Ludwig von Mises e o Paradigma para Nossa Era

Tempo de Leitura: 20 minutos

[Artigo retirado do livro Economic Controversies, autoria de Murray Rothbard, traduzido por Alex Pereira de Souza, revisado por dkwolf]

[1]Originalmente apareceu em Modern Age (Outono, 1961): 370-379.

Indiscutivelmente o desenvolvimento mais significante e desafiador da historiografia da ciência na última década é a teoria de Thomas S. Kuhn. Sem defender a filosofia relativista e subjetivista questionável de Kuhn, sua contribuição é um insight sociológico brilhante nas formas em que as teorias científicas mudam e se desenvolvem.[2] Essencialmente, a teoria de Kuhn é um desafio crítico ao que pode ser chamado de “teoria Whig da história da ciência”. Essa teoria “Whig”, que até Kuhn era a ortodoxia incontestada no campo, vê o progresso da ciência como um processo gradual, contínuo e sempre para cima; ano a ano, década a década, século a século, o corpo de conhecimento científico gradualmente cresce e acresce através do processo de enquadrar hipóteses, testá-las empiricamente e descartar as inválidas e manter as teorias válidas. Cada era se posiciona sobre os ombros de cada era precedente e vê além e mais claramente do que elas. Na perspectiva Whig, além disso, não há conhecimento substancial a ser ganho de ler, digamos, físicos do século XIX ou astrônomos do século XVII; podemos estar interessados em ler Priestley ou Newton ou Maxwell para ver como mentes criativas funcionam ou solucionam problemas, ou para um insight na história do período; mas nunca podemos lê-los para aprender alguma coisa sobre ciência que já não saibamos. Afinal, suas contribuições estão, quase por definição, incorporadas dentro dos últimos livros-texto ou tratados em suas disciplinas.

Muitos de nós, em nossa experiência diária, sabemos o suficiente para ficarmos descontentes com essa versão idealizada do desenvolvimento da ciência. Sem endossar a validade da teoria de Immanuel Velikovsky, por exemplo, vimos Velikovsky ser rejeitado brusca e furiosamente pela comunidade científica sem esperar pelo teste paciente do cientista de mente-aberta, o qual fomos conduzidos a acreditar ser a essência do questionamento científico.[3] E vimos a crítica a pesticidas de Rachel Carson geralmente ser ridicularizada pelos cientistas apenas para ser adotada uma década depois.

Mas foi necessário o Professor Kuhn fornecer um modelo compreensivo da adoção e da manutenção da crença científica. Basicamente, ele afirma que os cientistas, em qualquer dada área, vem a adotar uma visão fundamental ou matriz de uma teoria explanatória, uma visão que Kuhn chama de um “paradigma”. E qualquer que seja o paradigma, seja ele a teoria atômica ou a teoria do flogisto, uma vez adotado, o paradigma governa todos os cientistas no campo sem ser mais verificado ou questionado — como o modelo Whig consideraria. O paradigma fundamental, uma vez estabelecido, não é mais testado ou questionado, e todas as pesquisas posteriores logo se tornam aplicações secundárias do paradigma, pequenas limpezas de lacunas e de anomalias que ainda permanecem na visão básica. Por anos, décadas ou mais, a pesquisa científica torna-se estreita, especializada e sempre dentro do framework paradigmático básico.

Mas então, gradualmente, mais e mais anomalias se acumulam; quebra-cabeças não podem mais ser resolvidos pelo paradigma. Mas os cientistas não desistem do paradigma; pelo contrário, crescentes tentativas desesperadas são feitas para modificar os particulares da teoria básica de modo a encaixar os fatos não agradáveis e a preservar o framework fornecido pelo paradigma. Apenas quando anomalias se acumulam a uma extensão que o paradigma em si é levado a questionamento é que nós temos a “situação de crise” na ciência. E até mesmo aqui, o paradigma nunca é simplesmente descartado até que ele possa ser substituído por um paradigma novo e concorrente que aparece para fechar as lacunas e liquidar as anomalias. Quando isso ocorre, surge uma “revolução científica”, um período caótico durante o qual um paradigma é substituído por outro, e que nunca ocorre suavemente como a teoria Whig sugere. E até mesmo aqui, os cientistas mais velhos, atolados em seus interesses intelectuais próprios, irão frequentemente se prender ao paradigma obsoleto, com a nova teoria apenas sendo adotada pelos cientistas mais novos e mais flexíveis. Assim, da co-descoberta do oxigênio no século XVIII, Priestley e Lavoisier, Joseph Priestley nunca, até o dia de sua morte, concedeu que havia de fato descoberto o oxigênio; até o final ele insistiu que o que tinha descoberto era meramente “ar deflogisticado”, assim permanecendo dentro do framework da teoria do flogisto.[4]

