástica e pós-escolástica foi que o valor dos bens é determinado pela “utilidade” e “escassez”, por valorização subjetiva de um dado estoque. Quanto mais utilidade, maior o valor, e quanto mais abundante o oferta, menor o valor e o preço de qualquer bem no mercado. A ideia de Cantillon é um sofisticado e elaborado desenvolvimento da abordagem escolástica.
Enquanto Cantillon considera o “valor intrínseco de uma coisa” como “a medida da terra e do trabalho que participa de sua produção”, ele concede imediatamente que a valoração subjetiva pelos consumidores, e não o valor intrínseco, determina o preço.[6]
Entrando em detalhes sobre o valor intrínseco, Cantillon se refere ao caso hipotético de um americano que viaja a Europa para vender peles de castores para chapéus, mas fica então compreensivelmente surpreso em descobrir que chapéus de lã servem tanto quanto os chapéus feitos de pele de castor, e que a diferença que causou uma viagem no mar tão longa, é o capricho daqueles que pensam e o chapéu de castor são mais leves e mais aprazíveis ao olho e ao toque. Resumidamente: todo o custo de produção, todo o trabalho e esforço que participaram da produção e do transporte das peles de castor significa apenas que o produto satisfaz o consumidor o suficiente para que este pague pelos custos, e para que o produto seja capaz de competir com alguma outra mercadoria feita de maneira mais barata doméstica. É a demanda do consumidor que determina as vendas, bem como o preço.
O’Mahony continua e argumenta que o modelo do monopólio estatal de Cantillon mostra claramente que a demanda (neste caso a demanda do proprietário do monopólio mundial), e não o custo de produção, determina o preço. Cantillon, então, não previu a teoria clássica do equilíbrio de que um custo de produção constituía o determinante de longo prazo, presumivelmente, portanto, o mais importante, do preço de mercado. Ao contrário, para Cantillon, o custo de produção tinha uma função bem diferente: decidir se um negócio poderia lucrar ou se teria de sofrer prejuízos e falir. Se o valor dado pelo consumidor e, portanto o preço de venda de um produto é alto o suficiente para cobrir os custos, a empresa obtém lucro; se não é alto o suficiente, sofre prejuízos e eventualmente vai à falência. Esta é uma parte importante da visão austríaca sobre o papel dos custos. Desse modo, Cantillon discute custos e preços na manufatura de tecidos de Bruxelas:
“Se o preço que as damas pagam pela renda não cobre todos os custos e lucros, não haverá incentivo para esta manufatura, e o empresário cessará de empreender nisso ou falirá; mas, como partimos do pressuposto de que esta manufatura é continuada, é necessário que todos os custos sejam cobertos pelo preço pago pelas damas de Paris. […]”
Por isso o movimento em direção ao equilíbrio de longo prazo não é um processo de ajustamento dos preços de mercado em custos de produção intrínsecos de longo prazo, mas um processo de trabalhadores e empresários entrando e saindo de várias linhas de produção até que os custos de produção e os preços de venda sejam iguais. Como bem coloca O’Mahony:
“Para Cantillon, então, não é bem que os valores intrínsecos existam automaticamente espontaneamente e que os preços de mercado são direcionados a eles, mas que os preços oferecidos no mercado determinam se vale ou não a pena produzir as coisas. Em outras palavras, são os preços ofertados que determinam quais custos de produção podem ser aceitos; não que os custos de produção determinem quais precisam ser os preços.”
É claro, há uma grande lacuna tanto na abordagem de Cantillon quanto na abordagem dos posteriores classicistas Smith-Ricardo, bem como na abordagem dos neoclassicistas ricardianos modernos: de onde vêm os “custos de produção”? Em contraste com a abordagem de Cantillon e a clássica, eles não são nem intrínsecos nem encarregados de alguma força misteriosa de fora do sistema econômico. Os custos de produção como os austríacos finalmente colocaram, são eles mesmos determinados pela demanda esperada do consumidor por bens e serviços.
4. A incerteza e o empreendedor
Uma das memoráveis contribuições de Cantillon para o pensamento econômico é que ele foi o primeiro a enfatizar e analisar o empreendedor.[7] Para este mercador, banqueiro especulador que tem os pés no chão, seria inconcebível cair na armadilha ricardiana, walrasiana e neoclássica de assumir que o mercado é caracterizado pelo conhecimento perfeito e que é um mundo estático de certeza. O local de mercado do mundo real é permeado pela incerteza, e a função do homem de negócios, do “oportunista”, do empreendedor, é encarar e lidar com a incerteza ao investir, pagar as despesas e então esperar por um retorno lucrativo. Os lucros, então, são uma recompensa por previsões bem-sucedidas, por lidar com sucesso com a incerteza no processo de produção. O pressuposto crucial smithiano-ricardiano e walrasiano (clássico e neoclássico) de que a economia está perpetuamente em um estado de equilíbrio no longo prazo fatalmente deixa escapar o mundo real, cheio de incertezas. Em vez disso, foca numa terra-do-nunca na qual não há mudança, e, portanto, uma terra de certeza perfeita e de conhecimento perfeito do presente e do futuro.
Então Cantillon divide os produtores na economia de mercado em duas classes: as “pessoas contratadas”, que recebem renda fixa ou aluguéis fixos, e empreendedores com retornos não fixos, incertos. O fazendeiro-empreendedor arca com o risco de custos fixos de produção e preços de venda incertos, enquanto o mercador ou manufatureiro paga preços fixos similares e confia em um retorno incerto. Exceto para aqueles que só vendem “seu próprio trabalho”, empreendedores de negócios precisam disponibilizar dinheiro o qual, depois de o terem disponibilizado, estão “fixados” ou dados a partir de seus pontos de vista. Visto que vendas e preços de venda são incertos e não fixos, a renda de seus negócios torna-se um resíduo incerto.
Cantillon também vê que a incerteza pervasiva advinda pelos empreendedores é parcialmente consequência de um mercado descentralizado. Em um mundo de um único proprietário monopolista, o proprietário decide ele mesmo sobre os preços e sobre a produção, e há pouca incerteza no empreendimento. Mas no mundo real os empreendedores descentralizados enfrentam uma grande dose de incerteza, e devem arcar com os seus riscos. Para Cantillon, competição e empreendedorismo andam lado a lado.
Como no caso de Frank Knight e dos austríacos modernos, a teoria de Cantillon do empreendedorismo foca em sua função, em seu papel como alguém que lida com incertezas no mercado, ao invés de, como no caso de Joseph Schumpeter, nas facetas de sua personalidade.
O conceito de Cantillon também antecipa von Mises e os austríacos modernos em outros aspectos: seu empreendedor performa não uma função disruptiva (como em Schumpeter), mas uma função equilibradora, isto é, ao corretamente prever e investir recursos no futuro, o empreendedor ajuda a ajustar o equilíbrio de demanda e oferta nos vários mercados.
O professor Tarascio aponta que a ideia pioneira de Cantillon sobre a pervasiva incerteza do mercado foi amplamente esquecida, e rapidamente deixada de fora do pensamento econômico até ser independentemente ressuscitada no século XX por Knight e por austríacos modernos tais quais Ludwig von Mises e F. A. Hayek. Mas, como o professor O’Mahony ironicamente comenta: “Estar ciente de seu [Cantillon] reconhecimento da incerteza como o professor Tarascio faz ao olhar para ele a partir de uma perspectiva atual é, consequentemente, mais uma reflexão sobre muitos economistas modernos, cuja capacidade de ignorar a incerteza é uma bizarrice, do que um tributo propriamente dito à presciência de Cantillon”.
Isso pode até ser bizarro, mas existe um método para a loucura. Pois, como o próprio professor O’Mahony entende muito bem, a economia moderna é um conjunto de modelos formais e equações pretendendo determinar totalmente o comportamento humano, pelo menos no campo econômico. E é impossível que a incerteza seja comprimida em modelos matemáticos determinados. Como O’Mahony aponta, pode-se perguntar “se a atividade empreendedora pode, na natureza das coisas, afinal, ser composta de matéria para representações formais ou modelos. Se eles pudessem, poderia haver algum espaço para a incerteza no verdadeiro sentido do termo, e, portanto, algum espaço para o próprio empreendedorismo?” A teoria econômica, resumidamente, deve escolher entre modelos matemáticos formalmente elegantes, mas falsos e distorcidos, e a análise “literária” da própria vida humana real.
5. Teoria populacional
A teoria dos salários de Richard Cantillon depende da população de uma forma que foi copiada quase que inteira por Adam Smith no Riqueza das Nações, que por sua vez depende dos níveis e do crescimento da população. Em contraste com o posterior Malthus, entretanto, Cantillon participou de uma análise sofisticada dos determinantes do crescimento populacional. Ele diagnosticou os recursos naturais, os fatores culturais e o estado da tecnologia como particularmente importantes. Ele profeticamente viu que a colonização da América do Norte não seria uma simples substituição de uma pessoa por outra, mas que a nova tecnologia agrária forneceria suporte para uma população por hectare muito maior. Portanto, a extensão pela qual recursos existentes, terra e trabalho, podem ser utilizados dependeria do estado atual da tecnologia. Por isso, a América do Norte pré-colonial não estava superpovoada por indígenas, como alguns acreditavam; na verdade, a população indígena havia se ajustado aos recursos presentes e à tecnologia disponível. Resumidamente, Cantillon previu a teoria moderna da população “ótima”, onde o tamanho da população tende a se ajustar ao seu nível mais produtivo de acordo com os recursos presentes e a tecnologia disponível.