E então, armado com o próprio paradigma de Kuhn da história das teorias científicas, que está agora no processo de substituir o framework Whig, vemos uma figuração bem diferente do processo da ciência. Em vez de uma marcha lenta e gradual para cima em direção à luz, testando e revisando cada passo do caminho, vemos uma série de saltos “revolucionários”, conforme paradigmas substituem uns aos outros apenas depois de muito tempo, labuta e resistência. Além disso, sem adotar o próprio relativismo filosófico de Kuhn, torna-se claro que, uma vez que interesses intelectuais pessoais desempenham um papel muito mais dominante do que testes mente-aberta contínuos, pode muito bem acontecer que um paradigma sucessor seja menos correto do que um antecessor. E se isso é verdadeiro, então precisamos sempre estar abertos à possibilidade de que, em verdade, sabemos geralmente menos sobre uma dada ciência agora do que sabíamos décadas ou até mesmo séculos atrás. Pois paradigmas são descartados e nunca olhados novamente, o mundo pode ter esquecido verdades científicas que eram antes conhecidas, bem como adicionadas ao seu estoque de conhecimento. Ler cientistas antigos agora abre a possibilidade distinta de que nós podemos aprender alguma coisa que não conhecíamos — ou coletivamente esquecemos — sobre a disciplina. Professor de Grazia afirma que “muito mais é descoberto e esquecido do que é conhecido”, e muito do que tem sido esquecido pode estar mais correto do que teorias que são agora aceitas como verdade.[5]

Se a tese de Kuhn é correta sobre as ciências físicas, nas quais podemos obter testes empíricos e de laboratório das hipóteses com bastante facilidade, quanto mais deve ser verdadeiro na filosofia e nas ciências sociais, nas quais não são possíveis tais testes de laboratório! Pois nas disciplinas relacionadas à ação humana, não há testes laboratoriais  claros e evidentes disponíveis; precisa-se chegar às verdades pelo processo de introspecção, o conhecimento de “senso comum”, e de raciocínio dedutivo, e tais processos, enquanto chegam em verdades sólidas, não são tão forte ou compelentemente evidentes como nas ciências físicas. Consequentemente, é muito mais fácil para filósofos ou cientistas sociais caírem em paradigmas tragicamente errados ou falaciosos e, assim, desencaminharem a si mesmos por décadas, e até mesmo séculos. Pois, uma vez que as ciências da ação humana adotam seus paradigmas fundamentais, torna-se muito mais fácil do que nas ciências físicas ignorar a existência de anomalias e, portanto, é mais fácil reter doutrinas errôneas por um tempo muito longo. Há uma dificuldade muito mais conhecida na filosofia e nas ciências sociais que faz erros sistemáticos ainda mais prováveis: a infusão de emoções, de juízos de valor e de ideologias políticas no processo científico. O tratamento raivoso dado a Jensen, Shockley e teóricos da desigualdade de inteligência racial pelos seus colegas cientistas, por exemplo, é um caso característico. Pois subjacente ao grosso da recepção científica de Jensen e Shockley está que, mesmo que suas teorias sejam verdadeiras, eles não deveriam dizê-las, pelo menos por um século, por causa das lamentáveis consequências políticas que podem estar envolvidas. Embora esse tipo de estultificação da busca pela verdade científica tenha acontecido às vezes nas ciências físicas, felizmente é muito menos prevalente lá; e quaisquer que fossem os interesses intelectuais pessoais em jogo, não havia pelo menos nenhum suporte ideológico e político para a teoria do flogisto ou a teoria da valência na química.

Até décadas recentes, filósofos e cientistas sociais nutriam um saudável reconhecimento das vastas diferenças entre suas disciplinas e as ciências naturais; em particular, os clássicos da filosofia, da teoria política e da economia foram lidos não apenas por interesse antiquário, mas pelas verdades que poderiam estar ali. O estudante de filosofia lê Aristóteles, Aquino ou Kant não como um jogo antiquário, mas para aprender sobre as respostas a questões filosóficas. O estudante de teoria política lê Aristóteles e Maquiavel à mesma luz. Não foi assumido que, como nas ciências físicas, todas as contribuições de pensadores anteriores foram incorporadas com sucesso na última edição do livro-texto atualmente popular; e, portanto, não foi assumido que era muito mais importante ler o último artigo de periódico da área do que ler os filósofos clássicos.

Em décadas recentes, no entanto, as disciplinas da ação humana — filosofia e as ciências sociais — têm tentado freneticamente imitar a metodologia das ciências físicas. Tem havido muitas falhas graves nessa abordagem, que têm cada vez mais divorciado as ciências sociais da realidade: a vã substituição da experimentação laboratorial pela estatística, a adoção do modelo positivista de teste de hipótese, a infeliz conquista de todas as disciplinas — até mesmo a história, até certo ponto — pela matemática, são exemplos ilustres. Mas aqui o ponto importante é que, na imitação das ciências físicas, as disciplinas sociais se tornaram especialidades estreitas; assim como nas ciências físicas, ninguém lê os clássicos da área ou, de fato, está familiarizado com a história da disciplina mais atrás do que os artigos de jornal deste ano. Ninguém mais escreve tratados sistemáticos; apresentações sistemáticas são deixadas para livros-texto entediantes, enquanto os “verdadeiros” estudiosos na área gastam sua energia em minúcias técnicas para os periódicos profissionais.

Vimos que mesmo as ciências físicas têm seus problemas de perpetuação acrítica de suposições e paradigmas fundamentais; mas nas ciências sociais e na filosofia essa imitação dos métodos das ciências físicas foi desastrosa. Pois, embora as ciências sociais fossem lentas para mudar seus pressupostos fundamentais no passado, elas eventualmente foram capazes de fazê-lo por puro raciocínio e crítica do paradigma básico. Demorou, por exemplo, muito tempo para que a economia de “utilidade marginal” substituísse a economia clássica no final do século XIX, mas isso foi finalmente feito por meio de tal raciocínio e questionamento fundamentais. Mas nenhum tratado sistemático — com uma exceção a ser discutida abaixo — tem sido escrito em economia, nem um único, desde a Primeira Guerra Mundial. E se não houver tratados sistemáticos, não pode haver questionamento dos pressupostos fundamentais; privada dos testes de laboratório que fornecem as verificações finais sobre as teorias das ciências físicas e agora também privada do uso sistemático da razão para desafiar suposições fundamentais, é quase impossível ver como a filosofia contemporânea e as ciências sociais podem mudar os paradigmas fundamentais em que foram agarradas durante a maior parte deste século. Mesmo que estivéssemos em total acordo com a tendência fundamental das ciências sociais neste século, a ausência de questionamento fundamental — a redução de todas as disciplinas a mesquinharias nos periódicos — seria motivo para sérias dúvidas sobre a solidez das ciências sociais.

Mas se alguém acredita, como o presente autor, que os paradigmas fundamentais da filosofia moderna do século XX e das ciências sociais têm estado gravemente falhos e falaciosos desde o início, incluindo a imitação das ciências físicas, então está justificada uma chamada por uma reconstrução radical e fundamental de todas essas disciplinas, e a abertura das atuais burocracias especializadas nas ciências sociais para uma crítica total de seus pressupostos e procedimentos.

De todas as ciências sociais, a economia foi a que mais sofreu com esse processo degenerativo. Pois a economia é erroneamente considerada a mais “científica” das disciplinas. Os filósofos ainda lêem Platão ou Kant em busca de insights sobre a verdade; teóricos políticos ainda lêem Aristóteles e Maquiavel pelo mesmo motivo. Mas nenhum economista lê mais Adam Smith ou James Mill com o mesmo propósito. A história do pensamento econômico, antes exigida na maioria dos departamentos de graduação, é agora uma disciplina que está morrendo rapidamente, reservada apenas aos antiquários. Estudantes graduados estão presos aos artigos de periódicos mais recentes, a leitura de economistas publicados antes da década de 1960 é considerada uma diletante perda de tempo e qualquer questionamento de suposições fundamentais por trás das teorias atuais é seriamente desencorajado. Se há qualquer menção que seja a economistas mais velhos, é apenas com algumas pinceladas superficiais para descrever os precursores dos atuais Grandes Homens no campo. O resultado não é apenas que a economia está presa em um caminho tragicamente errado, mas também que as verdades fornecidas pelos grandes economistas do passado foram coletivamente esquecidas pela profissão, perdidas em uma forma de “buraco de memória” orwelliano.