Enquanto Cantillon descrevia uma alegada tendência pré-malthusiana dos seres humanos se multiplicarem como ratos em um celeiro, sem limites, ele também reconheceu que os valores religiosos e culturais podem modificar tais tendências. Um aumento na demanda por produtos agrícolas que fazem uso intensivo da terra tenderia a reduzir a demanda por trabalho agrário e eventualmente causar uma queda na oferta de tal trabalho e, portanto, da população como um todo. (Cantillon, devemos lembrar, escrevia em uma época em que a gigantesca maioria da população trabalhava com agricultura.) Um aumento na demanda de produtos da fazenda que exigem trabalho intensivo, por outro lado, traria um aumento na demanda por trabalho e, portanto, aumento na população. Vivendo, novamente, em um país e em uma época de estados feudais com grandes quantidades de terra, Cantillon observou que eram os gostos das classes proprietárias que determinavam os gostos do consumidor e os valores da sociedade e, portanto, a demanda por produtos.
Deve ser notado que, de forma incomumente sofisticada, Cantillon ressaltou que decidir se é melhor ter uma grande população de pessoas mais pobres ou uma menor população de pessoas que gozam de um padrão de vida mais alto está fora do escopo da análise econômica: que esta é uma decisão para os valores da cidadania.
O professor Tarascio disse que a análise populacional de Cantillon era muito mais sutil e moderna do que a de Smith, de Ricardo, e de Malthus. Ao invés de se preocupar com um futuro incontrolado de explosão populacional, o quadro teórico de Cantillon se dirigia à concreta mudança cultural para famílias menores nos países industrializados, assim como à probabilidade de que a população vai se ajustar de acordo com quaisquer futuras faltas de recursos. Cantillon disse, por exemplo, que conforme as antigas civilizações ruíam, seu tamanho populacional diminuía proporcionalmente. O número de habitantes do estado romano na Itália, por exemplo, caiu de 25 milhões para aproximadamente 6 milhões em um período de 17 séculos.
6. Economia espacial
Richard Cantillon também foi o fundador da economia espacial, a análise da atividade econômica em relação com um espaço geográfico. De certo modo, é claro, os mercantilistas, ao advogar por uma balança favorável de negociações geográficas, analisaram (ainda que mal) atividades econômicas à medida que elas cruzavam as fronteiras nacionais. A análise espacial, como o professor Hebert colocou, lida com a distância (custo de transporte, sua relação com os preços bem como com a localização das atividades econômicas) e a área (o desenvolvimento geográfico e os limites dos mercados). Cantillon não só desenvolveu a teoria da localização como também a integrou em sua análise microeconômica geral. Ele viu, em particular, que os preços da produção, mesmo quando o capital e os preços monetários estavam em equilíbrio, sempre seriam maiores nas cidades do que em seus locais de produção por uma quantidade necessária para cobrir os custos e os riscos do transporte. Como consequência, produtos que são volumosos e/ou perecíveis seriam caros ou impossíveis de serem transportados para a cidade e, assim, seriam muito mais baratos em seus locais de produção. Tais produtos, então, seriam geralmente feitos em áreas adjacentes às cidades, onde os custos de transporte para os mercados urbanos não são proibitivos. Na manufatura, ademais, Cantillon viu que em casos em que plantas têm de usar materiais puros, volumosos, de baixo preço por peso, elas tenderiam a se localizar perto do local de produção de tais materiais. Pois, nesse caso, seria menos custoso transportar os produtos acabados menos volumosos e mais valiosos para os mercados urbanos do que enviar as matérias-primas.
Sobre a localização das áreas de mercados urbanos, Cantillon foi altamente sugestivo, apontando que é muito menos custoso para compradores e vendedores se juntar em um único lugar do que viajar pela periferia procurando buscando uns aos outros e encontrando vários preços diferentes que compradores estão dispostos a pagar ou vendedores que estão dispostos a aceitar. Em termos modernos, Cantillon diria que os mercados centrais se desenvolvem naturalmente porque eles diminuem enormemente os custos de transação, transporte, informação e outros custos das negociações.
Enquanto Cantillon, desse modo, viu como os mercados e a localização da atividade econômica eram capazes de regular a si mesmos de maneira harmônica, ele não era um consistente defensor das livres negociações internamente, assim como não o era no campo das negociações estrangeiras. Internamente, ele defendia inconsistentemente que os manufatureiros precisavam de “muito incentivo e capital” para encontrar e investir nas localizações ótimas.
7. Dinheiro e análise de processo
Um destaque da teoria monetária de Cantillon é seu tratamento do valor do dinheiro como um caso especial do valor das mercadorias no mercado em geral. Como no caso de qualquer produto, o alegado “valor intrínseco” do ouro é o custo de sua produção. O valor do ouro e da prata, como de outras mercadorias, é determinado pelos valores e, portanto, pelas demandas dos usuários no mercado — “pelo consenso da humanidade”. Como no caso de outras mercadorias, também, Cantillon não tem uma teoria dos custos de produção do valor do ouro e da prata; ele simplesmente defende, como em outro lugar, que esses produtos só podem ser produzidos se os custos puderem ser cobertos pelo valor do produto.