De todas as tragédias provocadas por essa amnésia coletiva na economia, a maior perda para o mundo é o eclipse da “Escola Austríaca”. Fundada nas décadas de 1870 e 1880, e quase morta, a Escola Austríaca teve de sofrer muito mais negligência do que as outras escolas de economia por uma variedade de razões poderosas. Em primeiro lugar, é claro, foi fundada um século atrás, o que, na era científica atual, é em si suspeito. Em segundo lugar, a Escola Austríaca foi, desde o início, auto conscientemente filosófica, em vez de “cientificista”; muito mais preocupados com metodologia e epistemologia do que outros economistas modernos, os austríacos chegaram cedo a uma oposição de princípio ao uso da matemática ou do “teste” estatístico na teoria econômica. Ao fazer isso, eles se colocaram em oposição a todas as tendências positivistas que imitam as ciências naturais deste século. Significava, além disso, que os austríacos continuavam a escrever tratados fundamentais, enquanto outros economistas estavam de olho em artigos estreitos e de orientação matemática. E terceiro, ao enfatizar o indivíduo e suas escolhas, tanto metodológica quanto politicamente, os austríacos estavam se posicionando contra o holismo e o estatismo deste século também.

Essas três divergências radicais das tendências atuais foram suficientes para impelir os austríacos ao esquecimento imerecido. Mas havia outro fator importante, que à primeira vista pode parecer banal: a barreira do idioma. É notório no mundo acadêmico que, a despeito de “testes de linguagem” para o contrário, nenhum economista americano ou inglês pode realmente ler em uma língua estrangeira. Consequentemente, a aceitação da economia baseada no exterior precisa depender dos caprichos da tradução. Dos grandes fundadores da Escola Austríaca, a obra de Carl Menger das décadas de 1870 e 1880 permaneceu sem tradução para o inglês até os anos 1950; O aluno de Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, se saiu muito melhor, mas mesmo sua obra completa não foi traduzida até o final dos anos 1950. O grande aluno de Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, o fundador e chefe da Escola “Neo-Austríaca”, se saiu quase tão mal quanto Menger. Seu clássico Theory of Money and Credit, publicado em 1912, que aplicava a economia austríaca aos problemas monetários e bancários, e que continha as sementes de uma teoria dos ciclos econômicos radicalmente nova (e ainda amplamente desconhecida), foi de grande influência no continente da Europa, mas permaneceu sem tradução até 1934. Nessa época, a obra de Mises seria rapidamente enterrada na Inglaterra e nos Estados Unidos pelo fervor da “Revolução Keynesiana”, que estava em pólos opostos à teoria de Mises. O livro de Mises de 1928, Geldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik, que previu a Grande Depressão com base em sua desenvolvida teoria dos ciclos econômicos, permanece sem tradução até hoje. O monumental tratado sistemático de Mises, Nationalökonomie, integrando a teoria econômica sobre a fundamentação de uma epistemologia básica sólida, foi relevado também por ter sido publicado em 1940, no meio da Europa dilacerada pela guerra. Mais uma vez, sua tradução para o inglês como Human Action (1949) veio em um momento em que a economia havia definido sua face metodológica e política em uma direção radicalmente diferente e, portanto, a obra de Mises, como no caso de outros desafios aos paradigmas fundamentais na ciência, não foi refutado ou criticado, mas simplesmente ignorado.

Assim, embora Ludwig von Mises fosse reconhecido como um dos economistas mais eminentes da Europa nas décadas de 1920 e 1930, a barreira linguística bloqueou qualquer reconhecimento de Mises no mundo anglo-americano até meados da década de 1930; então, assim que sua teoria dos ciclos econômicos estava começando a adquirir renome como uma explicação para a Grande Depressão, o reconhecimento atrasado de Mises foi perdido na comoção da Revolução Keynesiana. Um refugiado privado de sua base acadêmica ou social na Europa, Mises emigrou para os Estados Unidos à mercê de seu recém-descoberto ambiente. Mas embora, no clima da época, os refugiados esquerdistas e socialistas da Europa fossem cultivados, festejados e recebessem cargos acadêmicos de prestígio, um destino diferente foi infligido a um homem que encarnava um individualismo metodológico e político que era um anátema à academia americana. Na verdade, o fato de um homem da eminência de Mises não ter recebido uma única oferta acadêmica regular e dele nunca ter sido capaz de lecionar em um prestigioso departamento de graduação neste país é uma das manchas mais vergonhosas na não muito ilustre história do ensino superior americano. O fato do próprio Mises ter sido capaz de preservar sua grande energia, sua notável produtividade e sua infalível gentileza e bom humor em face desse tratamento miserável é simplesmente mais um tributo às qualidades desse homem notável que agora homenageamos em seu aniversário de 90 anos.

Acertado então que os escritos de Ludwig von Mises são a personificação de um homem corajoso e eminente esculpindo a sua disciplina e a sua visão, não prestando atenção aos maus tratos. À parte disso, que verdades substantivas eles têm a oferecer a um americano em 1971? Eles apresentam verdades não encontradas em outros lugares e, portanto, oferecem um interesse intrínseco além do registro histórico de uma luta pessoal fascinante? A resposta — que obviamente não pode ser documentada no compasso deste artigo — é simples e surpreendentemente esta: que Ludwig von Mises nos oferece nada menos do que o paradigma correto completo e desenvolvido de uma ciência que se perdeu tragicamente na última metade do século. O trabalho de Mises nos apresenta a alternativa correta e radicalmente divergente às falhas, erros e falácias que um número crescente de alunos está sentindo na ortodoxia econômica atual. Muitos alunos sentem que há algo muito errado com a economia contemporânea, e muitas vezes suas críticas são incisivas, mas eles são ignorantes de qualquer alternativa teórica. E, como Thomas Kuhn mostrou, um paradigma, embora defeituoso, não será descartado até que possa ser substituído por uma teoria concorrente. Ou, no vernáculo, “você não pode vencer algo com nada” e “nada” é tudo o que muitos críticos atuais da ciência econômica podem oferecer. Mas a obra de Ludwig von Mises fornece esse “algo”; fornece uma economia baseada não na imitação das ciências físicas, mas na própria natureza do homem e da escolha individual. E fornece essa economia em uma forma sistemática e integrada que está admiravelmente equipada para servir como uma alternativa paradigmática correta para a verdadeira situação de crise — na teoria e na política pública — que a economia moderna tem derramado sobre nós. Não é exagero dizer que Ludwig von Mises é a Saída para os dilemas metodológicos e políticos que têm se acumulado no mundo moderno. Mas o que é necessário agora é uma multidão de “austríacos” que possam espalhar a palavra da existência desse caminho negligenciado.

Resumidamente, o sistema econômico de Mises — conforme estabelecido particularmente em seu Human Action — fundamenta a economia diretamente sobre o axioma da ação: em uma análise da verdade primordial de que os homens individuais existem e agem, isto é, fazem escolhas propositadas entre alternativas. Sobre esse axioma da ação simples e evidente, Ludwig von Mises deduz todo o edifício sistemático da teoria econômica, um edifício que é tão verdadeiro quanto o axioma básico e as leis fundamentais da lógica. Toda a teoria é o desenvolvimento do individualismo metodológico na economia, da natureza e das consequências das escolhas e das trocas dos indivíduos. A devoção intransigente de Mises ao livre mercado, sua oposição a todas as formas de estatismo, decorre de sua análise da natureza e das consequências dos indivíduos agindo livremente por um lado, e contra a interferência ou planejamento coercitivo governamental do outro. Pois, baseando-se no axioma da ação, Mises é capaz de mostrar as consequências felizes da liberdade e do livre mercado na eficiência social, na prosperidade e no desenvolvimento, em oposição às consequências desastrosas da intervenção governamental na pobreza, na guerra, no caos social e no retrocesso. Essa consequência política por si só, é claro, torna a metodologia, bem como as conclusões da economia misesiana, um anátema para as ciências sociais modernas.

Como Mises coloca:

Príncipes e maiorias democráticas estão embriagados de poder. Precisam admitir com relutância que estão sujeitos às leis da natureza. Mas eles rejeitam a própria noção de lei econômica. Eles não são os legisladores supremos? […] Na verdade, a história econômica é um longo histórico de políticas governamentais que falharam porque foram elaboradas com um ousado desprezo pelas leis da economia.

É impossível entender a história do pensamento econômico se não se atentar ao fato de que a economia como tal é um desafio à arrogância dos que estão no poder. Um economista nunca pode ser o favorito de autocratas e de demagogos. Com eles, ele é sempre o criador de malícias. […]

Diante de toda essa agitação frenética, convém estabelecer o fato de que o ponto de partida de todo raciocínio praxiológico e econômico, a categoria da ação humana, é a prova contra quaisquer críticas e objeções. […] Do fundamento inabalável da categoria da ação humana, a praxiologia e os economistas avançam passo a passo por meio do raciocínio discursivo. Definindo com precisão suposições e condições, eles constroem um sistema de conceitos e extraem todas as inferências implicadas por um raciocinamento logicamente incontestável.[6]

E novamente:

As leis do universo das quais a física, a biologia e a praxiologia [essencialmente a economia] fornecem conhecimento são independentes da vontade humana, são fatos ontológicos primários que restringem rigidamente o poder do homem de agir. […]