O processo de parear custos e valores em ouro, no entanto, leva um tempo relativamente longo, já que sua produção anual é uma pequena proporção do estoque total existente. Se o valor nominal do ouro cai abaixo de seu custo de produção, o ouro deixará de ser minerado; e se os custos caem muito, a produção do ouro crescerá, tendendo, então, a parear os custos e os valores normais. Cantillon reconheceu que a moeda governamental e o dinheiro bancário têm praticamente nenhum custo de produção, e, portanto, nenhum “valor intrínseco”, em sua terminologia, mas ele ressaltou que as forças de mercado mantêm valor de tal moeda fiduciária pareado com o valor do ouro e da prata pelos quais o papel pode ser resgatado. Como consequência, um aumento na oferta “de dinheiro fictício ou imaginário tem o mesmo efeito que o aumento da circulação do dinheiro real”. Mas, Cantillon notou, se a confiança no dinheiro for danificada, e a desordem monetária for agravada, o dinheiro fictício colapsa. Ele mostrou, também, que o governo é particularmente sujeito à tentação de imprimir dinheiro fictício — uma lição que ele sem dúvidas aprendeu, ou ao menos viu, incorporada no experimento de John Law. Cantillon também nos deu uma análise sólida de como o mercado determina a proporção dos valores do ouro e da prata.
Uma das características soberbas dos Essai de Cantillon foi que ele foi o primeiro, em uma análise pré-austríaca, a entender que o dinheiro entra na economia como um processo de passo-a-passo, e, consequentemente, não simplesmente aumenta os preços em um agregado homogêneo.[8] Assim, ele criticava a ingênua teoria quantitativa do dinheiro de John Locke — uma teoria ainda basicamente seguida por economistas monetaristas e neoclássicos — que defende que uma mudança na oferta total de dinheiro causa somente uma mudança proporcional e uniforme em todos os preços. Resumidamente, a oferta de dinheiro aumentada não deveria causar mudanças nos preços relativos de bens variados.
Assim, Cantillon, perguntando “de que modo e em que proporção o aumento de dinheiro aumenta os preços?”, responde em uma excelente análise de processo:
“Em geral, um aumento do dinheiro factual causa correspondente aumento no consumo em um estado, que gradualmente traz preços aumentados. Se o aumento do dinheiro factual vem de Minas de ouro e de prata do estado, o Proprietário dessas Minas, os aventureiros, os fundidores, os refinadores, e todos os outros trabalhadores aumentarão suas despesas em proporção com seus ganhos. Eles consumirão […] mais […] mercadorias. Eles consequentemente empregarão vários mecânicos que não tinham muito a fazer antes e que pela mesma razão aumentarão suas despesas. Todos esses aumentos de despesas em carne, vinho, lã, etc., diminuem a parcela de outros habitantes do estado que não participavam antes da riqueza das Minas em questão. A alteração no mercado, ou a demanda por carne, vinho, lã, etc., sendo mais intensa do que a demanda comum, não falhará em aumentar seus preços. Estes altos preços deixarão os fazendeiros determinados a empregar mais terra e a produzir mais no próximo ano; estes mesmos fazendeiros lucrarão com este aumento dos preços e aumentarão as despesas de suas famílias, assim como acontecerá com os outros. Aqueles, então, que sofrerão este consumo aumentado serão, primeiro, os proprietários de terras, durante o contrato de seus empréstimos, depois seus servos domésticos e todos os trabalhadores ou assalariados fixos que sustentam suas famílias com seus salários. Todos estes deverão diminuir suas despesas em proporção ao novo consumo […] É, assim, de forma aproximada, que um aumento considerável de dinheiro das minas aumenta o consumo. […]”
Resumidamente, os primeiros a receberem o novo capital aumentarão suas despesas de acordo com suas preferências, aumentando os preços desses bens, em detrimento de um menor padrão de vida para aqueles que recebem o novo dinheiro por último, ou para aqueles que recebem rendas fixas e não recebem o dinheiro novo de nenhuma forma. Ademais, preços relativos serão mudados de acordo com o curso do aumento geral do preço, já que a despesa aumentada é “mais ou menos direcionada a certos tipos de produtos ou mercadorias de acordo com a ideia daqueles que adquirem o dinheiro, e os preços de mercado de certas coisas aumentarão mais do que os de outras […]”. Ademais, o aumento geral do preço não necessariamente será proporcional ao aumento na oferta de dinheiro. Especificamente, já que aqueles que recebem novo dinheiro raramente o farão na mesma proporção de seus antigos saldos de dinheiro vivo, suas demandas, e, desse modo, seus preços, não aumentarão na mesma quantidade. Portanto, “na Inglaterra, o preço da carne pode ser triplicado, enquanto o preço do milho não aumenta mais do que em 25%”. Cantillon sumarizou seu insight de maneira esplêndida, e se aproximou da importante verdade de que as leis econômicas são qualitativas, e não quantitativas:
“Um aumento do dinheiro circulando em um estado sempre causa lá um aumento do consumo e um maior padrão de despesas. Mas a mudança causada por esse dinheiro não aumenta igualmente todos os tipos de produtos e mercadorias proporcionalmente à quantidade de dinheiro, a não ser que o que é adicionado continue na mesma circulação como o dinheiro anteriormente, isto é, a não ser que aqueles que ofereciam no mercado uma onça de prata sejam os mesmos e únicos que agora oferecem 2 onças quando a quantidade de dinheiro em circulação é dobrada em quantidade, isso é muito raramente o caso. Eu entendo que quando um aumento grande na quantidade de dinheiro é trazida para o estado, o novo dinheiro aumenta o consumo e até mesmo a velocidade para a circulação. Mas não é possível dizer até que ponto.”[9]
Não somente isso, mas, como o professor Hebert mostrou, Cantillon também fez uma análise proto-austríaca memorável dos diferentes efeitos do dinheiro indo para o consumo ou para o investimento. Se os novos fundos são gastos em bens de consumo, os bens serão comprados “de acordo com a inclinação daqueles que adquirem o dinheiro”, de modo que os preços destes bens subirão e os preços relacionados necessariamente mudarão. Se, em contraste, o dinheiro aumentado vai primeiro para as mãos dos emprestadores, eles aumentarão a oferta de crédito temporariamente e diminuirão a taxa de interesse, consequentemente, aumentando o investimento. Repudiando a visão superficial comum, trazida de volta à economia no século XX por John Maynard Keynes, de que os interesses são puramente um fenômeno monetário, Cantillon sustentava que a taxa de interesse é determinada pelo número e pelas interações dos que emprestam e dos que pegam emprestado, assim como os preços de bens particulares são determinadas pela interação dos compradores e vendedores. Assim, Cantillon enfatizou que
“Se a abundância de dinheiro em um estado chega às mãos dos emprestadores, a taxa atual de interesses sem dúvidas diminuirá de acordo com o aumento do número dos emprestadores: mas se chega às mãos daqueles que gastam, efeito oposto ocorrerá e a taxa de interesse aumentará de acordo com o aumento do número dos empreendedores que encontrarão atividade por causa deste gasto aumentado, e que precisarão pegar dinheiro emprestado para aumentar seus empreendimentos para todas as classes de consumidores.”
Uma oferta aumentada de dinheiro, portanto, pode ou aumentar ou diminuir as taxas de interesses temporariamente, dependendo de quem recebe o novo dinheiro — emprestadores ou pessoas que serão inspiradas por sua nova riqueza a pegar empréstimos para novos empreendimentos. Nessa análise do crédito crescente diminuindo as taxas de interesses, adiante, Cantillon dá os primeiros passos da posterior teoria austríaca dos ciclos econômicos.
Em adição a isso, Cantillon apresentou a primeira análise sofisticada de como a demanda por dinheiro, ou seu inverso, a velocidade ou o ritmo da circulação, afeta o impacto do dinheiro e, consequentemente, o movimento dos preços. Como ele coloca, “uma aceleração ou maior rapidez da circulação do dinheiro no comércio é equivalente a um aumento do dinheiro factual até certo ponto”. Uma das razões pelas quais o preço não muda na exata proporção à mudança na quantidade de dinheiro são as alterações na velocidade: “Um rio que corre e venta em seu leito não fluirá com o dobro da velocidade se a quantidade de água for dobrada”. Cantillon também viu que a demanda por equilíbrio monetário dependerá da frequência dos pagamentos feitos na sociedade. Como Monroe sumariza a posição de Cantillon: “quanto maiores os intervalos entre os pagamentos, maiores são as somas que se acumulam nas mãos dos pagadores, mais dinheiro é necessário no país”.[10] Se as pessoas guardarem grandes somas de dinheiro, aliás, eles terão de “manter o dinheiro guardado por períodos consideravelmente longos”. Por outro lado, o desenvolvimento de sistemas de compensação de dívidas mais eficientes, bem como de dinheiro em papel, economiza em dinheiro vivo: “a rapidez da circulação é aumentada pela prática de compensar contas entre mercadores, pelo uso de notas de banqueiros e de ourives, já que estes homens não mantêm uma quantidade equivalente de dinheiro em mãos”. Cantillon sumariza sua análise da interação entre quantidade e velocidade: “de acordo com os princípios que estabelecemos, a quantidade de dinheiro circulando nas trocas fixa e determina o preço de tudo em um estado levando em consideração a rapidez ou a lentidão da circulação”.
Cantillon também forneceu uma discussão majestosa sobre as relações entre ouro e prata, e advogou por taxas de câmbio livres e flutuantes entre ouro e prata, atacando quaisquer tentativas, certamente quaisquer tentativas duradouras, de fixar a taxa de câmbio entre eles. Afinal, tal taxa está fadada a logo variar a partir da taxa de mercado. Assim, Cantillon viu o problema em tentar manter o padrão bimetálico com paridades fixas entre dois metais preciosos.