Apenas os insanos se aventuram a desconsiderar as leis físicas e biológicas. Mas é muito comum desprezar as leis econômicas. Os governantes não gostam de admitir que seu poder seja restringido por quaisquer outras leis além das da física e da biologia. Eles nunca atribuem suas falhas e frustrações à violação da lei econômica.[7]

Uma característica notável da análise de Mises do “intervencionismo” — da intervenção governamental na economia — é que ele é fundamentalmente o que agora poderia ser chamado de “ecológico”; pois mostra que um ato de intervenção gera consequências e dificuldades não intencionais, que então apresentam ao governo uma alternativa: ou mais intervenção para “resolver” esses problemas ou a revogação de toda a estrutura intervencionista. Em suma, Mises mostra que a economia de mercado é uma teia inter-relacionada finamente construída; e a intervenção coercitiva em vários pontos da estrutura criará problemas imprevistos em outros lugares. A lógica da intervenção, então, é cumulativa; e, portanto, uma economia mista é instável — sempre tendendo ou para o socialismo em grande escala ou de volta para uma economia de livre mercado. O programa americano de apoio aos preços agrícolas, assim como o programa de controle de aluguéis da cidade de Nova York, são quase casos clássicos das consequências e armadilhas da intervenção. Na verdade, a economia americana praticamente atingiu o ponto em que a taxação paralisante, a inflação contínua, as graves ineficiências e colapsos em áreas como vida urbana, transporte, educação, telefone e serviço postal, as restrições e greves devastadoras de sindicatos trabalhistas, o crescimento acelerado da dependência do welfare, todos trouxeram a crise em grande escala do intervencionismo que Mises previu há muito tempo. A instabilidade do sistema intervencionista do estado de bem-estar social está agora tornando totalmente clara a escolha fundamental que nos confronta entre o socialismo de um lado e o capitalismo de outro.

Talvez a contribuição singular mais importante de von Mises para a economia da intervenção é também a mais gravemente negligenciada nos dias atuais: sua análise do dinheiro e dos ciclos econômicos. Estamos vivendo em uma época em que até mesmo os economistas supostamente mais devotados ao livre mercado estão dispostos e ansiosos para ver o estado monopolizar e dirigir a emissão de dinheiro. Ainda assim, Mises mostrou que:

  1. nunca há qualquer benefício social ou econômico a ser conferido por um aumento na oferta de dinheiro;
  2. a intervenção do governo no sistema monetário é invariavelmente inflacionária;
  3. portanto, o governo deveria ser separado do sistema monetário, assim como o livre mercado requer que o governo não intervenha em qualquer outra esfera da economia.

Aqui, Mises enfatiza que só há uma maneira de garantir essa liberdade e separação: ter um dinheiro que também seja uma mercadoria útil, cuja produção seja como outras mercadorias sujeitas às forças de oferta e demanda do mercado. Em suma, esse dinheiro-mercadoria — que na prática significa o padrão-ouro completo — substituirá a emissão fiduciária de papel-dinheiro pelo governo e seu sistema bancário controlado.[8]

A brilhante teoria dos ciclos econômicos de Mises é a única a ser integrada à análise geral dos economistas do sistema de preços e do capital e dos juros. Mises mostra que o fenômeno do ciclos econômicos, as alternâncias recorrentes de boom e bust com as quais nos familiarizamos muito, não pode ocorrer em um mercado livre e desimpedido. Nem são os ciclos econômicos uma série misteriosa de eventos aleatórios a serem verificados e neutralizados por um governo central sempre vigilante. Ao contrário, os ciclos econômicos são gerados pelo governo: especificamente, pela expansão do crédito bancário promovida e alimentada pela expansão governamental das reservas bancárias. Os atuais “monetaristas” enfatizaram que esse processo de expansão do crédito infla a oferta de dinheiro e, portanto, o nível de preços; mas eles negligenciaram totalmente o insight misesiano crucial de que uma consequência ainda mais prejudicial é a distorção de todo o sistema de preços e produção. Especificamente, a expansão de dinheiro bancário causa uma redução artificial da taxa de juros e um superinvestimento artificial e antieconômico em bens de capital: máquinas, instalações, matérias-primas industriais, projetos de construção. Enquanto a expansão inflacionária do dinheiro e do crédito bancário continuar, a insegurança desse processo será mascarada, e a economia poderá cavalgar na já conhecida euforia do boom; mas quando a expansão do crédito bancário finalmente parar, e precisa parar se quisermos evitar uma inflação galopante, então o dia do acerto de contas terá chegado. Pois, sem o anódino da inflação contínua do dinheiro, as distorções e mal alocações da produção, o superinvestimento em projetos de capital antieconômicos e os preços e salários excessivamente altos nessas indústrias de bens de capital tornam-se evidentes e óbvios. É então que a recessão inevitável se instala, a recessão sendo a reação pela qual a economia de mercado se reajusta, liquida os investimentos prejudiciais e realinha os preços e os outputs da economia de modo a eliminar as consequências prejudiciais do boom. A recuperação chega quando o reajuste é concluído.

É claro que as prescrições de políticas decorrentes da teoria misesiana dos ciclos econômicos são diametralmente opostas às políticas “pós-keynesianas” da economia ortodoxa moderna. Se houver inflação, a prescrição misesiana é, simplesmente, que o governo pare de inflacionar a oferta de dinheiro. Quando ocorre a recessão inevitável, em contraste à visão moderna de que o governo deve se apressar para expandir a oferta de dinheiro (os monetaristas) ou se envolver em gastos deficitários (os keynesianos), os austríacos asseveram que o governo deve manter suas mãos longe do sistema econômico — deve, neste caso, permitir que o doloroso, mas necessário processo de ajuste da recessão se resolva o mais rápido possível. Na melhor das hipóteses, gerar outra inflação para acabar com a recessão simplesmente abrirá o cenário para outra recessão, e mais profunda, mais tarde; na pior das hipóteses, a inflação simplesmente atrasará o processo de ajuste e, assim, prolongará a recessão indefinidamente, como aconteceu tragicamente na década de 1930. Assim, enquanto a ortodoxia atual sustenta que o ciclo econômico é causado por processos misteriosos dentro da economia de mercado e precisa ser contraposto por uma política governamental ativa, a teoria de Mises mostra que os ciclos econômicos são gerados pelas políticas inflacionárias do governo e que, uma vez em andamento, a melhor coisa que o governo pode fazer é deixar a economia em paz. Em suma, a doutrina austríaca é a única esposada consistentemente ao laissez-faire; pois, em contraste com outras escolas de economia de “livre mercado”, Mises e os austríacos aplicariam o laissez-faire tanto às áreas “macro” quanto às “micro” da economia

Se o intervencionismo é invariavelmente calamitoso e autodestrutivo, o que dizer da terceira alternativa: o socialismo? Aqui, Ludwig von Mises é reconhecido por ter feito sua contribuição mais conhecida para a ciência econômica: sua demonstração, há mais de cinquenta anos, de que o planejamento central socialista era irracional, uma vez que o socialismo não poderia se envolver naquele “cálculo econômico” de preços indispensável a qualquer economia moderna e industrializada. Somente um verdadeiro mercado, baseado na propriedade privada dos meios de produção e na troca de tais títulos de propriedade, pode estabelecer tais preços de mercado genuínos, preços que servem para alocar recursos produtivos — terra, trabalho e capital — para as áreas que irão satisfazer de forma mais eficiente as demandas dos consumidores. Mas Mises mostrou que mesmo se o governo estivesse disposto a esquecer os desejos do consumidor, ele não poderia alocar de forma eficiente para seus próprios fins sem uma economia de mercado para definir preços e custos. Mises foi saudado até pelos socialistas por ser o primeiro a levantar todo o problema do cálculo racional de preços em uma economia socialista; mas os socialistas e outros economistas presumiram erroneamente que Oskar Lange e outros haviam resolvido satisfatoriamente esse problema do cálculo em seus escritos da década de 1930. Na verdade, Mises antecipou as “soluções” de Lange e as refutou em seu artigo original.[9]

É altamente irônico que, assim que a profissão de economista se acomodou contente na noção de que a acusação de Mises havia sido refutada, quando os países comunistas da Europa Oriental começaram a descobrir, pragmaticamente e muito contra sua vontade, que o planejamento socialista era de fato insatisfatório, especialmente à medida que suas economias estavam se tornando industrializadas. Começando com a ruptura da Iugoslávia com o planejamento estatal em 1952, os países da Europa Oriental têm se afastado com uma rapidez surpreendente do planejamento socialista e em direção ao livre mercado, a um sistema de preços, a testes de lucros e perdas para empresas e assim por diante. A Iugoslávia tem estado particularmente determinada em sua mudança cumulativa em direção a um livre mercado e até mesmo longe do controle estatal de investimentos — a última fortaleza do governo em uma economia socialista. É lamentável, mas não surpreendente, que, nem no Oriente nem no Ocidente, o nome de Ludwig von Mises tenha sido citado como o profeta do colapso do planejamento central.[10]