Em suma, podemos entender o entusiasmo de Hayek quando ele conclui que a teoria monetária de Cantillon “constitui, sem dúvidas, a suprema conquista de um homem que era a maior figura pré-clássica pelo menos nesse campo e a qual os escritores clássicos em muitos aspectos não somente falharam em ultrapassar como até mesmo falharam em se igualar”.[11]
8. Relações monetárias internacionais
Uma das características mais notáveis — e certamente aquela que chamou mais atenção dos historiadores — da extensiva teoria monetária de Cantillon foi sua análise pioneira da tendência em direção ao equilíbrio monetário internacional, ou o mecanismo do fluxo de preço-espécie que tem sido geralmente atribuído aos escritos posteriores de David Hume.
Cantillon aplicou sua “micro-análise” das mudanças na oferta de dinheiro dentro de um país para as mudanças na distribuição de dinheiro entre os países. Por mais de dois séculos, escritores e estadistas mercantilistas na Europa defendiam um aumento na oferta de espécie em um país como um meio de aumentar o poder do estado, e eles estavam cada vez mais claros em dizer que, sem minas de ouro e de prata, uma nação só poderia aumentar sua quantidade de dinheiro tendo uma balança de negociações favorável. Era claro para os mercantilistas que esta não era necessariamente uma política que toda nação poderia conseguir alcançar, já que as balanças “favoráveis” de negociações de algumas nações teriam de ser compensadas pelas balanças “desfavoráveis” de outras. Nessa situação de desequilíbrio, cada nação estaria por si mesma, já que cada uma tentaria se beneficiar às custas de outras nações através de políticas restricionistas e semelhantes à guerra. Mas havia mais um problema no plano de fundo; já que a maioria dos escritores estavam pelo menos familiares com a “teoria quantitativa” ou análise de oferta e demanda da quantidade de dinheiro, uma contradição interna surgiu. Se a nação A conseguisse alcançar uma balança comercial favorável e acumular espécie, o aumento de espécie aumentaria os preços na nação A, tornando todos os produtos do país não-competitivos nos mercados mundiais, levando a balança favorável a um fim.
Ninguém foi mais lúcido sobre o problema do dinheiro e dos pagamentos internacionais do que Cantillon. Ele ressaltou que a espécie pode ser adquirida ou dentro de um país pela mineração, ou através de subsídios, guerra, pagamentos “invisíveis”, empréstimos, ou uma balança favorável com outros países. Mas então, na análise processual de Cantillon, ou os proprietários de minas ou os exportadores gastariam ou emprestariam o dinheiro. Parte do gasto do novo dinheiro certamente ocorreria fora do país, e, além disso, a quantidade aumentada de dinheiro aumentaria os preços no país de que se fala, fazendo os produtos nacionais menos competitivos, e o ouro escoaria para fora do país, revertendo a balança de negociações favorável.
Dessa forma, Cantillon elaborou uma teoria monetária internacional integrada com sua análise doméstica, e foi um dos primeiros a elaborar uma teoria do equilíbrio monetário internacional. Afinal, o mercado mundial conseguiu frustrar, ao menos no longo prazo, as tentativas governamentais de intervir e garantir balanças de negociações favoráveis. Deve ser notado, ademais, que a análise de Cantillon continha a base para as duas maiores partes do equilíbrio do mecanismo de fluxo de preço-espécie: o gasto de novos saldos monetários de dinheiro vivo aumenta as importações; e o aumento dos preços internos causados por uma maior oferta de dinheiro, o efeito dos preços diminuiria as exportações e aumentaria assim às importações.
Richard Cantillon entendeu a contradição interna grave do mercantilismo: o aumento do dinheiro em espécie aumenta os preços e, portanto, destrói a balança favorável de pagamentos que trouxe o dinheiro em espécie. Sua saída insatisfatória foi aconselhar o rei a acumular muito do estoque aumentado de modo a não aumentar os preços; insatisfatória porque o dinheiro deve ser gasto eventualmente, e uma vez gasto, o temido aumento de preços, quer queira ou não, acontecerá.
O professor Salerno, entretanto, introduziu uma nota de cautela nos louvores a Cantillon, ressaltando que ele foi chamado de teórico somente do “semi-equilíbrio” porque ele não forneceu uma ideia satisfatória de como seria o estado de equilíbrio, e ele não pensava a economia mundial como tendendo firmemente ao equilíbrio. Como resultado, Cantillon não apresentou uma teoria da distribuição internacional de ouro e de prata em equilíbrio.[12] E pensava a economia, em contrapartida, como permanecendo em ciclos sem fim de desequilíbrio em vez de tendendo ao equilíbrio.