Se está se tornando cada vez mais evidente que as economias socialistas estão entrando em colapso no Oriente, e, por outro lado, que o intervencionismo está caindo aos pedaços no Ocidente, então a perspectiva está se tornando cada vez mais favorável para ambos Oriente e Ocidente se voltarem em breve ao livre mercado e à sociedade livre. Para esse corajoso e dedicado campeão da liberdade, não poderia haver perspectiva mais bem-vinda em seu nonagésimo ano. Mas o que nunca deve ser esquecido é que esses eventos são uma confirmação e uma vindicação da estatura de Ludwig von Mises, e da importância de sua contribuição e de seu papel. Pois Mises, quase sozinho, nos ofereceu o paradigma correto para a teoria econômica, para as ciências sociais e para a própria economia, e é mais do que tempo de que esse paradigma seja abraçado, em todas as suas partes.

Não há conclusão mais adequada para um tributo a Ludwig von Mises do que as últimas frases comoventes de sua maior conquista, o Human Action:

O corpo de conhecimento econômico é um elemento essencial na estrutura da civilização humana; é a fundação sobre a qual o industrialismo moderno e todas as conquistas morais, intelectuais, tecnológicas e terapêuticas dos últimos séculos foram construídas. Cabe aos homens se irão fazer o uso adequado do rico tesouro que esse conhecimento lhes proporciona ou se o deixarão sem uso. Mas se eles falharem em tirar o melhor proveito dela e desconsiderarem seus ensinamentos e advertências, eles não anularão a economia; eles irão erradicar a sociedade e a raça humana.[11]

Agradecimentos em grande parte à vida e à obra de Ludwig von Mises, podemos realisticamente desejar e esperar que a humanidade irá escolher o caminho da vida, da liberdade e do progresso e, por fim, se afastará decisivamente da morte e do despotismo.

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Notas de rodapé

[1]Originalmente apareceu em Modern Age (Outono, 1961): 370-379.

[2]Filosoficamente, Kuhn tende a negar a existência da verdade objetiva e, portanto, nega a possibilidade de progresso científico genuíno. Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2ª ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1970).

[3]Sobre a sociologia da recepção de Velikovsky na comunidade científica, veja Alfred de Grazia, “The Scientific Reception Systems”, em The Velikovsky Affair, Alfred de Grazia, ed. (New Hyde Park, N.Y.: University Books, 1966), pp. 171-231.

[4]Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 53-56.

[5]De Grazia, “The Scientific Reception Systems”, p. 197.

[6]Ludwig von Mises, Human Action (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1949), p. 67.

[7]Ibid., pp. 755-56. Como Mises indica, a revolta contra a economia como precursora de uma economia de livre mercado é tão antiga quanto os economistas clássicos, os quais Mises reconhece como seus ancestrais. É nenhum acidente, por exemplo, que George Fitzhugh, o mais eminente defensor sulista da escravidão e um dos primeiros sociológos da america, bruscamente atacou a economia clássica como “a ciência de uma sociedade livre”, enquanto mantendo o socialismo como “a ciência da escravidão”. Veja George Fitzhugh, Cannibals All!, C. Vann Woodward, ed. (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1960), p. xviii; e Joseph Dorfman, The Economic Mind in American Civilization (New York: Viking Press, 1964), vol. 2, p. 929. Sobre o viés estatista e anti-individualista incrustado profundamente nos fundamentos da sociologia, veja Leon Bramson, The Political Context of Sociology (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1961), esp. pp. 11-17.

[8]Assim, veja Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit (Irvington-on-Hudson, N.Y.: Foundation for Economic Education, 1971).

[9]O clássico artigo de Mises foi traduzido como “Economic Calculation in the Socialist Commonwealth”, em Collectivist Economic Planning, F.A. Hayek, ed. (London: George Routledge and Sons, 1935), pp. 87-130. Os artigos de Mises e outros por Lange e Hayek foram reimpressos em Comparative Economic Systems, Morris Bornstein, ed., rev. ed. (Homewood, Ill.: Richard D. Irwin, 1969). Uma excelente discussão e crítica de toda a controvérsia pode ser encontrada em Trygve J.B. Hoff, Economic Calculation in the Socialist Society (London: William Hodge, 1949).

[10]Sobre a Iugoslávia, veja Rudolf Bicanic, “Economics of Socialism in a Developed Country”, em Comparative Economic Systems, M. Bornstein, ed., pp. 222–35; sobre os outros países da Europa Oriental, veja Michael Gamarnikow, Economic Reforms in Eastern Europe (Detroit, Mich.: Wayne State University Press, 1968).

[11]Mises, Human Action, p. 881.

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