9. A auto-regulação do mercado
Não há motivo para gastar tempo em especulação infértil sobre se Richard Cantillon era ou não um “mercantilista”. Escritores do século XVIII não se agrupavam em tais categorias. Enquanto ele inconsistentemente sugeria, de acordo com noções de fortalecimento do estado de sua época, que o rei deveria acumular tesouro de uma balança de negociações favorável, todo o ímpeto da obra de Cantillon era na direção das livres negociações, do laissez-faire. Estava claro que as medidas mercantilistas ultimamente sairiam pela culatra. Mais importante, Cantillon foi o primeiro a mostrar em detalhes que todas as partes da economia de mercado encaixam juntas em um padrão “natural”, auto-regulador, equilibrado, com a oferta existente e a demanda determinando os preços e os salários, e, em última análise, o padrão de produção. As valorações do consumidor, ademais, determinavam a demanda, com a população se ajustando a fatores econômicos e culturais. Os equilibradores da economia eram os empreendedores, que se adaptavam e lidavam com a incerteza totalmente pervasiva do mercado. E se a economia de mercado, apesar do quão “caótica” possa parecer para observadores superficiais, é, na verdade, harmonicamente autorreguladora, a intervenção governamental, então, enquanto tal é ou contraproducente ou desnecessária.
Particularmente instrutiva é a atitude de Cantillon quanto às leis sobre a usura, aquela questão incômoda que pela última vez trouxe descrédito injustificado à análise econômica inteira dos escolásticos católicos da renascença medieval. Este astuto mercador e banqueiro viu que taxas de interesses particulares, no mercado, são proporcionais aos riscos da inadimplência enfrentados pelo credor. Interesses altos são o resultado do risco alto, não da exploração ou opressão. Como Cantillon escreveu: “Todos os mercadores em um estado estão acostumados a emprestar mercadoria ou a produzir para varejistas, e fazem a taxa de seu lucro ou de interesses proporcional ao risco que enfrentam”. Altas taxas de interesses têm somente um pequeno lucro, por causa da alta incidência de inadimplência em empréstimos arriscados. Cantillon também observou que os escolásticos católicos posteriores eventualmente e relutantemente concordaram em permitir altas taxas de interesses para empréstimos perigosos. Ademais, não deve haver imposição de interesses máximos, já que somente os credores e os tomadores de empréstimos poderão determinar seus próprios medos e necessidades: “afinal, seria difícil encontrar qualquer limite certo, já que o assunto na realidade depende dos medos dos credores e das necessidades dos tomadores de empréstimos”.
Finalmente, Cantillon viu que as leis da usura só poderiam restringir o crédito e, desse modo, aumentar as taxas de interesses ainda mais nos inevitáveis mercados negros. Portanto, leis de usura não diminuiriam as taxas de interesses, mas, ao contrário, aumentaram-nas: “porque as partes contratantes, obedientes à força de competição ou ao preço atual determinado pela proporção dos credores e tomadores de empréstimo, farão negociações secretas, e essa barreira legal só atrapalhará o comércio e aumentará as taxas de interesses, ao invés de abrandá-las”.
10. Influência
O Essai pioneiro de Richard Cantillon foi amplamente lido e altamente influente no século XVIII. Foi amplamente lido como era o costume da época, em sua forma manuscrita e “underground”, por pessoas da literatura, da ciência e intelectuais, interessadas no avanço do pensamento e nos problemas práticos de sua época. A necessidade de tais manuscritos como meio de propagar informação foi resultado da severa censura francesa nesse período.
O Essai, portanto, foi amplamente lido desde a época em que foi escrito, no começo da década de 1730, e foi ainda mais lido depois de sua publicação, em 1755. Foi intensa e completamente lido pela primeira escola de economistas, os fisiocratas, e por seu grande associado, ou parceiro, A.R.J. Turgot. Naquela sociedade cosmopolita do século XVIII onde os intelectuais britânicos e franceses se entremeavam, o Essai foi certamente lido e ecoado pelo eminente filósofo escocês, David Hume. E tem a honra de ter sido um dos pouquíssimos livros citados pelo amigo de Hume, Adam Smith — um homem cujo próprio sentido superdesenvolvido de originalidade o preveniu de citar ou reconhecer muitos predecessores. Cantillon foi, assim, altamente influente entre os economistas britânicos e continentais até a publicação de A Riqueza das Nações, em 1776. Depois da publicação dessa obra, no entanto, o conhecimento e influência de Cantillon foi vítima do hábito geral pós-smithiano de ignorar todo e qualquer economista precedente a Adam Smith. O hábito geral do século XIX de obter conhecimento dos economistas antes de Adam Smith cometeu grande injustiça contra economistas precedentes e fez nascer a errônea — e ainda amplamente defendida — ilusão de que a ciência econômica floresceu inteira da cabeça de um Grande Homem, bem como Atena supostamente floresceu, totalmente crescida e armada, da testa de Zeus. Mas o aspecto mais pernicioso desse louvor a Smith é que os economistas perdidos foram de muitas formas muito mais sólidos do que Adam Smith, e os esquecendo, muito da economia sólida foi perdida por pelo menos um século. De muitas formas, como veremos, Adam Smith refletiu a economia, a economia da tradição continental começando com os escolásticos medievais e posteriores e continuando através de escritores franceses e italianos do século XVIII, de um caminho correto, e daí para um caminho bem diferente e falacioso. A “economia clássica” smithiana, como viemos a chamá-la, estava cheia de análise agregada, teoria do custo-de-produção, estados de equilíbrio estático, divisão artificial em “micro” e “macro”, e uma bagagem inteira de análise holística e estática.
O infeliz esquecimento da economia pré-smithiana tornou possível que a economia clássica smithiana dominasse o pensamento econômico por 100 anos. A revolução marginal da década de 1870, especialmente o início da teoria austríaca, de muitas formas, devolveu a economia a seu devido caminho individualista, do micro e do valor subjetivo pré-smithiano no continente europeu. Não foi por acidente que o próprio Cantillon foi redescoberto em 1881 pelo revolucionário marginal quase-“austríaco” W. Stanley Jevons, que estava louvavelmente ansioso para redescobrir economistas perdidos enterrados pela ortodoxia dominante de Smith-Ricardo.
Mas a economia estava infelizmente longe de se livrar da bagagem Smith-Ricardo. O atual renascimento da teoria austríaca, e a crescente busca por uma forma de nos livrar da ortodoxia contemporânea de muitos economistas mainstream, é uma tentativa de completar a promessa da infelizmente nomeada “revolução marginal” (que é na realidade uma revolução individualista-subjetivista), e completar o expurgo do paradigma britânico clássico.
Notas
[1] Uma confusão considerável foi semeada nos estudos de Cantillon pelo fato de o primo, pai, bisavô e tataravô de Richard terem todos se chamado Richard.
[2] Para aumentar a confusão genealógica, a mãe de Richard, Bridget, era também uma Cantillon, do Condado de Limerick. O pai de Richard e a sua noiva Bridget eram primos distantes na família Cantillon. O avô de Richard e o bisavô de Bridget eram ambos filhos de Sir Richard Cantillon I.
[3] No auge da bolha, a duquesa de Orleans escreveu, admirada: “É inconcebível a riqueza que existe atualmente na França. Toda gente fala em milhões. Não compreendo a situação como um todo, mas vejo claramente que o deus Mammon reina um monarca absoluto em Paris”. Citado em John Carswell, The South Sea Bubble (Stanford: Stanford University Press, 1960), p. 101.
[4] A citação de Egmont está em Antoin E. Murphy, “Richard Cantillon-Banker and Economist”, Journal of Libertarian Studies 7 (Outono de 1985), p. 185.
[5]F.A. von Hayek, “Introduction to a German translation of Cantillon’s Essai” (Jena: Gustav Fischer, 1931); da tradução da introdução de Hayek por Micháel Ó’Súilleábháin, Journal of Libertarian Studies, 7 (Outono de 1985), p. 227.
[6] Em um floreio aristotélico, Cantillon declarou que a terra “é a fonte ou matéria da qual a Riqueza é extraída”, enquanto “o trabalho humano é a forma que a produz”, enquanto a riqueza, no entanto, não é intrínseca aos bens, mas é “em si mesma nada menos que o sustento, as conveniências e os confortos da vida”.
[7] No Essai, uma obra de apenas 165 páginas, Cantillon faz nada menos que 110 referências distintas ao empreendedor.
[8]Vickers apropriadamente escreve que “Em Cantillon, ao contrário de outros escritores da primeira metade do século [XVIII], o movimento na teoria e na explicação em direção a uma descrição dinâmica, em oposição a uma definição estática dos assuntos monetários, assumiu um aspecto microscópico, uma forma microeconômica. Sua análise econômica sempre partia da magnitude e das quantidades econômicas individuais”. E ainda: “Os preços de mercado, os preços monetários e os níveis de atividade e de emprego não deviam ser considerados variáveis homogêneas. O Essai está interessado na estrutura dos preços de mercado, na estrutura das condições de oferta do mercado e na estrutura da atividade na economia”. Douglas Vickers, Studies in the Theory of Money 1690-1776 (Philadelphia: Chilton Co., 1959), pp. 187-8.
[9] Veja as citações e a discussão em Chi-Yuen Wu, An Outline of International Price Theories (Londres: George Routledge & Sons, 1939), pp. 66-7.
[10] Arthur Eli Monroe, Monetary Theory before Adam Smith (1923, repr. Gloucester, Mass.: Peter Smith, 1965), pp. 255-6.
[11]von Hayek, op. cit., nota 5, p. 226.
[12] Salerno assinala que, pelo menos nesse aspecto, o tratamento de Cantillon foi inferior ao panfleto negligenciado de um autor inglês desconhecido, Isaac Gervaise, The System or Theory of the Trade of the World (1720). Gervaise elaborou o processo de equilíbrio e, acreditando como acreditava numa tendência firme para uma posição de equilíbrio, foi o primeiro a apontar que, nesse equilíbrio, os metais preciosos seriam distribuídos de acordo com a demanda internacional por eles. Essa demanda seria incorporada nas atividades produtivas de cada nação em particular. O panfleto de Gervaise não foi lido até ser ressuscitado pelo professor Jacob Viner em meados do século XX. Isaac Gervaise, The System or Theory of the Trade of the World, editado por J. M. Letiche (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1954).
Gervaise, entretanto, era inferior a Cantillon, apresentando uma abordagem agregativa e macroeconômica em vez da análise microeconômica pioneira deste último.